Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1412/14.8TYLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
MÁ FÉ
Data do Acordão: 11/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PROVA DOCUMENTAL / PROVA TESTEMUNHAL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / CONSERVAÇÃO DA GARANTIA PATRIMONIAL / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de declaração, Coimbra, Almedina, 2018, p. 486, 487 e 796;
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª Edição, p. 286, 287, 397 e ss. e 431 e ss.;
- José Lebre de Freitas, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 436;
- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 2014, Coimbra Almedina, p. 215 e 709;
- Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 384;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume 1, Coimbra Editora, 1987, 4.ª Edição revista e actualizada, p. 313.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 396.º, 607.º, N.º 5 E 612.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 662.º, 674.º, N.º 3 E 682.º, N.º 3.
LEI GERAL TRIBUTÁRIA: - ARTIGO 75.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-10-2009, PROCESSO N.º 474/04.0TTVIS.C1.S1;
- DE 30-06-2011, PROCESSO N.º 6450/05.9TBSXL.L1.S1;
- DE 29-01-2014, PROCESSO N.º 208/06.5TBARC.P1.S1;
- DE 25-11-2014, PROCESSO N.º 6629/09.4TBBRG.G1.S1;
- DE 14-07-2016, PROCESSO N.º 377/09.2TBACB,L1.S1;
- DE 28-06-2018, PROCESSO N.º 1065/14.3TJVNF.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O artigo 662.º do CPC concede aos tribunais da Relação amplos poderes para reapreciar a matéria de facto, sendo que só excepcionalmente compete ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar a decisão que daí resulte, conforme resulta do disposto no artigo 674.º, n.º 3, e no artigo 682.º, n.º 3, do CPC.

II. Desde que observe as regras estabelecidas em matéria de direito probatório, nada impede o tribunal de convocar uma presunção judicial e de fundar nela a sua convicção de que o devedor e o terceiro agiram de má fé em sede de impugnação pauliana.

III. Tal presunção judicial não só é admissível como é oportuna, atendendo às reconhecidas dificuldades de prova do requisito da má fé exigido pelo artigo 612.º do CC para a impugnação pauliana de actos onerosos.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e BB

Recorridos: CC S.A. et al.

O CC (sucessor na posição do DD, S.A.) é portador de três livranças subscritas, entre 18.08.1992 e 21.09.1994, pela sociedade EE, S.A., que foi declarada falida por sentença transitada em julgado em 1999.

Os sócios da EE eram, entre outros, AA, que era o sócio maioritário e foi, a certa altura, designado Presidente do Conselho de Administração, FF e BB, que eram, respectivamente, a mulher e mãe de AA e foram, a certa altura, designadas vogais do Conselho de Administração.

AA e FF haviam aposto a sua assinatura nas livranças subscritas pela EE, sob a expressão "Por aval à subscritora”.

Por escritura pública, AA e FF venderam a BB, em 8.11.1994, uma fracção autónoma, para habitação, de prédio urbano e, em 20.03.1995, duas fracções autónomas do mesmo prédios urbano, correspondentes a garagens.

FF e AA foram declarados falidos, por sentença transitada em julgado em 2001, tendo a falência sido requerida em ambos os casos pelo CC.

O mesmo Banco intentou acção declarativa, peticionando que os contratos de compra e venda dos imóveis fossem declarados nulos com fundamento em simulação absoluta e, subsidiariamente, que fossem declarados ineficazes, por via da impugnação pauliana, e ordenada a restituição dos prédios, já que haviam sido praticados dois actos gratuitos ou, caso a venda tivesse sido real, se verificava a má fé de todos os contraentes.

Por sentença de 1.09.2017 (fls. 693 e s.), o Tribunal de 1.ª instância julgou improcedentes tanto o pedido (principal) de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda dos imóveis bem como o pedido (subsidiário) de declaração de ineficácia. Quanto a este último entendeu o Tribunal que, em conformidade com o disposto nos artigos 610.º e 612.º do CC, não sendo gratuitos os actos praticados, era necessária a má fé de todos os contraentes (a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor). Não era aplicável, in casu, a presunção do artigo 158.º do CPEREF porque os actos haviam sido praticados muito mais do que dois anos antes do início do processos de falência; não podia, por outro lado, dar-se por demonstrado o requisito da má fé (as ligações familiares e societárias apuradas não eram suficientes para esse efeito). Assim, não tinha aplicação o instituto da impugnação pauliana.

Irresignado com aquela decisão da 1.ª instância, veio o CC apelar para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Alegou o apelante haver errado julgamento da matéria de facto, impondo-se a eliminação dos factos considerados provados na sentença recorrida sob o número 20 (Até 1994 a Ré BB emprestou aos 1.º e 2.ª réus a quantia de 35.000.000$00 a qual foi investida na EE, S.A.) e sob o número 21 (As únicas dívidas dos 1.º e 2.ª Réus são as referidas em 1. a 6.) e o aditamento aos factos provados dos factos considerados não provados na sentença recorrida sob a alínea c) (Os réus celebraram as escrituras referidas em 9. e 10. para que as fracções ali referidas não fossem penhoradas pelas dívidas dos 1.º e 2.ª Réus), sob a alínea d) (A ré BB sabia que os réus AA e FF eram devedores à Autora das quantias referidas) e sob a alínea e) (As fracções referidas em 9. e 10. constituíam os únicos bens do património dos 1.º e 2.ª Réus).

Segundo o apelante, se a decisão de facto tivesse sido a propugnada por ele, o Tribunal recorrido teria dado por verificados todos os requisitos da impugnação pauliana e aplicado o respectivo instituto, razão pela qual – conclui ele – a sentença havia feito errada interpretação / aplicação do previsto nos artigos 611.º, 612.º e 342.º do CC e no artigo 414.º do CPC.

Contra-alegou AA, pugnando pela manutenção da sentença recorrida, por a matéria de facto estar devidamente fundamentada e decidida.

No seu Acórdão de 22.03.2018 (fls. 736 e s.), o Tribunal da Relação de Lisboa identificou duas questões:

1.ª) saber se, na decisão do Tribunal a quo, ocorria erro na apreciação dos meios de prova; e

2.ª) saber se, alterando-se a decisão de facto, devia ser dado provimento à acção e ao pedido subsidiário quanto à impugnação pauliana.

Apreciadas as questões, julgou o Tribunal procedente a apelação, decidindo:

1.º) alterar a decisão de facto positiva e negativa conforme propugnado pelo recorrente: e

2.º) declarar a ineficácia em relação ao Banco credor dos contratos de compra e venda e reconhecer a este último o direito de executar no património de AA e FF os bens alienados, na medida do necessário para a satisfação dos seus créditos, devendo ser praticados os actos de conservação patrimonial.

Inconformados, vêm agora AA e BB interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, visando a revogação do Douto Acórdão e a manutenção da decisão da 1.ª instância.

Sustenta, no essencial, o primeiro recorrente que o Tribunal da Relação violou o disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC e no artigo 396.º do CC, uma vez que alterou a matéria de facto sem que se verificasse a hipótese em que tal é, excepcionalmente, admissível (erro de apreciação da prova).

Sustenta a segunda recorrente que existe violação do disposto no artigo 342.º, nos artigos 349.º a 351.º e no artigo 612.º, todos do CC, do disposto no n.º 1 do artigo 75.º da Lei Geral Tributária e do disposto no artigo 414.º e no artigo 607.º, n.º 5, ambos do CPC. Alega, em síntese, que o Tribunal da Relação de Lisboa desrespeitou as regras sobre o ónus da prova, não podendo ter sido dados como provados requisitos da impugnação pauliana que cabia ao credor demonstrar (a má fé e a onerosidade do acto) e tendo sido desconsiderada uma presunção de veracidade de certos documentos fiscais que era favorável aos recorrentes.

O CC, S.A., apresenta as seguintes contra-alegações: quanto ao recurso de AA, que o poder jurisdicional se encontra esgotado quanto à decisão de facto e, por isso, não pode esta ser reapreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. artigo 674.º, n.º 3, do CPC); quanto às alegações de BB, que o Tribunal recorrido não excedeu os poderes que a lei lhe confere, ao abrigo do artigo 662.º do CPC, não existindo violação das regras do ónus da prova, e que a presunção de veracidade de certos documentos fiscais não é, pura e simplesmente, relevante para os efeitos pretendidos pela recorrente (dar como provado o seu empréstimo a AA), pelo que, também aqui, não houve qualquer desrespeito pela disciplina do ónus da prova.

Sendo o objecto do recurso, para lá das questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a decidir, in casu, são as de saber:

1.ª) se o Tribunal recorrido podia ter alterado a matéria de facto; e

2.ª) se deve ser julgada procedente a impugnação pauliana.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que se consideraram provados no Acórdão recorrido:

1. DD, S.A., é portador de uma livrança subscrita por EE, S.A., no valor de 3.500.000$00, emitida em 21/09/94 e vencida em 20/10/94, conforme certidão de fls. 55 a 56 dos autos, cujo teor se dá aqui como reproduzido.

2. No verso da livrança referida em 1., os Réus AA e FF apuseram a sua assinatura sob a expressão "Por aval à subscritora”.

3. DD, S.A., é portador de uma livrança subscrita por EE – …, S.A., no valor de 28.869.690$00, emitida em 18/08/92 e vencida em 02/08/95, conforme certidão de fls. 57 a 60 dos autos, cujo teor se dá aqui como reproduzido.

4. No verso da livrança referida em 3., os Réus AA e FF apuseram a sua assinatura sob a expressão "Por aval à subscritora".

5. DD, S.A., é portador de uma livrança subscrita por EE, S.A., no valor de 2.643.836$00, emitida em 18/08/92 e vencida em 02/12/97, conforme certidão de fls. 78 a 81 dos autos, cujo teor se dá aqui como reproduzido.

6. No verso da livrança referida em 5., os Réus AA e FF apuseram a sua assinatura sob a expressão "Por aval à subscritora".

7. A Autora intentou contra o 1.º e 2.ª Réus e contra EE - …, S.A., execuções para obter o pagamento dos montantes titulados pelas livranças e juros, conforme certidões de fls. 55, 57 e 78 dos autos, que aqui se dão por reproduzidos.

8. A Autora intentou contra os 1.º e 2.ª Réus acção ordinária de condenação pedindo a condenação destes no pagamento à Autora da quantia de 17.250.000$00, acrescida de juros vincendos à taxa de 18% ao ano desde 20/10/95 até efectivo e integral pagamento que corre termos sob o n.º 840/95, na 1.ª Secção do 11.º Juízo Cível de Lisboa, conforme certidão de fls. 61 a 69 dos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido.

9. Por escritura pública celebrada em 08/11/94, os Réus AA e FF declararam vender à Ré BB, que declarou comprar, livre de ónus, a fracção autónoma "…" correspondente ao 1.º andar direito, com terraço, para habitação, do prédio urbano sito na Rua .., números … a … a 6-6, …, ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..., freguesia de ..., omisso na matriz, pelo preço de 12.500.000$00, conforme certidão de fls. 11 a 14 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

10. Por escritura pública celebrada em 20/03/95, os Réus AA e FF declararam vender à Ré BB, que declarou comprar, livre de ónus e encargos, as fracções autónoma designadas pelas letras "…" e "…", localizadas no rés-do-chão, correspondentes às garagens n.º 7 e n.º 8 do prédio urbano sito na …, Quinta …, ..., Rua E, n.ºs … a …, freguesia de ..., concelho de ..., inscritas na matriz sob o artigo …, descritas na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., na ficha n.º …, ..., pelos preços de 300.000$00, cada, conforme certidão de fls. 15 a 18 dos autos cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

11. As aquisições referidas foram registadas a favor da Ré BB, conforme certidão de fls. 89 a 100 dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

12. Por sentença datada de 19/03/01, transitada em julgado em 09/04/01, no âmbito do processo especial de falência n.º 253/2000 do 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa foi declarada a falência de FF, pedida pela aqui Autora, conforme teor de fls. 131 e seguintes dos autos principais, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

13. Por sentença datada de 16/06/01, transitada em julgado em 12/07/01, no âmbito do processo especial de falência n.º 248/2000 do 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa foi declarada a falência de AA, pedida pela aqui Autora, conforme teor de fls. 74 e seguintes do apenso C, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

14. EE, S.A., com sede na Rua …, n.ºs 1 a 3, sub-cave, freguesia de …, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Loures sob o n.º …, conforme certidão de fls. 283 a 287 dos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido.

Foi registada a sua constituição em 19/08/86 como EE – …, Lda., com o capital social de 1.000.000$00, dividido da seguinte forma:

15.1. AA – uma quota de 900.000$00.

15.2. FF– uma quota de 100.000$00.

16. Em 11/09/91 foi registado o aumento do respectivo capital social para 50.000.000$00, subscrito pelos sócios AA com 39.150.000$00, FF com 4.350.000$00 e ainda 5.500.000$00 em dinheiro subscrito pela entrada de novos sócios, repartidos da seguinte forma:

16.1. GG: 5.000.000$00.

16.2. HH: 250.000$00.

16.3. BB: 250.000$00.

17. Na mesma data foi registada a transformação em sociedade anónima, tendo sido designados os seguintes membros dos órgãos sociais:

17.1. Conselho de Administração:

- Presidente – AA;

- Vogais – FF e BB.

18. Para o biénio 1993/94 foram novamente designados os seguintes membros do Conselho de Administração:

- Presidente – AA;

- Vogais – FF e BB.

19. Por sentença datada de 02/11/99, transitada em julgado em 12/12/99, foi declarada a falência de EE, S.A., falência requerida pela aqui Autora, conforme certidão de fls. 282 e seguintes dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

20. A 3.ª Ré pagou 9.000.000$00 ao II para desonerar os imóveis referidos em 9. e 10. da hipoteca.

21. A Ré BB é mãe do Réu AA.

22. Os Réus celebraram as escrituras referidas em 9. e 10. para que as fracções ali referidas não fossem penhoradas pelas dívidas dos 1.º e 2.ª Réus.

23. A Ré BB sabia que os Réus AA e FF eram devedores à Autora das quantias referidas.

24. As fracções referidas em 9. e 10. constituíam os únicos bens do património dos 1.º e 2.ª Réus.

São os seguintes os factos que se consideraram não provados no Acórdão recorrido:

a. As fracções referidas em 9. e 10. valiam, em Março de 1995, 25.000.000$00.

b. A Ré BB pagou aos Réus AAe FF e estes receberam as quantias de 12.500.000$00 e 600.000$00 referidas em 9. E 10..

c. As vendas referidas em 9. e 10. destinavam-se ao pagamento de débito anterior às datas referidas em 1. a 6..

d. As vendas referidas em 9. e 10. foram a forma célere encontrada pelos 1.º e 2.ª Réus de pagarem uma dívida que mantinham há cinco anos para com a 3.ª Ré.

e A 3.ª Ré, à data das vendas referidas em 9. e 10., encontrava-se acusada em processo crime, no qual sofreu um ano de prisão preventiva.

f. Os 1.º e 2.ª Réus tentaram chegar a acordo com a Autora.

g. Puseram à disposição da Autora todos os créditos da sociedade, no valor de 83.000.000$00.

h. As instalações da sociedade têm o valor de trespasse de 60.000.000$00.

i. O activo da sociedade, composto por mobiliário e mercadoria, vale 50.000.000$00.

j. Os créditos referidos em 1. a 6. mantêm-se sem satisfação por recusa da Autora em viabilizar um acordo.

k. Desde 1994 foram emprestados pelos respectivos sócios à EE, S.A., cerca de 50.000.000$00.

l. Quando a Autora cortou o crédito que a EE mantinha foi a 3.ª Ré que emprestou dinheiro à sociedade para o pagamento de trabalhadores e fornecedores.

m. AA disse à 3.ª Ré que a EE ia cessar actividade mas que tinha bens suficientes para saldar todas as dívidas.

O DIREITO

I. A 1.ª questão a decidir diz respeito à alteração da matéria de facto efectuada pelo Tribunal a quo e reside em saber se o Tribunal andou bem ou não ao proceder a tal alteração.

Cumpre dizer, desde já, que, em regra, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da matéria de direito.

De facto, no que toca à apreciação e à fixação da matéria de facto realizada pelas instâncias, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é residual e destina-se exclusivamente a garantir a observância das regras de direito material probatório ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, conforme resulta das disposições do n.º 3 do artigo 674.º e do n.º 3 do artigo 682.º do CPC[1].

Mais precisamente, e como se diz no primeiro daqueles dispositivos, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, só podendo o Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, quer dizer: quando tenha sido dado como provado determinado facto sem que tenha sido produzido o meio de prova de que determinada disposição legal faz depender a sua existência, quando tenha sido dado como provado determinado facto por ter sido atribuído a determinado meio de prova uma força probatória que a lei não lhe reconhece ou quando tenha sido dado como não provado determinado facto por não ter sido atribuído a determinado meio de prova a força probatória que a lei lhe confere[2].

Veja-se, então, para responder à 1.ª questão, se na alteração da matéria de facto se configurou alguma das hipóteses que justificam a intervenção excepcional do Supremo Tribunal de Justiça.

Verificado o cumprimento, pelo apelante, do ónus processual na impugnação da matéria de facto (cfr. artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), considerou – e bem – o Tribunal da Relação de Lisboa estar em condições de reapreciar a matéria de facto e, por fim, de a alterar nos termos bem explicitados no presente Relatório e que a seguir se esquematizam[3].

Na eliminação dos factos dados como provados pela 1.ª instância sob os números 20 e 21, motivou o Tribunal a sua decisão da seguinte maneira:
– quanto à eliminação do facto dado como provado sob o número 20 (Até 1994 a Ré FF emprestou aos 1.º e 2.ª réus a quantia de 35.000.000$00 a qual foi investida na EE, S.A.), resultava, de forma expressa, do relatório de avaliação pericial aos elementos contabilísticos da EE, S.A., composto, designadamente, de balancete, declaração fiscal da sociedade, extractos de contabilidade (fls. 296 e s.), não comprovado que o montante de 35.000.000$00 havia dado entrada na sociedade, assentando a convicção do tribunal de 1.ª instância exclusivamente nas declarações de FF, que, além do mais, eram contraditórias (fls. 747 e s.). Cumpria, pois, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do CC e do artigo 414.º do CPC, resolver as dúvidas em desfavor dos réus / apelados, dando-se o facto como não provado; e
– quanto à eliminação do facto dado como provado sob o número 21 (As únicas dívidas dos 1.º e 2.ª Réus são as referidas em 1. a 6.), competia aos réus / apelados provar a respectiva factualidade, apoiando-se, também aqui, a decisão de facto positiva do Tribunal de 1.ª instância exclusivamente nas declarações de FF (fls. 755 e 756). Não sendo este testemunho suficiente, cumpria, do mesmo modo, dar o facto como não provado.

Na aquisição dos factos dados como não provados pela 1.ª instância sob as alíneas c), d) e) motivou a sua decisão do seguinte modo:
– quanto à aquisição do facto dado como não provado sob a alínea c) (Os réus celebraram as escrituras referidas em 9. e 10. para que as fracções ali referidas não fossem penhoradas pelas dívidas dos 1.º e 2.ª Réus) e sob a alínea d) (A ré FF sabia que os réus AA e FF eram devedores à Autora das quantias referidas), os factos provados (designadamente, as relações familiares e societárias entre os sujeitos referidos) e as regras da experiência, da lógica e da vida impunham dar os factos como provados (fls 756 e s.); e
– quanto à aquisição do facto dado como não provado sob a alínea e) (As fracções referidas em 9. e 10. constituíam os únicos bens do património dos 1.º e 2.ª Réus), era aos réus / apelados que cumpria provar, nos termos do artigo 611.º do CC, a existência de outros bens de igual ou maior valor além dos bens objecto da escritura. Na falta dessa prova, impunha-se, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do CC e do artigo 414.º do CPC, resolver a dúvida contra os mesmos, dando o facto como provado (fls. 756 e 760).

Decorre disto, em síntese, que os meios de prova em que Douto Tribunal recorrido fundou a decisão de facto negativa e a decisão de facto positiva foram a prova pericial, a prova testemunhal e a presunção judicial.

No que toca à prova pericial e à prova testemunhal, a respectiva valoração está sujeita à livre apreciação do julgador, como resulta, respectivamente, dos artigos 389.º e 396º do CC.

Segundo o princípio da livre apreciação das provas, “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas. O que decide é a verdade material e não a verdade formal”[4].

A convicção atingida através destes meios de prova pelo Tribunal não é, justificadamente, objecto de sindicância, a não ser quando ocorra a violação de normas legais nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC e, em particular no caso de recurso de revista, do artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

Relativamente à presunção judicial, há que observar, em especial, o disposto no artigo 351.º do CC. Aí se estabelece que ela só é admissível “nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”. São aplicáveis, em particular, as normas dos artigos 392.º e 393.º do CC, respeitantes à admissibilidade e à inadmissibilidade da prova testemunhal.

Interpretando estas normas, é possível dizer, pela positiva, que a prova testemunhal e, consequentemente, as presunções judiciais são admissíveis sempre que não sejam directa ou indirectamente afastadas e não esteja em causa uma declaração negocial que tenha de ser reduzida a escrito ou necessite de ser provada por escrito ou um facto plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena[5].

Ora, é manifesto que, no caso em apreço, não se configura nenhuma das hipóteses em que a lei veda o recurso à prova testemunhal e, por remissão, às presunção judiciais.

Não existe, em síntese, erro ou violação de regras de direito probatório substantivo. Não existindo erro ou violação de regras do direito probatório substantivo, tão-pouco se vislumbra qualquer ilogicidade no juízo de inferência ou desconformidade com as regras da experiência comum, pelo que o resultado probatório obtido pelo Tribunal recorrido com apoio na presunção judicial não é sindicável[6].

Diga-se, aliás, que o funcionamento de presunções judiciais ou naturais de má fé no âmbito da impugnação pauliana de actos onerosos não só não surpreende como corresponde a uma prática bastante habitual, dadas as dificuldade de prova e a consequente relevância das regras da experiência. Vejam-se, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2014, Proc. 6629/09.4TBBRG.G1.S1, de 14.07.2016, Proc. 377/09.2TBACB,L1.S1, e de 28.06.2018, Proc. 1065/14.3TJVNF.G1.S1[7].

Vêm a propósito e são válidas para o caso em apreço as considerações feitas no sumário do Acórdão de 14.07.2016, acima referido: “[as] presunções [judiciais] são um meio frequente de provar os factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração direta, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afetiva ou volitiva, dos agentes visados. (…) No que respeita à sindicância, em sede de revista, sobre o uso de presunções judiciais pelas instâncias, tem-se admitido que o STJ só pode sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. No caso presente, em que está em causa a má fé dos contraentes na realização de ato oneroso de alienação objeto de impugnação pauliana, o uso das presunções judiciais, por parte do Tribunal a quo, ocorreu sobre matéria em relação à qual era perfeitamente admissível e até frequente o recurso a tais presunções, nos termos permitidos pelo artigo 351.º com referência aos artigos 392.º e seguintes do CC e artigo 607.º, n.º 5, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, sendo que tal utilização foi empreendida na esfera dos poderes de cognição do erro de facto amplamente traçados no artigo 662.º, n.º 1, deste último diploma. Por outro lado, não se divisa que os factos dados como provados pela Relação exorbitem a matéria alegada pelas partes nem que contrariem os demais factos ali também mantidos ou dados como provados. Por fim, no tocante às regras da experiência convocadas pelo Tribunal a quo, não se afigura que as inferências extraídas padeçam de ilogicidade evidente. Assim, respeitados que se mostram os parâmetros legais da utilização das presunções judiciais, seja em sede da sua admissibilidade, seja em sede dos seus pressupostos e da sua aparente logicidade, o invocado erro na apreciação dessas provas só seria porventura prescrutável mediante análise crítica da prova produzida, o que escapa à esfera de competência do tribunal de revista.

Para que não restem dúvidas, indique-se por que razão se considera não existir violação de qualquer das normas invocadas pelos recorrentes, seguindo, ponto por ponto, as alegações de cada um.

Não há violação, em primeiro lugar, do artigo 607.º, n.º 5, do CPC nem do artigo 396.º do CC, ao contrário do que alega o recorrente AA [conclusão L) das suas alegações] e ainda, no que respeita à primeira norma, a recorrente, BB [conclusão C) das suas alegações] porquanto o Tribunal recorrido reapreciou a decisão de facto no uso de poderes que lhe são conferidos pela lei, mais precisamente pelo artigo 662.º do CPC e, ao fazê-lo, não desrespeitou os limites do princípio da livre apreciação da prova estatuídos, designadamente, no artigo 607.º, n.º 5, do CPC.

Recorde-se, desde logo, que o artigo 662.º, n.º 1, do CPC estabelece que “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, afirmando, a propósito, Abrantes Geraldes que “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência ” e que “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”[8].

Recorde-se, depois, que o artigo 607.º, n.º 5, do CPC autoriza o juiz a apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto e que a este princípio (da livre apreciação da prova) apenas escapam os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial e aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. Como afirmam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre , “[h]oje a liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui a regra, sendo a exceção os casos em que a lei lhe impõe a conclusão a retirar de certo meio de prova”[9].

Não há violação, em segundo lugar, dos artigos 342.º, 349.º a 351.º e 612.º do CC, ao contrário do que alega a recorrente BB [conclusão A) das suas alegações].

O artigo 612.º do CC exige, para a impugnação pauliana de actos onerosos, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé, devendo entender-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

Nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, cabe, em regra, àquele que invoca o direito a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

Sucede que o Tribunal recorrido considerou existir, neste ponto, uma presunção judicial, ao abrigo do artigo 351.º do CC.

Ora, nada havendo nos factos dados como provados que pudesse tornar tal presunção duvidosa, a má fé dos contraentes ficou por esta via firmada.

A alegação da recorrente de que cumpria ao credor / aqui recorrido provar a gratuidade ou onerosidade dos actos não procede. Como é sabido, a qualificação dos actos pelas partes ou por terceiro não vincula o juiz, não estando este sujeito às alegações das partes no tocante à interpretação e à aplicação das regras de Direito (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC). A hipótese de os actos serem onerosos foi, aliás, expressamente admitida pelo credor / aqui recorrido no seu pedido subsidiário (“ainda que a venda tenha sido real”), sendo que o facto de o tribunal ter concluído que os actos eram onerosos significou apenas a necessidade de verificação de um requisito adicional da procedência da acção (a má fé de ambos os contraentes). Verificado este, a acção pode proceder sendo os actos onerosos e, por maioria de razão, se fossem gratuitos.

Não há violação, em terceiro lugar, do artigo 75.º da Lei Geral Tributária, ao contrário do que alega ainda a recorrente BB [conclusão B) das suas alegações]. E não há violação do artigo 75.º da Lei Geral Tributária, porque, como afirma a recorrente, este “estabelece uma presunção legal a favor dos contribuintes[10]”. A presunção tem, portanto, um alcance probatório limitado à relação jurídico-tributária[11]. Mesmo que assim não fosse, a presunção de veracidade da informação constante na declaração de rendimentos da sociedade (modelo 22) nunca teria aptidão para provar que a recorrente emprestou a AA e FF a quantia de 35.000.000$00 e que esta foi investida na EE, S.A., não sendo, em suma, relevante para o efeito de formar qualquer convicção sobre o facto em discussão.

Não há violação, por último, do artigo 414.º do CPC, ao contrário do que alega a recorrente BB [conclusão C) das suas alegações].

Determina o artigo 414.º do CPC que “[a] dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova [se] resolve[] contra a parte a quem o facto aproveita”. Como dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, “[o] conteúdo do preceito é de natureza substantiva, encontrando eco tanto no art. 342.º, n.º 2, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, deve considerar-se que os factos são de natureza constitutiva, como no art. 346.º do CC, quando a situação duvidosa decorre da apresentação de contraprova por uma das partes relativamente à prova apresentada pela outra”[12]. E no mesmo sentido se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, descobrindo no preceito, em rigor, duas normas (sobre a realidade do facto e sobre a repartição do ónus da prova), mas afirmando, em ambos os casos, o sua natureza substantiva[13].

Ora, sempre que o Tribunal fez uso do artigo 414.º do CPC fez dele um uso irrepreensível, tendo observado os seus pressupostos e retirado as devidas consequências: sendo duvidoso o empréstimo em causa e o investimento do montante emprestado à sociedade, deu o facto como não provado em prejuízo daqueles a quem o facto aproveitaria (os recorrentes); sendo duvidoso que as dívidas do casal A… ao recorrido eram as únicas dívidas do casal, foi o facto dado como não provado em prejuízo daqueles a quem o facto aproveitaria (os recorrentes); e na dúvida sobre se as fracções constituíam os únicos bens do casal foi o facto dado como provado em prejuízo daqueles a quem o facto aproveitaria (os recorrentes).

Conclui-se, assim, que, tendo o Tribunal recorrido observado as citadas regras de direito probatório material na avaliação da prova produzida, nada há a censurar-lhe quanto à apreciação e à fixação da matéria de facto.

II. Assente que está que o Tribunal da Relação de Lisboa tinha o poder de alterar a decisão sobre a matéria de facto e de que não cabe aqui reapreciá-la, é simples, perante os factos provados, responder à 2.ª questão, ou seja, se deve ser julgada procedente a impugnação pauliana.

Segundo o artigo 610.º do CC, “[o]s actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com a intenção de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) resultar do acto a impossibilidade para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade”.

E o artigo 612.º do CC acrescenta: “[o] acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé”.

Para a procedência da impugnação pauliana de actos onerosos, que é a hipótese presente, é necessário / suficiente a reunião de três requisitos: o crédito ser anterior ao acto; resultar do acto a impossibilidade de satisfação integral do credor ou o agravamento desta impossibilidade; e existir a má fé de ambos os contraentes.

O primeiro requisito verifica-se, como comprovam os pontos 1., 3., 5. e 9. e 10. dos factos provados.

Verifica-se também o segundo requisito, como comprova o ponto 24. (As fracções referidas em 9. e 10. constituíam os únicos bens do património dos 1.º e 2.ª Réus) dos factos provados, tal como alterados pelo Tribunal da Relação, decorrendo dele a impossibilidade de satisfação integral do credor ou o agravamento desta impossibilidade.

Verifica-se, por fim, o terceiro requisito. Este é encontrado através de um raciocínio presuntivo feito a partir dos pontos 22. (Os réus celebraram as escrituras referidas em 9. e 10. para que as fracções ali referidas não fossem penhoradas pelas dívidas dos 1.º e 2.ª Réus) e 23. (A ré JJ sabia que os réus AA e FF eram devedores à Autora das quantias referidas) dos factos provados, tal como alterados pelo Tribunal da Relação. Em conjunto, estes factos permitiram ao Tribunal concluir que ambos os contraentes tinham a consciência, de que a venda, do modo que foi feita, prejudicava o credor, isto, a má fé exigida pelo artigo 612.º, n.º 1, do CC. Como se referiu, o funcionamento de uma presunção judicial de má fé para efeitos de impugnação pauliana de actos onerosos não é pouco habitual, bem pelo contrário.

Verificando-se, in casu, os três requisitos legalmente exigidos para a procedência da impugnação pauliana de actos onerosos, não podia esta deixar de ser julgada procedente. Bem andou, por isso, o Douto Tribunal recorrido, quando deu provimento à apelação, nada mais restando a este Supremo Tribunal de Justiça senão confirmar a sua decisão.

                                                           *

III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                                                           *

Custas pelo recorrente.

                                                           *

      LISBOA, 27 de Novembro de 2018

           

             

Catarina Serra (Relatora)

Salreta Pereira

Fonseca Ramos

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[1] Sobre isto cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 397 e s. e pp. 431 e s.

[2] Cfr., neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, Proc. n.º 474/04.0TTVIS.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt).

[3] Procedeu bem o Tribunal da Relação pois, nestes casos, em que a alteração da decisão da matéria de facto implica a reapreciação de meios de prova sujeitos a livre apreciação, a intervenção da Relação pressupõe sempre o cumprimento do triplo ónus de impugnação nos termos do artigo 640.º do CPC. Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, volume I – Parte Geral e Processo de declaração, Coimbra, Almedina, 2018, p. 796.

[4] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 384.

[5] Segundo Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado – Volume 1 – (Artigos 1.º a 761.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1987 (4.ª edição revista e actualizada), p. 313], “[s]e a lei exclui, na prova de determinado facto, a admissibilidade de prova testemunhal, é porque exige um grau de segurança na prova desse facto que, por identidade ou por maioria de razão, as presunções [judiciais] não podem dar. Assim sucede, como se sabe, quanto aos factos contrários aos cobertos pela força probatória plena dos documentos (autênticos ou particulares)”. Em sentido idêntico se pronuncia, em anotação ao artigo 351.º do CC, José Lebre de Freitas [in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado – Volume I – (Artigos 1.º a 1250.º), Coimbra, Almedina, 2017, p. 436] quando diz que as limitações à admissibilidade da prova testemunhal advêm da sua maior falibilidade por confronto com a generalidade dos restantes meios de prova (prova documental, por confissão, pericial ou por inspecção, bem como prova por presunção legal).

[6] Com o mesmo raciocínio a propósito das presunções judiciais, veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2014, Proc. 208/06.5TBARC.P1.S1, ou, pela positiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.2011, Proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1, onde se diz que (só) “[c]abe no âmbito de um recurso de revista e nos poderes cognitivos que nele exerce o STJ controlar se a Relação extravasou os poderes de substituição ao tribunal recorrido na valoração da matéria de facto que resultam do preceituado no nº1 do art. 712º e, bem assim, se fez ou não um uso processualmente legítimo das presunções naturais, cuja substância ou conteúdo se não está, desta forma, a pretender sindicar” (disponíveis em www.dgsi.pt).

[7] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.

[8] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 286 e p. 287 (sublinhados do autor).

[9] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º – Artigos 1.º a 361.º, Coimbra, Almedina, 2014, p. 709.

[10] Sublinhados nossos.

[11] Recorde-se que o artigo 75.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária dispõe que “[se] presumem[] verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”.

[12] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I – Parte Geral e Processo de declaração, cit., pp. 486-487.

[13] Cfr. Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º – Artigos 1.º a 361.º, cit., p. 215.