Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P2632
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
COCAÍNA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA DA PENA
UNIÃO EUROPEIA
PENA DE EXPULSÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Área Temática: DIR PENAL.
Sumário : 1 - O art. 72.º do C. Penal ao prever a atenuação especial da pena criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que, relativamente aos casos previstos pelo legislador quando fixou os limites da moldura penal respectiva, diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, por traduzirem uma imagem global especialmente atenuada, que conduz à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa.
2 - As circunstâncias exemplificativamente enumeradas naquele artigo dão ao juiz critérios mais precisos, mais sólidos e mais facilmente apreensíveis de avaliação dos que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação, mas não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.
3 - Não é de atenuar especialmente a pena a um correio que introduziu 6813,969 gramas de "cocaína" em Portugal, por via aérea, confessou esse comportamento, está arrependido, tinha três filhos menores, sem antecedentes criminais. (5) - É nesse caso de aplicar, pelo crime de tráfico, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
4- De acordo com o DL n° 60/93, de 3 de Março, que estabelece o regime jurídico de entrada, permanência e saída de nacionais da União Europeia, e com o DL n° 244/98, de 8 de Agosto, que regulamenta a entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros, é legalmente admissível a expulsão daqueles cidadãos da União Europeia como pena acessória em caso de condenação em pena de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes, mas haverá que ponderar ainda razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública que justifiquem a aplicação dessa pena de expulsão.
5 - Se o Tribunal a quo afastou a atenuação especial da pena da arguida, tendo em consideração a culpa, a ilicitude e a circunstância de tratar de uma mera "transportadora", mas já não a confissão integral, o arrependimento, a ausência de antecedentes criminais e a idade (20 anos) da arguida, nada dizendo sobre a possibilidade de aplicação, ou não, ao caso, do regime especial para jovens adultos previsto no DL n.º 401/82, de 23/9, configura-se ostensiva omissão de pronúncia que implica a nulidade da decisão recorrida, face ao preceituado na al. c), do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam no STJ:

Processo n.º 2632/05, 5.ª Secção
Relator: Conselheiro Simas Santos
1.1.

O Tribunal Colectivo da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 27.5.2005, condenou a arguida, LBMG, cidadã holandesa, como autora material, de um crime de tráfico d estupefacientes do art. 21°, n°1, do DL n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B anexa, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 10 anos.

1.2.

Inconformada a arguida recorreu para este Tribunal, concluindo na sua motivação:

A) A recorrente é primária;

B) A recorrente, como resulta da matéria dada como provada, agiu em estado de extrema necessidade, o que contribuiu para a prática do acto de tráfico;

C) Não se tendo provado que, para além desse acto de tráfico, ocorrido em 13 de Novembro de 2004, tivesse praticado qualquer outros actos de tráfico, que a pudessem indiciar como traficante habitual;

D) Para a prática do acto de tráfico referido contribuiu de forma significativa a difícil situação económica em que a recorrente se encontrava, bem como a da sua família;

E) Na aplicação de pena de seis anos e seis meses de prisão não foram tidas em consideração as circunstâncias especiais em que a recorrente se encontrava;

F) Por outro lado, sempre poderia o Acórdão recorrido na aplicação de tal medida da pena ter feito uso do disposto no art° 72° do Código Penal, quanto à atenuação especial da mesma;

G) Sendo que a aplicação da pena de prisão de seis anos e seis meses não poderá deixar de ser considerada excessiva, face à factualidade dada como provada no Acórdão recorrido;

Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, deve ser dado provimento ao presente recurso, com que se fará a costumada JUSTIÇA.

1.3.

Respondeu o Ministério Público, que concluiu:

– o Tribunal apenas pode atenuar especialmente uma pena desde que verificadas as condições elencadas no artigo 72° do Código Penal; no caso dos autos, a confissão integral e sem reservas, o arrependimento, a circunstância de não ter antecedentes criminais em Portugal não preenche nenhuma das aludidas condições; o douto acórdão impugnado alcançou devida e adequadamente a pena de seis anos e seis meses de prisão à arguida LBMG;

– a medida da pena em concreto aplicada a esta arguida é justa e, por seu intermédio, alcançam-se os fins que a lei quer ver preenchidos no caso em apreço;

– teve o Tribunal “a quo” em atenção todos os requisitos legais e não fez qualquer aplicação incorrecta ou ilegal do disposto, quer no artigo 40°, quer nos artigos 71° e 72° do Código Penal;

– no entanto, aplicou à arguida, cidadã da União Europeia, a pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de dez anos, sem que tivesse ponderado a existência de razões de ordem, segurança e saúde públicas, a par do cometimento do crime de que era acusada; violou assim a decisão, neste particular, o disposto nos artigos 12°, n° 1 e 13°, n° 1, do DL n° 60/93, de 3 de Março e artigo 99°, do DL 244/98, de 8 de Agosto;

– o Tribunal “a quo” tomou conhecimento de uma questão que lhe era vedado conhecer;

– o que toma nula, atento o disposto no artigo 379°, n° 1, alíneas b) e e) do Código de Processo Penal, nesta parte, a douta decisão impugnada; Impõe-se, assim, que seja declarada nula a decisão quando impõe à arguida LNMG a pena acessória de expulsão do território nacional, mantendo-se contudo a pena de seis anos e seis meses de prisão imposta à mesma, com o que farão Vossas Excelências, aliás, como sempre, JUSTIÇA!

2.

Distribuídos os autos a 6.7.2005 neste Supremo Tribunal de Justiça, teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos, teve lugar a audiência. Nela a defesa manteve a posição assumida em sede de motivação e o Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do recurso do Ministério Público e pela improcedência do recurso da arguida, aceitando, no entanto, uma leve diminuição da pena.

Cumpre, pois, conhecer e decidir.

E conhecendo.

2.1.

São suscitadas no presente processo as seguintes questões:

– Atenuação especial da pena (recurso da arguida);

– Medida da pena (recurso da arguida);

– Pena acessória de expulsão (resposta do Ministério Público).

2.2.

Vejamos, começando pela matéria de facto assente:

– No dia 13 de Novembro de 2004, pelas 09h20m, a arguida desembarcou no Aeroporto da Portela, em Lisboa, procedente de Fortaleza, Brasil, no voo TP 168, de contramarca 57081/2004.

– A arguida apresentou-se no canal verde, tendo sido seleccionada para controlo de bagagem pelos serviços do Aeroporto.

– No decurso de tal diligência, os funcionários alfandegários verificaram que na estrutura da sua mala de porão

– com a etiqueta n°TP-895365, que coincidia com a etiqueta aposta no seu bilhete de viagem - a arguida transportava cocaína (clorodrato), com o peso líquido de 6813,969 gramas.

– Na posse da arguida foram ainda encontrados e apreendidos: a mala atrás mencionada, que continha resíduos de cocaína; um telemóvel da marca Samsung, modelo SGH-X450, com IMEI 353071/00/200340/2, avaliado em 20 Euros; uma agenda d capa preta, com diversos nomes e números de telefone; um fligh coupon, em nome de Benavides Martinez/Lmrs, para o percurso Lisboa - Fortaleza - Recife - Lisboa, tendo aposto no verso um talão de embarque para o voo TP 233121, com destino a Fortaleza; um flight coupon, em nome de Benavides Martinez/Lmrs, para percurso Lisboa - Amsterdão, no voo TP 0660, datado de 1 d Novembro de 2004, e respectivo passenger receipt; um cartão de embarque para o voo TP 154, em nome de Benavides Martinez/Lmr datado de 12 de Novembro de 2004, com destino a Lisboa; um etiqueta de bagagem para o voo TP 895365, com destino a Lisboa; um ticket de identificação de bagagem para o voo TP 895365, vários papéis manuscritos e a quantia de 190 Euros.

– A arguida conhecia a natureza e as característica estupefacientes da substância apreendida, que aceito transportar por via aérea, para ser posteriormente comercializada, pretendendo obter nessa transacção montante pecuniário de valor não apurado mas que se traduziria em lucro.

– As quantias acima mencionadas foram obtidas pela arguida na descrita actividade.

– A arguida agiu livre e conscientemente determinada, sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização d cocaína lhe eram proibidos.

– A arguida é cidadã holandesa e não possui quaisquer ligações afectivas ou profissionais com o território português.

– A arguida usou o território nacional como plataforma para o transporte do produto estupefaciente que lhe foi apreendido.

– Confessou a prática dos factos, integralmente e sem reservas.

– Está arrependida.

– Não tem antecedentes criminais.

– Na República Dominicana trabalhava como empregada doméstica, auferindo 3.000 pesos por mês.

– Tem três filhos, com 23, 20 e 17 anos.

2.3.

Atenuação especial da pena e medida concreta da pena

Sustenta a recorrente que lhe deveria ter sido atenuada especialmente a pena, pois é primária, agiu em estado de extrema necessidade (difícil situação económica e da sua família), o que contribuiu para a prática do acto de tráfico, não está provado que tenha praticado qualquer outra acto de tráfico.

Defende, em todo o caso, a recorrente que na aplicação de pena não foram tidas em consideração as suas circunstâncias especiais, pelo que essa pena não poderá deixar de ser considerada excessiva, face à factualidade dada como provada.

Dispõe o art. 72.º do C. Penal que o Tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1), enumerando o n.º 2 diversas dessas circunstâncias, a que não se reporta a recorrente, como se viu.

Assim se criou uma válvula de segurança para situações particulares, que foi já apresentada da seguinte forma:

"Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo "normal" de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena" [Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 302. Cfr. no mesmo sentido, a sua intervenção na Comissão Revisora (Acta n.° 8, 78-9): ora, o que na verdade aqui ocorre é uma visão integral do facto que leva o julgador a concluir por uma especial atenuação da culpa e das exigências da prevenção].

Seguiu-se neste art. 72.º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação (cfr., neste sentido Leal-Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I, em anotação ao art. 72.º).

Assim, sem entravar a necessária liberdade do juiz, oferecem-se princípios reguladores mais sólidos e mais facilmente apreensíveis para que se verifique, em concreto, quando se deve dar relevo especial à atenuação.

As situações a que se referem as diversas alíneas do n.° 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.

Invoca a recorrente o ser primária, ter agido em estado de extrema necessidade, não estando provado que tenha praticado qualquer outra acto de tráfico.

Resulta da matéria de facto provada que a arguida confessou a prática dos factos, integralmente e sem reservas., está arrependida., não tem antecedentes criminais e na República Dominicana trabalhava como empregada doméstica, auferindo 3.000 pesos por mês, tem três filhos, com 23, 20 e 17 anos.

A confissão no caso vertente vê o seu relevo diminuído por tem sido detida pelas autoridades na posse da droga e não permitido subir qualquer degrau na descoberta dos restantes autores do crime.

Por outro lado, a primariedade é um dever do cidadão, que deve, não obstante, ser valorizada na determinação da medida concreta da pena, mas que, por si só, não atenua especialmente a pena.

Não estão provados os invocados requisitos do estado de necessidade, mas tão só que trabalhava como empregada doméstica, auferindo 3.000 pesos por mês, com três filhos, com 23, 20 e 17 anos.

Não se vê assim circunstância que, diminuindo consideravelmente a ilicitude ou a culpa, deva levar à atenuação especial da pena.

Como se viu, a arguida serviu de correio de droga, por via aérea, transportando 6813,969 gramas de cocaína.

Neste sentido vai, aliás, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça:

(1) - Comete o crime previsto e punível pelo n.º 1 do art. 23º do DL nº 430/83, de 13 de Dezembro, o arguido que transporta consigo, da América do Sul para Portugal, por avião, 2047 gramas de cocaína, dissimuladas em 6 garrafas, substância estupefaciente que se destinava a ser levada para Espanha, via terrestre, e aí entregue a terceiros para comercialização. (2) - Tendo em conta a intensidade do dolo do arguido, traduzida no conhecimento do efeito nefasto daquela droga, e a quantidade elevada da mesma, ainda que se demonstre a confissão por forma espontânea e relevante (após ter sido descoberto), o seu arrependimento sincero, o facto de ser primário e ter agido em consequência de dificuldades económicas e sociais, não se justifica o uso da atenuante especial referida nos art.s 73º e 74º do C Penal de1982. (3) - A pena adequada cifrar-se-á em oito anos de prisão e cinquenta mil escudos de multa e expulsão para o seu país natal. (Ac. de 16.1.90, BMJ 393-250).
(1) - Se o "correio" que procurou fazer entrar 652 gramas de heroína em Portugal vivia até certo ponto numa situação de carência e sob o controle do individuo a mando de quem transportava a droga confessou os factos sem reserva, confissão de pouco relevo, dadas as condições em que foi batido e a apreensão da droga que transportava, não se justifica o uso do preceito do artº 31º , nº 2 do DL 430/83, ademais se o arguido tem passado criminal relacionado com drogas, falsificação de receitas para obter medicamentos e furto de medicamentos. (Ac. de 20.6.90, BMJ 398-298)
Não é de aplicar atenuação especial da pena aos traficantes de cocaína, sob a forma de "correios". Estes são indispensáveis à proliferação do tráfico e sem eles tal crime de há muito já estaria erradicado, pois, é evidente que os grandes traficantes não iriam, nem vão sujeitar-se a serem apanhados com a droga na mão. (Ac. de 4.7.90, BMJ 399-215)
(2) - O art. 72.º do C. Penal ao prever a atenuação especial da pena criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que, relativamente aos casos previstos pelo legislador quando fixou os limites da moldura penal respectiva, diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, por traduzirem uma imagem global especialmente atenuada, que conduz à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. (3) - As circunstâncias exemplificativamente enumeradas naquele artigo dão ao juiz critérios mais precisos, mais sólidos e mais facilmente apreensíveis de avaliação dos que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação, mas não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente. (4) - Não é de atenuar especialmente a pena. A um correio que introduziu 1.524,09 gramas de "cocaína" em Portugal, por via aérea, confessou esse comportamento, estava sem trabalho há cerca de três meses, tinha mulher e dois filhos menores, sem antecedentes criminais, com interiorização do desvalor da sua conduta. (5) - É nesse caso de aplicar, pelo crime de tráfico, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão. (Ac. de 16.10.03, proc. nº 3224/03-5)
(1) - Não se verificam circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, a justificar uma atenuação especial da pena, quando o que sobreleva da consideração global da conduta do arguido é que o mesmo quis introduzir estupefaciente no país, sabendo que tal acção era contrária à lei, sendo especialmente relevante (para o que agora importa) a quantidade do estupefaciente (3.178,263 grs.) e a respectiva qualidade (cocaína), devendo o grau da ilicitude considerar-se elevado, tendo o arguido actuado com dolo directo, e não sendo o valor da sua confissão muito significativo, já que foi surpreendido pela polícia com a droga apreendida. (2) - Apesar de deporem em seu benefício a circunstância de ter agido desta forma por se encontrar numa situação de insuficiência económica, a sua confissão integral (ainda que, dentro do contexto, tenha sido consequência natural e necessária de ter sido encontrado o estupefaciente na sua posse), o facto de se envergonhar e arrepender da sua actuação, e de ser de modesta condição social e económica e de não ter antecedentes criminais, não se apresenta um quadro em que a imagem global do facto surja especialmente atenuada relativamente ao complexo ‘normal’ de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal correspondente ao art. 21.º do DL 15/93, de 22-01. (Ac. de 12.1.05, proc. nº 4002/04-3).

Não é de atenuar especialmente a pena quando o que sobreleva da consideração global da conduta do arguido é que este, não obstante já se encontrar interditado de entrar no espaço Shengen, desembarcou no aeroporto de Lisboa, fazendo-se acompanhar de malas de porão contendo, em fundo dissimulado, duas placas de cocaína com o peso líquido de 9.164,300 grs., conhecendo perfeitamente a natureza e as características estupefacientes da substância apreendida, que aceitou transportar por via aérea, pretendendo obter nesse transporte montante pecuniário de valor não apurado, tendo agido livre e conscientemente determinado, sabendo que a detenção e transporte de cocaína lhe eram proibidos, e sendo reduzido o valor a atribuir à confissão integral e sem reservas, uma vez que foi surpreendido em flagrante posse do estupefaciente, quadro que - longe de configurar diminuição de culpa e de exigências de prevenção - impõe, ao invés, a conclusão de elevada intensidade do dolo e do igualmente elevado grau de ilicitude (reportado à expressiva quantidade da droga e respectiva ‘qualidade’, bem como o modo (já com alguma sofisticação) do processo delituoso (Ac. de 19.1.05, proc. nº 4555/04-3)
Mas as referidas circunstâncias, não justificando a atenuação especial da pena, podem suportar uma ligeira diminuição da pena concreta fixada no quadro do tráfico simples.
Tem sido este Supremo Tribunal de Justiça chamado frequentemente a apreciar questões da medida da pena aplicada aos correios de droga, ponderando as diversas circunstâncias atendíveis, nas quais avulta o tipo e quantidade de substância traficada.

Escrevia-se recentemente num acórdão deste Tribunal, fazendo a síntese dessa experiência e procurando estabelecer critérios a partir da casuística:

«Recordando cerca de 40 casos de «correio internacional de cocaína» (ou heroína) apreciados recentemente no Supremo, verificar-se-á que só em sete deles o respectivo «correio» foi penalizado com menos de cinco anos de prisão: quatro (747,29 g; 1351,85 g; 1825,49 g; 2488,38 g) na pena de quatro anos e meio de prisão; um (2301,26 g) na de quatro anos de prisão; outro na de 3 anos de prisão (1349,5 g) e outro (2169,77 g) na de 2,5 anos de prisão (valendo-lhe o regime penal do jovem adulto). Onze outros foram punidos com «cinco anos de prisão». Cinco com «cinco anos e meio de prisão». E os demais com penas variáveis entre seis e oito anos de prisão.» (Ac. de 13.1.05, proc. n.º 56/05-5, Relator: Cons. Carmona da Mota, também subscrito pelo aqui Relator)

Aceita-se, no contexto, que a arguida tenha funcionado como o comum dos correios de droga, movida pela sua fragilidade económica, com um salário baixo e 3 filhos e que a «necessidade» da pena seja menor relativamente a quem, como a arguida, sem antecedentes criminais, seja surpreendida, ainda na posse da droga transportada, pelas autoridades do país de destino (ou de passagem) e que, nessas circunstâncias, reconheça logo os «factos» e, mais tarde em julgamento, os confesse e esteja arrependida.
No entanto, a aplicação das penas visa, sobretudo, a «protecção dos bens jurídicos» (art. 40.1 do CP) e a frequência com que a cocaína sul-americana é introduzida na Europa por intermédio de «correios» exige das instâncias jurisdicionais de controlo uma resposta minimamente dissuasora.
Daí que, no caso (em que a arguida introduziu na Europa mais de 6 quilos de cocaína), as correspondentes exigências de prevenção sugerissem, no quadro de uma pena abstracta de 4 a 12 anos de prisão, uma pena entre cinco e meio e seis anos e meio de prisão. E que, nesta moldura de prevenção, a medida concreta da pena houvesse de ser procurada - ainda que, aqui, nas proximidades daquele mínimo - em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas [como aqui] inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
A medida da culpa, em que se desenvolve a tensão entre a situação de fragilidade da arguida e a consciência da natureza da substância em causa, da sua quantidade e destino, bem como a consciência do carácter ilícito da conduta, é que permite que a pena concreta se fixe no limite mínimo daquela moldura de prevenção.
Assim, tem-se por mais adequada e justa a pena de 5 anos e 6 meses de prisão que se fixa.
2.4.

Pena acessória de expulsão.

Sustenta o Ministério Público na instância recorrida que a aplicação à arguida, cidadã da União Europeia, a pena acessória de expulsão do território nacional por 10 anos, sem que tivesse ponderado a existência de razões de ordem, segurança e saúde públicas, a par do cometimento do crime de que era acusada, constitui violação do disposto nos art.ºs 12°, n° 1 e 13°, n° 1, do DL n° 60/93, de 3 de Março e 99°, do DL n.º 244/98, de 8 de Agosto;

Defende ainda que o Tribunal a quo tomou conhecimento de uma questão que lhe era vedado conhecer, o que torna nula a decisão recorrida nessa parte (art. 379°, n° 1, als b) e e) do CPP), mas não explicitou a razão pela qual o Tribunal a quo não podia dela conhecer.

Começando por esta última questão, deve afirmar-se que não assiste razão ao Ministério Público.

Com efeito, na audiência de discussão e julgamento que teve lugar a 27.5.05 foi ditado para a acta o seguinte despacho: «no decurso da audiência resultaram provados factos susceptíveis de aplicar à arguida a pena acessória de expulsão do Território Nacional, pelo que nos termos do art. 358.º do C.P.Penal se dá desde já conhecimento à arguida».

Mais consta da acta que «pela defensora oficiosa da arguida foi dito que prescindia do prazo previsto no art. 358 do C.P.Penal (fls. 259).

Daí que não estivesse vedado o conhecimento dessa questão.

Mas já assiste razão ao Ministério Público, quando sustenta que deve ser revogada a decisão recorrida no que se refere à aplicação da pena acessória de expulsão. E pelas razões que invoca.

Escreve-se, a propósito, na decisão recorrida:

«A arguida é de nacionalidade estrangeira – holandesa - e não tem qualquer tipo de ligação afectiva ou profissional Portugal, aqui se tendo deslocado, embora em trânsito, par cometer os factos supra descritos, não se vislumbrando qualquer fundamento para a sua permanência em Portugal, sendo certo que com a sua conduta violou de forma grave valores sociais dominantes e fundamentais da sociedade portuguesa, pelo que, atenta a natureza e particular gravidade do ilícito cometido - tráfico de estupefacientes -, decide-se condená-la na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de dez anos, de acordo com o disposto nos arts.68°, n°1, al.c), 69° e 73° do DL 59/93, de 3/03, 34°, n°1, dc DL 15/93, de 22/01; 106° do DL 244/98, de 8/07 e 101° do DL 4/2001, de 10/01.»

A arguida foi condenada, como se viu, como autora de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.°, n.º 1 do DL n.º 15/93, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão e, bem assim, na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 10 anos.

O Tribunal recorrido teve também presente que a arguida é de nacionalidade holandesa e não tem qualquer ligação afectiva ou profissional a Portugal, mas não deu adequado relevo à circunstância de se tratar de uma cidadã de um país integrado na União Europeia.

Com efeito, no que respeita ao regime jurídico de entrada, permanência e saída do território português dos cidadãos estrangeiros nacionais de Estados membros da União Europeia, rege o disposto no DL n.º 60/93, de 3 de Março, diversamente do que sucede com os restantes cidadãos estrangeiros em que se aplicava o disposto no DL n.º 59/93, de 3 de Março, expressamente revogado pelo DL n.º 244/98, de 8 de Agosto (que sofreu diversas alterações, designadamente pela Lei n.º 97/99, de 26 de Julho, DL n.º 4/01, de 10 de Janeiro e DL n.º 34/03 de 25 de Fevereiro).

E o próprio DL n.º 244/98, de 8 de Agosto se refere à legislação própria que rege a entrada, permanência, saída e afastamento de cidadão estrangeiro nacional de um Estado membro da União Europeia ou nacional de um Estado Parte no espaço económico europeu (n.º 3 do art. 1.º), ou seja ao mencionado DL n.º 60/93, de 3 de Março que, por sua vez, remete para aquele diploma em tudo o que não esteja expressamente regulado (art. 31.º)

Ora, dispõe-se no art. 12°, n.º 1, do DL n.º 60/93, de 3 de Março, que o seu regime pode ser derrogado por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública (n.º 1), esclarecendo o n.º 1 do art. 13.º que as medidas de ordem pública ou de segurança pública devem fundamentar-se exclusivamente no comportamento do indivíduo em causa, sendo que a mera existência de condenações penais não pode determinar a aplicação automática de tais medidas (n.º 2).

Daí que, embora o DL n.º 60/93 não disponha sobre a expulsão, o que remete para a aplicação do DL n.º 244/98, a aplicação da pena acessória de expulsão a um cidadão comunitário, ainda que na sequência de imposição de pena de prisão pela prática de crime doloso, terá que ser suportada em razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública.

Isso mesmo entendeu também o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (parecer n.º 7/2002, www.pgr.pt) a propósito da expulsão de um nacional de um país da União que permanecia irregularmente em Portugal, quando concluiu que os nacionais de Estados-membros da União Europeia, enquanto titulares do direito de livre circulação no espaço comunitário, apenas poderão ser objecto de expulsão, nos termos dos art.ºs 99º, nº 1, al. a), 119º, nºs 1 e 8, 121º e 136º, nº 2, do DL nº 244/98, se permanecerem irregularmente em território português, quando ocorram razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública que a justifiquem, em conformidade com o disposto na Directiva nº 64/221/CEE, de 25 de Fevereiro de 1964, e nos art.ºs 12º e 13º do DL nº 60/93 (conclusões 2.º e 3.ª)

Aliás, já antes da publicação do DL n.º 60/93, este Supremo Tribunal de Justiça se pronunciara de forma idêntica em caso paralelo ao presente, a partir da consideração da mesma Directiva.

Com efeito, no Ac. de 19.12.91 (BMJ 412-229), decidiu-se que:

«1 - A integração nas Comunidades Económicas Europeias estabelece os princípios orientadores de quatro liberdades fundamentais - livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e capitais, além de políticas comuns em determinados sectores.

2 - Assim, o art. 2º, nº 1 da Directiva do Conselho da Comunidade Económica Europeia, nº 64/221/CEE refere-se à expulsão de território, adoptadas pelos Estados-membros, por razões de ordem, segurança ou saúde pública, estabelecendo no seu art. 3º, nº 2 que a "mera existência de condenações penais não pode por si só, servir de fundamento à aplicação de tais medidas".

3 - O DL 267/87, de 2 de Julho, que regulou a matéria daquela directiva, reproduz no seu art. 23º, nº 2 aquele outro preceito, e no seu nº 1, o nº 1 do art. 3º da Directiva que prescreve que "as medidas de ordem pública devem fundamentar-se exclusivamente no seu comportamento pessoal do indivíduo em causa". Esse preceito exige que a apreciação da ameaça à ordem pública se faça tendo em conta a situação individual de qualquer pessoa protegida pelo direito comunitário, e não na base de apreciações gerais.

4 - De acordo com o art. 33º, nº 4 da CRP a expulsão dum estrangeiro só pela autoridade judicial pode ser decidida, jurisdicionalização regulada hoje pelo DL 264/B/81, de 3 de Setembro.

5 - Existe, porém, incompatibilidade com o direito comunitário quando se estabelece a expulsão como pena acessória de crimes punidos com certas penas, como determina o art. 43º, o que também sucede sempre que um estrangeiro é condenado por infracções à legislação sobre estupefacientes - art. 34º do DL 430/83, sem avaliação concreta da sua perigosidade, o que contraria o aludido art. 3º, nº 2 da Directiva falada.»

No caso, nem a acusação nem os factos provados em audiência se referem a circunstâncias do comportamento da arguida que, extravasando a mera conduta criminal, fossem atinentes a quaisquer razões de ordem, segurança ou saúde públicas e que postulassem a sua expulsão.

Daí que não possa manter-se a aplicação dessa pena acessória, como sustenta o Ministério Público (cfr. neste sentido o ac. de 19.5.05, proc. n.º 1126/05-5, com o mesmo Relator)

3.

Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso da arguida, alterando a medida da pena aplicada e em revogar a decisão recorrida na parte em que aplica à arguida a pena acessória de expulsão.

Custa pela arguida quanto ao seu recurso, pelo decaimento parcial, com a taxa de justiça de 3 Ucs.

Lisboa, 6 de Outubro de 2005

Simas Santos, (Relator)

Santos Carvalho,

Costa Mortágua.