Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2930/18.4T8BRG.G1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: REVISTA EXCEPCIONAL
NULIDADE
Data do Acordão: 09/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- Não está ferido de nulidade o acórdão que especificou devida e exaustivamente os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b) do artº 615º), estando tais fundamentos numa relação clara e plenamente lógica com a decisão, que não incorreu em nenhuma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c), e que conheceu de todas as questões, e só delas, que foram postas ao seu conhecimento (al. d), não se devendo confundir “questões” com “argumentos”.

II- A simples discordância quanto ao decidido não constitui fundamento de nulidade.

Decisão Texto Integral:


Processo 2930/18.4T8BRG.G1.S2

Revista Excepcional

Recorrente: PAINEL 2000 – SOCIEDADE INDUSTRIAL DE PAINÉIS, SA

               

Acordam na Formação a que se refere o nº 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

Proferido o acórdão que deliberou rejeitar liminarmente o recurso de revista excepcional interposto pela Ré- Recorrente do acórdão do Tribunal da Relação, veio a mesma expor extensa e pouco clara argumentação, rematando da seguinte forma,  e passamos a citar:

“I – Ser declarada a violação do dever de julgar e com imparcialidade;

II – Ser declarada a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 615º;

III – Serem declaradas ambas as nulidades previstas na al. c) do nº 1 do artigo 615º:

IV – Serem declaradas ambas as nulidades previstas na al. d) do nº 1 do artigo 615º; e

V – Seja declarada a violação dos artigos 20º, nos 1 e 4, e 202º, nos 1 e 2, da C.R.P, com aplicação directa do disposto no artigo 18º, nos 1 e 2, da mesma Lei Fundamental”

O Autor- recorrido não apresentou resposta.

Cumpre apreciar e decidir:

Quanto ao ponto I acaba por não se perceber a que decisão ou decisões a Recorrente se refere. De qualquer forma, e sem entrar, naturalmente,  em considerações que utilizem termos análogos aos empregues pela Ré- recorrente, que optamos por não qualificar, sempre se dirá que não se vislumbra, nem nas decisões das instâncias, nem da deste STJ, qualquer violação do dever de julgar e/ou de imparcialidade.

No que respeita às nulidades apontadas, reconduzidas a diversas alíneas do artº 615º do CPC, que consideramos não estarem- pese embora todas as citações empregues e a extensão do alegado- devidamente concretizadas, elas não se verificam, tendo o acórdão apreciado o que tinha de abordar e sintetizado no respetivo sumário:

I - O recorrente que invoca, como fundamento de uma revista excepcional, as alíneas a), b) e c)   do nº 1 do artigo 672º do CPC tem o ónus de indicar “as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” e/ou “as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social” e/ou  “Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada”, sob pena de rejeição do recurso.

II - Não cumpre esse ónus o recorrente que se limita a, de forma vaga e genérica, invocar a errada apreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação e o desacerto no concreto estabelecimento do nexo de causalidade entre a violação de regras de segurança e a produção do acidente de trabalho, não identificando, com as necessárias concretização e especificação, a questão ou as questões que pretende submeter ao STJ,  que justifiquem a intervenção deste, e nada diz acerca da identidade da situação de facto exigida pela referida al. c)”.

O acórdão, como decorre da sua simples leitura, especificou devida e exaustivamente os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b) do artº 615º), tais fundamentos estão numa relação clara e plenamente lógica com a decisão, não incorre em nenhuma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c), e conheceu de todas as questões, e só delas, que foram postas ao seu conhecimento (al. d), não se devendo confundir “questões” com “argumentos”.

O que a Recorrente demonstra é a sua discordância quanto ao decidido, o que, como é sabido, não constitui fundamento de nulidade.

Finalmente, e quanto às inconstitucionalidades, também aqui a alegação está, salvo o devido respeito, longe de ser clara e esclarecedora.

De qualquer forma, e no que toca à limitação do direito ao recurso, permitimo-nos, pela sua pertinência e abrangência, citar o recente acórdão deste STJ e secção social de 30/03/2022, proc. 12429/18.3T8LSB. L1, no sentido de que a limitação do recurso a dois graus de jurisdição em casos como presente não viola o direito de “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva” consagrado no artigo 20º da CRP, nem nenhuma das restantes normais constitucionais invocadas.

Aí se escrevendo:

Este entendimento e interpretação, que perfilhamos, do artigo 671º, nº 3, do C.P.C., contrariamente ao que sustentam os reclamantes não viola o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa nem contende com qualquer outro preceito ou princípio constitucional. Com efeito,

Segundo jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional, recentemente reiterada no acórdão nº 70/2021, de 27 de Janeiro de 2021, no sentido de que, o direito de acesso aos Tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.

Por maioria de razão, a Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites ou ad infinitum (cf. Acórdão do TC nº 125/98). A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos “patamares” de recurso” (cf. Acs. do TC. nºs 72/99, 431/02, 374/02 e 106/06).

Tal como o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar uniformemente, não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, consagrado no citado artigo 20.° da Constituição, reconhecendo-se, nesse âmbito, ao legislador ordinário uma ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos, com o limite decorrente da própria previsão constitucional de tribunais superiores que lhe veda suprimir em blocos a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade.

Na mesma linha de entendimento, em recurso em que estava em causa a constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal segundo a qual não é admitido recurso de acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça quando tenham sido arguidas nulidades desse mesmo acórdão, sendo objecto do recurso saber se, tendo sido arguidas nulidades do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, é inconstitucional limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme, prevista nesse preceito, o Tribunal Constitucional no acórdão nº 659/11, de 21 de Dezembro, no qual afirmou o seguinte:

“Ora, sendo certo, conforme se disse, que o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, resta veri­ficar se, nos casos em que o Tribunal da Relação profere acórdão em que mantém a decisão condenatória da 1.ª instância e é arguida a nulidade de tal acórdão, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibili­dade de requerer uma reapreciação do objecto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.

Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resul­tado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle juris­dicional. E o facto de, na sequência dessa reapreciação, terem sido arguidas nulida­des do acórdão do Tribunal da Relação não constitui motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.

Com efeito, a circunstância de os recorrentes terem arguido nulidades do acórdão do Tribunal da Relação não modifica o objecto do processo uma vez que, tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prá­tica do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.

O Acórdão do Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pro­núncia sobre o objecto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.

Por outro lado, existindo sempre a possibilidade de arguir as referidas nulidades perante o tribunal que proferiu a decisão, mesmo quando esta seja irre­corrível, a apreciação de nulidades do acórdão condenatório não implica a necessi­dade de existência de mais um grau de recurso, tanto mais em situações, como a dos autos, em que existem duas decisões concordantes em sentido condenatório (uma vez que o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1ª instância nesse sen­tido).

Acresce que, se fosse entendido que a arguição da nulidade de um acór­dão proferido em recurso implicaria, sempre e em qualquer caso, com fundamento no direito ao recurso em processo penal, a abertura de nova via de recurso, ter-se-ia de admitir também o recurso do acórdão proferido na terceira instância, com fundamento na sua nulidade, e assim sucessivamente, numa absurda espiral de recursos”.

E mais à frente, apreciando a conformidade da interpretação normativa sindicada com o artigo 20º da Constituição, afirmando que: “A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protec­ção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente, o direito de agir em juízo através de um processo equi­tativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conforma­ção legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Impõe, no entanto, que no seu núcleo essencial os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma despropor­cionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Na interpretação normativa sob fiscalização não estamos perante uma situação de negação de acesso aos tribunais, mas sim de restrição do acesso, em via de recurso, a um determinado tribunal – o Supremo Tribunal de Justiça.

Conforme se referiu, a arguição de nulidade do acórdão proferido em recurso pelo Tribunal da Relação não tem de ser superada pela abertura de nova via de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo legítimo, como tem sido entendimento do Tribunal Constitucional, reservar a intervenção do Supremo Tribu­nal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, tenha sido aplicada. Por isso, o estabelecimento de um critério normativo que exclui o recurso nas aludidas situações, fundado em razões justificativas racionalmente inteligíveis, não contraria de forma alguma os princípios do acesso ao direito e aos tribunais e de um processo equitativo.

Assim sendo, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que interpreta­ção normativa objecto de fiscalização também não viola o disposto no artigo 20.º da Constituição ou qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o presente recurso não merece provimento”.

Este entendimento, perfilhado, no âmbito do processo penal, no acórdão citado, e anteriormente no acórdão nº 390/2004, de 2 de Junho de 2004, no qual foi afirmado que “a apreciação de nulidades de acórdão condenatório não postula a necessidade de existência de mais um grau de recurso. A reclamação perante o órgão jurisdicional que exerce o segundo grau de jurisdição configura-se, assim, como um instrumento jurídico adequado de garantir o acesso aos tribunais, na sua dimensão de direito a obter uma decisão formalmente válida, que é a dimensão que o recorrente aqui questiona. Aliás, admitindo-se a constitucionalidade das normas que prevêem a existência apenas de um duplo grau de jurisdição, mesmo quando está em causa a “bondade” do julgamento efectuado, maiores razões existem para não se terem por desconformes com a Lei Fundamental aquelas disposições que limitam o recurso ao mesmo segundo grau de jurisdição em caso de existência de nulidades da decisão, que advêm essencialmente da violação de regras processuais ou procedimentais, quando está aí garantido o direito de reclamação para apreciação dessas nulidades para o órgão jurisdicional que exerceu o último grau de jurisdição”, reiterada depois nos acórdãos nº 194/12, de 18 de abril de 2012, nº 399/2013, de 15 de Julho, e  nº 290/14, de 26 de março de 2014, é transponível, mutatis mutandis, para o domínio do processo civil e aplicável no caso vertente.

Não se mostra, pois, em suma e conclusão, violado, na interpretação perfilhada do artigo 671º, nº 3 do Código de Processo Civil, o disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa”.

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Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em indeferir a reclamação  da Ré- Recorrente.

Custas pela Reclamante, com 3 UC de taxa de justiça.

                                                                                             

Lisboa, 07/09/2022

Ramalho Pinto (Relator)

Mário Belo Morgado

Júlio Vieira Gomes

                                                                              

  

Sumário (elaborado pelo Relator).