Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1/20.2IFLSB-A.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
NULIDADE
INQUÉRITO
PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Um dos requisitos substanciais da admissibilidade do recurso extraordinário é, em apertada síntese, a oposição de acórdãos, isto é, a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito.

II. No acórdão recorrido estava em causa arguida “nulidade de insuficiência de inquérito por preterição da obrigatória notificação para comparência para a diligência de levantamento de selos para abertura de correio eletrónico e demais dados apreendido ou, caso assim não se entenda, irregularidade, com invalidade de actos subsequentes.” Acabou a arguição por ser julgada improcedente porque, além do mais, “inexiste no Código de Processo penal normativo legal que imponha que o levantamento de selo, em processo-crime, só pode ser efectuado na presença do arguido que presenciou a diligência”, o que levou a decidir como se decidiu, indeferindo a arguição de “nulidade de insuficiência de inquérito pela omissão de acto legalmente obrigatório” e negando provimento, também por aí, ao recurso do arguido.

III. Já no acórdão fundamento foi objeto do recurso, no para aqui pertinente, se “assiste ao recorrente o direito de assistir ao ato de levantamento dos selos”. Acabando a decidir-se que “tem o recorrente, porque assistiu à aposição do selo, o direito de assistir ao seu levantamento, seja qual for o selo utilizado.”

IV. Ora, lidas as asserções expressas que o Recorrente considera antagónicas não se mostra que entre elas haja antagonismo. Pela simples razão de que resolvem questões de direito não conflituantes. Uma dita a citada inexistência no Código de Processo Penal de normativo legal que imponha que o levantamento de selo, em processo-crime, só pode ser efectuado na presença do arguido que presenciou a diligência, não consubstanciando nulidade de insuficiência do inquérito a sua falta de notificação para o acto; a outra afirma que o recorrente, porque assistiu à aposição do selo, tem o direito de assistir ao seu levantamento, seja qual for o selo utilizado.

V. Mas, cabe aqui perguntar, aquela declarada inexistência de normativo de obrigatoriedade não comporta na sua implicitude a negação do direito do arguido assistir ao levantamento dos selos desde que tenha assistido á sua aposição?. É evidente que não. Porque à inexistência de obrigatoriedade não se equivale a inexistência do direito. Direito e não obrigatoriedade não são contraditórios e podem coexistir. A não obrigatoriedade não corresponde à negação do direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

I.1. AA, invocando os arts 437º, nºs 2 e 5, do CPP, vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência indicando como acórdão recorrido o acórdão da Relação de Lisboa de 08/03/2023 e como acórdão fundamento o acórdão da mesma Relação, proferido a 24/11/2022 no processo n.º 631/16.7....

Avança o Recorrente: “No espaço de quatro meses e no domínio da mesma legislação, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu dois acórdãos que assentam em soluções opostas, conduzindo a resultados diferentes relativamente à mesma questão de direito, como corolário de uma diversa interpretação da mesma norma jurídica – o artigo 184º do CPP.

“A concreta questão jurídica é a de saber se tem ou não o arguido (sendo possível a sua notificação) o direito de assistir ao ato de levantamento dos selos a cuja aposição presenciou?”

Indica-se como acórdão fundamento a decisão proferida pela 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em 24/11/2022 (em que foi relator o Venerando desembargador BB), que, no âmbito do processo nº 631/16.7..., que por isso revogou despacho que indeferira requerimento do arguido para assistir ao levantamento dos selos.

Pode ler-se no Acórdão em causa /negrito nosso): “A este respeito, rege o art. 184º do Código de Processo Penal:

Aposição e levantamento de selos

Sempre que possível, os objetos apreendidos são selados. Ao levantamento dos selos assiste, sendo possível, as mesmas pessoas que tiverem estado presentes na sua aposição, as quais verificam se os selos não foram violados nem foi feita qualquer alteração nos objetos apreendidos.

Assim sendo, tendo em conta o que da lei consta, e a que, igualmente, consta do auto de busca que o recorrente assistiu a esta, é de cristalina evidência que tem o direito de assistir à operação de levantamento dos selos, sejam eles quais forem.”

Quanto a esta mesma concreta questão, o Acórdão recorrido decidiu que o arguido não tem esse direito, porquanto “(…) inexiste no Código de Processo penal normativo legal que imponha que o levantamento de selo, em processo crime, só pode ser efectuado na presença do arguido que presenciou a diligência”, o que leva a decidir como decidiu, negando provimento ao recurso do arguido.”

A final, sugere o sentido em que a jurisprudência deverá ser fixada: “tendo o arguido assistido à aposição de selos em objetos apreendidos, tem o direito de assistir ao levantamento dos mesmos selos.”

I.2. Veio resposta do MP de que se transcrevem as conclusões:

1. Não estamos face a dois acórdãos que relativamente à mesma questão de direito, assente em soluções opostas.

2. Não se verifica, pois, a oposição de julgados pretendida pelo recorrente.

3. Não se verificam, assim, os requisitos legais previstos no art. 437º do CPP.

4. O que constitui causa de rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts 414º, nº 2, e 420, nº 1, al. b), do CPP.”

I.3. O Sr PGA junto do STJ emitiu parecer, onde concluiu, o seguinte:

“Não há oposição de julgados entre dois Acórdãos que decidem:

Um, que não é legalmente obrigatória a presença do arguido no acto de levantamento de selos de coisa apreendida;

O outro, que o visado tem o direito de estar presente nesse acto de levantamento.

Pelo que deve ser rejeitado o presente recurso (cfr, arts. 437º/1 e 441º/1 do Código de Processo Penal).”

I.4. Foi cumprido o artigo 417, nº 1, do CPP. Veio resposta do Recorrente mantendo a sua posição.

I.5. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Pressupostos do recurso

O recurso para a fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário cujo regime processual está fixado nos artigos 437º a 448º do CPP. Sendo que para o não especialmente regulado se aplicam subsidiariamente as disposições que regulam os recursos ordinários (448º).

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado, ut art. 445.º, n.º 3, do CPP, relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos de tribunais superiores com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.

Como o STJ o tem vindo a reiterar a interposição do recurso para fixação de jurisprudência depende da verificação de pressupostos formais e de pressupostos materiais. (cfr acórdãos 23.02.2022, proc. n.º 31/19.7GAMDA-A.C1-A.S, de 23/02/2022, 4/19.0T9VNC.G1-A.S1, de 30/06/2021, proc. nº 9492/05.0TDLSB-J.S1, de 9.10.2013, proc. nº 272/03.9TASX, e de 8.7.2021, 41/17.9GCBRG-J.G1-B.S1 e de 08/07/2021, (Pleno), proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1).

Constituem pressupostos formais da admissibilidade do Recurso para uniformização de jurisprudência,

(i) a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

(ii) a tempestividade;

(iii) a invocação e identificação de um único acórdão fundamento, com junção de cópia;

(iv) trânsito em julgado dos dois acórdãos de tribunais superiores conflituantes, ambos do STJ; ou ambos da Relação, ou um da Relação, o recorrido, de que não seja admissível recurso ordinário e o outro, o fundamento, do STJ, salvo se a orientação perfilhada no recorrido da Relação estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo STJ;

(v) justificação, de facto e de direito, da oposição.

Como pressupostos de natureza substancial identifica a jurisprudência os seguintes:


(i) proferimento dos dois acórdãos, sob o domínio da mesma legislação 437, nº 3;.

(ii) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; 437º, n-º 1;

(iii) as decisões em oposição sejam expressas;

(iv) as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões.

Neste caso, anotando-se que o acórdão fundamento transitou a 14/02/2023, estão preenchidos todos os requisitos formais.

II.2. Falta de antagonismo das decisões em causa

Um dos requisitos substanciais da admissibilidade do recurso extraordinário é, pois, em apertada síntese, a oposição de acórdãos, isto é, a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito. Todavia, “Acórdãos opostos sobre a mesma questão é uma frase que não quer exatamente- ou dizer apenas – aquilo que os seus termos parecem inculcar.” (in “Recursos em processo penal”, Simas Santos e Leal Henriques, Rei dos Livros, 1988). Porque, citando Alberto dos Reis: “Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas.” (in “Breve Estudo sobre a reforma do processo civil”, 2ª edição, pag 666).

No acórdão recorrido estava em causa arguida “nulidade de insuficiência de inquérito por preterição da obrigatória notificação para comparência para a diligência de levantamento de selos para abertura de correio eletrónico e demais dados apreendido ou, caso assim não se entenda, irregularidade, com invalidade de actos subsequentes.”1 Acabou a arguição por ser julgada improcedente porque, além do mais, “inexiste no Código de Processo penal normativo legal que imponha que o levantamento de selo, em processo crime, só pode ser efectuado na presença do arguido que presenciou a diligência”, o que levou a decidir como se decidiu, indeferindo a arguição de “nulidade de insuficiência de inquérito pela omissão de acto legalmente obrigatório” e negando provimento, também por aí, ao recurso do arguido.

Já no acórdão fundamento foi objeto do recurso, no para aqui pertinente, se “assiste ao recorrente o direito de assistir ao ato de levantamento dos selos”. Acabando a decidir-se que “tem o recorrente, porque assistiu à aposição do selo, o direito de assistir ao seu levantamento, seja qual for o selo utilizado.”

Ora, como resulta do breve esquisso que atrás se desenhou quanto às decisões e situações processuais que as determinaram, nem as situações se equivalem nem as decisões se reportam a mesma questão de direito.

A primeira situação é de verificação, ou não, de alegada insuficiência de inquérito por omissão de alegada obrigatória notificação para o acto de levantamento e, na decorrência, se tal conforma nulidade, ou não (art. 120º, nº 2, al. d), do CPP).

A segunda é da de saber se o arguido tem o direito de estar presente no ato de levantamento (artigo 184º do CPP).

Com o que desde logo se antevê que não sendo idênticas as situações de facto ou o iter jurídico-processual subjacente nunca as decisões poderiam se opor.

E donde inelutavelmente se conclui que, ao invés do alegado, não está em causa, nos dois acórdãos, uma diversa interpretação do artigo 184º do CPP.

Como atrás registámos, é necessário que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, ut art. 437º, n-º 1; e que as decisões em oposição sejam expressas.

Afirma o Recorrente que “A concreta questão jurídica é a de saber se tem ou não o arguido (sendo possível a sua notificação) o direito de assistir ao ato de levantamento dos selos a cuja aposição presenciou?”

E a fixação impõe-se, defende, porque o acórdão fundamento expressou que “Assim sendo, tendo em conta o que da lei consta, e a que, igualmente, consta do auto de busca que o recorrente assistiu a esta, é de cristalina evidência que tem o direito de assistir à operação de levantamento dos selos – sejam eles quais forem.”

E o acórdão recorrido, assinala o Recorrente, expressou antagonicamente que “(…) inexiste no Código de Processo Penal normativo legal que imponha que o levantamento de selo, em processo-crime, só pode ser efetuado na presença de arguido que presenciou a diligência.”

Ora, lidas as asserções expressas que o Recorrente considera antagónicas não se mostra que entre elas haja antagonismo.

Pela simples razão de que resolvem questões não conflituantes.

A primeira (no acórdão fundamento) dita que o arguido que assistiu à imposição dos selos tem direito a assistir ao seu levantamento. Em termos simples, o contrário explícito dessa asserção será: o arguido que assistiu á imposição dos selos não tem o direito de assistir ao seu levantamento. Mas o acórdão recorrido não confirma, nem assume, nem cobre esta negativa.

A segunda (no acórdão recorrido) prescreve que “(…) inexiste no Código de Processo Penal normativo legal que imponha que o levantamento de selo, em processo-crime, só pode ser efetuado na presença de arguido que presenciou a diligência.” O mesmo é dizer, não há obrigatoriedade legal da presença do arguido no acto de levantamento de selo.

O contrário explícito dessa negativa é: existe obrigatoriedade legal da presença do arguido no acto de levantamento de selo.

Pela convocação e afirmação dos contrários explícitos de cada uma se vê que não são contraditórias as asserções dos acórdãos.

Na primeira asserção está em causa a existência ou não de um direito. E afirma o acórdão fundamento a sua existência.

Na segunda está em causa a existência ou não de obrigatoriedade legal da presença do arguido no acto de levantamento. E dita o acórdão recorrido a sua inexistência. Mas tal inexistência não corresponde à negação do direito. Ao arguido pode ser-lhe atribuído o direito a estar sem que tenha obrigatoriedade de estar. As questões resolvidas por um e outro acórdão situam-se, portanto, em planos material, processual e funcionalmente distintos.

O artigo 184º consagra um direito, não especificamente para o arguido, mas sim um direito para todas as pessoas que tiverem estado presentes no acto de aposição dos selos. Um direito condicionado pela possibilidade de o fazerem ou de serem convocadas. A condição “sendo possível” mais não significa que inexiste obrigatoriedade da presença dos convocáveis e que se, por um lado, por eles, toda e qualquer causa de impedimento pode ser invocada para aí não comparecer, por outro, se a autoridade processual, por qualquer razão de impossibilidade, não lograr convocar todos os anteriormente presentes o acto não enfermará, por aí, de qualquer vício de invalidade.

Mas se o artigo 184º consagra um direito para todos os que, antes, assistiram à aposição, já do artigo 61º resultará logo um específico direito do arguido, querendo, de assistir a tal acto, desde que diretamente lhe diga respeito.

Todavia a presença do arguido não assume o carácter de princípio absoluto, de obrigatoriedade.

Configura-se antes como um direito disponível, que o arguido, enquanto sujeito processual autónomo e plenamente responsável, exercerá como entender.

O arguido tem o direito de estar, mas não é obrigatório que esteja. Ter o direito de estar no acto de levantamento é diferente de não ser obrigatório aí comparecer, mas direito e não obrigatoriedade não são contraditórios e podem coexistir.

A não obrigatoriedade não corresponde á negação do mesmo.

Mas, cabe aqui perguntar, aquela declarada inexistência de obrigatoriedade não comporta na sua implicitude a negação do direito do arguido assistir ao levantamento dos selos desde que tenha assistido á sua aposição?. É evidente que não. Porque à inexistência de obrigatoriedade não se equivale a inexistência do direito.

São termos em que, não se verificando o pressuposto de “soluções opostas”, exigido pelo artigo 437, nº 1, do CPP, o presente recurso terá de ser rejeitado

III - DECISÃO

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 437º, 438.º, n.º 1, 440.º, n.º 3, e 441.º, n.º 1, todos do C.P.P. por inexistência do requisito substancial de oposição expressa entre as convocadas decisões tomadas pelo acórdão recorrido e pelo acórdão fundamento, rejeita-se o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Custas pelo Recorrente fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UC’s.


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STJ, 17 de janeiro de 2024

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Teresa de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

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1. V., no acórdão, “2-QUESTÕES A DECIDIR”, b).