Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2827
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: NAVEGAÇÃO MARÍTIMA
SEGURO MARÍTIMO
BARATARIA
EXCESSO DE LOTAÇÃO
CULPA
CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200401270028276
Data do Acordão: 01/27/2004
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9434/02
Data: 03/18/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Pretendendo a autora, proprietária do navio "Areiaçores", ser ressarcida pela ré - com quem celebrara "contrato de seguro marítimo-casco" - do prejuízo correspondente à perda da dita embarcação, era facto constitutivo do seu direito a natureza fortuita do encalhe, isto é, que o encalhe se ficou a dever a uma situação de fortuna de mar, o que se presumia (art.º 605º do Código Comercial).
II - Um dos requisitos necessários à navegabilidade do navio (art.º 8º do DL 201/98, de 10/07) é o estrito cumprimento das normas relativas à lotação de segurança (designadamente do art.º 2º n.ºs 1 e 2, e dos art.ºs 3º, 6º e 13º, todos do DL 355/93, de 09/10, do art.º 1º, nºs 1 e 3, do DL 384/99, de 23/09 e do Regula-mento anexo à Portaria n.º 251/89, de 06/04), cuja natureza imperativa é incontornável, atento o fim que prosseguem.
III - Provando-se que a autora sabia e aceitou que das cinco pessoas que seguiam a bordo do navio apenas duas (o mestre e o ajudante de motorista) estavam em conformidade com o certificado de lotação, e que das outras três duas eram pescadores (e não marinheiros de tráfego), sendo a ter-ceira um seu funcionário que desempenhava funções de pintor da embarcação, é de concluir que a autora infringiu conscientemente os dispositivos legais que impõem a lotação de segurança referidos no ponto II, não tendo cumprido a obrigação que sobre si recaía, fixada no art.º 10, n.º 2, al. a), das condições gerais da apólice, de manter a embarcação em perfeito estado de navegabilidade.
IV - Por outro lado, o mestre da embarcação, primeiro responsável pela segurança deste (art.º 163º do Regulamento Geral das Capitanias aprovado pelo DL n.º 265/72, de 31/07, e art.ºs 5º e 6º do DL n.º 384/99), violou os deveres de cuidado que sobre ele impendiam porque: a) consentiu na saída para o mar do navio sem a necessária lotação de segurança (sem pelo menos um motorista que, na sua falta ou impedimento, pudesse assumir o controlo da embarcação); b) ausentou-se da ponte de comando para ir ao quarto de banho, deixando o navio a navegar em piloto automático a 500/600 metros de terra e com o comando entregue ao referido funcionário que, não sendo marítimo, mas pintor, não se mostrou capaz de assumir o comando manual da embarcação quando tal se mos-trou necessário, mudando o rumo por forma a impedir o encalhe.
V - Os dois comportamentos omissivos e negligentes referidos em III e IV constituem a causa directa e principal do sinistro, podendo afirmar-se que com toda a probabilidade ele não se teria verificado se a autora e o mestre do navio tivessem observado os deveres de cuidado decorrentes das aludidas normas legais imperativas de segurança.
VI - A descrita actuação do mestre do navio deve ser qualificada como "barataria" e não simples "falta náutica", à luz das definições propostas pela melhor dou-trina e jurisprudência: a falta náutica do capitão, tripulação ou piloto reporta-se aos simples erros ou faltas técnicas de navegação, enquanto que a barataria do capitão ou de qualquer membro da tripulação abrange as faltas, ligeiras ou graves, intencionais ou meramente culposas, do capitão, da tripulação e dos próprios passageiros, sempre que, quanto a estes, elas reflictam ou envolvam a responsabilidade do próprio capitão.
VII - A presunção referida em I foi ilidida face à demonstração pela ré dos factos referidos em III e IV, factos esses que, sendo causais do sinistro, são impeditivos do direito que a autora se arroga por integrarem as causas de exclusão da garantia contratual previstas na cláusula 8.ª, als. c) e d), respectivamente, das condi-ções gerais da apólice, elaboradas de harmonia com o disposto no art.º 604º do Código Comercial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório
No dia 9.1.01, cerca das 8,25 horas, quando se deslocava para a zona da freguesia das Feteiras, o navio draga "Areiaçores" encalhou na zona das Pedrinhas, junto à costa sul do aeroporto João Paulo II (Ponta Delgada).
Do encalhe resultou a morte de três dos cinco tripulantes e a perda total da embarcação.
A sociedade "A", proprietária do navio, accionou a Companhia de Seguros B, com quem celebrara um contrato de seguro marítimo-casco titulado pela apólice nº 88102176, visando obter o pagamento da indemnização correspondente à perda da embarcação segurada.
A ré contestou, alegando factos tendentes a demonstrar que o seguro não cobria o sinistro verificado.
Após o regular processamento da causa foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora 399.038,32 € (correspondentes a 80 mil contos) e juros legais de mora desde a citação.
A ré apelou.
A Relação de Lisboa, por acórdão de 18.3.03, deu provimento ao recurso, absolvendo a ré do pedido.
Agora é a autora que, inconformada, pede revista, concluindo em resumo que:
1) O acórdão faz errada apreciação e interpretação dos factos dados como provados e dos que o não foram, extraindo deles ilações deturpadas, decorrentes, designadamente, do desprezo a que votou grande parte da prova documental existente nos autos e da omissão da leitura do despacho de resposta aos quesitos e dos fundamentos que presidiram à convicção do tribunal de 1.ª instância;
2) Da acta da audiência de julgamento consta o depoimento de parte do representante legal da recorrente (armador), que confessa que o "elemento não marítimo" C desempenhava as funções de pintor ao serviço da recorrente, acrescentando, porém, que não o autorizara a ir para o mar nem sabia que ele embarcara;
3) Afirma ainda que sabia que a embarcação não tinha motorista naquele dia porque dera baixa da matrícula dele no dia anterior; mas também acrescenta que não sabia que a embarcação iria para o mar naquele dia, decisão que não foi sua;
4) Atenta a indivisibilidade da declaração confessória, foi violado o artigo 360º do CC, ex vi do artigo 563º, nº 1 do CPC: o armador não actuou com "dolo eventual", como pretende o acórdão recorrido, pois, nesse dia, de nada tinha conhecimento;
5) É a autoridade marítima - no caso, a Capitania do Porto de Ponta Delgada - não o armador, que tem competência para fixar o rol de tripulação, fazendo constar daquele documento as funções e categoria de cada tripulante; e o rol de tripulação do "Areiaçores" estava perfeitamente legal à data do sinistro marítimo porque o capitão do porto verificou previamente as assinaturas, as qualificações da tripulação e homologou a respectiva matrícula e subsequente prestação de serviços a bordo;
6) Preocupando-se em demasia com o certificado de lotação, o acórdão recorrido esqueceu-se das competências da autoridade marítima constantes do Regulamento Geral das Capitanias e do artigo 1.º, n.º 1, do DL 384/99, de 23 de Novembro, que dispõe ser a tripulação constituída pelo conjunto de todos os marítimos, recrutados nos termos da legislação aplicável, para exercer funções a bordo, em conformidade com o respectivo rol de tripulação;
7) O "C", a quem o acórdão recorrido persiste em atribuir a categoria de pintor, era titular - embora não portador à data do sinistro - de cédula marítima emitida pela Capitania de Hamburgo - Alemanha, bem como curricularmente habilitado com o grau de primeiro piloto/oficial da Marinha Mercante, podendo pilotar embarcações até 1600 toneladas, licença, aliás, que se encontrava válida, conforme pode ver-se do texto do original da mesma que ora se junta no termos do art.º 727º do CPC (e permite dar resposta aos quesitos 19º, 20º e 21º, não respondidos ex vi do art.º 646º, n.º 4 do CPC);
8) Era, assim, um marítimo altamente qualificado para ficar na ponte de comando em funções de vigilância, situação que, por certo, terá sido solicitada pelo capitão D, por breves minutos, a fim de ir à casa de banho que se situava mesmo por debaixo da ponte de comando no convés inferior da embarcação;
9) A ausência do motorista de 3ª classe em nada concorreu para o deflagrar do sinistro marítimo porquanto as suas funções - que não são nem nunca foram de governo ou comando da embarcação, como pretende o acórdão recorrido, mas apenas de reparação, conservação e manutenção do motor - estavam perfeitamente asseguradas pelo ajudante de motorista que ali seguia (cfr. art.º 35º, n.º 1, da Portaria nº 251/89, de 6 de Abril), assim resultando violados os art.ºs 3.º, n.º 3 do DL 384/99, de 23 de Setembro e 31º, nº 3, a contrario daquela Portaria, na redacção da Portaria n.º 1052/91, de 15 de Outubro;
10) Nenhuma avaria houve no motor, que trabalhou sempre, mesmo até depois de estar encalhada a embarcação;
11) Assim, inexiste nexo de causalidade entre a falta do motorista ou a existência na ponte de comando de elemento, afinal, altamente qualificado em funções de mera vigilância, e o deflagrar do sinistro marítimo;
12) A saída para o mar sem o motorista e com aquele elemento qualificado não configura, pois, qualquer barataria negligente do capitão, que actuou com a diligência (mais que) normal, pois que, por um lado, tinha o ajudante de motorista a bordo e, por outro, elemento qualificado na ponte por escassos minutos, o qual não deixaria de actuar, como actuou, em caso de necessidade;
13) Ainda que assim não se entendesse, nunca poderia concluir-se, no apontado quadro, que foram "causa determinante do sinistro", pelo que o acórdão recorrido viola o art.º 487º, n.º 2, do CC e o art.º 604º, parágrafo 1º, do Código Comercial;
14) O artigo 604º do Código Comercial Português é inconstitucional quando interpretado no sentido de que o conceito de barataria ali referido abrange a negligência simples, por violar o art.º 8º, nº 2 da CRP - ou, ao menos, por violação do princípio constitucional da primazia do direito internacional - face às disposições genéricas de carácter substantivo constantes de convenções internacionais (art.º 721.º, nº 2 do CPC), como sucede, v.g. com a Convenção de Bruxelas, nomeadamente, art.º 4.º, n.º 2, alínea a);
15) No caso dos autos, a barataria simples é equiparada à falta náutica e acha-se coberta pela apólice como consta da "extensão de cobertura" do art.º 7º, n.º 1, das Condições Gerais, já que a barataria dolosa vem referida, ao lado do dolo e da fraude, nas "Exclusões" de que trata o art.º 8º das mesmas Condições Gerais, concretamente, na sua alínea c), disposições estas que resultam igualmente violadas pelo acórdão;
16) A ré/recorrida, contrariamente ao que afirma o acórdão recorrido, não provou o que quer que fosse que excluísse a sua responsabilidade, atentas as circunstâncias de "algo imprevisto" que terá levado a embarcação a guinar bruscamente em direcção das rochas (provavelmente por trancamento do leme, como o perito naval da ré sugere no respectivo relatório), pelo que foi violado o art.º 342º, n.º2 do CC;
17) De facto, provado que ficou terem sido efectuadas as manobras constantes dos quesitos 15º e 16º (fundamentação da resposta ao quesito 18º) - que o acórdão recorrido refere como as que fazem tornar relativamente fácil o controlo da embarcação - é inequívoco que algo de estranho impediu aquele controle, tratando-se, por isso, de um manifesto caso de "fortuna de mar"/encalhe fortuito, coberto pela apólice (art.º 3º, alínea a) das Condições Gerais; Condições Particulares a fls. 92) e conforme estipulam os art.ºs 604º (corpo) e 605º do Código Comercial.
Com base nestas conclusões a recorrente pede a revogação do acórdão recorrido.
A recorrida contra alegou, defendendo a manutenção do julgado pela 2ª instância.
Foram juntos ao processo pareceres jurídicos da autoria, respectivamente, da Prof. Doutora E, (fls 174 a 207), do Professor Doutor F (fls 489 a 542) e do Doutor G (fls 692 a 722).
Fundamentação
As questões postas nas conclusões da revista podem sintetizar-se do seguinte modo:
Alteração da matéria de facto;
Nexo causal entre as condutas do armador e do capitão do navio e o encalhe;
Âmbito da cobertura do contrato de seguro celebrado entre autora e ré.
Apreciação da 1ª questão:
Embora não o afirme e defenda explicitamente nas conclusões a recorrente pretende, no que toca aos factos da causa, que se alterem as respostas aos quesitos 6º, 7º, 12º e 13º, por um lado, e que se dê agora resposta aos quesitos 19º, 20º e 21º, por outro (em relação a estes últimos quesitos a 1ª instância absteve-se de tomar posição, invocando o disposto no art.º 646º, nº 4, do CPC (fls 321).
Não há qualquer hipótese, contudo, de atender a pretensão formulada.
O Supremo Tribunal - temos que relembrá-lo uma vez mais - é um tribunal de revista, ao qual compete aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (art.º 729º, nº 1, do CPC). A decisão deste, quanto à matéria de facto, é inalterável, salvo o caso excepcional previsto no nº 2 do art.º 722º (ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova). Ora, não se verifica tal hipótese na situação em exame; logo, de harmonia com a primeira parte do preceito citado em último lugar, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa (ao fim e ao cabo, nisto se traduz a censura da recorrente à decisão das instâncias, nesta parte) não pode ser objecto do recurso de revista.
Quanto a esta parte do recurso, importa acrescentar que o documento junto pela recorrente com as alegações da revista nunca poderia justificar a resposta aos quesitos 19º a 21º (no sentido pretendido pela recorrente, ou em qualquer outro). Com efeito, é entendimento unânime, na doutrina e na jurisprudência, o de que a disposição do art.º 727º do CPC, relativa à junção de documentos supervenientes com as alegações, não alarga os poderes de cognição do Supremo Tribunal relativamente à matéria de facto (1), poderes esses que são os já assinalados.
Independentemente do que se disse, o direito da autora questionar nesta fase do processo a decisão de facto estaria em qualquer caso precludido; isto porque não utilizou na altura apropriada a prerrogativa que o art.º 684º-A, nº 2, lhe concedia no sentido de, a título subsidiário, impugnar a decisão sobre a matéria de facto em pontos não questionados pela ré na apelação interposta, prevenindo a hipótese de procedência das questões ali suscitadas.
Apreciação da 2ª questão
Antes de mais, há que pôr em relevo os factos definitivamente assentes no processo.
São os seguintes:
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social é a extracção de areia e o comércio de materiais de construção civil;
2. Para a aludida extracção de areia a autora detinha a propriedade do navio draga denominado "Areiaçores", matriculado na Capitania do Porto de Ponta Delgada com a matrícula PD;
3. O "Areiaçores" esteve ao serviço da autora ininterruptamente durante cerca de dois anos, extraindo areias que posteriormente eram comercializadas;
4. A extracção de areias, levada diariamente a efeito pela "Areiaçores", ocorria na zona da freguesia das Feteiras, cujo mar apresenta extenso baixio arenoso;
5. Quando se deslocava para a zona da freguesia de Feteiras, no dia 9 de Janeiro de 2001, cerca das 8.25 horas, o "Areiaçores" encalhou na zona das Pedrinhas, freguesia de Relva, junto à costa sul do Aeroporto João Paulo II;
6. A costa contígua ao local onde a "Areiaçores" navegava é uma costa rochosa;
7. De acordo com o certificado de lotação para a embarcação "Areiaçores", a embarcação deveria ter 5 tripulantes, sendo um mestre de tráfego local, dois marinheiros de tráfego local, 1 motorista prático de 3.ª classe e um ajudante de motorista;
8. Na altura do encalhe estavam a bordo os seguintes tripulantes: D - piloto chefe; H - pescador; I - pescador; C; J - ajudante de motorista;
9. C, não fazia parte do rol da tripulação;
10. C, não era titular de habilitação para ser tripulante da embarcação, era apenas funcionário da autora, ao serviço de quem desempenhava as funções de pintor da embarcação;
11. No momento do sinistro não seguia a bordo um maquinista, mas apenas um ajudante de motorista, J;
12. Os factos referidos em 10) e 11) eram do conhecimento e sancionados pela autora;
13. O comandante do "Areiaçores" deixou na ponte do comando C, enquanto se ausentou para ir à casa de banho, com o navio a governar por piloto automático, próximo de terra (500/600 metros = 0,3 milhas);
14) Na ocasião do encalhe da embarcação a visibilidade era boa, a ondulação que se fazia sentir era de Oeste, com 3 a 4 metros, e o vento soprava a uma velocidade de 30/40 km./hora;
15) Antes do encalhe a embarcação "Areiaçores" guinou bruscamente a 10 graus a estibordo, na direcção dos rochedos da costa;
16) Perante o que aconteceu a manobra tecnicamente aconselhável era passar a controlo manual, tentar corrigir o rumo e afastar-se de terra;
17) Se tal não resultasse, de imediato deveria procurar-se inverter a máquina com pequenos toques à ré;
18) Não conseguindo, tentar largar o(s) ferro(s), para que este(s), unhando, pudessem suster a marcha da embarcação e evitar ou atenuar as consequências do encalhe;
19. (Após o encalhe), por ordem do comandante, a tripulação e o próprio lançaram-se ao mar;
20. Do encalhe resultou a perda de três dos cinco tripulantes e a perda total da aludida embarcação;
21. A autoridade marítima de Ponta Delgada, através da Polícia Marítima, realizou um inquérito e elaborou o relatório e despacho constante de fls. 19 a 26 dos autos;
22. A autora e a ré celebraram um contrato de seguro marítimo-casco, titulado pela apólice n.º 88.102176, inserto de fls. 86 a 99, sendo de 80.000.000$00 o capital do seguro relativamente à perda total da embarcação.
Estes factos sugerem duas notas críticas essenciais, uma relativa à conduta da autora e outra à do mestre da embarcação.
Primeira: das cinco pessoas que seguiam a bordo do navio só duas estavam em conformidade com o certificado de lotação: o mestre e o ajudante de motorista. Das outras três pessoas, duas eram pescadores (e não marinheiros de tráfego); e a terceira (C) nem sequer era marítimo, não fazendo parte do rol da tripulação: tratava-se de um funcionário da autora, ao serviço da qual desempenhava funções de pintor da embarcação. Ora, a respeito desta matéria a lei é muito severa e restritiva. Com efeito, dispõe o art.º 2º, nº 1, do DL 355/93, de 9/10, que lotação de segurança é o número mínimo de tripulantes fixado para cada navio ou embarcação com vista a garantir a segurança da navegação, dos tripulantes, dos passageiros, da embarcação e das cargas ou capturas, bem como a protecção do meio ambiente marinho. Segundo o nº 2 deste preceito, nenhum navio ou embarcação poderá sair para o mar sem que tenha a bordo os tripulantes que constituem a lotação de segurança, com excepção dos casos previstos no nº 1 do artigo 10º (casos realmente excepcionais, de qualquer modo, pois a saída do navio para o mar com lotação inferior à fixada depende sempre de requerimento fundamentado do armador e de autorização a conceder pela autoridade competente, a "título excepcional" e com validade unicamente para o período nela estabelecido). A violação do citado art.º 2º, nº 2, constitui contra-ordenação punível com coima, nos termos do art.º 13º do referido diploma legal. E resulta dos seus artigos 3º e 6º, que tratam dos procedimentos a adoptar na fixação da lotação, ter sido preocupação fundamental do legislador harmonizar os diversos vectores a ter em conta para garantir que cada navio goze de boas condições de navegabilidade: área de navegação e tipo de actividade a que a embarcação se destina; tipo, características e requisitos técnicos da embarcação; qualificação profissional dos tripulantes. Isto é assim porque, como escreveu Azevedo Matos, "o vício próprio do navio compreende também a falta de equipagem suficiente", sendo "claro que a navegabilidade não implica só solidez, mas também armamento e aprovisionamento completos, aparelhos ou máquinas em perfeito estado e equipagem total, no começo da viagem" (2).
A disposição legal que se referiu em primeiro lugar (art.º 2º, nº 1) aparece praticamente decalcada num diploma posterior - o DL 384/99, de 23/9, que aprovou o regime jurídico relativo à tripulação do navio. Na verdade, segundo o nº 3 do art.º 1º deste DL, designa-se por lotação o número mínimo de tripulantes, distribuídos por categorias e funções, fixado para cada navio, que garante a segurança da navegação, dos tripulantes e passageiros, das cargas e capturas, bem como a protecção do meio marinho. O nº 1 deste preceito, por seu turno, ao dizer que a tripulação é constituída pelo conjunto de todos os marítimos, recrutados nos termos da legislação aplicável, para exercer funções a bordo, em conformidade com o respectivo rol de tripulação, remete claramente para o já citado DL 355/93, de 9/10, por um lado, e para o regulamento anexo à portaria 251/89, de 6/4 (regulamento de acesso às várias categorias profissionais de marítimos), por outro. Ora acontece que as funções legalmente cometidas aos marinheiros de tráfego local, aos pescadores e ao motorista de 3ª classe divergem profundamente entre si: basta ler os art.ºs 19º, 23º e 31º do citado regulamento para assim se concluir. De tal modo divergem que não se vê como possam estes membros da tripulação substituir-se entre si no desempenho das actividades específicas que a cada um cabem sem que isso se reflicta negativamente, desde logo, na segurança da navegação.
Conjugando todas as disposições legais mencionadas extrai-se uma ideia essencial: na fixação da lotação do navio assume especial importância e relevo, mais do que o número de tripulantes, a respectiva categoria profissional; é na qualificação dos vários elementos que integram a lotação do navio, e na adequada conjugação das competências de cada um deles, que repousa, segundo a lei, a segurança de todos (pessoas e coisas) de cada vez que o navio se faz ao mar.
Interessa por fim referir o art.º 8º do DL 201/98, de 10 /7, diploma que estabelece o estatuto legal do navio. De acordo com este preceito, a navegabilidade do navio depende das condições técnicas a que o mesmo deva obedecer, de acordo com a legislação em vigor, e do preenchimento dos requisitos necessários à viagem que vai empreender e à carga que vai transportar. Ora, resulta de todo o exposto que é requisito necessário, justamente, o estricto cumprimento das normas relativas à lotação de segurança, cuja natureza imperativa, como se disse, parece incontornável, atento o fim que prosseguem.
A autora, ora recorrente, infringiu conscientemente estes dispositivos legais (factos 10, 11 e 12).
Segunda: De harmonia com o art.º 163º do Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo DL 265/72, de 31/7, as atribuições do Estado referidas neste diploma quanto a segurança das embarcações não isentam o comandante, mestre, arrais ou patrão de ser o primeiro responsável pela segurança da embarcação que comanda, nem excluem a responsabilidade dos restantes membros da tripulação. Esta norma genérica é confirmada pelo disposto nos artigos 5º e 6º do DL 384/99, que fixam as atribuições, responsabilidades e obrigações do capitão do navio, especificando estas últimas com grande pormenor. Certamente porque é pesada a responsabilidade do capitão, e extenso o rol das obrigações que sobre ele impendem, a lei dá-lhe a possibilidade de recusar, com motivo justificado, o serviço a bordo de qualquer tripulante, determinando, por outro lado, que as funções de comando só possam ser confiadas aos marítimos legalmente habilitados para o efeito (art.ºs 2º e 3º, nº 3, do mesmo diploma legal). Na situação em exame, como se vê da matéria de facto, o mestre consentiu na saída da embarcação para o mar sem a necessária lotação de segurança e, mais concreta e precisamente, sem pelo menos um motorista que pudesse assumir o controle da embarcação na sua falta ou impedimento (dele, mestre). Além disso, em determinada altura abandonou a ponte de comando, deixando este entregue a C, funcionário da autora que, como se viu, não era marítimo, mas pintor. Ora, a conclusão que se retira da sequência dos factos que imediatamente antecederam o encalhe é que C não foi capaz, isto é, não se mostrou competente, concretamente habilitado para resolver a situação, dominando a embarcação e mudando o rumo por forma a impedir a ocorrência do encalhe. E isso, note-se, não teria sido impossível nem sequer difícil: bastava que tivessem sido executadas as manobras mencionadas nos factos 16, 17 e 18, que eram, consoante ficou demonstrado, as tecnicamente aconselháveis nas circunstâncias que se verificavam. Não está em causa que o capitão do navio pudesse ausentar-se momentaneamente da ponte do comando (para ir ao quarto de banho, como se provou ter sido o caso, ou por qualquer outra razão atendível); está em causa, sim, que antes de fazê-lo deveria ter ponderado se o pintor C seria capaz de controlar a embarcação em caso de necessidade; concluindo que não era capaz, ou tendo dúvidas sobre isso, e uma vez que não havia mais nenhum tripulante habilitado no interior do navio, o capitão deveria então parar a marcha do navio, pois estava a escassa distância de terra (cerca de 600 metros), assim evitando o encalhe.
Conjugando entre si as duas observações expostas, e analisando agora os factos na perspectiva da causa do sinistro, pode concluir-se que o encalhe e a consequente perda do navio não foram casuais. A causa directa e principal residiu em dois comportamentos omissivos: o comportamento da autora, por ter aceitado a saída da embarcação para o mar sem a tripulação mínima de segurança, assim aumentando exponencialmente o risco da ocorrência de sinistros, por incumprimento de regras imperativas (e elementares) àquela referentes; o comportamento do mestre, por se ter ausentado da ponte de comando e deixado este entregue a quem não foi capaz de, quando necessário, assumir o governo manual da embarcação.
Atento o critério fixado na lei para a apreciação da culpa - diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias do caso (art.º 487º, nº 2, CC) - ambas as condutas descritas são manifestamente culposas, negligentes, pois quer a autora, quer o mestre da embarcação podiam e deviam ter agido doutro modo: se o tivessem feito o sinistro, com toda a probabilidade, segundo as regras da experiência comum, não se teria verificado. Note-se que, perante os elementos de facto coligidos, não é legítimo afirmar-se com inteira certeza que o encalhe não teria ocorrido se a autora e o mestre tivessem observado as condutas que culposamente omitiram. Mas pode asseverar-se com toda a segurança, além do que já se referiu, que a probabilidade de encalhe, nas circunstâncias provadas, se tornou muito maior: aumentou na mesma proporção em que a segurança da embarcação foi desprezada.
Apreciação da 3ª questão
Dispõe o art.º 427º do C Comercial que o contrato de seguro se regula pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código.
No caso presente, não se põe o problema de alguma das cláusulas da apólice de fls 88 a 96 ser proibida à luz do DL 446/85, de 25/10 (cláusulas contratuais gerais). Valem, portanto, as normas dos art.ºs 405º e 406º do Código Civil, e ainda a do art.º 10º daquele DL, que, quanto às cláusulas gerais do contrato sub judice, manda que sejam interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.
Segundo o art.º 1º das condições gerais da apólice sinistro é o "acontecimento de carácter fortuito, súbito e imprevisto, susceptível de fazer funcionar as garantias da apólice". Os riscos por esta cobertos (art.º 3º) são os que se encontram expressamente mencionados nas condições particulares, podendo compreender (alínea a) o encalhe e, em geral, os acidentes resultantes de fortuna de mar. O encalhe está definido nas condições particulares (art.º 1º) como sendo "o facto da embarcação, por evento fortuito, tocar e ficar detida, com carácter de permanência, em qualquer baixio ou obstáculo, no mar ou na costa". Interessa ainda referir que segundo a cláusula 7ª, nº 1 (intitulada extensão de cobertura) os riscos abrangidos pelo contrato mantêm-se cobertos no caso de falta náutica do capitão, tripulação ou pilotos. Na cláusula 8ª, respeitante às exclusões, estipula-se que ficam expressamente excluídos das garantias prestadas pelo contrato as perdas, danos ou indemnizações directa ou indirectamente resultantes de:
c) Dolo, fraude, barataria do capitão ou de qualquer membro da tripulação;
d) Quaisquer factos resultantes da infracção ou inobservância dos regulamentos gerais de navegação e especiais dos portos, capitanias ou outras autoridades marítimas ou de quaisquer outras disposições legais ou internacionais.
Finalmente, cabe referir que nos termos da cláusula 10ª, nº 2, a), o contrato deixará de produzir os seus efeitos quando o segurado não observe a obrigação de manter a embarcação identificada nas condições particulares em perfeito estado de navegabilidade.
Vê-se deste elenco que as cláusulas transcritas do contrato ajuizado estão elaboradas de harmonia com as coberturas e as exclusões previstas no Código Comercial - art.º 604º e seu § 1º e 605º. No corpo do art.º 604º responsabiliza-se o segurador, salvo estipulação em contrário, pelas perdas resultantes de fortuna do mar; no seu § 1º, na parte que interessa ao caso, diz-se que o segurador não responde pela barataria do capitão, salva convenção em contrário; e no art.º 605º que no caso de dúvida sobre a causa de perda dos objectos segurados presume-se haverem perecido por fortuna de mar, sendo então responsável o segurador.
A questão nuclear posta no recurso traduz-se precisamente em saber qual o âmbito do conceito de barataria a que a cláusula de exclusão alude. Consoante a conclusão a que aí se chegar, poderá ver-se depois se a conduta do mestre é integrável no conceito de falta náutica, ficando abrangida, nesse caso, pela extensão de cobertura da cláusula 7ª.
Sucede que, de harmonia com uma jurisprudência que pensamos ser unânime e a doutrina largamente maioritária, a barataria significa as faltas, ligeiras ou graves, intencionais ou meramente culposas, do capitão, da tripulação e dos próprios passageiros, sempre que, quanto a estes, elas reflictam ou envolvam a responsabilidade do próprio capitão.
Por estas ou por outras palavras semelhantes, assim definiram barataria Sampaio Pimentel (3), Adriano Antero (4), Cunha Gonçalves (5) e Azevedo Matos (6), e os acórdãos deste Supremo Tribunal de 1.11.49 (BMJ 16-340), 5.1.68 (BMJ 173º-300), 29.2.72 (BMJ 214º-153), 6.12.74 (BMJ 242º-309) e 7.7.99 (Pº 633/97).
Não vemos qualquer razão substancial para abandonar esta orientação tradicional, fortemente consolidada. Se o § 1º do artigo 604º não faz qualquer distinção entre a barataria simples e a dolosa, incluindo naquela os actos meramente culposos, não se vê motivo para que o intérprete o faça, tanto mais que o código comercial tem vindo a ser progressivamente "retalhado" ao longo da sua vigência e nunca o legislador introduziu qualquer modificação naquele preceito.
Perante isto, que conteúdo útil resta para o conceito de falta náutica?
A falta náutica, segundo a nossa melhor doutrina e jurisprudência, abrange os simples erros ou faltas técnicas de navegação.
Azevedo Matos explicou as coisas claramente:
"O capitão é um proposto de natureza particular. As faltas dele podem ser náuticas, que são aquelas que comete na condução do navio e na prática da navegação, como defeituosas manobras, etc, sendo em geral cometidas no mar, mas podendo também ser cometidas no porto, como se abandona o navio atracado"; e mais adiante: "no que diz respeito às faltas náuticas, o capitão não recebe ordens, visto que elas são cometidas só em assuntos da sua competência" (7).
Deste modo, a argumentação da autora não procede: configurando a ajuizada conduta do mestre da draga uma situação de barataria, tal como atrás ficou definida, a responsabilidade da ré está excluída, nos termos da cláusula 8ª, nº 2, c). E não se justificando, como se disse, a equiparação entre barataria simples e falta náutica, faz pleno sentido o tratamento autónomo que o seguro contratado concede a esta última no art.º 7º, nº 1, estipulando que, quando ela se verifique, a seguradora é responsável. Do art.º 604º, §1º do Código Comercial, aliás, resulta que a barataria é risco que só expressamente se pode assumir; se tal não aconteceu - como foi o caso - é certo que fica excluída da cobertura (quer se trate de barataria simples, quer dolosa).
Não procede, de igual modo, a conclusão 17ª.
A recorrente, sem explicar com precisão os fundamentos do seu raciocínio, alega que o art.º 604º, § 1º, do Código Comercial é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que o conceito de barataria nele referido abrange a negligência simples. Salvo o devido respeito, não tem razão. Não se vê - nem a recorrente, ao fim e ao cabo, tenta sequer mostrá-lo - em que medida semelhante entendimento daquela norma legal contrarie o art.º 4º, nº 2, a), da Convenção de Bruxelas. Dizendo este texto, na parte que interessa, que nem o armador nem o navio são responsáveis pela perda ou dano resultante ou proveniente de actos, negligência ou falta de capitão, mestre, etc, afigura-se que nenhuma colisão ocorre entre esta estatuição e a do nosso código comercial. E isto porque, desde logo, não pode sequer afirmar-se com inteira segurança que esta norma da Convenção de Bruxelas inclua na sua previsão a situação de barataria.
Resta abordar o problema do ónus da prova, levantado nas duas últimas conclusões da minuta.
Nos termos da cláusula 32ª do contrato de seguro, na parte que interessa considerar, impende sobre o segurado o ónus da prova da veracidade da reclamação e do seu interesse legal nos bens seguros. Esta cláusula, cuja validade substancial não vem questionada, pode e deve ser tida em conta, face à natureza formal do contrato de seguro e ao seu regime legal (cit. Art.ºs 426º e 427º do Código Comercial). De resto, ela não contraria o disposto na norma essencial que rege esta matéria, o art.º 342º do Código Civil.
Ora, sem qualquer dúvida, era facto constitutivo do direito alegado pela autora a natureza fortuita do encalhe; mais precisamente, cabia-lhe demonstrar que, conforme alegou, o encalhe se ficou a dever a uma situação de fortuna de mar.
Simplesmente, não só a autora, como já se viu, não fez tal prova, como também a ré demonstrou os factos impeditivos do direito alegado pela parte contrária, a saber: 1º) que foram violadas pela segurada e pelo mestre da embarcação obrigações decorrentes de normas legais imperativas de segurança do navio; 2º) que o encalhe ficou a dever-se ao facto de o mestre ter abandonado a ponte de comando para ir ao quarto de banho sem ali deixar pessoa tecnicamente habilitada para o substituir durante a sua ausência.
Face à prova conseguida pela ré, está claro que a autora deixa de poder beneficiar da presunção estabelecida no art.º 605º do Código Comercial, que diz: "No caso de dúvida sobre a perda dos objectos segurados, presume-se haverem perecido por fortuna de mar, e o segurador é responsável".
Em conclusão:
- A autora não cumpriu a obrigação que sobre si recaía fixada no art.º 10º, nº 2, a), das condições gerais da apólice ao violar as normas que impõem a lotação de segurança;
- O mestre da embarcação praticou barataria e não simples falta náutica;
- A barataria foi determinante na ocorrência do sinistro;
- Por consequência, face ao disposto no art.º 8º, nº 2, c) e d), das condições gerais da apólice, o encalhe não pode considerar-se fortuito, estando abrangido pelas exclusões contratualmente estipuladas.
Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas as conclusões da minuta.
Decisão
Nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2004
Nuno Cameira
Sousa Leite
Afonso de Melo (vencido nos termos da declaração que junto)
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(1) Cfr. a anotação ao art.º 727º no CPC Anotado, 3º volume, pág. 132, de Lebre de Freitas.
(2) Princípios de Direito Marítimo, IV, pág. 253; equipagem significa aqui tripulação, pessoal que trabalha a bordo de um navio.
(3) Anotações ao Código de Comercio Português, Coimbra, 1886.
(4) Comentário ao Código Comercial Português, IV, 475, e 486 a 490.
(5) Comentário ao Código Comercial Português, III, 325 e 343.
(6) Princípios de Direito Marítimo, IV, 34, 37, 75, 281 e seguintes.
(7) Princípios de Direito Marítimo, I, 134.
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Voto de vencido
1 - Entendo que o §1° do art.° 604°, do C. Comercial, se refere à barataria dolosa do capitão, que corresponde ao seu significado etimológico (acto fraudulento) e prevaleceu no direito intermédio até à extensão que assumiu no direito francês, na Ordenança e depois no art.° 353º do C. Comercial, abrangendo também a mera negligência, o que levou à confusão com a culpa náutica e comprometeu a interpretação evolutiva da jurisprudência (cfr; por todos, G. Riccardelli, La Colpa Nautica, p. 31 e segs.).
Aquela concepção francesa já não é a actual depois da Lei n° 522, de 3/07/1967, relativa aos seguros marítimos, onde a responsabilidade do segurador passou a ser excluída no caso de falta intencional do capitão.
Não consta do nosso C. Comercial.
Não é razoável, pois não se justifica que o segurador não responda no caso de negligência do capitão ou da tripulação do navio.
2 - Não sendo unívoco no mercado dos seguros marítimos o conceito de barataria, a cláusula 8ª, inserida nas condições gerais, é objectivamente ambígua, tanto se podendo referir à barataria dolosa como estender-se à meramente negligente, dúvida esta que os art.ºs 10° e 11°, n°1, do DL n°446/85, de 25/10, não resolvem.
Prevalece assim o sentido mais favorável à A., aderente, - n°2 daquele art.° 11 ° -, pois a R, proponente, tinha o ónus de clare loqui.
Deve portanto entender-se que a cláusula se refere à barataria dolosa, cobrindo o seguro consequentemente a barataria negligente.
3 - Salvo estipulação contrária, o seguro cobre todas as fortunas do mar - art.º 604° do C. Comercial.
Quanto à causa do sinistro, apenas ficou provado que a embarcação guinou bruscamente na direcção dos rochedos da costa, onde encalhou (caso típico de fortuna do mar referido por Rodière -Affrètements & Transports, tome II, p. 272).
Nada permite concluir que o sinistro se deveu à lotação de segurança.
Nem, como se diz no acórdão, ao abandono pelo mestre da ponte do comando para ir à casa de banho (não se sabe sequer quando exactamente isso aconteceu).
Presume-se que o sinistro se deveu a fortuna do mar - art.º 605° do C. Comercial.
Não está provado que as manobras aconselháveis após a guinada da embarcação evitassem o encalhamento.
De qualquer modo, a sua omissão releva tão só como falta ou culpa náutica abrangida pelo seguro.