Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B1827
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200709130018272
Data do Acordão: 09/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ANULADA A DECISÃO - BAIXA À RELAÇÃO.
Sumário : A ampliação a que se reporta a artº 729º nº3 do CPC só é consentida no concernente a factos de que ao tribunal seja lícito conhecer os articulados pelas partes (artº 264º do CPC) que se perfilem como relevantes para o vertido no primeiro dos nomeados normativos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. a) Com distribuição ao 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, por onde corre termos, registada sob o nº 3881/02. 2TBVCT, intentaram, a 03-09-26 (cfr. carimbo aposto a fls. 2 e art. 267º nº 1 do CPC), AA e BB, acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário, contra "Empresa-A" e CC, impetrando, por via do que ressuma de fls. 2 a 9, na procedência da acção, a condenação dos demandados a:
1. Pagar aos autores a quantia de 343.400 euros "de capital, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento."
2. Liquidar aos autores "as responsabilidades que lhes vierem a ser exigidas pelo Banco Empresa-B ao abrigo do contrato referido no artigo 13º da P.I. e pelo Banco Empresa-C ao abrigo do contrato descrito no artigo 14º da P.I. ."
3 "Liquidarem" aos autores, em execução de sentença, "todos os montantes que os mesmos liquidem a instituições bancárias na qualidade de avalistas da "Empresa-A".

b) Contestaram os réus, concluindo no sentido da improcedência da acção, com consequente absolvição sua do pedido.
c) Elaborado despacho saneador tabelar, foi seleccionada a matéria de facto tida como assente e organizada a base instrutória.
d) Proferido despacho indeferindo reclamação deduzida pelo réu contra a selecção da matéria de facto incluída na base instrutória, com fundamento em deficiência (art. 511º nº 2 do CPC) - cfr. fls. 192-, cumprido o demais legal, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, prolatada tendo sido sentença que, julgando a acção parcialmente procedente:

1. Condenou, solidariamente, os réus "a pagara conjuntamente" aos autores a quantia de 94.000 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
2. Condenou os réus, solidariamente, a pagar ao primeiro autor a quantia de 249.400 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
3. Julgou improcedente os demais pedidos.

e) Sem êxito apelaram os réus, já que o TRG, por acórdão de 06-12-18, como flui de fls. 263 a 272, negou provimento ao recurso.
f) Ainda irresignados, é do predito acórdão que trazem revista os demandados, os quais, na alegação oferecida, tiraram a seguintes conclusões:

1ª - A inexistência de separação específica de excepções não é, por falta de qualquer base legal para tanto, fundamento para o indeferimento de reclamação contra a selecção da matéria de facto, especialmente se, como no caso dos autos, os factos são apresentados separadamente e sistematizados de forma a ser facilmente percebida a respectiva natureza processual de impugnação ou excepção.

2ª - A inexistência de separação específica de excepções, no caso da contestação apresentada pelo 2º réu, à inexistência de um título, uma vez que a distinção dos argumentos, pela divisão em artigos e pelo conjunto sistemático do todo do articulado é perfeitamente nítida e não deixa lugar a qualquer dúvida de interpretação.

3ª - Os factos alegados pelo 2º réu nos artigos 4, 5, 6, 7, 8, 9,10, 11, 14, 15 e 16 da contestação por si apresentada (inexistência, na posse da sociedade, de qualquer bem material que pudesse, fosse de que forma fosse, ser utilizado, directa ou indirectamente, na prossecução do objecto social ou contribuir para o enriquecimento da sociedade, uma vez que todas as máquinas que tinham sido propriedade da sociedade ré foram, pelos autores, cedidas à sociedade comercial "Empresa-D", sociedade que se dedica a actividade em tudo semelhante àquela a que a sociedade ré se dedicava e de que os autores eram e são sócios e gerentes; inexistência, em poder da sociedade, em numerário ou depositada, de qualquer quantia em dinheiro ou de quaisquer créditos a seu favor; transferência, pelos próprios autores, para aquela "Empresa-D", de todos os contratos de prestação de serviços em que a sociedade ré era prestadora, bem como de todos os clientes passados ou presentes; nunca terem os autores entregue ao 2º réu qualquer documento ou elemento contabilístico relativo ao período anterior à sua nomeação como gerente, encontrando-se em poder da anterior gerência, ou seja, dos autores, toda a documentação referente à sociedade ré; continuarem os autores, depois da nomeação como gerente do 2º réu, a agir em nome da sociedade, mantendo trabalhadores desta ao seu serviço pessoal, fazendo-se passar por gerentes da sociedade ré, transferindo, sem o conhecimento do 2º réu, para a mencionada "Empresa-D", todas as viaturas e máquinas industriais que eram pertença da sociedade ré e cobrando às empresas comercialmente relacionadas com a ré) deveriam ter constado da selecção da matéria de facto, uma vez que se trata de factos relevantes para a decisão da causa, visto estarem na raiz da alteração parcial da vontade das partes, no tocante à contrapartida a efectuar, pelo 2º réu, pela cessão, por parte dos autores, da totalidade das quotas da sociedade ré, serem fundamento da existência de abuso de direito e causa da nulidade resultante de o objecto da cláusula sexta do contrato-promessa ser indeterminável.

4ª - Consequentemente, deveria a reclamação contra a selecção da matéria de facto, apresentada pelo 2º réu, em que era requerida a inclusão na base instrutória da matéria constante daqueles artigos da contestação ter sido deferida.
5ª - Deve, pois, ser revogado o despacho de fls. 192, que indeferiu aquela reclamação.

6ª - O contrato-promessa em causa nos autos define um compromisso das partes tendente à celebração de um único negócio, a cessão de quotas da sociedade ré, pela qual os autores haveriam para si a prestação, pelo 2º réu, não só do pagamento do preço estipulado como, também, do pagamento dos empréstimos bancários contraídos pela sociedade ré de que os autores fossem, pessoalmente, garantes dois negócios independentes, e não de dois negócios, de objecto diverso (por um lado, a cessão de quotas da sociedade ré e, por outro, um contrato a favor de terceiro).

7ª - As partes contraentes de um contrato-promessa podem, de sua livre vontade, decidir alterar o conteúdo do contrato prometido, não estando limitadas pelo disposto no contrato-promessa, o qual podem, livremente, ao celebrar o contrato definitivo, alterar, sem qualquer limitação.

8ª - Ao darem cumprimento ao negócio (o único) prometido, dentro do seu direito de livre disposição, as partes ajustaram o conteúdo deste, ou seja, o conjunto dos direitos e obrigações reciprocamente assumidas, fazendo com que o contrato-promessa se tenha consumido no disposto na escritura pública, passando esta a ser, no momento da sua celebração, a tradução da vontade actual das partes quanto ao conteúdo do negócio pretendido, a cessão de quotas.

9ª - Assim, não existe qualquer obrigação exterior ao estipulado na escritura pública, expressão definitiva da vontade das partes.
10ª - Não devem, pois, os réus ser condenados no pagamento de qualquer quantia, com base no disposto no contrato-promessa, pelo que o acórdão recorrido deve ser revogado, sendo os réus absolvidos e improcedendo a acção.

11ª - A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 488º do CPC, 334º, 280º e 405º do CC.
g) Contra-alegação não houve.
h) Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Eis como se configura a materialidade fáctica dada como assente no acórdão impugnado, doravante tão só denominado por "decisão":

1. No dia 25-09-01, os autores e o 2º réu celebraram o denominado "Contrato promessa de cessão de quotas", que tinha por objecto a totalidade da participação social daqueles na 1ª ré (doc. nº 1 junto com a petição inicial, cujo teor foi dado por reproduzido).
2. No contrato referido em 1., ficou acordado que as quotas dos autores no capital social da 1ª ré seriam cedidas ao 2º réu por 5$00 (4$00 pela quota do 1º autor e 1$00 pela quota do 2º autor), uma vez que o 2º réu assumiu a responsabilidade por todo o passivo da 1ª ré, comprometendo-se a liquidar todos os empréstimos bancários contraídos por esta que se encontrassem garantidos ou avalizados pessoalmente pelo 1º autor e respectivo cônjuge e pelo 2º autor.
3. No contrato referido em 1., os autores comprometeram-se a convocar uma assembleia geral da 1ª ré com vista a renunciarem à gerência desta e nomear gerente o 2º réu, o que sucedeu em 01-09-25, tendo o 2º réu assumido a gerência desde essa data.
4. Através de escritura pública outorgada no dia 19 de Julho de 2002, os autores cederam ao 2º réu as suas quotas, correspondentes à totalidade do capital social da 1ª ré.
5. O 2º réu não procedeu, por si ou através da 1ª ré, ao pagamento de parte dos empréstimos bancários de que esta era devedora e nos quais os autores figuravam como avalistas.
6. Para liquidação dos empréstimos CCC.... e CCC, respectivamente no montante de 74.819,00 euros e 99.370,52 euros, de que a 1ª ré era devedora ao Banco Empresa-E , e no qual o 1º autor figurava como avalista, este, em 03-02-28, celebrou com essa instituição um contrato de mútuo no valor 175.000,00 euros.
7. Para liquidação dos empréstimos nºs ... e ..., de que a 1ª ré era devedora à Empresa-F do Alto Minho, e no qual os autores figuravam como avalistas, estes ( o 1º autor como mutuário e o 2º autor como fiador), em 02-11-20, celebraram com essa instituição bancária um contrato de mútuo no valor de 94.000 euros.
8. Para liquidação do empréstimo de que a 1ª ré era devedora ao Banco Empresa-G, o 1º autor, em 03-05-20, liquidou a essa instituição bancária a quantia de 74.400,00 euros.

III. 1. Como consabido, a faculdade concedida ao STJ de ordenar a ampliação da matéria de facto, em ordem ao plasmado no art. 729º nº 3 do CPC (diploma legal a que pertencem os normativos que se vierem a citar sem indicação de outra proveniência), só pode ser exercida no tocante a factos articulados pelas partes ou de conhecimento oficioso, de harmonia com o exarado no art. 264º.
Na hipótese vertente, impõe-se, mas flagrantemente, exercitar a apontada faculdade, por falta de elementos de facto nem sequer se perfilando possível o vertido no art. 730º nº 2.
Assim:
2. Sopesado o consignado nos art.s 490º nºs 1 e 2 e 511º nº 1, atenta a arquitectura da acção, quem é o seu fautor (art. 467º nº 1), sem obliterar, outrossim, o vazado no art. 342º nº 2 do CC e no art. 489º nº 1, como vítreo se evidencia que à base instrutória, ao arrepio do acontecido, devia ter sido a factualidade a seguir elencada, sucedendo, adite-se, que à aplicação do art. 729º nº 3 não faz óbice o decretado demérito da apelação, esta também radicada no desatendimento da reclamação oportunamente deduzida contra a selecção da matéria de facto incluída na base instrutória, com o fundamento já enunciado, o, enfim, disposto no art. 712º nº 6.

Eis a supracitada factualidade:
A) 1'. Às datas referidas em A. e D. dos "Factos Assentes" (cfr. fls. 170), a ré "não se encontrava na posse de qualquer bem material"?
2'. Nem "tinha, também, em seu poder, em numerário ou depositada, qualquer quantia em dinheiro"?
3'. "Nem detinha, também, quaisquer créditos"?
B) 1'. À data da escritura pública citada em D. dos "Factos Assentes", "todos os contratos de prestação de serviços em que a sociedade ré era prestadora, bem como todos os clientes, passados ou presentes", seus, foram, através dos autores, transferidos para "Empresa-D", sociedade esta de que os demandantes eram sócios e gerentes?
2'. E todas as máquinas que tinham sido pertença da ré foram, pelos autores, cedidas a "Empresa-D"?
C) Até à data da outorga da escritura pública a que se alude em D. dos "Factos Assentes" não foi entregue ao réu qualquer máquina, viatura automóvel, material de escritório ou qualquer outro bem que pudesse, fosse de que forma fosse, ser utilizado, directa ou indirectamente, "na prossecução do objecto social ou contribuir para o enriquecimento" da demandada?
D) O réu, à data do contrato promessa referido em A. dos "Factos Assentes", não tinha conhecimento exacto, nem aproximado, dos valores peticionados nos autos?.
E) Autores e réu, considerando o expresso em III. 2. A) a E) e o valor do passivo a que se alude na cláusula 6ª. 2. do contrato promessa supracitado, a desproporção entre as prestações a que cada uma das partes se comprometera, a 01-09-25 (A. dos "Factos Assentes"), acordaram em alterar a contrapartida a prestar pelo ora demandado para a aquisição da totalidade das quotas da ré, os autores prescindindo de incluir naquela a obrigação a que se reporta a citada cláusula, reduzindo-a ao constante da escritura pública referida em D. dos "Factos Assentes"?
F) Os autores, após a nomeação do réu como gerente da demandada, actuaram pela forma referida nos artºs 14º a 16º da contestação de CC, tal impossibilitando o constante do art. 17º de tal articulado?

IV. CONCLUSÃO:

Termos em que se ordena a remessa do processo ao TRG, em conformidade com o prescrito nos art.s 729º nº 3 e 730º, para aí ser de novo julgado pelos mesmos Exmºs Juízes Desembargadores que subscreveram a "decisão", se possível, presente tendo o dissecado em III.
Custas pelo vencido a final.

Lisboa, 13 de Setembro de 2007

Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos
João Bernardo