Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SOUSA PEIXOTO | ||
| Descritores: | OMISSÃO DE PRONÚNCIA CONDENAÇÃO ULTRA PETITUM | ||
| Nº do Documento: | SJ200603140041424 | ||
| Data do Acordão: | 03/14/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Sumário : | 1. O D.L. n.º 73/90, de 6/3, que reformulou o regime legal das carreiras médicas deixou de ser aplicável à BB quando os seus Estatutos entraram em vigor em 25.11.91. 2. Deste modo, uma trabalhadora (médica) integrada na carreira médica de clínica geral, com a categoria de Assistente, vinculada àquela instituição por contrato individual de trabalho, que tenha obtido o grau de Consultor após aquela data de 25.11.91, não pode invocar o disposto no art. 23.º, n.º 1, al. b) do referido Decreto-Lei, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 210/91, de 12/6, para reclamar o reconhecimento da categoria de Assistente graduado a que automaticamente teria direito ao abrigo da disposição legal referida. 3. A atribuição daquela categoria obedecerá ao disposto no Regulamento de Carreiras Médicas Privadas, aprovado pela Mesa daquela instituição em 23.2.95. 4.A nulidade por omissão de pronúncia só existe quando a decisão não omite qualquer pronúncia sobre determinada questão. 5. Tal vício não ocorre quando o tribunal, invocando determinadas razões, deixa de conhecer da questão. 6. Realmente, como diz A. Reis, uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção. 7. A condenação extra vel ultra petitum só pode ter lugar quando isso resulte da aplicação de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho. 8. Assim, quando a pretensão do autor se fundamente em regulamento interno da empresa, o disposto no art.º 74.º do CPT não tem aplicação | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça: 1. "AA" propôs no Tribunal do Trabalho de Lisboa a presente acção declarativa contra a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pedindo que a ré fosse condenada: a) a reconhecer-lhe a categoria profissional de Assistente graduado da carreira médica de clínica geral, com efeitos a partir de 20 de Outubro de 1995 e a proceder à actualização do seu vencimento; b) a pagar-lhe a importância de 25.381,22 € (1), a título de diferenças salariais (21.676,22 €) e de juros de mora (3.705,00 €) vencidos até 15.7.2002, bem como as diferenças salariais e juros de mora que se vencerem até integral e efectivo pagamento. Em resumo, alegou que se encontra a trabalhar para a ré desde Novembro de 1984, exercendo as funções de médica de clínica geral, com a categoria de Assistente de clínica geral, mas que, nos termos do art. 23.º do Decreto-Lei. n.º 73/90, de 6 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 210/91, de 12 de Junho, tem direito à categoria profissional de Assistente graduado e ao correspondente vencimento, desde 20 de Outubro de 1995, por nesta data lhe ter sido conferido o grau de Consultora da carreira médica de clínica geral previsto no referido Decreto-Lei n.º 73/90. A ré contestou alegando que a sua relação com a autora é de direito privado (contrato de trabalho a tempo parcial) e que o regime previsto no D.L. n.º 73/90 deixou de lhe ser aplicável a partir de 26 de Novembro de 1991, data em que os seus Estatutos, aprovados pelo D.L. n.º 322/91, de 26/8, entraram em vigor. Com efeito, diz a ré, a situação da autora, bem como a de todos os médicos a si vinculados por contrato individual de trabalho, rege-se pelo "Regulamento das Carreiras Médicas Privadas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa", aprovado pela deliberação n.º 567/95 da respectiva Mesa, nos termos do qual a passagem à categoria de Assistente graduado não é automática, ao contrário do que acontece nos termos do Decreto-Lei n.º 73/90 aplicável aos médicos sujeitos ao regime da função pública. Após um primeiro julgamento que foi anulado pela Relação, a acção foi julgada totalmente improcedente. A autora recorreu, mas o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a sentença. Mantendo o seu inconformismo, a autora interpôs o presente recurso de revista, concluindo as suas alegações da seguinte forma: a) - A recorrente está sujeita ao Regime das Carreiras Médicas constante do Dec. Lei n° 73/90, de 6 de Março, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n° 210/91, de 12 de Julho; b) - Os direitos individuais da recorrente adquiridos no domínio da vigência do diploma legal citado na alínea anterior subsistem no domínio da respectiva relação de trabalho; c) - O Regime das Carreiras Médicas Privadas da recorrente, aprovado pela deliberação n° 567/95 da Mesa, não afecta dos direitos adquiridos e, naquilo que lhe é menos favorável, não lhe é aplicável; d) - À recorrente sempre assistia, no mínimo, o direito à progressão automática instituído no art.º 11.º, n.os 1 e 2 desse Regulamento; e) - À recorrente assiste o direito à promoção automática consagrado no art.º 23.º do Decreto-Lei n.° 73/90, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 210/91, desde 1995; f) - Mesmo que se entenda que o Regulamento das Carreiras Médicas Privadas da recorrida é aplicável, a recorrente tem direito à promoção automática à categoria de Assistente graduado (art.os 2.°, 3.°, 9.° n.° 1, al. a) e 2, alíneas a) e b), do Regulamento), uma vez que o regime instituído pelo art.º 12.° desse diploma, por ser menos favorável que o constante do art.º 23° do Decreto-Lei n.° 73/90, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 210/91, não prevalece sobre este (art.º 13.° da L.C.T. aplicável ao caso em apreço) ou não afecta os direitos anteriormente adquiridos (art.º 12.°, n.° 1, do Cód. Civil); g) - A questão da progressão automática a que alude o art.º 11.°, n.os 1 e 2, do Regulamento das Carreiras Médicas Privadas da recorrida é puramente de direito e não pode ter-se como nova, no sentido de excluída do âmbito dos poderes de cognição do Tribunal; h) - O douto acórdão recorrido infringiu o disposto nas disposições legais citadas nas alíneas anteriores e, ainda, nos art.os 74.° do Cód. de Processo do Trabalho e 664.° do Cód. de Processo Civil, incorrendo na nulidade prevista no art.os 668.°, n.° 1, al. d), deste último diploma legal. A ré contra-alegou, defendendo o acerto da decisão recorrida e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, em parecer a que as partes não responderam, pronunciou-se pela improcedência do recurso. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. 2. Os factos Os factos dados como provados são os seguintes: a) A autora e a ré celebraram entre si um contrato individual de trabalho em Novembro de 1984. b) Ficou estabelecido entre as partes que a autora desempenharia funções de médica de clínica geral, sob a autoridade e direcção da ré. c) Presentemente, a autora exerce a sua actividade no Centro de Saúde da ré, na freguesia do Castelo, em Lisboa. d) A autora tem actualmente a categoria profissional de Assistente de clínica geral e aufere mensalmente a quantia de 838,38 euros. e) Em 20.10.95, foi conferido à autora o grau de Consultora da carreira médica de clínica geral, previsto no Decreto-Lei n.º 73/90, de 6 de Março, na área profissional de clínica geral. f) A autora, desde 1995 e até à data da entrada da p.i., ganhou como Assistente, sendo o seu vencimento entre 1995 (5 meses) e 2002 (8 meses), respectivamente, de: 721,52 euros; 751,82; 775,11; 793,72; 815,94; 816,03; 816,03 e 838,38. g) O vencimento de Assistente Graduado, em tais períodos, correspondia aos valores das tabelas constantes do doc. de fls. 80 a 87, que se reproduzem. h) A autora pertence ao Serviço Nacional de Saúde, tendo sido integrada na categoria supra referida de Assistente graduada da carreira médica de clínica geral, com o grau de Consultor (doc. fls. 7). i) A ré aprovou o seu "Regulamento das Carreiras Médicas Privadas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa", em sessão da Mesa, através da deliberação n.º 567/95, conforme cópias de fls. 20 a 38, que se reproduzem. j) Em 9.03.90, autora e ré subscreveram um documento denominado contrato de trabalho a termo certo, dando-se por reproduzido o doc. de fls. 47 e 48. l) A autora intentou acção judicial contra a ré com vista a obter a declaração de validade e subsistência do contrato de trabalho verbal celebrado com a ré em Novembro de 1984. m) A acção correu termos sob o n.º 84/93, na 1.ª secção do 2.º juízo, do tribunal do Trabalho de Lisboa, sendo proferida sentença que decretou a validade e subsistência do contrato de trabalho de 1984, condenando a ré no pagamento retribuições de férias, subsídio de férias, e subsídio de Natal, conforme doc. fls. 56 a 70. n) Tal sentença transitou em julgado. o) A autora exercia a sua actividade perante a ré a tempo parcial, num período de dezanove horas semanais. p) A autora, no período compreendido entre 1995 e 2002, como Assistente, sempre se enquadrou no 3.º escalão. 3. O direito Como resulta das conclusões formuladas pela recorrente, as questões a apreciar são as seguintes: - saber se o acórdão recorrido enferma de nulidade por omissão de pronúncia; - saber se o regime das carreiras médicas contido no D.L. n.º 73/90, de 6 de Março é aplicável ao caso; - saber se a autora tem direito à progressão salarial. 3.1 Da nulidade do acórdão Como já foi referido, na petição inicial a autora pediu que a ré fosse condenada a reconhecer-lhe a categoria de Assistente graduada da carreira médica de clínica geral, com efeitos a partir de 20 de Outubro de 1995, baseando-se no disposto no art. 23.º do Decreto-Lei n.º 73/90, de 6 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 210/91, de 12 de Junho. Na 1.ª instância, a acção foi julgada improcedente com o fundamento de que o regime previsto no D.L. n.º 73/90 para o pessoal médico do Serviço Nacional de Saúde deixou de ser aplicável à ré a partir de 26 de Novembro de 1991, data em que os seus Estatutos entraram em vigor, passando a regulamentação das carreiras médicas a reger-se pelo Regulamento das Carreiras Médicas Privadas aprovado pela Mesa da ré. No recurso de apelação, a autora continuou a defender o direito a ser promovida automaticamente à categoria reclamada ao abrigo do disposto no art. 23.º do Decreto-Lei n.º 73/90 e, subsidiariamente, alegou que, independentemente da alteração da categoria, sempre teria direito à progressão salarial automática, com a consequente mudança de escalão, nos termos do art.º 1.º, n.os 1 e 2, do Regulamento acima referido. O Tribunal da Relação não conheceu da questão referente à progressão salarial, com o fundamento de que era uma questão nova, uma vez que só tinha sido suscitada no recurso. A autora entende que não se trata de uma questão nova, mas sim de uma mera questão de direito de que o tribunal recorrido devia ter conhecido dado que "[n]o domínio do processo do trabalho sempre se consagrou o dever de condenação "extra vel ultra petitum" (cfr. art.º 74.º do Cód. de Processo de Trabalho), sem sujeição aos limites vigentes no domínio do processo civil (art.º 661.º, n.º 1 do Cód. de Processo Civil)" e mesmo no domínio do processo civil sempre se reconheceu que, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o julgador não está sujeito às alegações das partes (art.º 664.º do Cód. de Processo Civil). E com esse fundamento, arguiu a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, invocando a tal respeito o disposto no art.º 668, n.º 1, alínea d), do CPC. No seu douto parecer, a Ex.ma magistrada do M.º P.º pronunciou-se pelo não conhecimento da nulidade, pelo facto de não ter sido arguida no requerimento de interposição do recurso, conforme prescreve o art. 77.º, n.º 1, do CPT. Acontece, porém, que o acórdão não enferma daquela nulidade, pela razão simples de que a nulidade por omissão de pronúncia só acontece quando a decisão omite qualquer pronúncia sobre determinada questão de que devia conhecer. Ora, não é isso o que acontece quando o tribunal, invocando determinadas razões, deixa de pronunciar-se sobre a questão. Como diz A. Reis (2), "[realmente uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção". Quando tal acontecer, poderemos estar perante um erro de julgamento, mas não estaremos seguramente perante uma nulidade da decisão. No caso em apreço, a Relação absteve-se de conhecer da questão referente à progressão salarial da autora, independentemente do reconhecimento à categoria de assistente graduado, com o fundamento de que essa questão não tinha sido colocada nem apreciada na 1.ª instância. Deste modo e face ao supra referido, o acórdão recorrido não enferma da nulidade que a recorrente lhe imputa. Pode ter decidido mal, mas isso veremos mais adiante. 3.2 Da aplicação do Decreto-Lei n.º 73/90, de 6 de Março O Decreto-Lei n.º 73/90 veio reformular o regime legal das carreiras médicas e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e, segundo o disposto no n.º 1 do seu art.º 2.º, "aplica-se ao pessoal médico dos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, neste caso até à entrada em vigor dos respectivos estatutos". Os estatutos da ré foram aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto e, segundo o disposto no art.º 3.º daquele Dec.-Lei, entraram em vigor 90 dias após a sua publicação, ou seja, em 25 de Novembro de 1991, o que significa que o Dec.-Lei n.º 73/90 deixou de ser aplicável à ré, a partir daquela data. Como já foi referido, na presente acção a autora pediu que a ré fosse condenada a atribuir-lhe a categoria profissional de Assistente graduado, com as consequências retributivas daí decorrentes, com efeitos a partir de 20 de Outubro de 1995, data em que obteve o grau de Consultor da carreira médica de clínica geral e fundamentou a sua pretensão no disposto no art. 23.º, n.º 1, al. b), do D.L. n.º 73/90, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 210/91, de 12 de Junho, nos termos da qual o recrutamento para a categoria de Assistente graduado, na carreira médica de clínica geral, é feito por "progressão dos assistentes habilitados com o grau de consultor, verificando-se a mudança de categoria a partir da data da obtenção do grau, ou de assistentes com, pelo menos, oito anos de antiguidade na categoria, mediante informação favorável de uma comissão de avaliação curricular". Para melhor compreensão da situação em apreço, importa referir que o D.L. n.º 73/90 prevê a existência de três carreiras médicas: carreira médica de clínica geral, carreira médica hospitalar e carreira médica de saúde pública (art. 14.º, n.º 1); fixa em três as categorias que integram a carreira médica de clínica geral: assistente, assistente graduado e chefe de serviços (art. 17.º, n.º 1); determina que a habilitação profissional dos médicos que integram a carreira médica de clínica geral (que era a carreira a que a autora pertencia), para efeitos de ingresso e acesso na carreira, é constituída por dois graus: generalista e consultor (art.º 22.º, n.º 1); e prescreve que os lugares das carreiras médicas são providos mediante concurso, com as excepções previstas no referido diploma" (art.º 15.º, n.º 1). Como emerge do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 23.º do Decreto-Lei. n.º 73/90, acima transcrita, o acesso à categoria de assistente graduado processa-se de forma automática, no que diz respeito aos médicos com a categoria de assistente que obtenham o grau de consultor, pois, como naquele normativo de diz, a mudança de categoria verifica-se a partir da data da obtenção do grau de consultor. Está provado que a autora obteve o grau de consultor em 20.10.95 (vide al. e) da matéria de facto supra). Tal facto dar-lhe-ia, portanto, o direito à categoria de assistente graduado, com efeitos a partir daquela data, se, nessa data, a sua relação laboral com a ré ainda fosse regulada pelo Decreto-Lei n.º 73/90, o que, de facto, já não acontecia, uma vez que, como já foi referido, aquele diploma só foi aplicável à ré até à data em que os seus Estatutos entraram em vigor, ou seja, até 25.11.91. A decisão recorrida foi nesse sentido, mas a autora mantém-se inconformada e, para sustentar a continuação da aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 73/90, alegou: - que a sua relação de trabalho com a recorrida remonta a 1984 e que, à data da entrada em vigor dos Estatutos da ré, aquela relação se encontrava moldada em função da legislação que anteriormente lhe foi aplicada, não podendo, por isso, ser-lhe retirados os direitos constituídos no âmbito dessa relação por força da legislação que lhe era aplicável, sob pena de violação do disposto no art. 12.º do C.C.; - que nem sequer se desenhava uma verdadeira oposição entre o direito individual à promoção por ela reclamado com o que decorre dos Estatutos da ré, uma vez que esta reconhece expressamente (artigos 8.º e 9.º da contestação) a coexistência de casos de médicos sujeitos ao regime das carreiras médicas contido no D.L. n.º 73/90 (os que fizeram a opção prevista no art.º 26.º do D.L. n.º 322/91) com casos de médicos sujeitos ao regime de carreiras médicas privadas instituído pela deliberação n.º 567/95 da Mesa da ré; - que sempre se legitimaria o recurso ao princípio do tratamento mais favorável, consagrado no art.º 13.º do regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969, uma vez que o critério de promoção definido no art. 12.º, n.º 1 dos Estatutos da ré é menos favorável que o regime de promoção automática constante do art.º 23.º do Decreto-Lei n.º 73/90, com as alterações introduzidas pela Decreto-Lei n.º 210/91. Vejamos se a argumentação da recorrente merece acolhimento. É verdade que a lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Di-lo o art. 12.º do Código Civil, no seu n.º 1. Acontece, porém, que o facto (a obtenção do grau de consultor) que, à luz do disposto no art. 23.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 73/90, daria à autora o direito a ser automaticamente promovida à categoria de assistente graduado ocorreu já depois de os Estatutos da ré terem entrado em vigor, ou seja, depois do Decreto-Lei n.º 73/90 ter deixado de ser aplicável à ré. Deste modo, o efeito jurídico de que a autora beneficiaria, ao abrigo do referido art.º 23.º, com a obtenção do grau de consultor, ainda não se tinha produzido quando aquele Decreto-Lei deixou de ser aplicável à ré. Por isso, a invocação do disposto no n.º 1 do art.º 12.º do C. C. não tem aqui cabimento. Tal invocação só fazia sentido se, à data em que os Estatutos da ré entraram em vigor, a autora já tivesse adquirido o direito à categoria de assistente graduado, o que, como já referimos não tinha acontecido. Na data em questão (25.11.91), a autora tinha apenas uma mera expectativa de vir a alcançar aquele direito. Acresce que o facto de a sua relação laboral com a ré ter sido regulada, durante anos, por determinado regime (o previsto no Dec.-Lei n.º 73/90) não constitui impedimento a que esse regime possa vir a ser alterado e até substituído por outro. É o que decorre do disposto na segunda parte do n.º 2 do art. 12.º do C.C., nos termos do qual é de entender que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor, quando ela dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem. No caso em apreço, anote-se, essa alteração de regimes estava, ab initio, expressa e categoricamente prevista no próprio Decreto-Lei n.º 73/90, que no n.º 1 do seu art.º 2.º claramente dizia que o regime nele estabelecido só era aplicável ao pessoal médico ao serviço da ré "até à entrada em vigor dos respectivos estatutos". Não procede, pois, a alegação produzida pela autora com base no disposto no art. 12.º do C.C.. E também não procede a sua alegação no que diz respeito à coexistência na ré de dois regimes profissionais diferentes. Vejamos porquê. Reconhece-se que essa coexistência de regimes é realmente possível. Com efeito, como resulta do disposto nos seus artigos 25.º e 26.º dos Estatutos da ré, os seus trabalhadores não estavam sujeitos ao mesmo regime jurídico. Uns estavam sujeitos ao regime do funcionalismo público (direito público), outros (como era o caso da autora) estavam sujeitos ao regime jurídico do contrato individual de trabalho (direito privado). Na verdade, o art. 25.º(3) dos Estatutos veio estabelecer que o regime jurídico aplicável passaria a ser o do contrato individual de trabalho e o art. 26.º (4) veio permitir que o pessoal com vínculo definitivo à ré pudesse optar pelo regime do contrato individual de trabalho, opção essa que tinha de ser definitiva e individualmente exercida por escrito, no prazo de 120 dias após a entrada em vigor dos Estatutos. Os que não exercessem essa opção mantinham todos os direitos e regalias de que eram titulares e eram integrados num quadro a criar especificamente para o efeito, cujos lugares serão extintos à medida que vagarem, sem prejuízo das respectivas carreiras (art. 27.º dos Estatutos). Ora, se os trabalhadores com vínculo definitivo podiam optar pelo regime do contrato individual de trabalho, isso significa que a relação laboral de alguns desses trabalhadores era regulada por outro regime que não o do contrato individual de trabalho. Deste modo, era perfeitamente possível que na ré coexistissem regimes profissionais diferentes, mas, desse facto, a autora não pode extrair qualquer argumento em prol da sua pretensão, uma vez que os direitos e deveres de cada trabalhador decorrem do regime jurídico que for aplicável à respectiva relação laboral e, no que à autora diz respeito, dúvidas não há de que a sua relação com a ré era, desde o início (Novembro de 1984), uma relação de contrato de trabalho, sujeita, portanto, ao regime por que se regula aquele contrato. Com efeito, está efectivamente provado que a autora e a ré celebraram entre si um contrato individual de trabalho em Novembro de (1984 al. a) da matéria de facto supra) e também está provado, conforme decidido foi com trânsito em julgado, na acção que, com o n.º 84/93, correu termos na 1.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, que a sua relação com a ré manteve sempre aquela natureza jurídica (vide alíneas m) e n) dos factos supra e a certidão judicial junta a fls. 56-70 dos autos). Por conseguinte, é absolutamente inquestionável que a relação existente entre as partes estava, desde o seu início, submetida ao regime jurídico do contrato individual de trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48.409, de 24 de Novembro de 1969 e que esse voltou a ser o regime aplicável quando o Decreto-Lei n.º 73/90 deixou ser aplicável à ré. Finalmente, também não procede a argumentação produzida pela autora com base no princípio do favor laboratoris. De facto, como refere Pedro Romano Martinez (5), a base legal do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador encontra-se nos artigos 13.º, n.º 1 e 14.º, n.º 2 da LCT e no art.º 14.º, n.º 2, alínea b) do Dec.-Lei n.º 519-C1/79, de 29/12, onde, a propósito do conflitos de normas, se considera que, em determinadas circunstâncias, vale a solução mais favorável para o trabalhador. Daqui, continua aquele autor, poderia retirar-se a prova da existência do favor laboratoris, como princípio geral do Direito do Trabalho, mas os artigos acima referidos só pretendem resolver os conflitos de normas, pelo que, apenas nessas situações, prevalece a norma onde se estabeleça um regime mais favorável para o trabalhador. Ora, sendo assim, como entendemos que é, o referido princípio não tem aplicação ao caso em apreço, uma vez que o Decreto-Lei n.º 73/90 deixara de ser aplicável à autora enquanto trabalhadora da ré, não havendo, por isso, qualquer conflito entre o regime estabelecido naquele diploma legal e o regime estabelecido no Regulamento das Carreiras Médicas Privadas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado pela respectiva Mesa em 23.2.95 (deliberação n.º 567/95). Com a entrada em vigor daquele Regulamento, a progressão na carreira passou a ser feita nos termos nele estabelecidos e, embora muitas das suas disposições tenham sido praticamente decalcadas do Decreto-Lei n.º 73/90, a verdade é que a mudança da categoria de Assistente para a de Assistente graduado deixou de depender apenas da obtenção do grau de Consultor, como claramente decorre do n.º 1 do seu art.º 12.º, cujo teor é o seguinte: "A promoção a assistente graduado operar-se-á de entre médicos habilitados com o grau de consultor ou com oito ou mais anos de exercício de actividade após a obtenção do grau de assistente mediante parecer favorável de uma Comissão de Avaliação Curricular". Na verdade, ao dizer-se naquele normativo que a promoção a assistente graduado operar-se-á de entre médicos habilitados com o grau de consultor (sublinhados nossos), está afirmar-se claramente (ao contrário do que era dito no art.º 23.º, n.º 1, al. b), do D.L. n.º 73/90) que a obtenção do grau de consultor não é suficiente para que a mudança de categoria aconteça. É necessário, ainda, que a ré se decida pela promoção, o que naturalmente fará quando e como bem entender, dentro dos parâmetros fixados no art.º 12.º do Regulamento em causa.. 3.3 Da progressão salarial Como já foi referido no ponto 3.1, a Relação não conheceu desta questão por entender que era uma questão nova, pois só na apelação tinha sido suscitada. A recorrente considera que, apesar disso, devia ter sido apreciada por ser uma questão de direito e por entender que o tribunal pode e deve condenar extra vel ultra extra petitum, por força do disposto no art.º 74.º do CPT. A recorrente tem razão quando diz que a questão é direito, mas esquece que o tribunal, mesmo em relação às questões de direito, só pode conhecer daquelas que as partes tenham submetido à sua apreciação, salvo se as mesmas forem de conhecimento oficioso (art.º 660.º, n.º 2, do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, por força do disposto no art.º 1.º, n.º 2, al. a), do CPT). Ora, sendo inquestionável que a questão em referência não foi suscitada na 1.ª instância, em relação à qual o autor nem sequer formulou qualquer pedido, e destinando-se os recursos a reapreciar as decisões já proferida e não à prolação de decisões novas, é evidente que a Relação só poderia (e deveria) conhecer daquela questão se ela fosse de conhecimento oficioso, o que não acontece. Mas será, como defende a recorrente, que a Relação devia tomar conhecimento da questão ao abrigo do disposto no art.º 74.º do CPT, nos termos do qual "[o] juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do art.º 514.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho"? Entendemos que não, pela simples razão de que o disposto no art. 74.º só é aplicável quando em causa estejam preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos regulamentação colectiva, o que não é o caso, uma vez que a recorrente fundamenta a sua pretensão de progressão salarial no art.º 11.º, n.os 1 e 2, do Regulamento das Carreiras Médicas aprovado pela ré. 4. Decisão Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar a decisão recorrida. Custas pela autora. Lisboa, 14 de Março de 2006 Sousa Peixoto Pinto Hespanhol Vasques Dinis ------------------------------------------- (1) - O valor inicialmente pedido foi de 20.891,40 € (17.806,79 € de diferenças salariais e 3.084,61 € de juros), mas esse valor foi posteriormente corrigido pela autora quando, acedendo ao convite do M.mo Juiz, veio completar a petição inicial. (2) - CPC anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, pag. 143. (3) - O art.º 25.º tem o seguinte teor: "O regime jurídico aplicável ao pessoal da Misericórdia de Lisboa, incluindo os seus departamentos, é o do contrato individual de trabalho, com as adaptações decorrentes dos presentes Estatutos." (4) - O art.º 26.º tem o seguinte teor: "1 - O pessoal com vínculo definitivo, à data da entrada em vigor dos presentes Estatutos, à Misericórdia de Lisboa tem o direito de opção definitiva e individual pelo regime jurídico do contrato individual de trabalho. 2 - A opção prevista no número anterior deve constar de documento particular, devidamente assinado, e determina a cessação do actual regime profissional. 3 - A opção referida no n.º 1 deve ser comunicada no prazo de 120 dias após a entrada em vigor dos presentes Estatutos." (5) - Direito do Trabalho, Almedina, pag. 217.218. |