Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
529/10.2TBRMR-C.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
MÁ FÉ
IMPUGNAÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / APLICAÇÃO DAS LEIS.
DIREITO FALIMENTAR - MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / CLASSIFICAÇÃO DE CRÉDITOS - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013303/305.
- Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129.
- Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004.
- Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da massa Insolvente, 2008, 41, 61/77.
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5ª edição, 210.
- Menezes Leitão, Código da Insolvência e Recuperação de Empresa Anotado, 6ª edição, 96/97.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 11.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 46.º, N.ºS 1 E 2, 49.º, N.º1, 120.º, N.º4, 121.º, N.º1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25 DE MARÇO DE 2014, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I Tendo uma sociedade, oito meses antes de dar entrada em juízo do processo onde veio a ser declarada insolvente, procedido à escritura de venda de um imóvel a favor da viúva de um primo de um dos sócios da insolvente, preenche-se a presunção prevista no nº 4 do art. 120º do CIRE.

II Tal relação familiar (primos), embora não quadre nenhuma das consignadas especificamente no artigo 49º, nº1 do CIRE, nele poderá ser abrangida, por interpretação extensiva, sendo a enunciação aí feita,  meramente exemplificativa.

III Apurando-se não ter sido paga qualquer quantia  a titulo de preço, a invocada «venda», sempre poderia ser subsumida no preceituado na alínea b) do nº1, do artigo 121ºdo CIRE, por se apresentar como um negócio gratuito celebrado pelo devedor nos dois anos anteriores à data do inicio do processo e assim sendo, resolúvel a titulo incondicional.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I G intentou ação contra a Massa Insolvente de A - Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda., representada pelo Sr. Administrador da Insolvência, pedindo que seja dada sem efeito a resolução do contrato de compra e venda, invocada pelo administrador da insolvência, titulado por escritura de 23-04-2010, declarando-se esta válida e eficaz.

Para tanto, alegou, em síntese:

O Sr. Administrador da Insolvência comunicou-lhe a resolução do contrato de compra e venda, para restituição à massa insolvente da fracção H… do prédio sito na Rua …., que, por escritura de 23-04-2010, adquiriu por compra à sociedade A, anteriormente designada J – Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda., pelo preço de €120.000,00.

A Autora foi casada com A, falecido a 12-06-2007, que tinha uma empresa que se dedicava à carpintaria, fazendo fornecimentos e prestando serviços à insolvente.

Por contrato celebrado em 05-01-2007, aquele comprometeu-se a fornecer à insolvente toda a carpintaria para 38 das 39 moradias que aquela tinha em construção no lugar da …, ficando a insolvente de entregar àquele uma das 39 moradias, sem carpintaria, portão da garagem ou gradeamento exterior.

A começou a fornecer a carpintaria para as moradias, ficando acordado que as facturas seriam emitidas aquando da outorga da escritura da moradia.

Quando A faleceu, estava fornecida e assente a carpintaria de 11 vivendas, tendo sido a Autora a acabar mais 3 moradias.

A insolvente suspendeu o fornecimento, por estar com dificuldades na venda das moradias.

A insolvente devia, além do fornecimento das carpintarias das 14 moradias, várias facturas relativas ao Centro de Dia …, à escola de … e à biblioteca de …, tudo no valor de €93.296,92.

A insolvente deu em dação a moradia, outorgando a escritura de compra e venda, no valor de €120.000,00, pagando a Autora a diferença, em numerário, no dia da escritura.

À data da escritura não constava que a insolvente estivesse em sérias dificuldades, nem a autora sabia da situação daquela, sabendo apenas que ela tinha muito dinheiro a receber das Câmaras Municipais.

A Ré contestou, em síntese:

A escritura de compra e venda foi celebrada escassos meses antes do início do processo de insolvência.

Impugna a entrega em numerário de uma soma tão precisa e avultada aquando da outorga da escritura.

A autora invoca ter a receber da insolvente €88.465,69 mas a verdade é que a soma das facturas juntas ascende a €93.296,92.

A existir tal crédito, não pertence à Autora, mas sim à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A.

A venda é uma doação, pois a insolvente não recebeu qualquer contrapartida da Autora.

O falecido A era primo de J, sócio da insolvente, relação de proximidade que se estendia também à Autora, pelo que sempre esta teria de saber da difícil situação económica da insolvente.

Realizado o julgamento, a acção foi julgada totalmente procedente e declarada ilícita a resolução operada pelo Sr. Administrador da Insolvência.

Inconformada, a Massa Insolvente recorreu, tendo o recurso sido julgado procedente, revogada a decisão recorrida e, em consequência foi a acção julgada totalmente improcedente, mantendo-se a resolução operada pelo Administrador da Insolvência através da carta datada de 21 de Março de 2011, quanto à descrita escritura de compra e venda celebrada entre a Autora e a Insolvente no dia 23 de Abril de 2010.

Deste Acórdão recorreu a Autora, agora de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- O contrato de permuta, feito em 5.01.2007, é válido e não foi posto em causa, considerando-se a escritura de compra e venda, como a conclusão do mesmo;

- A recorrente podia, como o fez, acordar a partilha com as filhas e tal acordo é válido e eficaz;

- Tendo havido acordo de partilhas, a recorrente é a verdadeira titular dos créditos e débitos compensados com a outorga da escritura;

- A junção, nesta fase, das escrituras de venda e do acordo de partilhas, é legal, porque enquadrável no artigo 651 ° n°1;

- Os pressupostos referidos no artigo 120° n° 4 do CIRE têm de ser referidos à data do contrato de permuta e não da escritura de compra e venda, o que ocorreu muito antes dos dois anos anteriores à insolvência e, à data, não havia quaisquer sinais, exteriores ou mesmo interiores, que pudessem levar alguém a pensar que a A - Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda. estava na eminência de insolvência.

- Uma relação de meros primos, sem se saber qual é o grau, não pode considerar-se uma relação especial enquadrável no n° 4 do artigo 120° do CIRE;

- Se a A. ficou com uma vivenda por compensação com um crédito de 90.486,96€, que      tinha sobre a insolvente e ainda lhe pagou o diferencial em numerário, não pode considerar-se um aproveitamento para prejudicar os credores;

- Se há, pelo menos, uma vivenda que foi vendida pronta e acabada, por 130.000,00€, e a recorrente recebe em permuta, uma vivenda por acabar, no valor de 120.000,00€, não pode dizer-se que ficou com ela por um preço inferior ao real.

- Tendo em conta que a recorrente era credora da insolvente e, com base no acordo de partilhas, era credora de uma dívida vencida, de 90.486,96€ e até forneceu ainda três vivendas e pagou o resto em numerário, não pode considerar-se que estamos perante um acto gratuito, que prejudicou a massa insolvente, enquadrável no artigo 1210 n°1 alínea b) do CIRE;

- Na verdade, se a insolvente, à custa da empresa da recorrente, viu fornecidas as carpintarias para 14 vivendas, que não foram pagas e nem esta, nem a empresa, aparecem sequer como credoras da massa insolvente no processo de insolvência, é até esta que se vê beneficiada;

- A decisão recorrida, violou, além do mais, os artigos 405° e 406° do CC e 120º nº 2, 3 e 4 e 121º nº 1 alíneas b) e h) do CIRE e também o artigo 674º nº1 alínea a) do CPC.

Nas contra alegações a Insolvente pugna pela manutenção do julgado.

II O único problema de que se cura aqui é o de saber se foi ou não operante a resolução do contrato a favor da massa insolvente operada pelo respectivo administrador.

O segundo grau declarou como assentes os seguintes factos:

- A sociedade A – Sociedade de construção civil e obras públicas, Lda., anteriormente designada J - Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de … e tem como sócios J e M V, exercendo esta última a gerência, tendo por objecto a construção civil e obras públicas, compra e venda, compra e venda de imóveis para revenda.

- Por documento escrito datado de 05-01-2007, que as partes intitularam “Contrato de permuta”, M V, na qualidade de sócia gerente de J - Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda. declarou aceitar o orçamento de carpintaria de 38 moradias, pelo valor de €151.734,00, acrescidos de IVA e vender a fracção autónoma designada pela letra H sita …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, pelo preço de €120.000,00, com IVA incluído, e A declarou aceitar para pagamento do orçamento acima indicado, a vivenda designada pela letra H, pelo preço de €120.000,00, com IVA incluído, sendo os restantes €31.743,00 em 5 tranches de €6.346,80 acrescidos de IVA, por cada fase concluída. (A))

- Sob a designação Móveis e Carpintaria, foram emitidos e entregues a J - Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda., os seguintes documentos:

i. Orçamento n.º 104, datado de 20-08-2006, com vencimento em 20-07-2006, no valor de €4.831,53;

ii. Factura n.º 2188, datada de 07-05-2007, com vencimento em 06-06-2007, no valor de €5.944,73;

iii. Factura n.º 2189, datada de 08-05-2007, com vencimento em 07-06-2007, no valor de €60,50;

iv. Factura n.º 2211, datada de 17-08-2007, com vencimento em 16-09-2007, no valor de €6.544,16;

v. Factura n.º 2217, datada de 12-03-2008, com vencimento em 11-04-2008, no valor de €28.000,00;

vi. Factura n.º 2218, datada de 04-12-2008, com vencimento em 03-01-2009, no valor de €28.653,00;

vii. Factura n.º 2219, datada de 05-12-2008, com vencimento em 04-01-2009, no valor de €19.263,00; (D))

- O valor do orçamento aludido em C, al. i) referia-se a cada uma das 38 moradias, no montante global de €151.734,00 acrescido de IVA. (ponto 1. da base instrutória)

- Em 12-06-2007 estava fornecida e assente a carpintaria de 11 vivendas. (ponto 2. da base instrutória)

- A faleceu em 12-06-2007, no estado de casado com G. (B))

- Por escritura pública de habitação de herdeiros, outorgada em 22-10-2007, no Cartório Notarial de …, constam como únicas e universais herdeiras de A, G, M E e C E. (C))

- Depois de 12-06-2007, a Autora ainda manteve a actividade do estabelecimento do seu falecido marido, que forneceu carpintaria para mais 3 moradias. (ponto 3. da bse instrutória)

- Nessa altura, a Insolvente mandou suspender o fornecimento de carpintarias por estar com dificuldades na venda e não querer endividar-se mais. (ponto 4. da base instrutória)

- Em 23-04-2010, a A – Sociedade de construção civil e obras públicas, Lda. era devedora a Móveis e Carpintaria de quantia não completamente esclarecida. (ponto 5. da base instrutória)

- No dia 23-04-2010, no Cartório Notarial de …, a insolvente, representada por M V, declarou que pelo preço já recebido de €120.000,00 vende a G, a fracção autónoma designada pela letra H correspondente a moradia, a oitava a contar de nascente para poente, destinada a habitação e um abrigo de viatura, fracção esta pertencente ao prédio urbano sito na Rua …., descrito na Conservatória do Registo Predial de …. (E))

- Em 10-08-2010, a sociedade P – Serviços, Lda. Intentou contra A – Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda. a acção em que pedia a declaração de insolvência desta;

- Por decisão proferida em 15-11-2010, transitada em julgado em 20-12-2010, A – Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda., anteriormente designada J – Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda, foi declarada insolvente, tendo sido nomeado Administrador da insolvência J C; (F))

- No dia 21-03-2011 J C Administrador da Insolvência da RÉ, enviou à autora, que recebeu, uma carta em que declarava que enquanto Administrador da Insolvência da massa insolvente de A – Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda. e nos termos do disposto no artigo 120.º, e seguintes do CIRE, mormente no seu artigo 123.º, procedia à resolução do acto jurídico consubstanciado na transmissão do prédio acima identificado, pelo que não se reconhecendo tal contrato é o mesmo ineficaz em relação àquela massa, porquanto “resulta claro que tal venda revestiu encapotadamente uma doação e forma de subtrair o bem imóvel do acervo de bens afectos ao pagamento dos créditos sobre a insolvente, uma vez que não houve entrega efectiva da quantia supra referida e devida a titulo de preço de compra, além de que a simulada compra foi efectuada pouco mais de 3 meses antes do inicio do processo de insolvência e claramente nos dois anos anteriores à decretação desta, pelo que dentro do prazo que a lei define como presunção de má fé na venda de bens propriedade da insolvente, tendo resultado efectivamente num acto de disposição patrimonial prejudicial à massa insolvente, diminuindo e frustrando dessa forma a satisfação dos credores da massa insolvente. Mais se verifica que V.ª Ex.ª é familiar dos gerentes da empresa, designadamente M V e de J que não adquiriu tal fracção para sua habitação própria e permanente, pois se assim fosse, já teria alterado a sua morada fiscal e residiria no prédio objecto da escritura de compra e venda (…)”. (G))

- Em 01-04-2011, a autora intentou a presente acção declarativa de condenação em que, além do mais, pede seja dada sem efeito a resolução do acto jurídico consubstanciado na transmissão do imóvel a favor da autora. (I))

- A e J são primos. (H))

- A autora não transferiu para o imóvel a sua residência, sendo a sua filha quem ali reside. (ponto 10. da base instrutória)

- Ao celebrar o contrato aludido em E), a insolvente e a autora sabiam estar a frustrar a satisfação dos credores da primeira, agindo com esse intuito. (ponto 7. da base instrutória)

- Pelo declarado em E), a autora nada pagou à insolvente. (ponto 9. da base instrutória)

Insurge-se a Recorrente contra ao decisão plasmada no Aresto impugnado, porquanto, na sua tese os pressupostos referidos no artigo 120º, n° 4 do CIRE têm de ser referidos à data do contrato de permuta e não da escritura de compra e venda, o que ocorreu muito antes dos dois anos anteriores à insolvência e, à data, não havia quaisquer sinais que pudessem levar alguém a pensar que a A  – Sociedade de Construção Civil e Obras Públicas, Lda., estava na eminência de insolvência. Por outro lado, acrescenta que uma relação de meros primos, sem se saber qual é o grau, não pode considerar-se uma relação especial enquadrável no nº 4 do artigo 120º do CIRE, sendo certo que se a Autora ficou com uma vivenda por compensação com um crédito de 90.486,96€, que      tinha sobre a insolvente e ainda lhe pagou o diferencial em numerário, não pode considerar-se um aproveitamento para prejudicar os credores.

Vejamos.

O processo de Insolvência constitui um procedimento universal e concursal, cujo objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores: concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a nele intervirem, seja qual for a natureza do respectivo crédito e, por outro lado, verificada que seja a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional por todos os credores as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum); é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, nº1 e 2 do CIRE, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente.

A massa abrange assim, a totalidade do património do devedor insolvente, susceptível de penhora, que não esteja excluído por qualquer disposição especial em contrário, bem como aqueles bens que sejam relativamente impenhoráveis, mas que sejam por aqueles apresentados voluntariamente (exceptuam-se apenas os bens que sejam absolutamente impenhoráveis), e que existam no momento da declaração da insolvência ou que venham a ser adquiridos subsequentemente pelo devedor na pendência do processo, cfr Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, Colecção PLMJ, 2012, 128/129; Carvalho Fernandes e João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013303/305.

Decorre do preâmbulo do CIRE que a resolução em beneficio da massa insolvente a que se alude no normativo inserto no artigo 120º, visa a «(…)reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto especifico – a “resolução em beneficio da massa insolvente” –que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património(…)» destinando-se tal expediente a «(…)apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostrem prejudiciais para a massa.(…)», cfr Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da massa Insolvente, 2008, 41; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 5ª edição, 210; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004.

Dispõe o artigo 120º do CIRE, na versão do DL 185/09, de 12 de Agosto, aplicável in casu, atenta a data de instauração e declaração da insolvência, que:

«1-Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência.

2- Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.

3- Presumem-se prejudiciais à massa sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.

4-Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.

5 - Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias:

a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;

b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;

c) Do início do processo de insolvência.(…)» 

 

Como decorre da matéria dada como provada a compra e venda impugnada ocorreu em 23 de Abril de 2010, sendo certo que o processo de insolvência instaurado contra a vendedora, deu entrada em 10 de Agosto de 2010 (alínea E));  a Autora nada pagou à Insolvente, por via dessa aquisição (ponto 9. da base instrutória); a Insolvente e a Autora sabiam estar a frustrar a satisfação dos credores da primeira, agindo com esse intuito (ponto 7. da base instrutória); A já falecido e cônjuge da Autora/Recorrente e J, sócio da Insolvente são primos (alínea H)).

Toda esta factualidade conduz, sem necessidade de grandes considerações, à asserção de que o negócio havido entre a Recorrente e a Insolvente foi realizado com vista a prejudicar os credores desta, enquadrando-se de pleno, no preceituado no artigo 120º do CIRE, acrescendo ainda, se dúvidas subsistissem, a especial ligação de parentesco existente entre o cônjuge da Autora e o sócio da Insolvente.

É certo que tal relação familiar – são primos, ao que se provou - não quadra nenhuma das consignadas especificamente no artigo 49º, nº1 do CIRE, só que pendemos para a interpretação de que a enunciação aí feita não será taxativa, mas antes meramente exemplificativa, cfr neste sentido Menezes Leitão, Código da Insolvência e Recuperação de Empresa Anotado, 6ª edição, 96/97.

Mesmo que assim se não entenda, sem embargo de se e tratar de norma excepcional, insusceptível portanto de aplicação analógica nos termos do artigo 11º do CCivil, nada obsta que dela se faça uma interpretação extensiva, e, nesta leitura, o sancionamento imposto mostra-se profiláctico e cautelar, visando proteger os credores da Insolvente, fazendo regressar à massa os bens que dela foram indevida e irregularmente retirados, cfr neste sentido o Ac STJ de 25 de Março de 2014 (Relator João Camilo), in www.dgsi.pt.

Adianta-se ainda que, face à materialidade apurada, tal especificidade factual, apresenta-se como um elemento acrescido, posto que a má fé da Autora se encontra devidamente demonstrada, cfr no que concerne à má fé do terceiro, prova da má fé, presunção e seu funcionamento, Gravato de Morais, Resolução Em Beneficio Da Massa Insolvente, 61/77.

E, não tendo sido paga qualquer quantia a titulo de preço, como se apurou não ter acontecido, a invocada «venda», sempre poderia ser subsumida no preceituado na alínea b) do nº1, do artigo 121ºdo CIRE, por se apresentar como um negócio gratuito celebrado pelo devedor nos dois anos anteriores à data do inicio do processo.

Soçobra, pois, a pretensão recursiva.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão sob recurso.

Custas da Revista pela Recorrente.

Lisboa, 1 de Julho de 2014

(Ana Paula Boularot)

(Pinto de Almeida)

(Azevedo Ramos)