Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A3613
Nº Convencional: JSTJ00042708
Relator: REIS FIGUEIRA
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: SJ200202050036131
Data do Acordão: 02/05/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 481/01
Data: 04/03/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC EXEC.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 749 ARTIGO 751.
DL 103/80 DE 1980/05/09 ARTIGO 11.
DL 512/76 DE 1976/07/03 ARTIGO 2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STA DE 1996/03/13 IN BMJ N455 PAG326.
ACÓRDÃO STA PROC25873 DE 2001/06/06.
ACÓRDÃO TC DE 2000/03/22 IN BMJ N495 PAG45.
ACÓRDÃO TC DE 2000/07/05 IN DR IIS 2000/11/07.
Sumário : 1 - O art. 751º do Cód. Civil tem o seu campo de aplicação circunscrito aos privilégios creditórios imobiliários especiais, na medida em que tal Diploma não prevê a existência de privilégios creditórios imobiliários gerais.
2 - O privilégio imobiliário concedido pelo art. 11º do DL nº. 103/80, de 9 de Maio, sendo geral, não confere direito de sequela, razão por que não é oponível a terceiro garantido com hipoteca registada sobre determinado bem.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por apenso aos autos de acção executiva, instaurados por "A, Lda." contra "B, Lda.", vieram reclamar créditos:
a) a "C", anexa ao "D" (agora "E", habilitado como sucessor daquela), reclamar o seu crédito de 75.148.325 escudos (sendo 50.000.000 escudos de capital mutuado, 23.567.123 escudos de juros vencidos e 160.607 escudos de despesas já efectuadas e 1.414.399 escudos de imposto de selo devido, bem como juros vincendos, garantida com hipoteca constituída sobre a fracção penhorada.
b) o Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, o seu crédito de 12.298.227 escudos, sendo 8.245.054 escudos de contribuições devidas e não pagas, e 4.053.173 escudos de juros de mora vencidos, bem como os vincendos.

Ambos os créditos foram reconhecidos e graduados pela forma seguinte:
1º) o crédito reclamado pela "C" (agora "E")
2º) o crédito reclamado pela Segurança Social
3º) o crédito exequendo.
Como fundamentos de direito, invocam-se na sentença os artigos 733º, 751º, 686º, 687º e 822º, do CC, e 10º e 11º, do DL 103/80, de 9 de Maio.
O Centro de Segurança Social requereu o esclarecimento da sentença, o "E" respondeu que a decisão era clara e que se o Centro discordava devia ter pedido a reforma e não a aclaração; após o que o requerimento foi indeferido, por a decisão ser considerada clara.

Da graduação assim feita (e dizendo que também do indeferimento do pedido de aclaração) recorreu o Centro de Segurança Social, de apelação, para a Relação de Lisboa (requerimento de fls. 40).
No entanto, alegando no recurso (alegações de fls. 42 a 45), o recorrente não referiu sequer a questão da aclaração da sentença, limitando o seu objecto à graduação feita: conclusões 1ª a 3ª, a fls. 44.
Depois, decidindo o recurso, a Relação de Lisboa disse entender que tinha sido justificado o pedido de aclaração (por a decisão não ser devidamente fundamentada). Mas - continuou - indeferido como foi o pedido de aclaração, o prazo para recorrer da sentença começou a correr da data da notificação de tal indeferimento, pelo que o requerimento de recurso foi tempestivo, não tendo a sentença transitado em julgado.
Assim, decidindo a apelação, a Relação de Lisboa alterou a decisão da primeira instância, quanto à graduação feita, ficando os créditos reconhecidos assim graduados:

1º) o crédito da Segurança Social
2º) o crédito do "E"
3º) o crédito exequendo.

Recorre agora o "E", de revista, para este STJ.
Alegando no recurso, apresentou 53 conclusões.
A recorrida não contra-alegou.
Convidada a recorrente a sintetizar as suas conclusões, nos termos do art. 690º, nº. 4 do CPC, por se entender que as 53 apresentadas abrangiam matéria de fundamento e não de conclusão, respondeu ao convite apresentando 35 conclusões.
A recorrida não respondeu ao aditamento.

Cabe conhecer.
As 35 conclusões "sintetizadas" encontram-se de fls. 131 a fls. 134, que se dão por reproduzidas.
Retirado delas o que é matéria de facto e fundamentação de direito, as conclusões reconduzem-se às seguintes:
a) a sentença era clara, pelo que não admitia pedido de aclaração; por isso, discordando dela, o que o Centro de Segurança Social devia pedir era a sua reforma; e, a considerar a sentença infundamentada, o Centro Regional devia pedir a sua declaração de nulidade
b) não o tendo feito, o recurso (de apelação interposto pelo Centro Regional da sentença em primeira instância) foi extemporâneo, porque (não pedida a reforma da sentença nem a declaração da sua nulidade) não havia fundamento para aclaração, tanto que a decisão sobre esse incidente não trouxe nada de novo, pelo que a decisão em primeira instância transitou em julgado.
c) E, para o caso de assim se não entender, mais alegou que o art. 751 do CC integra-se num diploma que não previa a existência de privilégios imobiliários gerais, mas apenas privilégios imobiliários especiais.
d) E, se se entender que tal norma se aplica aos privilégios imobiliários especiais, então a norma do art. 11º do DL 103/80, de 9 de Maio, é inconstitucional, violando o princípio da confiança, contido no art. 2º da CRP, e o da proporcionalidade, violando o art. 18º, nº. 2 da mesma CRP.
e) O dito art. 11º deve ser interpretado restritivamente, no sentido de o crédito hipotecário preferir ao da Segurança Social.
f) Tanto mais que o art. 12º do DL 103/80 confere hipoteca legal, logo objecto de registo, aos créditos por contribuições da Segurança Social.
g) Foram violados os art. 686º, nº. 1, do CC e 11º do DL 103/80, pelo que o crédito do "E" deve ser graduado antes do da SS.

Matéria de facto.
Além do que consta do já acima relatado, temos como relevante mais o seguinte.
a) em 10/08/93, pela apresentação nº. 7, a "C" (agora o "E") registou hipoteca voluntária, registo feito provisoriamente nos termos do art. 92º, nº. 1, i) do CRPredial, sobre a fracção "A" (aqui em causa), e que em 16/09/93 foi convertido em definitivo - fls. 70 destes autos;
b) por escritura de 25/08/93, a "C" (agora "E") concedeu um empréstimo à executada, por 50.000 contos, de que esta recebeu logo 20.000, e o restante a receber através de uma abertura de conta corrente caucionada, tendo a executada constituído hipoteca sobre a fracção em causa, em garantia do empréstimo - fls. 11 a 19;
c) em 22/12/94 foi instaurada a execução, sendo dela títulos executivos três letras de câmbio, e em 19/12/95, foi efectuada penhora na execução, sobre a referida fracção "A", registada em 14/01/97 - fls. 65 e 71 destes autos;
d) as contribuições à Segurança Social reclamadas nos autos referem-se aos anos de 1993 a 1996 - fls. 25 e 26.

Questões postas:
As questões postas, balizadas pelas conclusões do recorrente, esquematizam-se assim:
a) o que o CRSS devia fazer face à alegada falta de clareza da sentença de graduação;
b) se a sentença em primeira instância transitou;
c) se o art. 751º do CC se aplica apenas aos privilégios creditórios imobiliários previstos no CC, ou seja, os privilégios imobiliários especiais;
d) ou, a entender-se que o art. 751º se aplica também aos privilégios imobiliários gerais criados por legislação avulsa posterior ao CC, se a norma do art. 11º do DL 103/80 resulta materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da confiança e da proporcionalidade;
e) devendo, para se afastar a sua inconstitucionalidade, ser objecto de uma interpretação restritiva, no sentido de o crédito hipotecário (porque registado) dever preferir ao crédito da Segurança Social, se não garantido por hipoteca registada.

Apreciando.
Não se pode discutir aqui se a sentença era clara ou não, nem se era suficientemente fundamentada ou não. Essas questões não foram postas à Relação; a questão posta à Relação, definida pelas conclusões do recorrente, foi apenas a da graduação feita.
Como já dissemos, o Centro Regional, notificado do indeferimento do seu pedido de aclaração, interpôs recurso de apelação da sentença, na parte em que graduou os créditos, e ainda do despacho que indeferiu o seu pedido de aclaração.
É claro que da sentença cabia apelação, mas do despacho que indeferiu o requerimento de aclaração (além de que, por sua natureza, nunca podia ser de apelação, por não versar o mérito) não cabia sequer qualquer espécie de recurso (art. 670º, nº. 2 do CPC).
E o certo é que, alegando na apelação, o recorrente, embora tenha repetido que a sentença é ambígua, nada levou às conclusões quanto à hipotética falta de clareza ou ambiguidade da sentença. Entende-se, por isso, que (se tivesse sido interposto recurso do despacho de indeferimento do pedido de aclaração e se tal recurso fosse admissível), o recorrente teria restringido tacitamente o objecto inicial do recurso, nos termos do art. 684º, nº. 3 do CPC.
Não pode por isso conhecer-se de qualquer eventual falta de clareza da sentença.
Por outro lado, pedida a aclaração de uma decisão, o prazo para dela recorrer só se inicia com a notificação da decisão que decide esse requerimento. Di-lo a lei: art. 686º, nº.1 do CPC.
Pelo que não tem sentido dizer que a sentença em primeira instância transitou - além de se tratar de questão não posta à Relação.
Irrelevante questionar se o Centro devia ter pedido a reforma da sentença em primeira instância ou ter arguido a nulidade da sentença por falta de fundamentação. O Centro usou do meio processual que entendeu e suportando naturalmente as consequências da escolha feita.
Aliás, trata-se de questões que não foram postas ao Tribunal recorrido, pelo que também o não podiam ser a este STJ, e que só estão a ser brevemente apreciadas porque o "E", que as colocou, não recorreu da sentença em primeira instância (nem podia, pois que não ficou vencido), só o fazendo pela primeira vez para este STJ.

Mais séria é a questão de fundo, sobre a graduação feita, e que envolve as três últimas questões acima enunciadas.
"Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros": art. 733º do CC.
Na previsão do CC, os privilégios creditórios são de duas espécies: mobiliários ou imobiliários (art. 735º, nº. 1); os mobiliários podem ser gerais ou especiais (art. 735º, nº. 2); os imobiliários são sempre especiais (art. 735º, nº. 3).
Portanto, é correcto dizer-se que, na filosofia do CC, só pode haver privilégios imobiliários especiais.
No entanto, leis posteriores ao CC têm criado verdadeiros privilégios imobiliários gerais - como é o caso, entre outros, do privilégio creditório conferido às contribuições para a Segurança Social e respectivos juros, do art. 11º do DL 103/80 (norma que confirmou, com ligeira alteração de forma, o que já dispunha o art. 2º do DL 512/76, de 3 de Julho): "Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no art. 748º do CC".
Não obstante se reconhecer que a solução dada pelo art. 11º do DL 103/80 (como antes a dada pelo DL 512/76) "é bastante gravosa para o credor hipotecário" (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, "Garantias de Cumprimento", 78), e constituir um perigo grave para a navegação comum do comércio jurídico, em especial em consequência de os privilégios valerem em face de terceiros, independentemente do registo, como acentua Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 6ª edição, 566, e tratar-se, nas palavras de Almeida Costa "de uma solução anómala na geometria dos conceitos" (Direito das Obrigações, 5ª edição, 817, nota 4 da página anterior) - razões práticas, constantes do preâmbulo do Diploma, poderão justificar tal solução. Importa é saber em que termos.
Ora, que se trata aqui (art. 11º do DL 103/80) de privilégio imobiliário geral, e não especial, demonstrou-o proficientemente o STA, em seus Acórdãos de 13/03/96, no BMJ, 455-326 e de 06/06/01, este ao que supomos inédito, proferido no Recurso nº. 25.873, em que recorrente foi o "E" e recorrida a Fazenda Nacional. E tem sido indiscutidamente aceite pela doutrina (Antunes Varela, Almeida Costa, Salvador da Costa).
Ora, "a constituição dos privilégios gerais é independente da existência de qualquer relação entre o crédito e o bem que o garante, ao contrário do que sucede com o privilégio especial, que se baseia sempre numa relação entre o crédito garantido e a coisa que o garante" (Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. 2, 500-501).
No entanto, nos termos do art. 751º do CC, "os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores".
Assim, temos que, na linha iniciada pelo DL 512/76, "quanto ao concurso do privilégio imobiliário com as garantias reais de que esteja provido o crédito de terceiro, o legislador abandonou o princípio da anterioridade, afirmado para o privilégio mobiliário especial no art. 750º, mandando preferir sempre o privilégio imobiliário àquelas garantias. Tem-se discutido se o privilégio imobiliário criado pelo art. 2º do DL 512/76, de 3 de Julho, e confirmado pelo art. 11º do DL 103/80, de 9 de Maio, prefere a garantias reais, ainda que estas tenham sido constituídas anteriormente à entrada em vigor daqueles diplomas. A orientação dominante do STJ tem sido a de responder afirmativamente àquelas duas questões. Foi também esta a posição assumida pelo Supremo Administrativo, julgando em pleno, pelo seu acórdão de 11/04/84" (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, 1993, 201, onde se encontra identificada a jurisprudência referida).

No entanto, a jurisprudência do STA, posterior ao dito acórdão de 11/04/84, tem evoluído em sentido diverso.
De facto, a questão é saber se este artigo 751º do CC deve aplicar-se apenas aos privilégios imobiliários especiais, que foram os únicos admitidos no CC, mas não aos privilégios imobiliários gerais, criados por diplomas especiais posteriores ao CC.
Na realidade, a mesma lei, que no art. 735º prevê uns e outros (gerais e especiais), não distingue no artigo 751º, ao definir os efeitos dos privilégios imobiliários, entre gerais e especiais, falando apenas em privilégios imobiliários.
Parece clara a razão: se o CC não previa privilégios imobiliários gerais, o regime do art. 751º está destinado aos privilégios imobiliários que o CC admitia: os especiais.
E, de ser o privilégio imobiliário concedido no art. 11º do DL 103/80 um privilégio imobiliário geral, resulta que não confere direito de sequela (citados acórdãos de 13/03/96 e de 06/06/01), motivo por que não é oponível a terceiro garantido com hipoteca registada: arts. 668º, nº. 1, e 749º do CC.
O art. 749º do CC estabelece um princípio geral para os privilégios creditórios gerais, sejam mobiliários ou imobiliários (A. Luís Gonçalves, "Privilégios Creditórios: evolução histórica, regime, sua inserção no tráfico creditício", em Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXVII, ano 1991, 37 e 39).
Pelo que, o art. 751º do CC tem o seu campo de aplicação limitado aos privilégios imobiliários especiais, quer porque é isso que está na filosofia do CC, quer porque os privilégios gerais não conferem direito de sequela.
Esta é a linha de orientação seguida pela mais recente jurisprudência do STA, como se vê dos Arestos citados, e na doutrina é sustentada por Almeida Costa: "Claro que a referida disciplina (do art. 751º do CC) só abrange os privilégios imobiliários especiais. Foram estes que o legislador do CC teve em conta. Às hipóteses que possam verificar-se de privilégios imobiliários gerais, criadas posteriormente, aplica-se o regime, há pouco indicado, dos correspondentes privilégios mobiliários (art. 749º)" (Direito das Obrigações, 5ª edição, 824-825).
Concluindo: o regime do art. 751º do CC foi prescrito para os privilégios imobiliários especiais, que foram os únicos previstos no CC. Criados, posteriormente ao CC, certos privilégios creditórios gerais (solução, no dizer de Almeida Costa, "anómala na geometria dos conceitos", pág. 816, nota 4), a prioridade que conferem deve achar-se na disposição traçada no art. 749º do CC, para os privilégios gerais: "O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos, que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente".
De facto, o elemento ou factor relevante não parece ser o da natureza móvel ou imóvel dos bens objecto da garantia, mas antes de esta abranger todos os bens do devedor, ou apenas certos e determinados bens dele.
Isto posto, tornar-se-ia pouco importante analisar a eventual inconstitucionalidade da norma do art. 11º do DL 103/80, se entendida no sentido de conceder aos créditos da Segurança Social (quando não garantidos com hipoteca registada) prioridade na graduação com créditos garantidos com hipoteca registada - visto que já concluímos que não pode valer com esse sentido, visto o privilégio conferido pelo falado art. 11º ser imobiliário geral e a norma do art. 751º se reportar apenas a privilégios imobiliários especiais.

Mas, dada a relevância da questão, dedicar-lhe-emos algumas palavras.
Diz a este propósito o recorrente que as normas dos art. 11º do DL 103/80 e do art. 751º do CC são inconstitucionais, por violarem os princípios da confiança e da proporcionalidade.
De novo se diria, a este propósito, que esta questão (da inconstitucionalidade) nunca foi posta anteriormente nos autos, tanto na primeira instância como na Relação, e dela se irá conhecer apenas pela mesma razão (ou seja, porque o ora recorrente, que agora a colocou, nunca precisou de a colocar antes, porque nunca precisou, nem pôde, recorrer antes) - mas não sem também notar que, nas contra-alegações que apresentou para a Relação, o "E" nunca invocou qualquer inconstitucionalidade das normas aplicadas na primeira instância, e entre elas estavam precisamente os art. 751º do CC e 10º e 11º do DL 103/80! O aí apelado limitou-se a dizer, nas contra-alegações do recurso para a Relação, que a sentença da primeira instância transitara, porque o Centro Regional não pediu a sua reforma, nem arguiu a sua nulidade, e o pedido de aclaração que fez não tinha razão de ser. Portanto, limitou-se a colocar as questões prévias e processuais já apreciadas, nada dizendo sobre eventuais inconstitucionalidades.
Nas alegações para este STJ diz o recorrente "E", precisamente, que "invoca ainda, desde já, novas questões de direito, que como tal são de conhecimento oficioso do tribunal" (fls. 98) - o que é o reconhecimento expresso de que nunca antes esta questão, da inconstitucionalidade, havia sido posta.
Tal nos permitiria nem conhecer desta questão - se não se tratasse de uma questão de direito e de conhecimento oficioso, como é a da inconstitucionalidade, e em obediência ao comando fundamental do art. 204º da CRP: "Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados".

A questão é portanto a de saber se a norma do artigo 11º do DL 103/80, de 9 de Maio, é materialmente inconstitucional, por violar o princípio da confiança, contido no art. 2º da CRP, ou porque seja desproporcionado, com violação do art. 18º, nº. 1 da mesma CRP.
A razão da atribuição aos créditos da Segurança Social de um privilégio de tal dimensão (mobiliário geral e imobiliário geral) tem decerto algo a ver com a natureza jurídica dos mesmos.
A doutrina tem-se dividido, quanto à questão da natureza das contribuições devidas pelas entidades patronais: taxa, prémio de seguro de direito público e imposto, concluindo a propósito Salvador da Costa que "a contribuição devida pelos empregadores, pelas suas características de prestação unilateral legalmente estabelecida para a prestação do fim público da segurança social, parece configurar-se como um imposto de regime especial" (O Concurso de Credores, 214).
Talvez por isso a lei lhe confira a preferência que lhe deu, mandando-o graduar logo a seguir aos impostos do Estado e à contribuição predial (autárquica) das Autarquias: art. 11º do DL 103/80, e art. 748º do CC.
No entanto, esta figuração da natureza jurídica dos créditos da Segurança Social não é pacífica, não sendo partilhada por exemplo, pelo Acórdão do STA, de 16/06/99, segundo o qual, "as contribuições para a segurança Social não têm um fim de interesse público como os impostos indicados no art. 748º do CC, nem são uma contrapartida de um serviço prestado pelo Estado à colectividade em geral" (pág. 49).
O certo é que os créditos das instituições de segurança social, derivados das contribuições devidas e respectivos juros, gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral, constituindo-se tal privilégio quando se constitui o crédito garantido, dependendo a sua eficácia, no que respeita ao privilégio mobiliário geral, do acto da penhora dos bens móveis, e no que toca ao privilégio imobiliário geral, da existência, aquando da instauração da acção executiva, na titularidade do executado, de bens imóveis (art. 10º a 13º do DL 103/80 e Salvador da Costa, obra citada, 216/217).

A questão de fundo posta no recurso é a de saber se aquele art. 11º do DL 103/80, quando interpretado no sentido de conferir ao crédito da Segurança Social preferência sobre um crédito garantido com hipoteca registada, é materialmente inconstitucional, por violar os princípios da confiança e da proporcionalidade.
De facto, sustenta o recorrente que, tendo concedido o empréstimo garantido com uma hipoteca, que logo registou provisoriamente (com base no contrato promessa) antes mesmo da outorga da escritura respectiva; e que logo após a outorga da escritura fez registar definitivamente a hipoteca; não gozando o crédito da Segurança Social de qualquer publicidade, apesar de poder ser objecto de hipoteca legal, logo por isso registável, a sua confiança (inerente ao princípio do Estado de direito democrático plasmado no art. 2º da CRP) resultou frustrada pela aplicação integral do dito art. 11º; por outro lado, dada a preferência concedida aos créditos Segurança Social, mesmo sem registo, viola-se o princípio da proporcionalidade (contido nesse preceito conjugado com o art. 18º, nº. 2 da mesma CRP), uma vez que, preterido pela Segurança Social, o credor hipotecário nada receberá na execução.
E, citando-os, apoia-se nos acórdãos do Tribunal Constitucional de 22/03/00 (DR, 10/10/00), agora publicado também no BMJ, 495-45, e de 05/07/00 (DR, 07/11/00), bem como já citado do STA, de 06/06/01, da 2ª secção.
Esta é, portanto, a questão.

Ora, nos Arestos em que se tem debruçado sobre esta questão, o Tribunal Constitucional tem entendido que a norma do referido art. 11º do DL 103/80, se entendida com o sentido de conferir aos créditos da Segurança Social, não garantidos com hipoteca registada, prevalência na graduação com créditos garantidos com hipoteca registada, seria materialmente inconstitucional, por violação dos princípios indicados.
Resumindo muito as suas razões, teremos a seguinte síntese, construída por transcrições do Acórdão nº. 160/00, de 22/03/00, publicado na 2ª série do DR, de 10/10/00.
"O princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar" (...). É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (...). Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao estado ou à Segurança Social.
Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio (...) pode ser confrontado com uma realidade - a existência de um crédito da Segurança social - que frustrara a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal, e atento o seu âmbito de privilégio geral, e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (...) a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico.
Finalmente, (...) a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do art. 12º do DL 103/80.
A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da confiança".
Esta fundamentação, explanada no Acórdão nº. 160/00, foi substancialmente retomada no Acórdão nº. 354/00, de 05/07/00, publicado na mesma série do DR, de 07/11/00, bem como, mais recentemente, no Acórdão do STA, de 06/06/01, já bastas vezes referido.
Se o Acórdão 160/00 pôs o acento tónico no registo, o acórdão nº. 354/00 chama especialmente a atenção para o direito de sequela: "o privilégio imobiliário geral, conferido à Segurança Social pelo art. 11º do DL 103/80, dotado de sequela sobre todos os imóveis existentes à data da instauração da execução no património do devedor, oponível, independentemente do registo, a todos os adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens onerados (não tendo o adquirente a possibilidade de se informar sobre as dívidas do anterior proprietário, em face do sigilo fiscal), configurando-se como um ónus oculto, afecta, em termos desproporcionados, a boa fé e a confiança no comércio jurídico".
No mesmo sentido o Acórdão do STA, de 06/06/01, cuja síntese conclusiva se pode formular assim: o privilégio imobiliário previsto no art. 11º do DL 103/80, deve considerar-se geral e não especial, pelo que não prefere ao crédito hipotecário, na respectiva graduação; a não se entender assim, então o dito art. 11º seria materialmente inconstitucional, por violar os princípios da confiança e da proporcionalidade.
É esta também a nossa posição.
Ao não entender assim, o Tribunal recorrido interpretou menos bem as disposições dos art. 686º, 735º, 749º e 751º, do CC e do art. 11º do DL 103/80, com violação do comando do art. 2º e 18º, nº. 2 da CRP.

Decisão.
Pelo exposto, acordam em conceder a revista e em revogar a graduação feita na Relação, ficando a valer a feita na primeira instância, ou seja.
1) crédito reclamado pelo "E"
2) crédito da Segurança Social
3) crédito exequendo.
Custas pelo recorrido

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2002
Reis Figueira,
Barros Caldeira,
Faria Antunes.