Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3699
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CRÉDITO
Nº do Documento: SJ200611300036997
Data do Acordão: 11/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Declarada a falência de uma sociedade, com trânsito em julgado, é a essa data que se deve atender para definir a lei aplicável à graduação de créditos.
2. É que, com a declaração de falência, extinguem-se as relações jurídicas entre credores e falida, devendo os créditos daqueles ser graduados de acordo com a lei vigente a essa data, porque a lei nova não faz renascer aquelas situações jurídicas, sendo-lhes inaplicável.
3. Declarada a falência em 21.4.99 e vigorando o art., 377.º do Cód. de Trabalho desde 28.8.2004, os recorrentes - ex-trabalhadores da falida - gozam de privilégio imobiliário geral sobre o imóvel apreendido, nos termos do art. 12.º da Lei 17/86, acima citada, e não do privilégio criado pelo art. 377.º referido.
4. E, na sua sistematização, o Cód. Civil prevê privilégios mobiliários e imobiliários, sendo estes sempre especiais, não se prevendo nele também privilégios imobiliários gerais.
2. Por isso, reportando-se o art. 751.º do CC apenas à graduação de créditos com privilégio imobiliário especial, não cabe no seu contexto a graduação de créditos com privilégios imobiliário gerais, como são os que a Lei 17/86, de 14.6 concede aos trabalhadores.
3. Inexistindo no Cód. Civil norma que preveja a graduação destes últimos créditos com créditos que gozam de privilégio imobiliário geral, o preenchimento da lacuna há-de fazer-se recorrendo à analogia, ou, no caso desta faltar, criando a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
4. Regendo o art. 751.º para os privilégios imobiliários especiais, a única norma que versa sobre privilégios gerais é o art. 749, sendo, por isso, esse normativo o aplicável na graduação dos créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio imobiliário no confronto com o crédito imobiliário hipotecário da recorrida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Relatório

Declarada a falência de "Empresa-A", por sentença de 21.4.99, transitada, foram reclamados, entre outros, créditos dos trabalhadores da falida por salários em atraso e por indemnizações, e créditos garantidos por hipoteca e por penhor.

Na sentença de graduação, relativamente à penhora do bem imóvel, os créditos dos trabalhadores foram graduados antes dos créditos garantidos por hipoteca e, relativamente ao bem móvel penhorado, foram também graduados os créditos dos trabalhadores antes dos créditos garantidos por penhor.

Inconformada, apenas apelou a Empresa-B com êxito, vindo a graduação a ser efectuada da seguinte forma:

. A custas e as despesas de liquidação do activo saem precípuas

. E no concernente ao imóvel fabril integrado na massa (verba nº3) e alvo de sucessivas hipotecas, devidamente registadas, os créditos da Empresa-B, credora hipotecária, por elas abrangidos e na proporção definida quando emergentes dos acordos com outros financiadores da falida. incluindo os juros, são graduados em 1º lugar e os dos trabalhadores recorridos em 2º lugar, a sair do remanescente do mesmo se o houver;

. Relativamente aos bens móveis ( equipamentos e outras existências da fábrica ) descritos nas relações juntas aos autos e atinentes ao sucessivos penhores, objecto de arrolamento e apreensão, os créditos da Caixa como credora pignoratícia, tanto os emergentes dos contratos firmados a título individual como na proporção acordada juntamente outros credores, na operação de consolidação das dívidas da falida, são graduados em 1º lugar e os dos trabalhadores em 2º lugar, a sair do remanescente se o houver.

. Aos restantes bens imóveis, direitos e móveis, os créditos dos trabalhadores são graduados logicamente em 1º lugar e em 2º lugar e em igualdade de circunstâncias e com rateio, se necessário, os créditos comuns, neles esse incluindo o montante do crédito da Empresa-B não abarcado pelas sobreditas garantias

São agora os trabalhadores que interpõem recurso de revista, terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões:

1ª Os créditos reclamados pelos recorrentes são emergentes de contrato individual de trabalho e da sua violação;

2ª A sentença de graduação de créditos foi proferida em 11/08/2004 encontrando-se ainda, actualmente, pendente o processo com vista à sua definitiva fixação;

3ª A todos os créditos dos recorrentes assiste privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial - por aplicação imediata do artº 377º do Código do Trabalho (que entrou em vigor no dia 01/12/2003), atentos todos fundamentos expostos no Cap.II (entrada em vigor do CT, artº 12º nº e C. Civil e artº 13 do mesmo diploma), o qual recai sobre a fábrica da falida, correspondente ao imóvel hipotecado a favor da recorrida e aos bens dados em penhor;

4ª Ou, por mera cautela e sem prescindir, assiste a todos os seus créditos privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral - conforme dispôs a Lei nº 96/2001, também ela de aplicação imediata, conforme fundamentação ínsita no mesmo capítulo;

5ª Na graduação dos créditos dos recorridos, deverá observar-se a seguinte DICOTOMIA:

a) Ou se considera que aos créditos dos trabalhadores recorrentes assiste o privilégio imobiliário especial (artº 377º CT), que prefere à hipoteca, nos termos da nova redacção do artº 751º do C. Civil;

b) Ou se entende que, estando tais créditos abrangidos pelo privilégio imobiliário geral consagrado nas Leis nºs 17/86 e 96/2001, deverá aplicar-se, por analogia, o mesmo normativo, na sua anterior redacção / ou o actual normativo, por interpretação extensiva, analógica ou correctiva - conduzindo sempre tais operações ao resultado de prevalência dos créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua violação face a créditos hipotecários.

6ª Os recorrentes entendem que a sua situação se subsume à alínea a) da anterior conclusão.

7ª Por mera cautela, e sem prescindir, entendem que, mesmo que assim não venha a ser entendido, SEMPRE, nos termos expostos na alínea b) da mesma conclusão 5ª, os seus créditos deverão ser graduados à frente dos da recorrente, mesmo na parte em que esta se prevalece da garantia de hipoteca.

8ª A interpretação proposta através da dicotomia apresentada na conclusão 5ª é a única que:

a) Respeita o elemento literal das normas em análise (artº 12º da Lei nº 17/86; artº 4º da Lei nº 96/2001; artº 751º da C. Civil nas redacções anterior e actual);

b) Faz sentido, tendo em conta o elemento sistemático, conjugando a aplicação das normas em causa;

c) Respeita a finalidade de protecção dos créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação, atribuindo-lhes preferência face à hipoteca, conforme quis o legislador, de forma evolutiva, na Lei nº 17/86, Lei nº 96/2001 e artº 377º do CT;

d) Cumpre o direito dos trabalhadores à retribuição do seu trabalho (de natureza fundamental), previsto na alínea a) do nº 1 do artº 59º da CRP;

e) Traduz uma solução para o problema em análise conforme à lei, mas também justa, resolvendo-o de forma razoável;

f) Segue a linha definida pelo Tribunal Constitucional (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 498/2003, Procº nº 317/2002, de 22/10 (in Dr II Série, nº 2 de 03/01/2004) e em vasta e esclarecida Jurisprudência, exemplificativamente enumerada no Cap. III, in fine.

9ª- Apesar de, numa perspectiva meramente formal, as instâncias não se encontrarem obrigadas a considerar que os referidos privilégios dos créditos salariais preferem, em termos de graduação, aos créditos garantidos com hipoteca, no plano material e dos princípios, o Tribunal Constitucional - Ac. 498/2003 - já se pronunciou no sentido de que o sacrifício dos princípios da confiança e segurança jurídica determinado por tal interpretação é justo e constitucional, atenta a natureza do direito à retribuição e direito a uma existência condigna também consagrados no nosso texto fundamental - sendo esta a interpretação mais justa e equitativa;

10ª Ao entender-se inaplicável o artº 751º do C. Civil aos, criar-se-ia uma dificuldade de conjugação de tais normativos sempre que houvesse que proceder à graduação de créditos privilegiados e referidos no artº 748º do C. Civil, créditos garantidos por hipoteca e créditos por salários em atraso, na medida em que estes cederiam, então, perante a hipoteca e aqueles (os do art. 748º do C. Civil) teriam de ficar à frente da hipoteca por força do art. 751º do C. Civil que não poderia deixar de se lhe aplicar, tornando-se plenamente ineficaz (letra morta) a norma contida naqueles artº 12º, nº 3, al. b) da lei nº 17/86 e 4º, nº 4, al. b) da Lei nº 96/2001, relegados que ficariam os créditos por salários em atraso para depois da hipoteca e, por consequência, para depois dos créditos referidos no artº 748º do C. Civil, prejudicando ou impedindo a aplicabilidade de tais preceitos legais.

11ª- Não obstante a filosofia que enferma o Código Civil, negatória da existência de privilégios imobiliários gerais, as normas que previram os privilégios imobiliários gerais relativamente aos créditos laborais são lei especial que, nesta medida, revoga o regime geral que o Código Civil dimana.

12ª- Por isso, há que aplicar, naturalmente e por interpretação teleológica (tendo em conta a analogia), ao caso, a disposição do artº 751º do Código Civil, nos termos da qual os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros e preferem à hipoteca, ainda que esta garantia seja anterior".

13ª- Efectivamente, o regime do artº 751º do Cód. Civil deve-se aplicar aos créditos dos trabalhadores que gozam do privilégio imobiliário geral porque têm ambos imóveis por objecto e a razão dos privilégios imobiliários serem oponíveis a terceiros que adquiram o imóvel e preferirem à hipoteca, ainda que seja anterior, é precisamente terem o imóvel por objecto. (...)

14º- A aplicabilidade de tal regime (artº 751º, do CC), coloca em confronto dois princípios de dimensão constitucional, a saber, o princípio da segurança (no tráfico do comércio jurídico imobiliário) e o princípio do direito ao salário pelo trabalhador, devendo prevalecer este por se tratar de um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.

15ª- Quer a Lei nº 17/86, quer a Lei nº 96/2001 foram apresentadas e apresentam teores correspondentes a claros reforços da tutela dos créditos laborais, sendo intenção do legislador que tais créditos prevalecessem face ao hipotecários, conforme se retira da análise do Ac. RL de 09/03/2006 atrás referido, que analisa esta questão;

16ª- Atenta a realidade económico-jurídica actual, conforme alegado na 2ª parte da alínea D) do Cap. III destas alegações, o argumento utilizado no Acórdão recorrido - de "embaraços na concessão de crédito a empresas" e "reflexos altamente negativos na economia nacional" - assume carácter obsoleto;

17ª - Tal argumento menospreza os direitos dos cidadãos/trabalhadores em detrimento dos das instituições bancárias - que, conforme ficou exposto na mesma parte - nem sequer necessitam da protecção que lhes pretende ser conferida através da tese proclamada no Acórdão recorrido, em virtude terem ao seu dispor outras soluções para garantir os seus créditos e de gozarem de uma preponderância no mercado que eleva o poder negocial

18ª- A natureza dos créditos laborais e o escopo constitucional que a garantia do seu cumprimento visa cumprir determina que aqueles sejam graduados com prioridade em relação aos créditos pignoratícios (é este o sentido que deve ser extraído da alínea a), do nº 4, artº 4º da Lei nº 96/2001 e ainda da alínea a) do nº 2 do artº 377º do Código do Trabalho)

19ª- Caso não se entenda ser esta a conclusão directamente retirada do texto da lei, sempre deverá ser sufragada, por se entender o contrario consubstanciar abuso de direito por parte do credor pignoratício, nos termos do artº 334º do C. Civil.

20ª- A interpretação defendida pelo Acórdão recorrido para essa norma - e para a do artº 4º da Lei nº 96/2001 - no sentido de o privilégio geral imobiliário nelas conferido aos créditos emergentes de contrato individual de trabalho, não preferir à hipoteca, nos termos do artº 749º do C. Civil, tornaria, só nesse sentido, aquelas normas inconstitucionais - por violação do artº 59º, nº 1, a) da Constituição da República Portuguesa e do princípio geral do Estado de Direito consagrado no artº 2º do mesmo diploma.

21ª- O Acórdão recorrido violou e interpretou erradamente as normas dos artºs 12º, nº 2, 13º e 751º do Código Civil, artº 12º da Lei nº 17/86; artº 4º da Lei nº 96/2001, artº 377º do Código do Trabalho, artº 18º, nº 2, 59º, nº 1, a) da Constituição da República Portuguesa e o princípio geral do Estado de Direito consagrado no artº 2º do mesmo diploma;

22ª- Deveria ter interpretado e aplicados tais normas de harmonia a decidir conforme as anteriores conclusões 1ª a 20ª.

23ª Os créditos dos todos os recorrentes deverão, assim, ser graduados com preferência a todos os da recorrida, ordenando-se a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por outro que gradue os créditos dos recorrentes com prioridade relativamente a todos os créditos da recorrida.

Contra alegou a Empresa-B para pugnar pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Os factos provados são os que constam da decisão recorrida, para os quais se remete, nos termos do art. 713.º, 6 do CPC.

Deles resulta que

. os créditos dos recorrentes, como trabalhadores da falida, gozam de privilégio mobiliário e imobiliário gerais, nos termos das leis n.s 17/86 e 96/01, já referidas;

. os créditos da recorrida - Empresa-B - gozam, um, de hipoteca sobre o imóvel fabril da falida; outro, de penhor sobre os bens de equipamentos descritos nas relações juntas, qu constam do acórdão recorrido.

. a falência de Empresa-A foi decretada por sentença de 21.4.99, tendo transitado em julgado.

O direito

Pretendem os recorrentes que os seus créditos sejam graduados antes do crédito hipotecário da recorrida - Empresa-B - com dois fundamentos, sintetizados nas als a) e b) da conclusão 5.ª:

a. Ou se considera que aos créditos dos trabalhadores recorrentes assiste o privilégio imobiliário especial (artº 377º CT), que prefere à hipoteca, nos termos da nova redacção do artº 751º do C. Civil;

b. Ou se entende que, estando tais créditos abrangidos pelo privilégio imobiliário geral consagrado nas Leis nºs 17/86 e 96/2001, deverá aplicar-se, por analogia, o mesmo normativo, na sua anterior redacção / ou o actual normativo, por interpretação extensiva, analógica ou correctiva - conduzindo sempre tais operações ao resultado de prevalência dos créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua violação face a créditos hipotecários.

Ou seja, no primeiro caso, defendem a aplicação imediata do art. 377.º do Cód. de Trabalho;

No segundo caso, recorrendo à interpretação analógica do art. 751.º do CC.

Aplicação imediata do art. 377.º do Cód. de Trabalho?

Este normativo dispõe, de forma inovatória, que "1. os créditos do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade"

Mas, conforme resulta do disposto nos arts. 3.º e 21.º, 2, e) da Lei 99/2003, de 29.7 ( 1) , o art. 377.º referido apenas entrou em vigor em 28.8.2004 (30 dias após a publicação da Lei 35/2004, de 27.8, que regulamentou o Cód. de Trabalho).

É o que se ensina no acórdão do STJ de 21.9.06, (2) "o art. 377.º do referido Código, ...., é aplicável a todos os direitos de crédito dos trabalhadores constituídos desde o dia 28 de Agosto de 2004, independentemente de derivarem de relações jurídicas laborais ou de instrumentos de regulação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados conforme os casos, antes ou depois daquela data.

Apenas se exceptuam do mencionado regime, com a consequência de dever aplicar-se o pertinente regime anterior, os direitos de crédito laborais que se tenham constituído antes de 28 de Agosto de 2004 no âmbito de contratos de trabalho que se tenham extinguido anteriormente.

Assim, não é aplicável aos direitos de crédito laborais constituídos antes de 28 de Agosto de 2004 por via de contratos que anteriormente se tenham extinguido".

Este entendimento está de acordo com os ensinamentos de Batista Machado, apesar de os recorrentes defenderem o contrário com a citação de passagens do Ac. da Rel. de Coimbra de 11.10.2005 que, por sua vez, cita aquele mestre. " (3)

De facto, a aplicação imediata da lei nova (LN) relativa a privilégios creditórios só é defensável por aquele mestre quando ela não envolva "o não reconhecimento duma situação jurídica anteriormente constituída", isto porque as leis que criam ou suprimem privilégios "são relativas aos efeitos do crédito no processo de distribuição do activo do devedor" (4) , sendo certo que a lei competente para a graduação dos créditos no concurso de credores é a lei vigente ao tempo deste mesmo concurso, salvo pelo que respeita aos créditos hipotecários" (5).

Lei vigente ao tempo do concurso (6) e não ao tempo da graduação.

O mesmo autor, no livro citado, (7) ensina que "dos n.ºs 1 e 2 do art. 12.º resulta que os efeitos de direito já produzidos sob o império da LA são respeitados na vigência da LN".

Isto porque "as SsJs(8) extintas sob a LA não renascem pela simples facto da entrada em vigor da LN".

Ora, no nosso caso, a falência foi decretada por sentença de 21.4.99, transitada em julgado.

Com a declaração da falência os bens da falida passam a integrar a massa falida, determinando o encerramento dos livros do falido e tornando imediatamente exigíveis todas as obrigações do falido, procedendo-se à imediata apreensão dos elementos contabilísticos e de todos os bens, seguindo-se depois disso a "reclamação de créditos". (9)

Isto é, o concurso de credores abre-se com o trânsito em julgado da sentença que declara a falência, sendo a essa data que se deve atender para definir as situações jurídicas emergentes das relações havidas entre os seus credores.

Com a declaração da falência surgiu um direito ou situação jurídica de os credores verem graduados os seus créditos em face das garantias constituídas.

Posteriormente a essa data, os credores quer sejam trabalhadores quer outros, são apenas aqueles que o eram à data da falência.

Se se considerasse que para a graduação de créditos se devia atender à data da sentença que os graduasse, haveria uma profunda desigualdade consoante a data da sentença a proferir na graduação de créditos.

Portanto, no caso dos autos, datando de 21.4.99 a sentença que declarou a falência e vigorando o art. 377.º do Cód. de Trabalho desde 28.8.2004, os trabalhadores gozam de privilégio imobiliário geral sobre o imóvel apreendido, nos termos do art. 12.º da Lei 17/86, acima citada, e não do privilégio criado pelo art. 377.º referido.

Aplicação por analogia ou por interpretação extensiva do art. 751.º do CC ou por interpretação extensiva, analógica ou correctiva da actual redacção, como defendem os recorrentes ?

Dizem os recorrentes que, mesmo que se entenda que os seus créditos estão abrangidos pela lei 17/86, de 14.7, agora reafirmada pela Lei 96/01, que é de aplicação imediata, como a mesma veio determinar que os créditos dos trabalhadores devem ser graduados em 1.º lugar, quer relativamente aos privilégios mobiliários quer aos privilégios imobiliários, deverá aplicar-se, por analogia, o art. 751.º do CC, por interpretação extensiva, analógica ou correctiva, o que determina que os seus créditos sejam graduados antes dos da recorrida.

Importa, pois, averiguar se os créditos dos trabalhadores recorrentes, no confronto com o crédito da recorrida, garantido por hipoteca, relativamente ao imóvel penhorado, e por penhor, relativamente aos móveis penhorados, se devem graduar antes, como os recorrentes defendem, ou imediatamente a seguir ao da recorrida, como se decidiu no acórdão sob recurso.

Se a resposta for neste último sentido, então, cabe ainda saber se tal interpretação viola o art. 59.º, 1 a) e 3 da CRP.

Quanto à graduação (10)

O acórdão recorrido decidiu que o crédito da recorrida, garantido por hipoteca e por penhor, se deve graduar imediatamente antes dos créditos dos trabalhadores recorrentes.

Também nós entendemos que é essa a interpretação correcta da lei.

O Acórdão está devidamente fundamentado, apoiando-se na melhor doutrina e seguindo a actual jurisprudência deste Supremo Tribunal de forma praticamente uniforme. (11)

Por isso, a nossa tarefa está facilitada, não se tornando necessário repetir novamente os argumentos expendidos em defesa de tal tese porque ela vem bem explicitada no Acórdão.

Apenas repetiremos alguns dos argumentos aí esgrimidos e teceremos algumas considerações com vista a demonstrar, a final, que a alegada inconstitucionalidade não tem qualquer fundamento.

O art. 8.º do DL. 47344, de 25.11.66 (12) referia que de futuro não seriam reconhecidos "os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo que conferidos em legislação especial", apenas abrindo a excepção do n.º 2 quanto "aos privilégios e hipotecas legais concedidos ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas, quando se não destinem à garantia de débitos fiscais".

Esta regra, contudo, não tem sido observada e, no que se reporta ao caso dos autos, vigora, entre nós, a Lei 17/86, de 14.6 e a recente Lei 96/01, de 20.8,(13) que concedem aos trabalhadores privilégios mobiliário e imobiliário gerais.

Ora, conforme dispõe o art. 200.º, 1 e 2 do CPEREF (14), deve o juiz proceder à graduação dos créditos que é geral para os bens da massa falida e especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia.

Na sistematização do Código Civil, há privilégios mobiliários e imobiliários, mas estes são sempre especiais, (15) pois foram estes apenas os que o legislador do Código Civil teve em conta, como ensina Almeida Costa. (16)

Mas, aquelas Leis que atribuíram privilégios mobiliário e imobiliário gerais aos trabalhadores, apenas estatuem que (17) a graduação dos créditos se fará "a) quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no n.º 1 do art. 747.º do CC, mas pela ordem dos créditos enumerados no art. 737.º, do mesmo Código; b) quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748.º do CC e ainda dos créditos de contribuições devidos à Segurança Social".

Não contêm elas, nem esclarecem, que normas reguladoras se devem ter em conta na concorrência entre o privilégio imobiliário geral, para garantir os direitos de créditos dos trabalhadores, e os direitos resultantes da hipoteca e do penhor, que garantem os direitos de créditos da recorrida.

Há, pois, uma lacuna da lei, não cabendo a sua graduação no contexto do art. 751.º do CC, que apenas prevê privilégios imobiliários especiais, como se disse, e não privilégios imobiliários gerais.

Uns e outros são de natureza diferente, pois, enquanto os privilégios gerais constituem apenas "preferências gerais anómalas", os privilégios especiais, "independentemente de recaírem em bens móveis ou imóveis", são direitos reais de garantia.

Como ensina Miguel Lucas Pires, (18) por os privilégios mobiliários e imobiliários especiais "incidirem, ab initio, sobre bens certos e determinados, parece-nos ser irrefutável a sua qualificação como verdadeiros direitos reais de garantia, dotados dos elementos essenciais que permitem caracterizar os ius in rem, ou seja, a preferência e a sequela".

Transcrevendo Menezes Cordeiro (19) , o mesmo autor, refere que "a figura das garantias especiais das obrigações pode ser objecto de uma distinção que se afigura extremamente relevante nesta matéria, consoante redundem ou não em direitos subjectivo."

De acordo com este autor, "uma garantia real constitui um direito subjectivo quando conceda autorização legal de aproveitamento de um bem para efeito de assegurar o cumprimento da obrigação; pelo contrário, tratando-se de um mero esquema de beneficiação do credor, em termos de responsabilidade patrimonial, não constituirá um direito subjectivo: é nesta última categoria que se inserem os privilégios gerais.

Por não recaírem sobre os concretos bens que constituem a garantia do crédito - mas antes incidindo indistintamente sobre todos os bens móveis ou imóveis do devedor (20)- se justifica que cedam perante quaisquer direitos relativos a essas coisas que se constituam antes da apreensão judicial desses bens(21) (cfr. art. 749.º)".

Este normativo refere que "o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente".

O art. 750.º diz que "...no caso de conflito entre privilégio mobiliário especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais cedo se houver adquirido".

Por seu turno, o art. 751.º dispõe que "os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores".

O preenchimento da lacuna que acima referimos há-de fazer-se recorrendo à analogia ou, no caso de esta faltar, criando a norma que o próprio interprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema. (22)

Do confronto das normas citadas, regendo o art. 751.º para os privilégios imobiliários especiais e o art. 750.º para os privilégios mobiliários especiais, a única norma que versa sobre privilégios gerais é o art. 749.º, sendo, por isso, o que rege a graduação dos privilégios dos trabalhadores recorrentes no confronto com os privilégios mobiliário e imobiliário especiais da recorrida.

Assim, os privilégios dos recorrentes não valerão contra a recorrida, como claramente flui do art. 749.º, 1 do CC, devendo o desta ser graduado imediatamente antes do daquelas.

Quanto à invocada inconstitucionalidade

Alegam os recorrentes que, no caso de se manter a decisão recorrida, ocorre inconstitucionalidade por violação do art. art. 59.º, 3 da CRP nos termos do qual "são assegurados aos salários garantias especiais".

O acórdão do TC de 22.10.03, (23) ao versar sobre uma situação de conflito "entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, (24) e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito" (25) , por o tribunal ter recorrido ao art. 749.º do CC para graduar os créditos dos trabalhadores, considerando que a aplicação ao caso do art. 751.º do CC seria inconstitucional por violação do princípio da confiança, previsto no art. 2.º da CRP, decidiu "não julgar inconstitucional a norma constante da al. b) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 17/86, de 14.6, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art. 751.º do CC".

No entanto, nesse Acórdão, como muito bem lembra o Ac. deste STJ de 24.6.04, (26) refere-se que "não cabe ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre as opiniões em confronto, no âmbito da interpretação do direito ordinário".

E, como acima se deixou dito, e se afirma no mesmo Acórdão, "mostra-se actualmente firmado neste Tribunal o entendimento de que o art. 751.º do CC contém um princípio geral insusceptível de aplicação aos privilégios imobiliários gerais, não conhecidos aquando do início da vigência deste Código, e tal assim visto também que não sujeitos a registo, afectem gravemente os direitos de terceiro, sendo, pois, o art. 749.º do CC que no caso há-de valer." (27)

É, assim, este o normativo a ter em conta na graduação dos créditos dos trabalhadores recorrentes, valendo para o penhor e para a hipoteca, respectivamente, os arts. 750.º e 751.º referidos.

Ora, o conflito ou colisão de direitos apenas existe "quando vários direitos concorrem, de modo que o exercício de um deles impede ou prejudica o exercício de outro", o que não é o caso quando a "lei estabelece uma relação de subordinação entre eles..." (28) .

Assim, nenhum conflito ocorre porque os créditos em causa não se enquadram nos mesmos preceitos legais.

E, não havendo conflito, não há que considerar a prevalência dos princípios constitucionais dos arts. 2.º e 59.º da CRP.

Improcede, por isso, também a questão da inconstitucionalidade por nenhum juízo de inconstitucionalidade se ter aqui afirmado.

Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos reclamantes.

Lisboa, 30 de Novembro de 2006
Custódio Montes
Mota Miranda
Alberto Sobrinho
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(1) Que aprovou o Cód. de Trabalho.
(2) Itij doc. n.º 06B2871 desta secção, relatado por Salvador da Costa.
(3) "Sobre a aplicação no tempo do nosso Código Civil" Págs. 27.
(4) Ob. cit., pág. 27, nota 23.
(5) Ob. cit, pág. 28, nota 23.
(6) Adiante especificaremos a data do concurso a ter em conta.
(7) Pág. 139.
(8) Situações jurídicas.
(9) Arts. 147, 148.º, 151.º, 175.º e 188.º do CPEREF - DL 132/93, de 23.4, com as alterações do DL 315/98, de 20.10, aqui aplicável.
(10) Retomamos neste Acórdão o que já dissemos no ac. deste STJ de 22.6.05, revista n.º 1511 desta secção de que fomos relator.
(11) Ver a doutrina citada no Acórdão, a que pode acrescentar-se a tese de mestrado, corrigida, de Miguel Lucas Pires, "Dos Privilégios Creditórios: Regime Jurídico e sua Influência no Concurso de Graduação de Créditos", Almedina, 2004, especialmente, a págs. 361 e segts.; Leal Amado, A Protecção do Salário, pág. 156, citado por Pedro Romano Martinez, Direito de Trabalho, reimpressão da edição de 2002, pág. 569; quanto à jurisprudência, para além da citada no acórdão, ver, entre muitos outros, os Acs. deste STJ de 16.4.02, de 26.6.02, de 26.9.02, de 5.6.03, de 12.6.03, de 18.11.03, 13.1.05, todos em dgsi.pt/stj.; e o recente Acórdão relatado pelo aqui 1.º adjunto, de 5.5.05, revista 835/05.
(12) Lei preambular do Código Civil.
(13) Este Diploma Legal veio reforçar os créditos laborais em processo de falência, atribuindo aos créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei 17/86, os mesmos privilégios mobiliário e imobiliário geral. Com a mesma graduação, sem prejuízo dos créditos emergentes daquela lei (art. 4.º).
(14) DL 132/93, de 23.4, com a redacção do DL 315/98, de 20.10, aqui aplicável.
(15) Art. 735.º 3 do CC. A alteração introduzida pela Lei n.º 38/03 de 8.3 "estabelecidos neste Código" não é aplicável ao caso dos autos face ao que dispõe o art. 12.º, 1 do CC e Ac. deste STJ de 13.1.05 acima citado na nota 2.
(16) Direito das Obrigações, 5.ª d., pág. 825.
(17) Art. 12.º, 3 da Lei 17/86.
(18) Ob. cit., pág. 432.
(19) Direito das Obrigações, pág. 498 e acompanhando Orlando de Carvalho em Direitos das Coisas, 1977, pág. 220, 221 e 370.
(20) Apenas concretizados no acto da penhora.
(21) Como acontece no caso do penhor e da hipoteca, em que o privilégio se constitui no momento da formação dos créditos garantidos.
(22) Art. 10.º do CC e Interpretação e Aplicação das Leis, de Ferrara, segunda a tradução de Manuel de Andrade, pág. 160 a 163.
(23) DR II Série de 3.1.04.
(24) Art. 59.º, 1, a) e 3 da CRP.
(25) Art. 2.º da CRP.
(26) Relatado pelo Ex.mo Conselheiro Dr. Oliveira Barros, desta Secção.
(27) Ver a doutrina e jurisprudência aí citada, em aditamento à que atrás também nós mencionámos.
(28) Jacinto Bastos, Nota ao CC , Vol. II, pág. 105, em anotação ao art. 335.º do CC.