Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A073
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: INVENTÁRIO
SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
CABEÇA DE CASAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: SJ200304030000731
Data do Acordão: 04/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2537/01
Data: 06/20/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I- Só haverá de prestar contas o cabeça de casal que no exercício da sua administração tenha obtido receitas ou realizado despesas ou tenham ocorrido ambas as situações, visto que o processo especial da prestação de contas visa exactamente o apuramento de umas e outras e a determinação do eventual saldo resultante.
II- Estranho seria que tal processo especial em vez de servir para apurar as receitas e despesas efectivamente verificadas, fosse utilizado para averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas e para a determinação dos rendimentos eventualmente deixados de auferir em consequência da má administração.
III- Para isso, será adequado o processo comum, não o processo especial de prestação de contas.
IV- Prestar contas implica, por sua natureza, descriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má gestão, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório:
"A",
intentou a presente acção especial de prestação de contas, por apenso a uns autos de inventário para separação de meações, instaurado na sequência de acção de divórcio, contra
B,
a fim de obter, por parte deste, a prestação de contas da administração que desenvolveu em relação aos bens do dissolvido casal da A. e R..
Contestou o R. a obrigação de prestar contas, tendo o Senhor Juiz da Comarca decidido estar o R. obrigado à pretendida prestação de contas dada a sua qualidade de cabeça de casal.
Inconformado apelou o R. para o Tribunal da Relação de Évora, o qual veio a decidir por douto acórdão de 2/2/2000, revogar a sentença recorrida, absolvendo o R. do pedido.
Também inconformado, recorreu agora o R. para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, apreciando a questão, concedeu revista, revogando o acórdão da Relação e declarando estar o R. obrigado a prestar as pretendidas contas.
Em obediência ao assim doutamente decidido, apresentou o R. as suas contas nas quais aponta um saldo a seu favor de 17.990.431$00, exclusivamente proveniente de despesas que elenca, já que não apresenta qualquer verba de receita.
Contestou a A. as contas apresentadas, insistindo, além do mais que aqui não interessa considerar, que nas contas deveriam ser incluídas como receita, as verbas correspondentes ao valor que um consultório médico (bem comum) poderia ter rendido se tivesse sido cedido a terceiro, valor esse que, na sua opinião seria de 200.000$00/mês, bem como ao valor que a casa de habitação do casal poderia ter gerado, caso fosse colocada no mercado de arrendamento, e que, no seu entender, corresponderia a 100.000$00/mês.
Proferida desde logo decisão final, sem produção de prova, julgaram-se validamente prestadas as contas pelo R., mas, perante a ausência de saldo positivo a favor da A., absolveu-se o R. de qualquer pagamento à A..
Inconformada, apelou a A. para a Relação de Évora, a qual, apreciando a questão, julgou improcedente o recurso, mantendo o decidido na 1ª. instância.
É desta decisão que novamente recorre a A., agora de revista.

Conclusões:
Apresentadas tempestivas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões, delimitadoras do âmbito da Revista:
1- A acção de prestação de contas não serve apenas para discutir receitas e despesas efectivas. Serve também para discutir a gestão feita e apurar os valores que o administrador consumiu em proveito próprio ou, por omissão sua, deixou de receber.
2- Esse caminho foi já apontado por este S. Tribunal, neste mesmo processo quando o mesmo lhe veio para decidir se havia ou não que prestar contas.
3- Recusar agora o caminho então apontado é violar caso julgado.
4- Importará, por isso, que se ordene a baixa do processo à 1ª. instância, para selecção dos factos assentes e elaboração da base instrutória, com o espírito de apurar o valor dos rendimentos que os bens do casal proporcionaram ao R., pelo uso que deles fez, ou podiam ter produzido se dados de arrendamento ou cedidos a exploração de terceiros.
5- A menos que o S.T. entenda que primeiro deverá a Relação alargar a base de facto.
6- Recusado o prosseguimento da acção com o fundamento que para tanto avançou, o douto acórdão violou caso julgado e violou também o disposto no artº. 1014º do C.Civil.
7- Desprezar factos alegados só porque em seu critério lhes não deu relevo, violou o disposto no artº. 713º, nº. 2 do C.P.C., como já antes se violara, na douta sentença, o disposto no artº. 659º, nº. 2 do mesmo Código.

Os Factos:
São os seguintes os factos que as instâncias tiveram como provados:
1- No dia 24/10/1998, o R. foi investido na qualidade de cabeça de casal no processo de inventário para separação de meação instaurado na sequência de divórcio decretado entre ele e a A.;
2- Existem bens comuns cuja utilização e administração pertencem ao R.;
3- A sentença homologatória de partilha, ditada naqueles autos, transitou em julgado no dia 29/1/1999.
4- As receitas referidas pelo R. nas contas apresentadas (fls. 178 a 207) correspondem às efectivamente verificadas.
5- Nestas contas, apresentou o R. como total das receitas, ZERO ESCUDOS.

Fundamentação:
No essencial, as questões suscitadas pela recorrente têm a ver com o que deve considerar-se ser o objecto da acção de prestação de contas, assim como com a alegada violação do caso julgado formado pelo douto acórdão deste S.T.J. proferido a fls. 153/159, do II volume destes autos.

1ª. Questão -
Objecto da acção de prestação de contas
Determina o artº. 1014º (objecto da acção) do C.P.C. que "a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".
Portanto, a regra é a de quem está encarregado da administração de interesses alheios (ou alheios e simultaneamente próprios) está obrigado a prestar contas perante o titular desses interesses, como é o caso do cabeça de casal (artº. 2093º do C.C.), qualidade essa assumida pelo R. nesta acção.
Só que, como resulta claramente do citado artº. 1014º do C.P.C. só haverá de prestar contas o cabeça de casal que no exercício da sua administração tenha obtido receitas ou realizado despesas ou tenham ocorrido ambas as situações (cobrança de receitas e realização de despesas), visto que o processo especial de prestação de contas visa exactamente o apuramento de umas e outras e a determinação do eventual saldo resultante.
Ora, estando o processo em causa especialmente desenhado para essa finalidade, não pode ser utilizado para outras finalidades não previstas na lei processual.
De facto, estranho seria que tal processo especial em vez de servir para apurar as receitas e despesas efectivamente verificadas, fosse utilizado para averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas e para a determinação dos rendimentos eventualmente deixados de auferir em consequência de má administração.
Para isso, será adequado o processo comum, não o processo especial de prestação de contas.
Como se observa no douto Ac. da R. do Porto de 20/6/78 - B.M.J. - 279/254, "A acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração... O objecto desta acção é determinar o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, com indicação do saldo, se o houver...".
E que assim é resulta também do disposto no artº. 1016º do C.P.C. que determina a apresentação das contas sob a forma de conta-corrente, especificando-se a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo, regime que, evidentemente não é adequado à determinação de receitas ou despesas não realizadas efectivamente.
Prestar contas implica, por sua natureza, descriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.
Alegou a recorrente que a orientação que defende e que aqui se não acolhe, colheria argumento favorável no disposto no nº. 2 do artº. 1017º do C.P.C., ao admitir a impugnação do valor das receitas inscritas, assim como a articulação de que há receitas não incluídas nas contas.
Mas não tem razão.
Como é óbvio, não podia a lei negar ao A. que impugnasse as verbas de receita inscritas pelo R. nas suas contas, quando tenha razão para alegar e provar que estas foram superiores às indicadas ou articular que existem receitas não incluídas nas contas.
Afinal, trata-se de exercer o direito de contestar as contas apresentadas, sem o qual ficaria prejudicado o necessário contraditório.
Em qualquer caso, discute-se o valor ou a inscrição de receitas alegadamente efectivas e não receitas virtuais.
Com isto não se quer dizer que o cabeça de casal não tenha eventualmente de indemnizar a A. pelo uso que terá feito dos prédios sobre a sua administração (a questão é, aliás, duvidosa, como da notícia Lopes Cardoso na nota nº. 3045 a fls. 74 do III vol. das Partilhas Judiciais) ou mesmo em consequência de administração negligente.
O que se quer salientar é que essa questão não pode ser decidia nesta fase processual do processo especial de prestação de contas, visto não caber no âmbito do seu específico objecto. Se a A. se julga com direito a ser indemnizada por essa via, terá de discutir a questão em acção comum, que será a apropriada e vocacionada para o efeito.

2ª. Questão -
Caso Julgado
Defende a recorrente que o douto acórdão deste Supremo Tribunal lavrado nos autos a fls. 153/159, aponta no sentido da solução defendida nas alegações da recorrente, pelo que decidir o contrário, como fez o acórdão da Relação, agora em revista, é violar caso julgado.
É no entanto muito claro que não existe violação de caso julgado.
O douto acórdão deste Supremo Tribunal pronunciou-se sobre a questão prévia de saber se, no caso, o R. tinha ou não de prestar as pretendidas contas.
Para o efeito teve em conta a limitada matéria de facto tida por assente pelas instâncias e que foi a seguinte:
- no dia 24/10/88 o R. foi investido na qualidade de cabeça de casal no processo de inventário para separação de meações instaurado na sequência de divórcio decretado entre ele e a A.;
- Existem bens comuns cuja utilização tem pertencido em exclusivo ao R.;
- A sentença homologatória da partilha ditada naqueles autos transitou em julgado no dia 29/1/99.
Ora é evidente que, perante esta factualidade, decidiu-se que o R. estava obrigado para com a A. a prestar contas da sua administração, mas não se decidiu, como é manifesto, o teor ou o conteúdo das contas a prestar.
Aliás, teve-se o cuidado de advertir que "A questão que cabe decidir nesta fase preliminar em que os autos ainda se encontram é apenas esta, a de saber se o réu tem ou não obrigação de prestar contas.
Saber se houve ou não ingressos pecuniários é outra questão para ser resolvida em fase posterior, a da apresentação de contas...".
Portanto, é evidente que a aludida decisão, não apontou qualquer caminho quanto ao modo como deviam as contas ser prestadas, limitando-se a decidir que o R. tinha a obrigação de as prestar.
Ora, como é sabido, "a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que se julga..." (artº. 673º do C.P.C.), de modo que, no caso concreto, o caso julgado formado pelo douto acórdão de fls. 153/159 limitou-se à decisão que ordenou a prestação de contas não abrangendo o modo de as prestar sobre o qual nem se pronunciou.
Assim sendo, não violou a Relação o referido caso julgado, quando, apreciando a apelação da decisão que julgou as contas, entender, correctamente quanto a nós, não poder incluir-se nas contas receitas reconhecidamente inexistentes, isto é, não recebidas pelo cabeça de casal.
Tão pouco haverá violação do artº. 713º, nº. 2 do C.P.C., porquanto a factualidade a que se refere o recorrente, face à posição acima adoptada, não tinha nenhum interesse para a decisão.

Nega-se, consequentemente, revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 3 de Abril de 2003
Moreira Alves,
Lopes Pinto,
Pinto Monteiro.