Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B1263
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURADORA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
CAMINHO PÚBLICO
PROVA TESTEMUNHAL
ACTA DE JULGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
DECLARAÇÃO DE PROTESTO
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE SANÁVEL
Nº do Documento: SJ200805150012637
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Não demonstrada pelo recorrente a impossibilidade de apresentação de documentos até ao encerramento da discussão da matéria de facto no tribunal da primeira instância, não pode juntá-los com a alegação de recurso de apelação.
2. Os factos reveladores da existência de um caminho público são susceptíveis de prova testemunhal.
3. Inexiste obstáculo legal a que o tribunal decida a matéria de facto com base no depoimento de uma única testemunha que revele conhecimento directo dos factos controvertidos, isenção e imparcialidade, nem que, ao abrigo do princípio da aquisição processual, uma parte cumpra as regras de distribuição do ónus da prova que a onere por via de meios de prova oferecidos pela parte contrária.
4. A declaração de ciência do juiz na acta da audiência de julgamento no sentido de o mandatário de uma das partes haver expressamente concordado, em acto de inspecção judicial, com a qualificação do caminho como público, é insusceptível de assumir relevo probatório de confissão.
5. A eventual omissão do registo na acta de julgamento do protesto do mandatário da parte relativo ao conteúdo da declaração mencionada sob 4 constituiria nulidade geral de acto processual sanada por apenas ter sido arguida no recurso de apelação.
6. Provado que a máquina giratória ficou soterrada quando circulava pelos seus próprios meios na via pública, facto de exclusão da cobertura do contrato de seguro firmada na apólice, prejudicado ficou o conhecimento da pretensão da tomadora do seguro de ser indemnizada do despendido com a remoção daquela máquina.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA, Ldª intentou, no dia 8 de Janeiro de 2004, contra BB– Companhia de Seguros, SA, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 141 386,25 a título de indemnização pelos prejuízos que sofreu, sendo € 98 765,70 pela reparação da máquina acidentada e o restante pela sua remoção e transporte, e juros de mora à taxa legal a partir da citação.
Motivou a sua pretensão em estragos numa sua máquina giratória quando se deslocava para o local de trabalho e ficou soterrada por aluimento do terreno e no contrato de seguro do ramo “montagem, construção e máquinas”, celebrado com a antecessora da ré.
Em contestação, afirmou a ré que o contrato de seguro não cobria o dano invocado em consequência de o sinistro ter ocorrido na via pública quando a máquina circulava pelos próprios meios, e que em qualquer caso não abrangia todas as despesas alegadas, valer a máquina acidentada € 62 349,74, não poder a indemnização exceder € 35 814,65 por dever ser considerado o seu valor de substituição por máquina nova e a franquia a deduzir.
Alterada a selecção da matéria de facto sob reclamação da autora, e realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 27 de Julho de 2006, por via da qual a ré foi absolvida do pedido, com fundamento na exclusão de cobertura pelo contrato de seguro.
Apelou a autora, impugnando a decisão de facto e de direito, e a Relação, por acórdão proferido no dia 22 de Novembro de 2007, negou-lhe provimento ao recurso, mantendo a decisão da primeira instância.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o julgador não atendeu às normas jurídicas aplicáveis de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, não interpretou adequadamente da prova produzida ao longo do processo, nomeadamente a documental e a testemunhal;
- o acidente deu-se durante e por via da laboração da máquina da recorrente na Quinta do Mourão, a recorrida não provou ter o mesmo ocorrido na via pública, pelo que não é aplicável a cláusula de exclusão do seguro;
- por causa do caso julgado e da segurança jurídica, e porque contrário ao considerado matéria de facto assente, não devia o acórdão fundamentar factos que não foram provados pela recorrida mediante documento cuja genuinidade foi impugnada, em que se refere ter o acidente ocorrido em data diferente da do acidente discutido no processo;
- não podem ser dados como provados factos que nenhuma das testemunhas da recorrida presenciou e cujo documento, contrário à matéria de facto assente, serve para sustentar os factos impeditivos e extintivos do direito da recorrente;
- cabia à recorrida provar os factos constitutivos do direito alegado nos quesitos 27º e 28º, e, como não foi feita tal prova, não podiam ser dados como provados, em conformidade com os artigos 342º, nº 2, do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil, pelo que devem ser eliminados, ao abrigo do artigo 712º, nº 1, alíneas a) e b), deste último diploma;
- o direito de ser indemnizada pelos custos da remoção e desenterramento da máquina está abrangido por condição particular do contrato de seguro, que se sobrepõe às gerais, na parte em que refere a responsabilidade civil até 25 000 000$;
- a prova nesta matéria só pode derivar do que as testemunhas viram, perceberam e interpretaram, dos documentos e registos fotográficos, o que tudo aponta para decisão diferente;
- a Relação não conheceu do recurso do despacho proferido no tribunal da primeira instância de indeferimento do requerimento para a audição da pessoa a quem foi imputada a participação do acidente;
- o mandatário da recorrente nunca reconheceu ser público o caminho, tendo-se oposto quando o juiz ditava o despacho para a acta, só tendo conhecido do seu teor no decurso do prazo de alegação no recurso de apelação, não podendo dar-se como documento autêntico um facto que não foi aceite pelo mandatário da recorrente;
- trata-se de documento particular, conforme resulta da certidão que juntou com as alegações no recurso de apelação, sendo um elemento que a Relação devia apreciar com vista ao apuramento da verdade material, mas foi ordenado o seu desentranhamento;
- não tendo sido feita prova convincente sobre a caracterização do caminho, não podia o tribunal a quo, apenas com base no depoimento de uma testemunha arrolada pela recorrida, e sem o devido suporte documental, dar como provado que o caminho que confina com a Quinta do Mourão é público;
- o acórdão está afectado de vícios que importam a sua anulação, por erro notório na apreciação da prova testemunhal e documental relativamente ao local onde ocorreu o acidente e aos custos de remoção e desentranhamento da máquina;
- o acórdão ignorou as questões acima referidas, pelo que é nulo, nos termos da alínea d), primeira parte, do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil;
- a Relação errou na apreciação da prova, porque os elementos fornecidos pelo processo impõem decisão diversa, sendo que a livre convicção não significa liberdade não motivada de valoração, mas modo não estritamente vinculado de valoração da prova e descoberta da verdade processualmente relevante, conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores;
- o acórdão está afectado de nulidade por falta de fundamentação de facto, a que aludem os artigos 668º, nº 1, alínea b), e 653º, nº 2, do Código de Processo Civil, uma vez que nele se não empreende a análise crítica do conteúdo dos depoimentos gravados das testemunhas, nem do teor dos registos fotográficos ou dos documentos cujo desentranhamento foi ordenado e que só por si implicaria decisão diversa;
- no acórdão são feitas afirmações incongruentes, relatando factos não afirmados por alguma testemunha, nem fundamentadas em qualquer documento, o que se traduz em erro notório na apreciação da prova;
- nos termos do artigo 712º, nº 5, do Código de Processo Civil, como a decisão proferida sobre factos essenciais não está devidamente fundamentada, deve o tribunal ad quem ordenar a remessa dos autos ao tribunal da primeira instância a fim de preencher tal falha, com base nas gravações efectuadas ou através da repetição da produção da prova;
- o tribunal recorrido devia ter enquadrado juridicamente os factos como integrantes do direito de indemnização da recorrente, e, como assim não ocorreu, o acórdão recorrido não fez a melhor e mais correcta interpretação e aplicação dos artigos 653º, nº 2, 668º, nº 1, alínea b), 158º, nº 1, 265º, 515º, 516º e 712º, nºs 1, alíneas a) a c), e 4 e 5, do Código de Processo Civil e 342º do Código Civil nem da condição particular do contrato de seguro;
- deve revogar-se o acórdão recorrido e condenar-se a recorrida no pagamento do peticionado, ou, dado estar afectado de nulidade decorrente da falta de motivação quanto à análise crítica dos depoimentos gravados em fita magnética e dos documentos, deve o processo ser remetido à Relação a fim de se proceder à devida fundamentação das questões de facto e de direito levantadas pela recorrente, nos termos do artigo 712º, nº 5, do Código de Processo Civil.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- o acórdão não está afectado de erro ou vício, e o recurso de revista não pode envolver a reapreciação da prova em que a recorrente assenta parte das suas alegações, e a apreciação dos factos pelas instâncias foi feita de acordo com o conjunto da prova produzida;
- a recorrente alegou na petição inicial que o acidente ocorreu quando a máquina se deslocava no terreno municipal, o terreno afundou, obrigando a máquina a ficar soterrada;
- as fotografias juntas com as alegações no recurso de apelação são inócuas, nada tendo a ver com o acidente, reportando-se a um alargamento e arranjo do caminho em data diferente;
- as respostas aos quesitos 27º e 28º não podem ser alteradas, face à prova produzida em audiência de julgamento, sendo que se impunha ao tribunal responder aos mesmos face à prova produzida;
- de qualquer forma os eventuais danos decorrentes da remoção da máquina não estão cobertos pela garantia do contrato de seguro, pois não são danos na própria máquina, dado que a cobertura da responsabilidade civil é perante terceiros, e não perante a recorrente que não é terceira, mas tomadora do seguro;
- os pretensos danos estão excluídos da garantia de seguro, por virtude de o acidente ter ocorrido quando a máquina se deslocava pelos seus próprios meios na via pública;
- a recorrente limitou-se, quanto à genuinidade do documento de participação do sinistro, a impugnar a assinatura nele aposta, não requerendo qualquer meio de prova como lhe era legalmente permitido, sendo que o juiz ouviu o seu gerente, indo para além daquilo a que estava obrigado processualmente;
- não estando presente essa pessoa e não sendo possível apresentá-la e inquiri-la até ao final da audiência, não tinha o juiz que proceder à sua audição;
- a falta de carimbo da empresa é irrelevante, e é falsa e de má fé a afirmação de ter havido protesto contra a afirmação do juiz de que o mandatário da recorrente aceitava a qualificação do caminho como sendo público;
- a caracterização do caminho como público resultou da inspecção ao local e das testemunhas inquiridas a esse respeito, como podia ser, e a certidão mandada desentranhar diz respeito a outra acção e o caminho assinalado no mapa não era o mesmo onde ocorreu o acidente;
- a acção improcede pois os pretensos danos estão excluídos da garantia de seguro, por o acidente ter ocorrido quando a máquina se deslocava na via pública pelos seus próprios meios;
- o acórdão está profusa e proficuamente fundamentado de facto e de direito, não enferma de algum vício ou nulidade, e foi feita correcta interpretação da lei aos factos provados.

II
É a seguinte a factualidade considerada provada no acórdão recorrido, inserida por ordem lógica e cronológica:
1. No exercício da sua actividade comercial, representantes da autora e da Companhia de Seguros BB, SA declararam por escrito consubstanciado na apólice nº 00000000000, relativa ao ramo “montagem, construção e máquinas”, com início no dia 15 de Fevereiro de 2000, em vigor no dia 1 de Abril de 2001:
- responder a segunda civilmente por prejuízos decorrentes de danos materiais que a autora sofresse nos objectos seguros em consequência de acidente, nomeadamente, avalanchas, desprendimentos de terras ou rochas, afundamento ou aluimento de terrenos, tempestades, tufão, ciclone, tornado, inundação, subida de águas e outros fenómenos semelhantes da natureza considerados de “força maior”;
- ter como cobertura o capital seguro de danos próprios nas “máquinas cascos” até ao valor de € 62 349,74, e ainda, uma cobertura adicional de responsabilidade civil perante terceiros até ao valor de € 124.699,47;
- existir uma franquia a cargo da autora igual a 10% dos prejuízos indemnizáveis, com o mínimo de € 249,40;
- não cobrir o contrato cobre danos nos bens seguros em consequência de sinistro ocorrido nas vias públicas quando em circulação pelos próprios meios, e não são indemnizáveis perdas ou danos causados a terceiros quando os veículos seguros circulem na via pública, em áreas adjacentes do sítio habitual de laboração – 2º e 3º das condições gerais;
- dever o tomador do seguro e segurado comunicar à seguradora o mais breve possível, por escrito, no prazo máximo de oito dias, qualquer sinistro, sob pena de responder por perdas e danos – artigo 27º, nº 1, das condições gerais.
2. O valor de compra de uma máquina nova, em 2002, do tipo “escavadora de rastos”, marca Benati, modelo 3.30BHS, era de 26 500 000$ - € 132 181,44 - acrescidos de imposto sobre o valor acrescentado de 17%, no total de € 154 652,29.
3. No dia 1 de Abril de 2001, cerca das 18 horas, no lugar de Rio Bom, freguesia Cambres, ocorreu um acidente em que foi interveniente uma máquina giratória, marca Benati, modelo 3.30BHS, propriedade da autora.
4. A máquina foi transportada para a Quinta do Mourão num camião porta-máquinas marca Volvo, modelo “F12”.
5. Após ter sido descarregada, quando se deslocava para o local onde iria trabalhar, próximo de uma azenha existente na referida Quinta, a dita máquina começou a escorregar para o seu lado direito, atento o seu sentido de marcha.
6. A máquina giratória iria proceder à surriba da Quinta do Mourão, ao abrigo de um contrato celebrado entre a recorrente e o dono daquela Quinta, e sofreu o acidente que se traduziu no seu afundamento por aluimento de terreno.
7. Depois de proceder a várias tentativas no sentido do seu operador a remover daquele local, a máquina imobilizou-se em virtude da sua lagarta direita patinar, e, por se aproximar a noite, o operador da máquina decidiu deixá-la imobilizada no local, para a remover, com a ajuda de uma outra máquina, no dia seguinte.
8. Chegados ao local no dia seguinte, cerca das 7,30 horas, verificaram que a máquina acidentada tinha desaparecido, encontrando-se soterrada, ficando apenas de fora o braço da mesma.
9. Em consequência directa e necessária do acidente, a máquina sofreu os estragos indicados no orçamento junto a folhas 19, e exigia, na sua reparação, a realização dos trabalhos ali mencionados, no valor de € 98 765,70.
10. Para conseguir remover a máquina do local onde se encontrava, foi necessário criar uma plataforma dura em rachão, na qual a autora despendeu quantia não apurada.
11. No transporte do rachão foram gastas algumas horas, em número e por custo não apurados, e para a colocação do rachão e desencarceramento da máquina acidentada, foi utilizada uma máquina giratória marca “Akerman”, modelo EC230B”, que trabalhou durante número de horas e a preço não apurados.
12. Porque o terreno em que circundava a máquina acidentada se encontrava encharcado, devido à intensa pluviosidade que se fez sentir durante aquele inverno, foi também utilizado um gerador a diesel
para fornecer energia eléctrica a duas bombas ensecadeiras, o qual foi utilizado durante período de tempo e custo não apurados.
13. Foram também utilizadas duas bombas ensecadeiras para drenarem a água existente no local do acidente, durante período de tempo e a custo não apurados, e utilizada uma motobomba a gasolina, durante período de tempo e por custo não apurados.
14. Para a colocação das bombas, cabos e amarrações no local referido em que foi utilizada uma auto-grua, marca “Libehrr LTM1030”, durante período de tempo e a custo não apurados, e na remoção da máquina acidentada trabalharam nove ou dez trabalhadores da autora.
15. Para o transporte de pessoal para o local do acidente, a autora utilizou duas das suas viaturas de cabine dupla, uma delas da marca Mercedes Benz, modelo 412, e a outra da marca Nissan, modelo Cabstar, e para o salvamento, carregamento e transporte da máquina acidentada e da máquina de apoio “Akerman” foi utilizado um veículo pesado porta-máquinas, marca “Volvo F 12”, durante período de tempo e a custo não apurados.
16. Foi, ainda, utilizada uma auto-grua da marca “Libehrr”, modelo LTM10160, para proceder ao levantamento e carregamento da máquina acidentada, que para execução desse serviço contou com o apoio de uma grua “Libehrr”, modelo LTM1030 e de uma escavadora marca “Akerman”, modelo EC230B, tendo a autogrua marca “Libehrr”, modelo LTM10160, trabalhou no local durante período de tempo e a custo não apurados.
17. Ficou destruída parte de um caminho municipal, e a autora desviou um aqueduto de saneamento de águas públicas com a finalidade de o seu caudal não encharcar o local onde a máquina acidentada estava soterrada.
18. Pela reparação do caminho municipal e rede de saneamento, a autora despendeu quantia não apurada.
19. Todos os serviços foram efectuados por pessoal e com equipamento da autora, e a máquina acidentada, no momento do acidente referido, circulava por si própria no aludido caminho municipal, com cerca de 2,50 a 3 metros de largura.
20. O referido caminho cedeu, designadamente devido ao peso da referida máquina de cerca de 30 000 quilogramas.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida deve ou não indemnizar a recorrente por virtude do contrato por ambas celebrado.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pela recorrida, a resposta à mencionada questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- sucessão de leis no tempo;
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade?
- legalidade ou não da decisão de não admissão da junção de documentos com as alegações no recurso de apelação;
- pode ou não este Tribunal sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação?
- infringiu ou não a Relação alguma norma de direito probatório material?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- está ou não o evento danoso em causa abrangido pelo mencionado contrato?
- cobre ou não o contrato o custo da actividade de desenterramento da máquina?

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos por uma breve referência à lei adjectiva aplicável no caso vertente.
Considerando que a acção foi intentada no dia 8 de Janeiro de 2004, ainda não é aplicável ao caso vertente a reformulada versão do Código de Processo Civil por via do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (artigo 11º).
Acresce que, por isso mesmo, também não é aplicável a reformulada versão do Código de Processo Civil por via do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro (artigos 26º e 27).
Assim, é aplicável no caso vertente a versão do Código de Processo Civil que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997, com as alterações posteriores, e exclusão das acima mencionadas

2.
Prossigamos com a análise da problemática da nulidade do acórdão invocada pela recorrente.
A recorrente, invocando os artigos 668º, nº 1, alíneas b) e d), e 653º, nº 2, do Código de Processo Civil, imputa ao acórdão o vício de nulidade por alegada omissão de conhecimento do mérito do despacho proferido no tribunal da primeira instância que lhe indeferiu da audição de uma pessoa, e de fundamentação de facto por falta de análise crítica do conteúdo dos depoimentos gravados e das fotografias.
Importa desde já assinalar que tendo sido mandados desentranhar os referidos documentos, recusando-lhe a sua função probatória no recurso de apelação, não pode ser imputada à Relação, em termos relevantes, a omissão da análise crítica do respectivo conteúdo.
Com efeito, o que pode existir a montante é a ilegalidade da determinação pela Relação do respectivo desentranhamento, pelo que, neste ponto, além do mais, não faz sentido jurídico a imputação ao acórdão de nulidade.
Atentemos, então, na impugnação formulada pela recorrente em termos de dever ser analisada em quadro de nulidade do acórdão, no confronto das normas adjectivas por ela referidas, começando pela questão da falta de fundamentação.
O acórdão da Relação é nulo quando careça de fundamentação de facto e ou de direito ou deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea b) e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A Constituição estabelece que as decisões judiciais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas nos termos da lei ordinária (artigos 205º, nº 1).
Por seu turno, a lei ordinária prescreve que as decisões relativas a qualquer pedido controvertido ou a alguma dúvida suscitada no processo devem ser fundamentadas e que para tal não basta a simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (artigo 158º do Código de Processo Civil).
Assim, deve o acórdão representar a vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à Relação, pelo que, sem fundamentação de facto e ou de direito, não se consegue esse escopo nem se permite às partes por ele afectadas o conhecimento do seu acerto ou desacerto, designadamente para efeito de interposição de recurso.
Mas uma coisa é a falta absoluta de fundamentação e outra a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, e só a primeira constitui o fundamento de nulidade a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
A propósito da fundamentação da sentença ou do acórdão, deve o juiz ou o colectivo de juízes, como é o caso da Relação, tomar em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer (artigos 659º, n.º 3, 713º, n.º 2, e 726º do Código de Processo Civil).
Como é plena a força probatória da confissão, do acordo das partes e dos documentos com esse relevo, o exame crítico das provas a que se refere o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil limita-se praticamente à operação do juiz ou do colectivo de juízes de registar e considerar os factos cobertos por aqueles meios de prova.
O exame crítico das provas a que aqueles normativos se reportam não tem o sentido que a mesma expressão tem no n.º 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, porque nesta última situação, e não naquela, está implicada a própria decisão da matéria de facto.
Expressa este último normativo que a decisão declara quais os factos que julga provados e não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção de quem julga.
Trata-se da pesquisa com vista à fixação dos factos materiais da causa, em que é essencial a apreciação das provas produzidas quanto ao respectivo conteúdo, natureza da fonte, razão de ciência, modo subjectivo de revelação, convicção, tendo em conta, se for caso disso as máximas da experiência, as regras da lógica e os juízos correntes de probabilidade.
É nessa complexa e difícil operação de apreciação que se traduz a análise crítica das provas a que se reporta o mencionado normativo.
Agora uma breve consideração sobre o que a lei estabelece sobre a nulidade das decisões judiciais em virtude de omissão de pronúncia.
O acórdão da Relação é nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia ou de falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, ou de direito, pela Relação, impõe-se a baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão, porque este Tribunal não tem competência funcional para a suprir (artigo 731º do Código de Processo Civil).
Confrontemos a estrutura do acórdão recorrido com as referidas normas que estabelecem a sanção da sua nulidade, começando pela problemática da falta de fundamentação de facto invocada pela recorrente.
A verificação sobre se a Relação, no julgamento do recurso de apelação na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, analisou criticamente as provas, ou seja, as produzidas no tribunal recorrido, e aquelas que foram apresentadas com aquele recurso e admitidas – os registos fotográficos – passa pela leitura do acórdão, que se fez e para que se remete.
Resulta do referido acórdão, face aos factos que a recorrente considerou deverem ser considerados provados e não provados, que ele analisou criticamente as provas disponíveis, gravadas e não gravadas, e decidiu no sentido de não alterar a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, justificando suficientemente o decidido.
A conclusão é, por isso, no sentido de que o acórdão recorrido não está afectado de nulidade por falta de fundamentação de facto.
Passa-se de seguida à questão da invocada nulidade do acórdão da Relação por virtude de não ter conhecido no recurso de apelação do despacho proferido no tribunal da primeira instância de indeferimento do requerimento para a audição da pessoa a quem foi imputada a participação do acidente.
Na conclusão trigésima do recurso de apelação, expressou a recorrente, relativamente ao incidente de impugnação da genuidade do documento, que, dado terem sido proferidas acusações graves, incumbia juiz do tribunal da primeira instância, aplicando o disposto no artigo 265º, nº 3, do Código de Processo Civil, determinar audição da pessoa em causa, para que se pudesse apurar verdade material dos factos discutidos.
A Relação não se pronunciou, porém, sobre a referida problemática, pelo que se põe a questão de saber se ocorreu omissão relevante para efeitos do disposto no artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Importa, por isso, analisar a dinâmica processual que ocorreu, na quadrupla vertente do requerimento formulado pela recorrente, da decisão do juiz do tribunal da primeira instância, da reacção daquela e do despacho do juiz sobre a mesma.
A audiência de julgamento de julgamento, começada no dia 29 de Maio de 2006, foi interrompida, no fim do dia, para continuar no dia 12 de Junho seguinte, às nove horas, e, seis dias antes, a recorrida requereu a junção ao processo de um documento, designado participação de sinistro, pretensamente assinada pelo sócio gerente da recorrente
A recorrente, na resposta - sem indicação de prova - expressou que ele nada provava, por não ter sido assinado pelo seu sócio-gerente, e que, quando decorriam os trabalhos de desencarceramento da máquina, o último e o seu agente mediador, CC, tinham ido aos escritórios da recorrida comunicar o sinistro, acrescentando ser falso ter a participação sido apresentada no dia 5 de Junho de 2001, data dela constante, impugnando assim a genuinidade do documento, bem como toda a sua eficácia probatória.
A recorrida respondeu no dia 9 Junho de 2006, afirmando ter a participação sido entregue na sua Agência de Lamego, preenchida e assinada, e requereu a audição do seu empregado, DD, daquela Agência.
No dia 12 de Junho 2006, na continuação da audiência de julgamento, o juiz do tribunal da primeira instância inquiriu o referido DD, que estava presente, e ainda, o sócio-gerente da recorrente, que também o estava.
Após a mencionada inquirição, requereu a recorrente, para descoberta da verdade, sob a motivação de com o seu gerente, aquando da participação, estava EE, que este fosse ouvido, ao que a recorrida se opôs sob o fundamento de se não justificar no espécie de incidente em causa, cujo objecto exclusivo era a falsidade da assinatura e não o conteúdo e a extemporaneidade.
O juiz do tribunal da primeira instância, depois de se informar de que CC não estava presente, despachou para a acta no sentido de não poder deferir ao requerido, por não ter sido expressamente impugnado pela autora o teor do documento mas apenas a sua assinatura, e por a audição não poder ter lugar antes do termo da discussão da matéria de facto e a produção da prova dever ocorrer até então e não ser permitido o adiamento.
Seguidamente, a recorrente, através do seu mandatário, ditou para a acta que por se não conformar com despacho acabado de proferir, requeria fosse admitido o competente recurso com subida a final.
Sobre o mencionado requerimento incidiu, de seguida, despacho do juiz no sentido de que após cumprimento do formalismo legal relativamente às interposições de recurso em processo civil, o tribunal se pronunciaria quanto à admissibilidade e ao demais que a lei impõe relativamente ao recurso acabado de anunciar/interpor.
O teor do referido despacho, interpretado nos termos dos artigos 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do Código Civil, revela o condicionamento da prolação do despacho de admissão ou não do recurso, a que alude o nº 3 do artigo 687º do Código de Processo Civil, do aperfeiçoamento do mencionado requerimento com a indicação da espécie do recurso exigida pelo nº 1 do mesmo artigo.
Mas tal aperfeiçoamento não ocorreu, a audiência prosseguiu, houve alegações e decisão da matéria de facto, sentença e recurso de apelação. Mas quanto ao mencionado recurso nada foi dito ou feito, ou seja, nem a recorrente aperfeiçoou o requerimento de interposição do recurso, nem o juiz do tribunal da primeira instância proferiu despacho de admissão do mesmo, nem a primeira reclamou da sua omissão.
De tal decorre que o mencionado despacho de indeferimento de audição de CC no referido incidente de impugnação da genuinidade do documento, a que se referem os artigos 544º e 545º do Código de Processo Civil, transitou em julgado (artigo 677º do Código de Processo Civil).
Por isso, não podia a Relação apreciar no recurso de apelação o mérito ou demérito do mencionado despacho do juiz do tribunal da primeira instância, que a recorrente incluíra na conclusão trigésima das alegações.
A conclusão é, por isso, no sentido de que a Relação, não cometeu, por virtude de não se ter pronunciado sobre a mencionada problemática, a nulidade decorrente de omissão de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

3.
Continuemos com a apreciação com a análise da subquestão de saber se Relação devia ou não manter no processo os documentos juntos pela recorrente com as alegações do recurso de apelação.
Conforme acima se referiu, embora sob a perspectiva da nulidade do acórdão, a recorrente impugnou o segmento decisório da Relação no sentido do desentranhamento de três documentos, com datas de emissão não posteriores a 3 de Novembro de 2005.
Um desses documentos consubstancia um caminho assinalado, outro é um ofício com um parecer emitido pela Junta de Freguesia de Cambres no sentido de o aludido caminho ser privado e o outro, emitido pelo Município de Lamego, envolveu a remessa dos outros dois ao tribunal da primeira instância por referência a uma outra acção, intentada contra a recorrente e a recorrida.
A Relação, sob o fundamento de a audiência de discussão e julgamento relativa à sentença em recurso haver terminado no dia 16 de Junho de 2006, e não ter havido justificação para a tardia junção daqueles documentos, invocando o disposto nos artigos 523º, nºs 1 e 2, 543º, nºs 1 e 2 e 706º, nº 3, do Código de Processo Civil, ordenou o seu desentranhamento.
Os recorrentes que tenham direito a juntar documentos com o instrumento de alegação no recurso de apelação podem fazê-lo até ao início dos vistos aos juízes adjuntos (artigo 706º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Eles podem juntar documentos às alegações, nos casos excepcionais a que se refere o artigo 524º do Código de Processo Civil ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento no tribunal da primeira instância (artigo 706º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O artigo 524º do Código de Processo Civil reporta-se aos documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão no tribunal da primeira instância e aos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou que se tenham tornado necessários por virtude de ocorrência posterior.
Ora, o caso vertente não envolve a impossibilidade ou a necessidade a que o referido artigo se reporta, pelo que a Relação, ao não admitir a continuação no processo dos mencionados documentos limitou-se a cumprir a lei adjectiva que rege sobre a junção extemporânea de documentos.

4.
Atentemos agora na subquestão de saber se este Tribunal pode ou não sindicar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
O regime geral nesta matéria é o de que, salvo casos excepcionais legalmente previstos, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que se aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode apreciar o erro na apreciação das provas e ou na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova formado pela Relação sobre a matéria de facto quando ela tenha dado como provado algum facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A Relação, na decisão sobre a matéria de facto, relativa aos quesitos primeiro, quarto, nono, décimo, décimo-segundo, décimo-quarto a décimo-nono, vigésimo-segundo a vigésimo-oitavo, analisou criticamente prova de livre apreciação, essencialmente a testemunhal, ouvindo o respectivo registo áudio.
Trata-se, essencialmente de prova testemunhal, embora as respostas aos quesitos vigésimo-sétimo e vigésimo-oitavo também tenham sido baseadas no conteúdo inserido no instrumento de participação do acidente acima referido e na própria inspecção ao local empreendida pelo tribunal da primeira instância, mas ambos inserindo prova de livre apreciação.
Em consequência, não tem este Tribunal competência funcional para sindicar o juízo de prova da Relação nem o respectivo resultado de fixação dos factos materiais da causa, aos quais apenas lhe incumbe aplicar o direito pertinente (artigo 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

5.
Vejamos agora se a Relação infringiu ou não alguma norma de direito probatório material.
A este propósito, alegou a recorrente não ter reconhecido ser o caminho público, não poder, por isso, considerar-se provado por documento autêntico apenas por ter sido afirmado pelo juiz em acta de julgamento, tratar-se de caminho particular conforme consta dos documentos mandados desentranhar e não poder ser dada como provada a sua natureza apenas com base no depoimento de uma testemunha arrolada pela recorrida e sem qualquer suporte documental.
O documento autêntico acima referido é a acta de julgamento relativa à sessão de 29 de Maio de 2006, na qual o juiz do tribunal da primeira instância fez registar o resultado da inspecção ao local de Rio Bom, em que participaram os mandatários das partes e a testemunha FF, presidente da Junta de Cambres.
Nele ficou consignado, em primeiro lugar, que no local, com a confirmação do representante da autora e de FF, constatou que o caminho de terra batida ou material semelhante, com a largura, nas imediações do local, variável entre 2,5 e três metros, visível nas fotos de folhas 10 a 15, liga a localidade de Vale Abraão ao lugar de Adega do Chão.
E, em segundo lugar, que ele passava junto ao que restava do edifício referido como azenha identificado naquelas fotografias, não podendo nesse momento fixar-se a distância exacta que o mesmo distava da parede mais próxima do referido edifício, uma vez que a parede deste que ruiu foi a que se situava mais próxima daquele caminho, e que o tribunal não tinha visionado no local quaisquer litígios de pilares ou de estruturas reforçada que permitissem a fixação do local exacto onde terminava o referido edifício
E, em terceiro lugar, que por detrás de tal edifício, atenta a configuração perspectivada nas duas mencionada fotografias, a cerca de 5 a 6 metros, existe um ribeiro que passa por baixo do indicado caminho.
E, finalmente, que, no local, o presidente da Junta indicou o trajecto do referido caminho de ligação entre os referidos lugares públicos, tendo referido que se tratava de caminho público por onde passava toda a gente que pretendia efectuar a ligação entre os dois referidos lugares, “classificação esta que teve a expressa concordância do mandatário da autora que declarou aceitar como verdadeiro que por tal caminho passa toda e qualquer pessoa que faça ou queira fazer a ligação entre os dois lugares acima mencionados”.
A este propósito, a Relação limitou-se a expressar, invocando o disposto nos artigos 369º, 371º e 372º do Código Civil, por um lado, ser a acta de audiência de discussão e julgamento um documento autêntico, e que a sua força probatória só podia ser ilidida com base na sua falsidade, e que tal não tinha ocorrido, limitando-se recorrente a suscitar a questão no recurso de apelação.
E, por outro, que à Relação apenas cumpria analisar e decidir as matérias que dizem estritamente respeito ao mesmo recurso, nas quais não está nem podia estar em causa, a avaliação e decisão e uma questão que nem sequer fora suscitada na primeira instância.
Antes de se prosseguir na análise da problemática aqui enunciada, é exigida uma breve referência ao conceito de caminho público.
O Código Civil de 1867 estabelecia, por um lado, serem públicas as coisas naturais ou artificiais apropriadas ou produzidas pelo Estado e pelas corporações públicas e mantidas sob a sua administração e que a todos, individual ou colectivamente, era lícito delas se utilizarem, com a restrições impostas por lei ou por regulamento administrativo (proémio do artigo 380º).
E, por outro, integrarem a referida categoria as estradas, as pontes e os viadutos construídos e mantidos a expensas públicas, municipais ou paroquiais (nº 1 do artigo 380º).
O Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934, que regulou o cadastro dos bens do domínio público do Estado, estabeleceu serem dessa natureza, além de outros, os que estivessem no uso directo e imediato do público (artigo 1º, alínea g)).
O Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o actual Código Civil, estabeleceu ficar revogada, após o início da sua vigência, toda a legislação relativa às matérias por ele abrangidas, com ressalva da legislação especial a que se fizesse expressa referência (artigo 3º).
O Código Civil de 1966, no que concerne à noção de coisas, apenas expressa estarem fora do comércio as que não possam ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontrarem no domínio público e as insusceptíveis, pela sua natureza, de apropriação individual (artigo 202º, nº 2).
Assim, o Código Civil de 1966, ao invés do que ocorria no Código Civil de 1867, não contém algum normativo que se reporte à caracterização das coisas públicas.
O Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 477/80, de 15 de Outubro, que enumerou, para efeitos do inventário geral do património do Estado, os bens integrados no seu domínio público e privado (artigo 18º).
No que concerne às vias de comunicação terrestre, o referido diploma apenas se reportou às linhas férreas de interesse público, às auto-estradas e às estradas nacionais com os seus acessórios e obras de arte (artigo 4º, alínea e).
Não abrangeu, por isso, as estradas públicas nem os caminhos públicos municipais ou integrados no âmbito das freguesias.
No quadro de divergência jurisprudencial sobre o conceito de caminho público, uma no sentido de o ser sempre que estivesse no uso directo e imediato do público e a outra no sentido de também se exigir para o efeito que tenha sido administrado pelo Estado ou por outra pessoa de direito público e se encontrasse sob a sua jurisdição, foi proferido, no dia 19 de Abril de 1989, pelo Pleno deste Tribunal, um Assento, no sentido de serem públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.
A motivação do referido assento fundou-se essencialmente na consideração de o artigo 380º do Código Civil de 1867 e o Decreto-Lei nº 23 565, de 12 de Fevereiro de 1934 estarem revogados, não ser a dominialidade das estradas municipais e dos caminhos públicos definida por lei, serem públicos se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente, e ser suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, sem que seja necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por uma pessoa colectiva de direito público.
Acrescentou-se à referida motivação ser esse entendimento o melhor adaptado às realidades da vida, por não raro ser impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, da aquisição, ou mesmo da administração dos caminhos, e porque assim se obstava à apropriação por particulares de coisas públicas.
O caminho é a faixa de terreno por onde se transita e a expressão público significa o povo, a população ou os habitantes que pretendam e realizem directa e imediatamente esse trânsito.
O referido uso directo e imediato do caminho pelo público envolve, como é natural, a sua utilidade pública, e a expressão tempo imemorial significa o tempo passado que já não consente a memória humana directa de factos.
Face à estrutura do caminho público assim delineada, ao invés do que a recorrente alegou, a conclusão é no sentido de que os factos reveladores da sua existência e natureza podem ser provados por testemunhas, ou seja, não é legalmente exigida a prova documental para o efeito.
Tendo em conta o princípio da livre apreciação das provas, a que se reporta o artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil, inexiste obstáculo a que o tribunal decida a matéria de facto com base no depoimento de uma única testemunha que revele conhecimento directo dos factos controvertidos, isenção e imparcialidade.
Ademais, ao abrigo do princípio da aquisição processual, nada obsta a que uma parte cumpra as regras de distribuição do ónus da prova, por exemplo aquela a que se reporta o artigo 342º, nº 2, do Código Civil, por via da prova oferecida pela parte contrária (artigo 515º do Código de Processo Civil).
Atentemos finalmente na problemática suscitada pela recorrente de ter protestado contra a inserção na acta da audiência de julgamento pelo juiz do tribunal da primeira instância de que o seu mandatário havia expressamente concordado com a qualificação de caminho público.
Importa salientar, em primeiro lugar, que se tratou de uma declaração de ciência produzida pelo juiz, em relação a afirmação dita proferida pelo mandatário da recorrente no âmbito da diligência de inspecção judicial, ou seja, é insusceptível de assumir relevo probatório de confissão, não obstante a acta de julgamento, tal como foi afirmado no acórdão recorrido, se consubstanciar em documento autêntico (artigos 362º, 363º, nº 2 e 369º, nº 1, do Código Civil).
Com efeito, o que a referida acta prova é que o juiz do tribunal da primeira instância fez nela registar a mencionada declaração de ciência, e não que dela tenha extraído algum efeito probatório desfavorável à recorrente.
Certo é que a referida acta não regista a declaração de protesto da aludida menção de concordância por parte do mandatário da recorrente que esta alegou ter sido por ele proferida.
A não inclusão na acta de julgamento do referido protesto, se este tivesse ocorrido, configurar-se-ia como omissão de um acto processual que devia ter sido praticado, por isso integrante da irregularidade processual a que se reporta o artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Os factos provados não revelam que a recorrente, representada nos actos processuais subsequentes àqueles que constam da referida acta, não pudesse conhecer do conteúdo da referida acta, de modo a verificar a omissão do registo do protesto e a invocá-la no decêndio posterior, nos termos dos artigos 153º, nº 1, e 205º do Código de Processo Civil.
A existir nulidade por omissão do registo do aludido protesto na acta de julgamento formulado pela recorrente, através do seu mandatário, estaria sanada, ou seja, deixava de assumir qualquer relevo processual.
Por isso, não merece censura a posição da Relação no sentido de que esta questão não tinha que ser por ela resolvida por extravasar do âmbito do recurso, ou seja, por se tratar de uma questão nova, por não ter sido suscitada no tribunal da primeira instância.
De qualquer modo, não se vislumbra que as instâncias tenham extraído da referida declaração de ciência do juiz do tribunal da primeira instância, quanto à concordância do mandatário da recorrente sobre a natureza pública do caminho, algum relevo probatório.
Em consequência, a conclusão é no sentido de que não ocorreu, na espécie, alguma infracção de alguma norma de direito probatório material.

6.
Atentemos agora na natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida.
O contrato de seguro é a convenção por virtude da qual uma das partes – segurador - se obriga, mediante retribuição – prémio - pago pela outra parte - segurado - a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro, uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
O seu objecto mediato é o interesse ou risco do dano que pode ocorrer no âmbito das coisas, actividades ou situações concernentes.
É regido pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas pela lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código Comercial (artigo 427º deste diploma legal).
Deve ser reduzido a escrito em instrumento designado apólice documento ad substantiam, integrante das condições gerais, particulares e especiais se for o caso (artigos 426º do Código Comercial e 1º, alínea f), do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho)
Tendo em conta a factualidade mencionada sob II, estamos perante um contrato de seguro do ramo montagem, construção e máquinas, celebrado entre a antecessora da recorrida, na posição jurídica de seguradora, e a recorrente, esta na posição jurídica de tomadora do seguro.
Dele resultaram para a tomadora do seguro, a recorrente, a obrigação de pagamento do prémio, e para a seguradora, a recorrida, a de suportar o risco que ocorra e a realizar a prestação de indemnização convencionada.

7.
Vejamos agora se o evento danoso em causa está ou não abrangido pelo mencionado contrato de seguro.
O artigo 3º nº 2.9. das condições gerais da apólice em causa expressa, em tema de exclusão, que o contrato de seguro não cobre os danos nos bens seguros em consequência de sinistro ocorrido nas vias públicas quando em circulação pelos próprios meios, o que é conforme com a circunstância de se tratar de uma máquina de lagartas.
Os factos integrantes da mencionada cláusula de exclusão são impeditivos do direito de crédito que a recorrente pretende fazer valer no confronto da recorrida, cujo ónus de prova impende, por isso, sobre a última (artigo 342º, nº 2, do Código Civil).
Está assente que a máquina foi transportada para a Quinta do Mourão num camião, e que depois de descarregada se deslocava pelos seus próprios meios, circulando por si própria para o local onde iria trabalhar, por um caminho municipal com cerca de 2,5 ou de 3 metros de largura, altura em que ocorreu o seu soterramento, por causa do seu peso e do estado encharcado daquele caminho.
É via pública a de comunicação terrestre afecta ao trânsito público (artigo 1º, alínea v), do Código da Estrada).
A conclusão é, por isso, tal como foi considerado nas instâncias, no sentido, por um lado, de que o acidente ocorreu quando a máquina em causa circulava pelos seus próprios meios numa via pública, e, por outro, que o respectivo resultado não está coberto pelo contrato de seguro em causa.
Conclusão que, ao invés do que a recorrente alegou, deriva de interpretação da lei ordinária, que não colide com o que se prescreve no artigo 2º da Constituição, em tanto quanto envolve o princípio do Estado de Direito.

8.
Atentemos agora na subquestão de saber se o referido contrato de seguro cobre ou não o custo do serviço de desenterramento da máquina em causa.
Alegou a recorrente ter direito a ser indemnizada pela recorrida pelos custos da remoção e desenterramento da máquina ao abrigo da cláusula contratual relativa à responsabilidade civil até ao montante de € 124 699,47.
Considerando a exclusão da cobertura do contrato de seguro quanto ao acidente que ocorreu com a máquina, prejudicado ficou o conhecimento da mencionada questão, pelo que dela se não conhece (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2 e 726º do Código de Processo Civil).

9.
Finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei.
Ainda não são aplicáveis no caso vertente as normas que alteram o Código de Processo Civil constantes dos Decretos-Leis nºs. 303/2007, de 24 de Agosto, e 304/2008, de 26 de Fevereiro.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade, e a Relação cumpriu a lei ao não admitir a junção dos documentos apresentados pela recorremte com as alegações no recurso de apelação.
A sindicância do juízo de prova formulado pela Relação quanto a provas de livre apreciação excede o âmbito do recurso de revista, e a Relação não infringiu alguma norma de direito probatório material.
A recorrente e a recorrida estão vinculadas por um contrato de seguro de danos próprios que, por virtude de cláusula de exclusão, não abrange o evento danoso em causa, pelo que fica prejudicado o conhecimento da questão da sua abrangência do custo da actividade de desenterramento da máquina.
A interpretação normativa que sustenta a mencionada conclusão não contraria o disposto na Constituição a propósito do Estado de Direito.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 15 de Maio de 2008

Salvador da Costa (Relator)

Ferreira de Sousa
Armindo Luís