Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
594/09.5TBFAF.G1-A.S1
Nº Convencional: RECLAMAÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: DUPLA CONFORME
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REGIME APLICÁVEL
LEI PROCESSUAL
Data da Reclamação: 02/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643º CPC
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO / PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p.15.
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, 1981, pp.60-61.
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, p.53 e nota 1.
- Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p.48.
- Remédio Marques, Acção Declarativa à luz do Código Revisto, 2007, p.142.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - NA REDACÇÃO DO D.L. N.º 303/2007, DE 24-08 - (CPC): - ARTIGO 721.º N.º 3
LEI N.º 41/2013, DE 26-06: - ARTIGOS 5.º, N.º1, 7.º, N.º1, 8.º.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - NA REDACÇÃO DA LEI Nº 41/2013, DE 26-06 - (NCPC): - ARTIGO671.º, N.º3.
Sumário :
I – Do acórdão da Relação que, sem voto de vencido, e com fundamentação diferente, confirmou a decisão da 1.ª instância, não era admissível recurso no regime do processo civil constante do DL n.º 303/2007, de 24/08, mas já o é no regime instituído pela Lei n.º 41/2013 de 26/06, que entrou em vigor em 01-09-2013.

II – A lei nova respeitante aos pressupostos da admissibilidade dos recursos não se aplica às decisões que tenham sido proferidas antes de a lei nova entrar em vigor.

III – Assim, tendo a acção sido intentada após 01-01-2008 e o acórdão da Relação que confirmou a sentença de 1.ª instância sido proferido em 02-08-2013, dele não cabe recurso de revista com base na diversidade de fundamentação empregue pela 1.ª e pela 2.ª instância.

Decisão Texto Integral:

AA intentou no Tribunal de Fafe, em 2009 (como se alcança do nº do respectivo processo - 594/09.5TBFAF.G1-A), acção fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos contra BB, peticionado a condenação deste a pagar-lhe a indemnização de € 35.584,00 euros, por danos patrimoniais e não patrimoniais.

O Tribunal de Fafe proferiu sentença, julgando tal acção não provada e improcedente e absolvendo o Réu do pedido, por, fundamentalmente, não se ter provado ter sido ele o autor das lesões sofridas pela Autora.

Esta apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 02-08-2013, e depois de alterar a matéria de facto no sentido da imputação do facto ilícito ao Réu, confirmou a sentença recorrida, julgando a acção improcedente e absolvendo o Réu do pedido.

Fundamentalmente porque, segundo entendeu a Relação, exercendo as conclusões da alegação do recorrente uma função semelhante à do pedido na petição inicial, delimitam a esfera de actuação do tribunal, não sendo possível alegar nem concluir por remissão para outras peças processuais.

Escreveu-se no dito acórdão:

“Nas conclusões das alegações a apelante refere que deve dar-se “provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença proferida e, em sua substituição, julgando a acção totalmente procedente”.

Em face do exposto poderia pensar-se que a pretensão da apelante seria a de que a acção procedesse nos termos constantes do pedido, provavelmente o constante da petição inicial, o que não se esclarece, nem nas alegações, nem no lugar próprio, nas conclusões das alegações.

Ao assim alegar, na hipótese de poder ser esse o sentido de tal alegação, a apelante está a remeter a formulação da sua pretensão, em sede de alegações de recurso, para uma outra peça processual, o que coloca logo a questão de saber se tal é possível”.

A Relação, como se disse, respondeu a esta questão negativamente.

E, consequentemente, porque a apelante se limitou, na alegação e nas conclusões, a impugnar a decisão sobre a matéria de facto sem questionar a decisão de direito, confirmou a sentença absolutória da 1.ª instância, não obstante alterar a decisão sobre a matéria de facto, imputando ao Réu a autoria do facto ilícito na pessoa da Autora.

Esta interpôs recurso de revista contra tal acórdão.

Mas tal recurso foi rejeitado pelo Exº Relator; escreveu-se no despacho que recusou tal recurso:

“Tendo em conta que o acórdão aqui proferido confirmou, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1.ª instância, o recurso não é admissível (artigo 721.º, n.º 3 CPC)”.

E é contra esta decisão que a recorrente deduz a presente reclamação.

O recorrido respondeu, defendendo a subsistência do despacho reclamado.

Instruída a reclamação e remetida a este STJ, foi a mesma objecto de distribuição.

Cumpre decidir:

O despacho reclamado louvou-se no preceituado no art. 721.º n.º 3 CPC (na redacção do DL nº 303/2007, de 24/08), segundo a qual

“não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.

A decisão da 1.ª instância – recorde-se - julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido; a Relação confirmou tal decisão de improcedência da acção e de absolvição do Réu do pedido.

A dupla conforme, sem voto de vencido e independentemente do fundamento, impedia, portanto, a recorribilidade do acórdão da Relação que confirmasse a sentença de 1ª instância.

E à luz do art. 721.º n.º 3 do CPC (na versão do DL n.º 303/2007 citado) é evidente a irrecorribilidade do acórdão da Relação proferido no caso concreto, ainda que este houvesse alterado a matéria de facto, conforme peticionado no recurso de apelação, porquanto o sentido último de tal acórdão foi no sentido de confirmar a improcedência da acção e a absolvição do Réu do pedido, não estando ora em causa aquilatar da adequação e correcção da aplicação que ela fez dos princípios normativos nem, consequentemente, da justiça e da bondade de tal decisão.

Por conseguinte, o recurso de revista é inadmissível à luz do art. 721º nº3 do CPC.

Como entendeu – e bem – o despacho reclamado.

Todavia, o reclamante suscita a questão da aplicabilidade, ao caso em apreço, do art. 671º nº3 do CPC (na redacção da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho) – correspondente ao art. 721º nº3 na versão do DL nº 303/2007) – sobre a admissibilidade do recurso de revista.

Segundo aquele preceito,

“ Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”

.

Como flui do exposto, a fundamentação do acórdão da Relação é essencialmente diversa da invocada na sentença de 1ª instância; logo, apesar da confirmação desta, o acórdão seria passível de recurso de revista por força dessa diversidade de fundamentação.

Significa isto que a restrição decorrente da chamada dupla conforme não funciona quando a Relação empregue para a confirmação da decisão de 1ª instância fundamentação diferente da utilizada nesta última, a qual pode passar mesmo pela modificação da matéria de facto (na medida em que os factos provados integram os fundamentos da decisão).

Nesta perspectiva, não obstante a dupla conforme das decisões proferidas na 1ª e na 2ª instância, o recurso de revista seria admissível porque os fundamentos invocados para a improcedência da acção na 1ª instância não coincidiam, de todo, com os invocados para a mesma improcedência na Relação; quer dizer, com o Novo Processo Civil constante da Lei nº 41/2013, para além dos casos de inexistência de dupla conforme e da dupla conforme com voto de vencido (já previstos na versão do DL n.º 303/2007), a revista passou a ser admissível também nos casos de dupla conforme com fundamentação essencialmente diversa.

Logo, no caso sub Júdice, a revista seria admissível em atenção a essa diversidade de fundamentações.

Em abono desta sua posição, a reclamante invoca a aplicabilidade do Novo Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013 aos processos pendentes.

Que dizer?

É verdade que, por força dos art.ºs 5.º, n.º 1, e 8.º da Lei n.º 41/2013, o Novo Processo Civil se aplica às acções declarativas pendentes em 01-09-2013, data da sua entrada em vigor.

O caso sub Júdice é uma acção declarativa intentada em 2009 e em que a decisão de que se pretende recorrer foi proferida em 02-08-2013, logo, antes da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013.

Por isso, o art. 7.º n.º1 desta Lei não é aplicável ao nosso caso; segundo tal preceito,

“aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em acções instauradas em antes de 1 de Setembro de 2008, aplica-se o regime de recursos decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007 de 24 de Agosto, com as alterações agora introduzidas, com excepção do disposto no nº3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente Lei”

No caso presente – recordemos – o acórdão recorrido foi proferido em 02-08-2013 (logo antes da entrada em vigor da Lei) e a acção foi intentada em 2009 (logo, depois de 01-09-2008…).

Portanto, do art. 7º citado não é possível concluir a imposição da aplicação, ao nosso caso, da versão do CPC do DL n.º 303/2007 ou da Lei n.º 41/2013.

Há então, na ausência de previsão expressa em sede de normas transitórias, que recorrer aos princípios gerais em matéria de aplicação das leis processuais no tempo.

O art. 5.º n.º 1 da Lei n.º 41/2013 pouco nos adianta; ao prescrever a aplicação de tal Lei aos processos pendentes mais não faz que consagrar um princípio geral de aplicação imediata da lei processual nova às causas pendentes, ou seja, às causas instauradas antes do início da vigência da lei nova.

E de entre estas, há as que versam sobre recursos.

Porque é de admissibilidade de recursos que tratamos, no caso vertente, a saber, se é possível interpor revista de um acórdão da 2ª instância que confirma a sentença de 1ª instância, se bem que com fundamentação essencialmente diferente.

Tal não era admitido no domínio do DL nº 303/2007 mas passou a sê-lo na vigência da Lei nº 41/2013, a partir de 01-09-2013.

Escreve o Prof. Antunes Varela:

“A nova lei que admita recurso de decisões que anteriormente o não comportavam, é ponto assente que não deve aplicar-se às decisões já proferidas à data da sua entrada em vigor.

De outro modo, a nova lei destruiria retroactivamente a força de caso julgado, que a decisão adquirira à sombra da antiga legislação”.

E em nota, citando o Prof. A. Reis:

“Pronunciada decisão na vigência da lei anterior, essa decisão não podia ser impugnada; estava, portanto, destinada a constituir caso julgado. Não deve iludir-se a legítima expectativa criada à parte vencedora de ver transitar em julgado a sentença ou o despacho que lhe é favorável” (cfr. Manual de Processo Civil, 1984, p.53 e nota 1).

No mesmo sentido, o Prof. Manuel Andrade:

“A nova lei não se aplica às decisões anteriores quando admite recurso onde anteriormente o não havia. De contrário, violar-se-iam as expectativas fundadas sobre o caso julgado formado ao abrigo da antiga lei” (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 48).

Tal como o Prof. Anselmo de Castro:

“Se a lei nova vem admitir recurso onde anteriormente o não havia, ela não se aplicará às decisões anteriores que continuam irrecorríveis”

E mais adiante, depois de questionar a justificação da solução preconizada pelo Prof. Manuel Andrade e assente nas expectativas das partes, escreve o Prof. Anselmo de Castro:

“A justificação, está antes, em face do caso julgado, automaticamente se produzir a irrecorribilidade da sentença, indo a aplicação da lei nova atingir um processo já encerrado. O caso julgado constitui um limite à aplicação de qualquer nova norma. Daí a inadmissibilidade do recurso” (Cfr. Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, 1981, p. 60-61).

Como é óbvio, a invocação do caso julgado na fundamentação da inadmissibilidade do recurso deve ser entendida em termos hábeis, porquanto o caso julgado pressupõe o decurso do prazo do trânsito em julgado sem interposição de qualquer recurso e, no caso em apreço, no decurso desse prazo foi interposto recurso e entrou em vigor nova lei que passou a admitir recurso em hipótese que antes o não admitia.

O caso julgado deve, portanto, ser interpretado como automaticamente decorrente da irrecorribilidade da decisão face à lei em vigor à data em que foi proferida: não sendo admitido recurso, a decisão constituía de imediato caso julgado…

Ora, o direito em vigor em 02-08-2013, quando foi proferido o acórdão de que a reclamante pretende recorrer, não admitia recurso de revista nos casos de dupla conforme com fundamentação diversa.

Logo, a circunstância de, no prazo de trânsito em julgado, entrar em vigor nova lei que passa a admitir recurso num caso que antes era recusado deve ser irrelevante para efeitos de admissibilidade de recurso.

O princípio normativo geral em matéria de aplicação de lei processual sobre recursos no tempo é, portanto, este: a lei nova respeitante aos pressupostos da admissibilidade dos recursos não se aplica às decisões que tenham sido proferidas antes de a lei nova entrar em vigor, quer a lei nova venha a admitir ou a impedir o recurso (cf. Remédio Marques, Acção Declarativa à luz do Código Revisto, 2007, p. 142).

Por isso, se pode afirmar com Abrantes Geraldes, a propósito de decisões proferidas antes de 1 de Setembro de 2013 (antes da entrada em vigor do NCPC) em processos instaurados a partir de 1 de Janeiro de 2008 – tal é o caso em apreço – que

os recursos seguem o regime aprovado pelo Dec.-Lei nº 303/2007 de 24 de Agosto (v.g., monismo recursório, alçadas, prazos, apresentação imediata das alegações, dupla conforme, etc.)” (Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 15, negrito nosso).

Logo, a admissibilidade do recurso de revista assente na noção de dupla conforme deve, no caso vertente, ser apreciada à luz do anterior art. 721.º n.º 3 CPC (versão do DL n.º 303/2007) e não do art. 671º, n.º3, do actual CPC (versão da Lei nº 41/2013) porque a decisão cuja recorribilidade se questiona foi proferida antes de 01-09-2013, ou seja, na vigência da versão do CPC aprovada pelo DL nº 303/2007.

E, como dissemos, segundo o n.º 3 do art. 721.º CPC, a dupla conforme impeditiva do recurso de revista prescindia da diversidade de fundamentação.

Por conseguinte, e não obstante a diversidade essencial da fundamentação da decisão na 1.ª e na 2.ª instância, inexistindo voto de vencido no acórdão da Relação de 02-08-2013, dele não cabe recurso de revista.

Em síntese:

I – Do acórdão da Relação que, sem voto de vencido, e com fundamentação diferente, confirmou a decisão da 1.ª instância, não era admissível recurso no regime do processo civil constante do DL n.º 303/2007, de 24/08, mas já o é no regime instituído pela Lei n.º 41/2013 de 26/06, que entrou em vigor em 01-09-2013.

II – A lei nova respeitante aos pressupostos da admissibilidade dos recursos não se aplica às decisões que tenham sido proferidas antes de a lei nova entrar em vigor.

III – Assim, tendo a acção sido intentada após 01-01-2008 e o acórdão da Relação que confirmou a sentença de 1.ª instância sido proferido em 02-08-2013, dele não cabe recurso de revista com base na diversidade de fundamentação empregue pela 1.ª e pela 2.ª instância.

Pelo que se indefere a reclamação, confirmando-se o despacho reclamado.

Custas pela reclamante.


Lisboa e STJ, 24-02-2014

Fernando Bento