Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A4373
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
LEGITIMIDADE
NOTIFICAÇÃO PARA PREFERÊNCIA
Nº do Documento: SJ200402190043736
Data do Acordão: 02/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 923/03
Data: 05/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - O afastamento prévio dos outros titulares do direito de preferência não constitui condição da acção de preferência.
II - Havendo vários titulares com direitos distintos de preferência sobre um imóvel, qualquer deles pode intentar livremente a acção de preferência, com legitimidade, sem que obrigatória e previamente tenha que desencadear o processo previsto no art. 1465 do C.P.C.
II - O que pode é sujeitar-se à reacção dos outros titulares do direito de preferência, que pode revestir uma ou outra forma, consoante o direito que o preterido se arroga seja equivalente ao direito daquele que instaurou acção de preferência contra o adquirente, ou, pelo contrário, o preterido invoque um direito de preempção com prioridade sobre o daquele que intentou e venceu a acção de preferência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A e mulher B instauraram a presente acção ordinária contra os réus C e mulher D, E e mulher F, G e mulher H, I e marido J, L e mulher M e N e mulher O, pedindo:
- se reconheça o seu direito de preferência na venda que os 2ºs a 6ºs réus fizeram aos 1ºs réus, por escritura de 24-2-2000, de um prédio rústico, denominado "Campo do Rouço", sito no lugar do Outeiro, da freguesia de Moure, do concelho de Felgueiras descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o nº 00033 e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 30;
- e, consequentemente, se substitua os 1ºs réus compradores por eles, autores, e se cancelem os eventuais registos efectuados após a data da outorga da escritura.
Alegam, em síntese, que são proprietários de um prédio que está onerado com um direito de servidão legal de passagem a favor do prédio vendido e que os réus vendedores não lhe comunicaram o projecto da referida venda.
Os réus contestaram, dizendo, em síntese, que o prédio vendido se vai manter onerado com servidão de passagem para outros prédios situados a norte e ainda que deram conhecimento aos autores do projecto de venda do prédio.
Houve réplica.

O processo prosseguiu seus termos e, após a realização do julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e decidiu:
a) - reconhecer o invocado direito de preferência dos autores sobre a alienação operada pela escritura de 24-2-00, celebrada no Cartório Notarial de Felgueiras, do prédio rústico, denominado "Campo do Rouço", sito na freguesia de Moure, do concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras com o nº 00033 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 30;
b) - ordenar a substituição dos réus compradores do mencionado prédio, C e mulher, pelos autores, A e mulher B;
c) - determinar o cancelamento de todos os eventuais registos efectuados após a data da outorga da dita escritura.

Apelaram os réus, mas sem êxito, pois a Relação de Guimarães, através do seu Acórdão 28-5-03, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

Continuando inconformados, os réus C e Outros recorreram de revista, em cujas conclusões começam por suscitar a seguinte questão prévia, com fundamento nos documentos que constituem a certidão de fls 335 a 360, apresentada com as alegações da revista:

1 - Na pendência destes autos, por sentença de 20-11-01, já transitada em julgado, proferida na acção nº 211/2000, do 1º Juízo do Tribunal de Felgueiras, foi julgada procedente a acção ordinária lá instaurada por P e mulher Q, contra os ora réus, C e mulher D, E e mulher F, G e mulher H, I e marido J; L e mulher M e N, e mulher O que decidiu:
- reconhecer o direito de servidão de passagem, para pessoas a pé e para veículos de tracção animal ou mecânica, imposta sobre o identificado prédio dos autores a favor do ajuizado prédio objecto do contrato de compra e venda de 24-2-2000, exercível por um caminho com a largura de 2,5 metros, que atravessa o prédio serviente em toda a extensão da sua confrontação com o rio Sousa;
- reconhecer a existência do direito de preferência, a favor dos autores P e mulher, na alienação do referido prédio, e ordenar a substituição dos 1ºs réus, C e mulher, pelos citados autores P e mulher, na aquisição do prédio objecto do contrato de compra e venda, titulado pela escritura de 24-2-2000, denominado "Campo do Rouço";
- ordenar o cancelamento dos registos efectuados após 24-2-2000.

2 - Na sequência disso, o identificado prédio foi definitivamente registado a favor de O e mulher.

3 - Existindo já decisão transitada em julgado que atribui a terceiros o direito de preferência na alienação do mesmo prédio a que respeitam estes autos e sendo certo que esses terceiros procederam já à sua inscrição a seu favor, na Conservatória, com o consequente cancelamento provisório do registo desta acção, deverá declarar-se extinta a presente instância, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287, al. e) do C.P.C.

4 - Caso assim se não entenda, deve revogar-se o Acórdão recorrido e julgar-se a acção improcedente.

5 - Com efeito, resulta da matéria de facto apurada que existem outros titulares do direito de preferência na alienação do prédio em questão, nomeadamente P e mulher e os recorrentes C e mulher.

6 - Esses titulares do direito de preferência não intervieram nestes autos, nem tal intervenção foi promovida pelos autores.

7 - Só a intervenção de todos os titulares do direito de preferência permitiria dar cumprimento ao disposto no art. 1555, nº3, do C.C.

8 - Também só a intervenção de todos os titulares do direito de preferência dá cumprimento ao art. 28, do C.P.C., pois só desse modo se regulará, definitiva e estavelmente, a situação concreta das partes, relativamente ao pedido formulado.

9 - A ausência de qualquer dos preferentes viabiliza a prolação de decisões inconciliáveis e susceptíveis de subverter a prioridade do registo, deixando cada um dos preferentes à sorte de ser ou não o último a obter a sentença.

10 - Foram violados os arts 1555, nº3 e 1380, nº1, do C.C. e o art. 28 do C.P.C.

Os autores contra-alegaram em defesa do julgado .
Acrescentam que não pode conhecer-se da questão prévia, em virtude da respectiva matéria não ter sido alegada na contestação, nem ter sido controvertida, apreciada e decidida em 1ª instância, pois os réus apenas a invocaram nas alegações da revista, com a tardia junção da certidão de fls 335 e segs.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Remete-se para os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido, ao abrigo dos arts 713, nº6 e 726 do C.P.C.

Por documentalmente provado, pode acrescentar-se o seguinte:

1 - A presente acção de preferência, registada sob o nº137/00, em que são autores A e mulher, foi proposta em 23-3-00.

2 - A audiência de discussão e julgamento desta acção de preferência teve lugar em 8-10-02.

3 - A sentença da 1ª instância foi proferida em 13-12-02.

4 - Por sua vez, a acção ordinária de preferência nº 211/2000, respeitante ao mesmo prédio, em que foram autores O e mulher, foi instaurada em 15-5-00.

5 - A sentença nessa acção veio a ser proferida em 20-11-01 e transitou em julgado em 6-12-01.

6 - Em 17-7-02, foi efectuado o registo da aquisição do questionado prédio a favor do preferente O e mulher, com base no reconhecimento da preferência resultante daquela sentença de 20-11-01.

Questão prévia:

Na questão prévia, os recorrentes vieram levantar uma questão nova, que não é de conhecimento oficioso e de cuja matéria não pode conhecer-se, por não ter sido discutida em 1ª instância, onde oportunamente podia ter sido suscitada e decidida.
Com efeito, a sentença proferida na invocada acção de preferência nº 211/2000 não constitui caso julgado na presente causa, em virtude dos autores preferentes em cada uma das acções serem pessoas diferentes.
Como se tem dito e redito, os recursos não são meio para obter decisão sobre matéria nova, mas tão só para reapreciar as decisões recorridas.
A função do recurso é reapreciar a decisão tomada pelo tribunal recorrido e não a de julgar questões novas suscitadas nas alegações.
De resto, a junção dos documentos, que constituem a certidão de fls 335 a 360 e que servem de suporte à questão prévia, nem sequer pode ser autorizada, por ser extemporânea, na medida em que tais documentos podiam ser juntos antes do encerramento da discussão da presente acção em 1ª instância - arts 706, nº1, 524, 726 e 727 do C.P.C.
É que, quer a sentença de 20-11-00, proferida na outra acção nº 211/2000, quer o seu trânsito em julgado (6-12-01), quer o próprio registo da aquisição a favor do O e mulher (17-7-02), ocorreram antes do encerramento da discussão (8-10-02) e da sentença da 1ª instância (13-12-02) a que houve lugar na presente acção de preferência.
Por isso, é inadmissível, por tardia, a junção desses documentos de fls 335 e seguintes, efectuada apenas com as alegações da revista, na medida em que podiam ter sido apresentados antes do encerramento da discussão desta causa em 1ª instância e ainda porque não respeitam a ocorrência posterior a esse momento (Alberto dos Reis, Cód. Anotado, Vol. IV, pág. 10; S.T.J. de 4-12-79, Bol. 292-313; Ac. S.T.J. de 3-3-89, Bol. 385-545; Ac. S.T.J. de 12-1-94, Bol. 433-468).
A junção posterior de documentos, afora os casos da impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão em 1ª instância, apenas é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido na 1ª instância .
Não é o caso (Antunes Varela, R.L.J. 115-94).
Assim, há que ordenar o desentranhamento desses documentos e a sua entrega aos recorrentes .

Para decidir fica apenas a questão de saber se os autores têm legitimidade para intentar a presente acção de preferência, sem terem previamente feito uso da notificação para preferência prevista no art. 1465 do C.P.C., em virtude de estar provado que, para além do prédio deles, há outros prédios, pertencentes a terceiros, também onerados com a servidão legal de passagem a favor do prédio vendido aos primeiros réus, pelos restantes réus .

Seguindo de perto o ensinamento de Antunes Varela (R.L.J. 115-283), dir-se-á que nas acções destinadas a exercer um direito legal de preferência, à semelhança do que ocorre na impugnação pauliana e na chamada acção sub-rogatória (sub-rogação do credor ao devedor) a relação material controvertida a que se refere o art. 26, nº3, do C.P.C., abrange uma dupla relação: "o direito potestativo de que é titular o preferente, por um lado, com o correlativo estado de sujeição; e o acto de alienação a que a preferência se refere, por outro lado".
In casu, no que concerne ao direito potestativo de preferência, para haver legitimidade do autor, basta que ele seja, nos termos do art. 1555, nº1, do Cód. Civil, proprietário do prédio onerado com a servidão legal de passagem.
Desde que a acção de preferência seja proposta pelo proprietário (único) de um dos prédios onerados com a servidão legal de passagem, só a titularidade do direito de propriedade sobre esse prédio (e não já a titularidade do direito de propriedade sobre outros prédios também onerados com a mesma servidão) interessa à relação material litigada .
Assim, tendo resultado provado que os autores são os proprietários (únicos) do prédio onerado com uma servidão legal de passagem a favor do prédio vendido, não perdem a sua legitimidade pelo facto de existirem outros proprietários de outros prédios também onerados com a mesma servidão.
Nesses casos em que não há apenas um, mas vários direitos de preferência concorrentes, a acção de preferência pode ser instaurada por cada um dos titulares desse direito.
Consequentemente, como os autores são titulares do direito de preferência, nos termos do art. 1555, nº1, do Cód. Civil (embora não sejam titulares únicos desse direito), a decisão obtida na presente acção de preferência por eles instaurada produz o seu efeito útil normal, na medida em que regula definitivamente a situação entre eles e os réus, sem embargo da pretensão dos outros titulares da preferência contra o demandante que obtenha ganho de causa - art. 28, nº2 do C.P.C. (Antunes Varela , R.L.J. 105-15).

Poderá objectar-se, entretanto, que no art. 1465 do C.P.C. se prevê a intervenção dos diversos titulares da preferência, para determinação do preferente:
- quando o mesmo direito de preferência cabe simultaneamente a várias pessoas: contitularidade do direito de preferência ou duas ou mais pessoas são titulares de preferências colocadas no mesmo plano (nº1);
- quando o direito de preferência compete a mais de uma pessoa sucessivamente (nº2).

São casos em que a alienação sujeita ao direito de preferência já foi efectuada, sem a notificação devida aos titulares deste direito.
Trata-se de determinar, nos vários casos de pluralidade de preferências, quem é o preferente a quem caberá exercer, em seguida, a acção de preferência contra a alienação irregularmente efectuada.
Quem requer a notificação, não é, neste caso, o obrigado à preferência, mas sim um dos diversos titulares da preferência .
E quem é notificado não é o titular ou os titulares da preferência, mas os outros titulares de preferência ou da preferência na alienação efectuada.
Estabelece o art. 1465, nº1, al. a), do C.P.C., que o requerimento inicial é feito por qualquer das pessoas com direito de preferência.
Daí que seja legítimo perguntar se o titular da preferência, que pretenda exercer o seu direito através da respectiva acção de preferência, tem o dever jurídico ou o ónus de requerer a notificação dos outros preferentes.

Ora, a resposta é seguramente negativa.

O afastamento prévio dos outros titulares do direito de preferência (quer melhor colocados do que o preferente, quer colocados em pé de igualdade com ele), não constitui condição da acção de preferência.
Como bem observa Antunes Varela (R.L.J. 116-288):
"Desapareceu do sistema vigente o preceito anteriormente inserido no parágrafo 5º, do art. 2309, do C.C. de 1867, que tornava obrigatória a notificação para preferência dos titulares de direitos capazes de competir com o preferente que, baseado na existência da servidão de passagem, pretendia exercer o seu direito.
Nada nos diz, no art. 1465 do actual C.P.C., seja no nº1 (preferência concedida simultaneamente a várias pessoas), seja no nº3 (preferência sucessiva) - ao invés do que ocorre nas hipóteses versadas, nas disposições legais anteriores, relativamente ao obrigado à preferência - que a notificação de um dos preferentes aos outros, para se saber a qual deve caber a prioridade, seja obrigatória.
E, desde que não esteja fixada a obrigatoriedade dessa escaramuça prévia dos preferentes ou ela não decorra de qualquer regime especial de contitularidade de direitos, deve deixar-se a cada um dos preferentes a opção pela solução que julgue mais conveniente aos seus interesses".
Neste sentido, também vem decidindo a jurisprudência (Ac. S.T.J. de 5-5-88, Bol. 377-476; Ac. S.T.J. de 15-11-90, Bol. 401-570; Ac. S.T.J. de 2-5-91, Bol. 407-385; Ac. S.T.J. de 9-5-95, Col. Ac. S.T.J., III, 1º, 118).
É óbvio que a desnecessidade de notificação ou da intervenção dos outros preferentes não significa que o interessado em propor a acção de preferência não possa, querendo, requerer a notificação prévia, seja daquele que o precede, seja do que com ele compete, na escala das preferências legais, nos termos e para os efeitos do art. 1465 do C.P.C.
Isto se quiser prevenir, desde logo, a reacção posterior daqueles contra a sua aquisição.
Em face do exposto, pode concluir-se que na espécie dos autos, em que estão em causa direitos de preferência concorrentes dos donos de dois ou mais prédios onerados com a servidão de passagem a favor de um prédio encravado (art. 1555, nº 3, do C.C.), o titular dessa preferência, interessado em exercer o seu direito através da respectiva acção judicial, não tem o dever jurídico ou o ónus que a lei lhe imponha, sob pena de ilegitimidade, de promover previamente a notificação dos outros preferentes.
O que pode é sujeitar-se à reacção dos outros preferentes.
Ensina Antunes Varela (R.L.J. 115-287) que tal reacção dos outros preferentes, a quem ele não dê conhecimento prévio (através do processo de notificação) da propositura da acção, pode revestir uma ou outra forma, consoante as circunstâncias:
"Se o direito que o preterido se arroga é equivalente ao direito daquele que instaurou acção de preferência contra o adquirente, devendo abrir-se licitação entre ambos para determinar o preferente, deverá ele lançar mão do processo especial de notificação para preferência regulado no art. 1465 do C.P.C., com as necessárias adaptações.
Se, pelo contrário, o preterido invoca um direito de preempção com prioridade sobre o daquele que intentou e venceu a acção de preferência, ele terá de intentar contra este uma outra acção de preferência, na qual não há lugar a licitação entre os litigantes, mas que obrigará ao depósito preliminar do preço prescrito no art. 1410, nº1, do C.C. "

Termos em que, não se mostrando violados os preceitos legais invocados, decidem:

1 - Julgar inadmissível a junção dos documentos de fls 335 a 360, cujo desentranhamento e entrega aos recorrentes ordenam, após o trânsito;
2 - Negar a revista.
3 - Condenar os recorrentes nas custas.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão