Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9494/16.1T8ALM-B.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE DE ACTO NOTARIAL
NULIDADE DE ATO NOTARIAL
Data do Acordão: 11/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO – PROCESSO DE REGISTO / PRESSUPOSTOS / INSCRIÇÃO PRÉVIA E CONTINUIDADE DAS INSCRIÇÕES – SUPRIMENTO, RECTIFICAÇÃO E RECONSTITUIÇÃO DO REGISTO / MEIOS DE SUPRIMENTO.
Doutrina:
- Mónica Jardim, A evolução Histórica da Justificação de Direitos de Particulares para Fins do Registo Predial e a Figura da Justificação, Estudos de Direito Notarial e Registal, Almedina, Coimbra, 2015;
- Mouteiro Guerreiro, Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Coimbra, 2010, p. 118-119 ; Notas sobre as Justificações, in www.fd.uc.pt/cenor, p. 8-9.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO NOTARIADO (CNOT): - ARTIGOS 89.º, 90.º, 91.º, 92º, 93.º, 94.º, 95.º, 96.º, 97.º, 98.º, 99.º, N.º 1, 100.º E 101.º.
CÓDIGO DE REGISTRO PREDIAL (CRPRED): - ARTIGOS 34.º, N.º 4 E 116.º, N.ºS 1, 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 15-11-2011, PROCESSO N.º 884/07.1TBLNH.L1-7.
Sumário :
I - A justificação notarial, para fins do registo predial, tem a sua regulamentação nos arts. 89.º a 101.º do CN, sendo admitida nos casos previstos no art. 116.º do CRgP: 1 - Justificação relativa ao trato sucessivo, isto é, para se obter a primeira inscrição, ou, dito de outro modo, para estabelecimento do trato sucessivo (arts. 89.º do CN e 116.º, n.º 1, do CRgP; 2 - Justificação para reatamento do trato sucessivo (art. 90.º do CN., arts. 116.º, n.º 2 e 34.º, n.º 4, do CRgP; e 3 - Justificação para o estabelecimento do novo trato sucessivo (arts. 91.º do CN. e 116.º, n.º 3, do CRgP.).
II - As escrituras de justificação notarial, tal como os registos, «pela sua própria finalidade, assumem um interesse público», na medida em que são «instrumentos que visam firmar, titular e publicitar direitos subjectivos das pessoas (singulares e colectivas), mas que se projectam numa informação generalizada a toda a sociedade sobre a existência e o âmbito desse direito (cf. Mouteiro Guerreiro, Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 118-119).
III - O titular inscrito tem direito a proteção legal, exigindo a lei, nos casos em que não se prove que ele transmitiu o seu direito, à sua prévia notificação, visando dar a conhecer ao notificando a pretensão dos justificantes, para que aquele, querendo, a ela venha deduzir impugnação (art. 99.º, n.º 1, do CN.).
IV - Não padece de qualquer irregularidade a notificação enviada para a morada constante do registo predial do titular inscrito, por ser este o domicílio escolhido ou eletivo.
V - Na ação de impugnação de escritura notarial, a autora pode, apenas, impugnar judicialmente o direito que subjaz ao registo, mas não já irregularidades cometidas no processo de criação do título.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. Em 13 de dezembro de 2016, AA intentou a presente ação declarativa com a forma de processo comum contra BB, CC, DD e EE, pedindo que: a) se declare a ineficácia da escritura de justificação feita pelos RR. (requerendo a comunicação à Notária Dra. FF da pendência da ação); b) se considerem impugnados para todos os efeitos legais os factos justificados na escritura de 6.6.2013 e respetiva retificação referente à aquisição pelos RR., por usucapião, das parcelas de terreno com a área total de 1042,70m2; c) se declare nula e de nenhum efeito essa escritura por violação das formalidades essenciais previstas no artigo 99º do Código do Notariado (CNot.); d) se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento aqui impugnado.

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
A Autora, em 3.6.1981, adquiriu a nua propriedade do prédio misto denominado …, situado no …, descrito na CRP de Almada sob o n.º … (atualmente sob a ficha nº …/…), com a área total de 20.192m2, que confronta a Norte com a EN, a Sul com …., do Nascente com a sociedade de investimentos, e a …. com a …, que registou a seu favor.
Em 27.4.1988, com a morte do usufrutuário, ficou na posse plena da propriedade, que começou a explorar integralmente, de forma pública, e sem oposição de ninguém.
Ao organizar o pedido de loteamento e licenciamento junto da CM, a A. tomou conhecimento de que parte da sua propriedade (1042,70m2) tinha sido adquirida por usucapião com base em escritura de justificação notarial outorgada no Cartório da Dra. FF, em 6.6.2013, posteriormente retificada a 13.9.2013, com base em falsas declarações.
Antes da celebração da escritura, a 1ªR. compareceu no referido Cartório e requereu a notificação prévia da Autora, com sede na Rua …, nº …, Grupo…, ….
A carta para notificação foi remetida para a morada indicada em 1.4.2013, sendo que, naquela data, essa não era já a morada da sede da Autora, o que sucedia desde 28.9.2012.
Não foram, assim cumpridas as formalidades legais exigíveis para a citação da A. interessada, o que determina a nulidade de todo o processado posterior, nos termos do artigo 99.º, n.º 5, do CNot., enfermando a escritura notarial de irregularidade por inobservância de formalidade essencial, ficando ferida de nulidade.
O facto de ter sido promovida citação edital da A. em nada releva, porquanto foi indevidamente utilizada a citação edital, pois o paradeiro da A. não era desconhecido podendo ser facilmente constatável por consulta da certidão comercial, o que determina a falta de citação.
As pretensões dos RR. teriam de ser levadas ao conhecimento do titular inscrito sob pena de ineficácia da escritura.

2. Citados, contestaram os 1.ª, 3.º e 4.º RR., por impugnação, pugnando pela improcedência da ação, e consequente declaração de validade e eficácia da escritura de justificação celebrada pelos RR. em 6.6.2013 e retificada em 13.9.2013.
Mais deram conhecimento do falecimento da 2ªR.

3. Realizou-se audiência prévia, na qual, para além do mais, se proferiu o seguinte despacho: “Entende a A. que a sua notificação prévia no âmbito do processo de justificação notarial padece de irregularidade, segundo aquela a notificação foi remetida pelo Cartório Notarial em 1 de Abril de 2013 para a R. …, nº … Grupo…, sendo que naquela data essa não era a morada da sede da A. No caso que ora cumpra apreciar, não vislumbramos que a notificação prévia padeça de alguma irregularidade. A notificação postal, sob registo e com aviso de recepção, foi expedida para a morada da sede da autora que constava do registo predial do prédio, tudo em conformidade com o disposto no art. 99, nºs 1 e 5 do Código de Notariado. Face à devolução de tal expediente postal, afigura-se-nos razoável que o Cartório Notarial tivesse procedido à notificação por éditos prevista no art. 99º, nº 7 do Código de Notariado. Contudo, mesmo que assim não se entendesse, entendemos que, à semelhança do que sucede com os processos de justificação das conservatórias, as irregularidades cometidas no processo de justificação notarial não podem ser invocadas em acção judicial em que se questiona o direito justificado (cfr. a este propósito o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.11.2011, proferido no proc. 884/07.1TBLNH.L1-7, onde se conclui que as irregularidades respeitantes ao processo de justificação na conservatória não podem ser invocadas através de acção judicial em que se impugne o direito que subjaz ao registo). Pelo exposto, julgo improcedente, por não provada, a excepção dilatória de nulidade da notificação prévia no processo de justificação notarial deduzida pela autora”.

Em 4.7.2018, na sequência da apelação apresentada, foi proferido despacho a corrigir a decisão proferida, passando a constar que “Pelo exposto, julgo improcedente, por não provada a arguição de nulidade da notificação prévia no processo de justificação notarial deduzida pela autora”.

4. Inconformada com a decisão, apelou a Autora, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 9 de abril de 2019, decidido o seguinte:
«Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, que se substitui por outra a declarar a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada em 6.6.2013 no Cartório Notarial de …, posteriormente rectificada a 13.9.2013, objecto dos presentes autos, ordenando-se o cancelamento dos registos operados com base na referida escritura».

5. Inconformados, os réus interpõem recurso de revista, para este Supremo Tribunal, no qual formularam as seguintes conclusões:

«1.ª
Nos termos do disposto nas normas dos artigos 99º-5 do CN e do 117º-G-3 do CRPr, a notificação prévia do titular inscrito é feita nos termos gerais da lei processual civil, aplicada com as necessárias adaptações.
2.ª
As disposições atinentes à citação e à notificação, encontravam-se previstas nos artigos 228º e seguintes, em especial no artigo 255º- 1 do CPC.1961.
3.ª
Da aplicação dos citados preceitos do CPC.1961, em especial do artigo 255º-1, resulta que as notificações são feitas por carta registada dirigida para a sede da parte ou no domicílio escolhido para o efeito de as receber, presumindo-se feitas no terceiro dia posterior ao do registo ou no primeiro dia útil seguinte a esse quando não o seja.
4.ª
As citadas normas do CPC.1961 carecem em qualquer caso de ser sempre conjugadas com o regime geral das notificações do Código do Registo Predial, em especial com o estatuído no seu artigo 154º, que no seu nº 3, estipula que “a notificação não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a morada indicada pelo notificando nos atos ou documentos apresentados no serviço de registo”.
5.ª
A autora foi notificada para a morada que constava do registo predial como sendo a da sua sede.
6.ª
Foi esta a morada que a autora indicou nos serviços de registo predial quando requereu a sua inscrição como titular do prédio.
7.ª
O registo predial constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7º do CPRr).
8.ª
O registo predial faz presumir que os dados que dele constam estão corretos e atualizados.
9.ª
Ao contrário do que foi entendido no acórdão de que se recorre, não era exigível à Senhora Notária que tendo sido devolvida a carta que foi enviada para morada da sede da autora que constava no registo predial, esta tivesse de lançar mão do disposto no artigo 237º do CPC.1961 e proceder à citação do legal representante da autora, mediante carta registada com aviso de receção remetida para a sua residência ou local de trabalho.
10.ª
O Tribunal da Relação de Lisboa na decisão recorrida ao ter entendido que a Senhora Notária perante a carta devolvida, estava obrigada a proceder à citação do legal representante da autora para a sua residência ou local de trabalho, não interpretou, nem aplicou convenientemente e violou as normas constantes dos artigos 237º do CPC.1961 e do artigo 99º-5 do CN e dos artigos 154º-3 e 117º G-3 do CRPr.ª
11.ª
Tratando-se como se trata de domicílio indicado por escrito, pelo próprio titular ou seu representante (artigo 154º-3 do CRPr), há que entender que a morada que consta da inscrição no registo predial tem o estatuto de domicílio escolhido ou eletivo.
12.ª
A citação postal em processo civil tanto pode ser feita na sede das sociedades como em domicílio escolhido, nos termos das normas dos artigos 236º-1 e 467º-1 a) do Código de Processo Civil.
13.ª
A morada indicada na inscrição no registo predial constitui domicílio escolhido, para efeitos de notificação atinente àquele registo.
14.ª
É ónus do titular do registo predial mantê-lo atualizado, pelo que não pode prevalecer-se da falta de notificação que lhe tenha sido dirigida para a morada constante da citada inscrição registral.
15.ª
Impunha-se que o Tribunal da Relação na decisão recorrida tivesse considerado que a notificação que foi enviada à autora para a morada constante do registo predial, foi dirigida para o seu domicílio escolhido e é por isso foi válida e eficaz, não sendo exigível à Senhora Notária, que perante a devolução da carta de notificação, procedesse à citação do legal representante da autora, nos termos previstos no artigo 237º do CPC.1961 ou que fosse confirmar junto do RNPC a morada da sede da autora, nos termos do previsto no artigo 244º do CPC.1961.
16.ª
Ao não ter entendido desta forma, a decisão recorrida não interpretou, nem aplicou convenientemente o direito e violou a norma constante do artigo 154º-3 do CRPr e dos artigos 237º e 244º do CPC.1961.
17.ª
A disciplina da notificação edital no âmbito dos processos de justificação notarial, tem sede própria, pois consta das normas do artigo 99º, nºs. 4 e 7 do CN e do artigo 117º-G, nº 6 do CRPr.
18.ª
O nº 4 do artigo 99º do CN estabelece que o notário, quando profere despacho a ordenar a notificação do titular inscrito, deve, desde logo, ordenar igualmente a notificação edital daquele, para o caso de se verificar a sua ausência em parte incerta. Verificada a ausência em parte incerta do titular inscrito, deve ser feita a sua notificação edital.
19.ª
A decisão recorrida, considera que no caso em apreço, a Senhora Notária antes de ordenar a notificação edital da autora, deveria ter observado as seguintes formalidades: 1º) enviar a carta de notificação para a morada da sede da autora constante do registo predial; 2º) tendo a carta sido devolvida, lançar mão do disposto no artigo 237° do CPC.1961 e proceder à citação do legal representante da autora; 3º) confirmar a morada da sede da autora junto do RNPC, nos termos do disposto no artigo 244° do CPC.1961 e enviar nova carta de notificação para a morada que consta do RNPC.
20.ª
A disciplina da notificação edital no âmbito dos processos de justificação notarial, tem regras próprias, constantes das normas do artigo 99°, n°s 4 e 7 do CN e do artigo 117°-G, n° 6 do CRPr e nenhuma destas normas impõe o cumprimento das formalidades que o Tribunal da Relação considera serem imperativas, designadamente, a citação do legal representante da autora e a confirmação da morada da sede da autora junto do RNPC.
21.ª
Se é certo que nos termos do disposto nas normas dos artigos 99°-5 do CN e do 117°-G-3 do CRPr, a notificação prévia do titular inscrito é feita nos termos gerais da lei processual civil, também nos parece claro que a lei processual civil, deve ser aplicada com as necessárias adaptações e que esta remissão para o código de processo civil deverá ser entendida como remissão para as normas que regulam o modo das notificações em geral e não para as normas que regulam a oportunidade e/ou modalidades da citação.
22.ª
As formalidades constantes dos artigos 237º e 244º do CPC.1961 que o Tribunal da Relação considera serem imperativas e que entende deveriam ter sido observadas pela Senhora Notária, não se aplicam às notificações no âmbito dos processos de justificação notarial.
23.ª
Não se nos afigura assim que fosse exigível à Senhora Notária que procedesse à citação do legal representante da autora e apurasse junto do RNPC se a morada da sede da autora que constava no registo predial estava ou não atualizada. Tal era um ónus da autora. Era à autora que incumbia manter a sua sede atualizada no registo predial.
24.ª
A autora foi notificada para a morada que constava do registo predial como sendo da sua sede. Foi esta a morada que a autora indicou no ato e nos documentos que apresentou junto dos serviços de registo predial, quando requereu a sua inscrição como titular do prédio e que nos termos do disposto no artigo 154º-3 do CRPr, tem o estatuto de domicílio escolhido ou eletivo.
25.ª
A autora foi deviamente notificada, tendo sido observadas e cumpridas todas as formalidades exigidas para a sua notificação enquanto titular inscrito, não se verificando qualquer irregularidade ou inobservância de formalidade essencial que afete a validade e legalidade da escritura de justificação.
26.ª
A notificação prévia da autora, foi devidamente efetuada, é válida e plenamente eficaz, observou e cumpriu integralmente as formalidades legalmente exigidas pelas normas constantes dos artigos 99º do CN, 117º-G e 154º-3 do CRPr.
27.ª
O acórdão recorrido deveria ter considerado que a notificação prévia da autora não padece de qualquer irregularidade, por a notificação postal desta ter sido expedida para a morada da sua sede que constava do registo predial do prédio, em conformidade com o disposto na norma do artigo 99º- 1 e 5 do CN e por face à devolução de tal expediente postal ter sido feita a sua notificação edital conforme previsto na regra do artigo 99º-4 e 7 do CN.
28.ª
O Tribunal da Relação de Lisboa ao não ter entendido desta forma, não interpretou, nem aplicou convenientemente e por isso violou as normas constantes dos artigos do artigo 99º, nº1, 4, 5 e 7 do CN e do artigo 117º-G, nº 6 do CRPr.
29.ª
Até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 273/2001, de 13 de outubro, a justificação podia ser feita por via judicial, nos termos do processo especial regulado pelo Decreto-Lei nº 284/84, de 22 de agosto.
30.ª
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 273/2001, de 13 de outubro, operou-se a transferência de competências em processos desta natureza dos tribunais judiciais para os conservadores do registo e notários.
31.ª
A partir de 01-02-2002 os tribunais judiciais deixaram assim de ter competência para apreciar procedimentos com esta finalidade, competências que são exclusivamente de notários e conservadores.
32.ª
É princípio geral do direito processual que cabe ao órgão que praticou o ato nulo apreciá-lo e suprir a nulidade, quando for o caso.
33.ª
É seguindo este princípio processual geral que sempre se tem entendido que as nulidades nos procedimentos que correm nos notários e conservatórias são arguidas junto de quem praticou o ato, apenas cabendo recurso judicial da decisão final.
34.ª
O Tribunal da Relação não tem competência para apreciar as nulidades ou outras irregularidades eventualmente cometidas na tramitação do processo de justificação notarial, a não ser em via de recurso.
35ª
O Tribunal da Relação de Lisboa na decisão recorrida ao não ter decidido desta forma e ter entendido que pode conhecer nesta ação das eventuais nulidades ou outras irregularidades cometidas na tramitação do processo de justificação notarial, não interpretou, nem aplicou convenientemente e violou a norma constante do artigo 101º do CN.

Nestes termos e de mais direito,
Deve a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa ser revogada e substituída por douta decisão que confirme a decisão do Tribunal da 1ª instância que julgou improcedente a exceção de nulidade da notificação prévia no processo de justificação notarial deduzida pela autora.
Desta forma e como sempre, farão V. Exas. a habitual
JUSTIÇA!»


6. A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, com base, em síntese, nos seguintes argumentos:
1 – À notária era exigido, nos termos da lei processual civil, que notificasse o representante legal da autora na sua residência ou local de trabalho ou que consultasse a base de dados do RNPC para se inteirar da morada atual da sociedade (artigos 237.º e 244.º do CPC/1961).
2 – Seguindo-se a via edital, sem estas diligências, deve ter-se por não efetuada a notificação que seguiu a via edital, em face do que se encontra consagrado nos artigos 195.º, n.º 1, alíneas c) e d), 233.º, 244.º e 248.º, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do n.º 5 do artigo 99.º do Código do Notariado.
3 – Assim sendo, conclui a A. que esta irregularidade é equivalente à falta de citação prévia da autora (artigos 195.º, n.º 1, al. c) e 198.º, ambos do CPC/6), o que consubstancia nulidade da citação prévia a inquinar a escritura subsequentemente realizada (artigo 201.º, n.º 2, do CPC/61), pelo que o registo a favor dos réus tem de ser cancelado.

Terminou a A. as suas conclusões, peticionando que não seja dado provimento ao recurso, mantendo-se “in totum” o douto acórdão recorrido.

7. A magistrada do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, em representação dos Herdeiros Incertos da Ré CC, notificada das alegações de Recurso de Revista interposto pelos co-Réus BB, DD e EE nos autos acima identificados, e em que é A. AA, vem dizer o seguinte:

«A A. AA interpôs acção para declaração de ineficácia da escritura de justificação dos RR. e a nulidade da mesma escritura por violação das formalidades essenciais previstas no art. 99º do C. do Notariado.

Por acórdão proferido por este Tribunal da Relação foi julgado procedente o recurso e decidido que no caso, ao determinar sem mais a citação edital da A. sem cumprimento do art. 237.º do CPC61, a Senhora Notária omitiu uma formalidade imposta por lei, o que consubstancia uma nulidade a inquinar a escritura subsequentemente realizada e, em consonância com o assim decidido, revogou a decisão recorrida e ordenou a sua substituição por outra a declarar a nulidade da escritura de justificação notarial outorgada em 6.6.2013 no Cartório Notarial de …, posteriormente rectificada a 13.9.2013, objecto dos presentes autos, ordenando-se o cancelamento dos registos operados com base na referida escritura.

Os RR vêm agora interpor recurso de revista para esse Venerando Tribunal, pedindo a confirmação da sentença ora revogada.

Assim, sem prejuízo do disposto no art. 634.º, n.º 2, do CPC, reitera-se a posição assumida na resposta à apelação de fls 16 e 17, oferecendo-se o merecimento dos autos, com a certeza que V. Exas farão como sempre Justiça!»

8. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas respetivas conclusões, as questões a apreciar são as seguintes:

1. A validade da notificação prévia da autora
2. A repercussão das irregularidades da notificação prévia na validade da escritura de justificação notarial.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

A - Matéria de facto

1. Em 28.03.2013 a 1ª R. pretendeu iniciar procedimento para fins de justificação notarial da aquisição por usucapião de quatro parcelas de terreno, com a área total de 1.042,70 m2 a desanexar do prédio inscrito na matriz rústica sob parte do artigo …, secção …, que compunha o prédio misto, sito na …, freguesia de …, concelho de …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … do livro ….

2. O prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … do libro …, estava inscrito a favor da A., que havia requerido essa inscrição pela Ap. 22 de 17-06-1981, com os seguintes dados de identificação SUJEITO ATIVO: “AA.”, com sede na Rua …, ao …, em ….

3. Em 28.03.2013, a 1ªR. requereu verbalmente à Notária Dra. FF, a notificação prévia da autora enquanto titular inscrita, para fins de justificação notarial.

4. Por despacho de 28.03.2013 a Notária Dra. FF deferiu a notificação prévia da A. requerida pela 1ªR.

5. Através do mesmo despacho, em 28.03.2013, a Notária ordenou também a notificação edital da A., para o caso da notificação pessoal não ser realizada.

6. Em 01.04.2013 a Notária Dra. FF expediu, para efeitos de notificação da A., carta registada com aviso de receção para a morada desta constante do registo predial.

7. À data de 01.04.2013 a morada da A. constante do registo predial era a Rua …, …, ….

8. A carta expedida pela Notária, referida em 7. foi devolvida em 02.04.2013, com a menção de “encerrada” e “sem recetáculo para o aviso”.

9. Na sequência da devolução da carta enviada à A., a Notária, Dra. FF, realizou a notificação prévia edital da A., através de editais, cuja afixação, pelo prazo de 30 dias, solicitou à 2ª Conservatória do Registo Predial de …, à Junta de Freguesia de … e à Junta de Freguesia de …, em …, editais estes que foram afixados por aquelas entidades, respetivamente, em 23, 17 e 20 de Maio de 2013.

10. Em 6.06.2013 os réus outorgaram no Cartório Notarial de … da Notária …, a escritura de justificação notarial.

11. Desde 28.9.2012 que a sede da A. é na ….

B – Questões de direito

1. Validade da notificação prévia

1.1 - A justificação notarial, para fins de registo predial, tem a sua regulamentação nos artigos 89.º a 101.º do CNot., sendo admitida nos casos previstos no artigo 116.º do CRPred.: 1 - Justificação relativa ao trato sucessivo, isto é, para se obter a primeira inscrição, ou, dito de outro modo, para estabelecimento do trato sucessivo (artigos 89.º do CNot. e 116.º, n.º 1 do CRPred.); 2 – Justificação para reatamento do trato sucessivo (artigo 90.º do CNot., e artigos 116.º, n.º 2 e 34.º, n.º 4, do CRPred.); e 3 - Justificação para o estabelecimento do novo trato sucessivo (artigos 91.º do CNot. e 116.º, n.º 3, do CRPred.).

O recurso à justificação notarial com base na usucapião tanto pode ter lugar estando o prédio omisso no registo ou descrito, sem que sobre ele exista inscrição da transmissão, domínio ou posse, como quando essa inscrição exista.

Para além da justificação para primeira inscrição, aparecem dois tipos de justificação:

a) Justificação para «reatamento do trato sucessivo» nos casos em que a sequência das aquisições derivadas, ou transmissões intermédias desde o titular inscrito até ao atual, não tenha sido interrompida por abandono do proprietário e subsequente aquisição baseada em usucapião, mas se verifique a falta de algum título, por extravio, destruição ou outro motivo atendível (artigo 90.º do Código do Notariado, doravante, CNot.)

b) Justificação para «estabelecimento do novo trato sucessivo» nos casos em que a cadeia das aquisições derivadas haja sido interrompida por abandono do proprietário e se torne necessário invocar as circunstâncias em que se baseia a aquisição originária (artigo 91.º do CNot.).

Se porém existe um registo do «proprietário formal» sobre o bem - o titular inscrito - importa, por respeito ao princípio do trato sucessivo, justificar o nascimento do direito invocado.
No caso de reatamento do trato sucessivo ou de estabelecimento de novo trato, quando se verificar a falta de título em que tenha intervindo o titular inscrito, a escritura não pode ser lavrada sem a sua prévia notificação, efetuada pelo notário, a requerimento do interessado na escritura.
A escritura de justificação notarial constitui um meio para suprir no registo predial a intervenção do titular inscrito, implicando a usucapião novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado. Para o efeito, o justificante deve referir as circunstâncias em que baseia a aquisição originária, com dedução das transmissões que a tenham antecedido e das subsequentes.
A escritura de justificação notarial é, assim, um mecanismo capaz de regularizar a situação registal de prédios em situações em que não exista plena conformidade entre o que formalmente se encontra declarado no registo e a titularidade dos direitos adquirida por via da usucapião decorrente da posse durante o período necessário em função das características da posse ou da natureza do bem em causa.
A escritura de justificação notarial é um instituto que contribui para a paz social e para a justiça, na medida em que, nos casos em que os interessados encontram dificuldades no registo, derivadas da falta ou insuficiência dos documentos normalmente necessários, e estão impossibilitados de demonstrar o seu direito e, consequentemente, de transmitir ou onerar os seus bens, a lei permite-lhes a prova da aquisição por usucapião. Criou, assim, a lei uma providência de natureza excecional, a justificação, destinada a possibilitar o estabelecimento do princípio do trato sucessivo (inscrição prévia e continuidade das inscrições), sempre que os interessados não disponham de títulos que comprovem os seus direitos.
Os processos de justificação constituem, portanto, um instrumento útil e prático para a atualização dos direitos publicitados pelos registos, desde que se verifiquem todos os seus pressupostos, analisados de acordo com o prudente juízo dos notários e dos conservadores, como juristas habilitados e especializados. Assim se permitindo que a justificação sirva para que os registos contribuam eficazmente para a segurança do comércio jurídico e para a diminuição dos conflitos.
Tem sido reconhecido, no entanto, que se trata de um instrumento arriscado e do qual pode ser feito um uso abusivo, potenciando que se procurem justificar direitos sem que se verifiquem os pressupostos da usucapião. Neste sentido, este Supremo Tribunal proferiu o Acórdão Uniformizador nº 1/08, de 4-12-07, no qual se decidiu que, para que possam prevalecer os efeitos jurídicos projetados através da justificação notarial, maxime, a presunção da titularidade do direito real, recai sobre os justificantes o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que pretenderam justificar para sustentar a alteração da inscrição registal. Como se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 25-06-2015 (proc. n.º 17933/12.4T2SNT.L1.S2):
«Assim, para além de a lei prever o antídoto que pode evitar os efeitos negativos do uso abusivo da justificação notarial, não podemos deixar de creditar a tal instrumento uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objectivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à acção de justificação judicial, quer à acção de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa.
Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afectados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de acção que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via.
A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a percepção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objecto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspectos de ordem substancial ou material e os aspectos de ordem formal atinentes ao património imobiliário».

1.2 - Neste processo estamos perante a questão de saber se a notificação prévia efetuada ao titular inscrito é válida, e se, sendo irregular ou inválida, esse vício se repercute na eficácia da escritura de justificação notarial.
O titular inscrito tem direito a proteção legal, exigindo a lei, nos casos em que não se prove que ele transmitiu o seu direito, a sua prévia notificação, visando dar a conhecer ao notificando a pretensão dos justificantes, para que aquele, querendo, a ela venha deduzir impugnação (artigo 99.º, n.º 1, do CNot.). A notificação prévia visa, assim, rodear a escritura de justificação de um mínimo de segurança e cautela, com o objetivo de evitar futuros litígios.
Como afirma Mouteira Guerreiro, “Notas sobre as Justificações”, disponível para consulta, www.fd.uc.pt/cenor, pp. 8-9: «Na verdade, não há que presumir o abandono do direito por parte daquele titular inscrito. Pelo contrário, de harmonia com as presunções que o Código estabelece, designadamente no artigo 7º, ter-se-á de presumir que tal direito lhe continua a pertencer nos precisos termos em que o registo o define. Daí tornar-se essencial que antes de ser celebrada a escritura de justificação ou de decidido o processo, se proceda à notificação do titular inscrito - ou, no caso da sua ausência ou falecimento, à dos herdeiros – e neste caso permitindo a lei que sejam notificados (ou citados) independentemente de habilitação. Vemos, pois, que a comunicação solene ao titular inscrito – feita através de notificação, mesmo no caso do processo – é pressuposto indispensável para que a justificação se possa fazer».

1.3. - O regime jurídico dos processos de justificação estipulava a obrigatoriedade de prévia justificação judicial avulsa do titular inscrito, quando não fosse exibido ao notário um título pelo qual se provasse que ele tinha transmitido o seu direito, nos termos de processo especial regulado pelo Decreto-Lei n.º 284/84, de 22 de agosto. Mas a partir de 1 de janeiro de 2001, com a entrada em vigor do DL n.º 273/2001, de 13 de outubro, que operou a transferência de competências em processos desta natureza dos tribunais judiciais para os conservadores do registo e notários, a notificação do titular inscrito passa a ser ordenada por despacho do próprio notário, que ordenará igualmente a notificação edital daquele ou dos seus herdeiros, independentemente de habilitação, para o caso de se verificar a sua ausência em parte incerta ou o seu falecimento.

No que diz respeito à notificação prévia do titular inscrito, para o que aqui releva, dispõe o artigo 99.º do CNot., sob a epígrafe, Notificação prévia, o seguinte:
«1 - No caso de reatamento do trato sucessivo ou de estabelecimento de novo trato, quando se verificar a falta de título em que tenha intervindo o titular inscrito, a escritura não pode ser lavrada sem a sua prévia notificação, efectuada pelo notário, a requerimento, escrito ou verbal, do interessado na escritura.
(…)
4 - Verificada a regularidade do requerimento e da respectiva prova documental, o notário profere despacho a ordenar a notificação do titular inscrito, devendo, desde logo, ordenar igualmente a notificação edital daquele ou dos seus herdeiros, independentemente de habilitação, para o caso de se verificar a sua ausência em parte incerta ou o seu falecimento.
5 - As notificações são feitas nos termos gerais da lei processual civil, aplicada com as necessárias adaptações.
6 - Nas situações em que a notificação deva ser efectuada de forma pessoal e o notificando residir fora da área do cartório, a diligência pode ser requisitada por meio de ofício precatório dirigido ao notário competente.
7 - A notificação edital é feita pela simples afixação de editais, pelo prazo de 30 dias, na conservatória competente para o registo, na sede da junta de freguesia da situação do prédio ou da sede da sociedade e, quando se justifique, na sede da junta de freguesia da última residência conhecida do ausente ou falecido.
8 - A notificação prevista no presente artigo não admite qualquer oposição.
(…)».
A notificação prévia dos titulares inscritos visa dar a conhecer a estes a declaração de vontade do requerente em justificar o direito que no registo está inscrito a favor daqueles e constitui uma garantia de proteção dos seus direitos que gozam de especial força presuntiva na ordem jurídica (artigo 7.º do CRPred.).
No caso de a notificação prévia ter sido efetuada e os titulares inscritos manifestarem oposição à justificação do direito, o notário tem o dever de recusar a prática do ato (cf. Mónica Jardim, «A evolução Histórica da Justificação de Direitos de Particulares para Fins do Registo Predial e a Figura da Justificação», in Estudos de Direito Notarial e Registal, Almedina, Coimbra, 2015).
Mas se a oposição for realizada apenas após o registo, os titulares inscritos terão, na qualidade de interessados, que impugnar em juízo o facto justificado através da respetiva escritura pública (artigo 101º, nº 1, CNot.).

1.3. No presente processo o titular inscrito foi notificado para a morada que constava do registo predial, mas a carta veio devolvida e a notária procedeu à notificação edital, nos termos do artigo 99.º, n.ºs 4 e 7, do CNot. e do 117.º - G, n.º 6, do CRPred.
A questão que se coloca é a de saber se houve alguma irregularidade no processo de notificação prévia que seja suscetível de inquinar de nulidade a escritura de justificação de notarial.
As escrituras de justificação notarial, tal como os registos, nascem e existem no âmbito do direito privado, mas como afirma Mouteiro Guerreiro (cf. Temas de Registos e de Notariado, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 118-119), «pela sua própria finalidade, assumem um interesse público», (…) na medida em que são «instrumentos que visam firmar, titular e publicitar direitos subjectivos das pessoas (singulares e colectivas), mas que se projectam numa informação generalizada a toda a sociedade sobre a existência e o âmbito desses direito (…). É assim fundamental que quer na legislação que se vai produzindo, quer no funcionamento prático, se busque que estas instituições traduzam de um modo transparente e tanto quanto possível insofismável, a verdade substancial ou, mais concretamente, que se procure fazer sempre coincidir o que é titulado pelas escrituras e publicitado pelos registos com a intrínseca verdade fáctica e jurídica».

A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa considera que, na notificação prévia da autora, foram omitidas formalidades essenciais impostas por lei, pois tendo a carta de notificação sido devolvida com a menção de “encerrada” e “sem recetáculo para o aviso”, a Notária estava obrigada a recorrer ao disposto no artigo 237º do Código de Processo Civil de 1961 (CPC/1961), procedendo à citação do legal representante da autora, ou investigando junto do Registo Nacional das Pessoas Coletivas (RNPC) a morada da sua sede, nos temos do artigo 244º do CPC/1961, o que também não fez.
Ora, atendendo às normas que regulam as notificações nos processos de justificação – os artigos 99.º do CNot e o artigo 117.º-G do CRPred. – , não parece ser esta a solução mais razoável para o problema, nem a que resulta da melhor interpretação das normas jurídicas.
A notificação prévia está regulada no artigo 99.º do CNot., com tendência para uma simplificação da mesma, na medida em que deixou, desde 2001, de assumir a natureza de notificação judicial avulsa, podendo ser extrajudicial.
O n.º 5 do artigo 99.º do CNot. dispõe que «As notificações são feitas nos termos gerais da lei processual civil, aplicada com as necessárias adaptações».
O tribunal recorrido aplicou ao caso vertente as regras respeitantes à citação, ou seja, os artigos 233º e ss. do CPC/61.
Diferentemente, entendemos que as normas a aplicar, juntamente com o artigo 99.º do CNot., devem ser as regras do Código de Registo Predial, mais adaptadas a atender às especificidades das questões de direito registal. Neste sentido, a aplicabilidade das normas do CPC não pode ser uma aplicabilidade direta, como fez o acórdão recorrido, mas uma aplicabilidade com as necessárias adaptações, isto é, tendo em conta as necessidades de celeridade do tráfico jurídico e a especial confiança de que se revestem os dados constantes da inscrição registal.
No caso sub judice, em 01-04-2013, foi enviada à autora, notificação para a morada “…”. Esta era, à data, a morada que constava como sua sede no registo predial. Note-se que foi esta a morada que a autora indicou no ato e nos documentos que apresentou junto dos serviços de registo predial, quando requereu a sua inscrição como titular do prédio, conforme consta da inscrição nº … do livro …, Ap. … de 17 de junho de 1981.
Ora, no seu próprio interesse, a sociedade autora devia ter atualizado a morada da sua sede junto do registo predial, o que não fez, sendo apenas a si imputável essa omissão, não sendo razoável nem proporcionado, que se possa prevalecer da falta de notificação que lhe tenha sido dirigida para esta morada, para invalidar a escritura notarial.
Para além disto, a presunção registal, apesar de não abranger, conforme jurisprudência dominante, os elementos de identificação constantes da descrição do prédio (79º, n.º 1, do CRPred.), abrange os elementos de identificação que integram as respetivas inscrições (91º, n.º1, do CRPred.), designadamente os elementos respeitantes à sede das pessoas coletivas que figuram no registo como sujeitos ativos do facto inscrito, tal como parece decorrer do disposto no artigo 93º, n.º 1, alínea e), do CRPred. Sendo assim, dada a especial força probatória dos elementos constantes da inscrição registal não era exigível à Notária, que lavrou a escritura de justificação, que procedesse à citação do legal representante da autora, mediante carta registada com aviso de receção remetida para a sua residência ou local de trabalho, ou que confirmasse no RNPC a morada da autora, conforme entendeu o acórdão recorrido através da remissão para os artigos 237.º e 244.º do CPC/1961.
A autora foi notificada para a morada que constava do registo predial como sendo a sua sede, havendo que presumir que a morada que consta da inscrição no registo predial tem o estatuto de domicílio escolhido ou eletivo. O registo predial faz presumir que os dados que dele constam estão corretos e atualizados. Note-se que nem se compreende como poderia a notária proceder à citação do representante legal da autora, pois a identidade e residência ou local de trabalho do legal representante das sociedades não são elementos que possam constar nem do registo predial (82.º e 93.º do CRPred.), nem da base de dados do RNPC (artigo 6.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, aprovado pelo Decreto Lei n.º 129/98, de 13 de maio).
Por outro lado, embora já depois da prática destes atos, entrou em vigor uma norma do Código de Registo Predial, o artigo 154.º, aditada pelo Decreto-lei n-º 125/2013, de 30 de agosto, que, no seu n.º 3, veio esclarecer que a «A notificação não deixa de produzir efeitos pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a morada indicada pelo notificando nos atos ou documentos apresentados no serviço de registo». Apesar de esta norma não ser aplicável ao caso presente, consagra a interpretação agora adotada, segundo a qual os dados pessoais constantes do registo predial gozam de uma força probatória especial, no contexto dos processos de justificação, que, por razões específicas ligadas ao registo predial e à confiança que este instituto inspira, não tornam exigível aos notários mais diligências para além das previstas no artigo 99.º do CNot.

1.4. - Entendeu o acórdão recorrido que a Notária empregou indevidamente a citação edital, e não observou as formalidades prescritas na lei para que pudesse lançar mão da mesma, pois devia, antes de mandar citar editalmente a autora, recorrer às diligências previstas nos artigos 237.º e 244.º do CPC/1961.
No mesmo sentido, a recorrida afirma nas suas contra-alegações que o emprego indevido da citação edital equivale à falta de notificação prévia do titular inscrito, o que determina a nulidade da citação, bem como a nulidade da escritura de justificação (artigos 195.º, n.º 1, al. c), 198 .º e 201.º, n.º 2, todos do CPC/61).
A disciplina da notificação edital, no âmbito dos processos de justificação notarial, tem sede própria, pois consta das normas do artigo 99º, nºs. 4 e 7 do CNot. e do artigo 117º-G, nº 6 do CRPred. As normas do CPC seriam sempre aplicáveis com as necessárias adaptações, nos termos do artigo 99.º, n.º 5, do CNot., não havendo, contudo, legitimidade para as aplicar, quando o CNot. e o CRPred. regulam o regime jurídico da citação edital, e a lei especial prevalece sobre a lei geral ou comum.
Entendemos, por isso, que as formalidades constantes dos artigos 237º e 244º do CPC/1961, que o Tribunal da Relação considera serem imperativas e exigíveis à Notária, não se aplicam às notificações no âmbito dos processos de justificação notarial.
As normas aplicáveis são os artigos 117.º-G , n.º 6 do CRPred. e o artigo 99.º, n.ºs 4 e 7, do CNot.

Os n.ºs 4 e 7 do artigo 99.º do CNot. dispõem o seguinte:
(…)
4 - Verificada a regularidade do requerimento e da respectiva prova documental, o notário profere despacho a ordenar a notificação do titular inscrito, devendo, desde logo, ordenar igualmente a notificação edital daquele ou dos seus herdeiros, independentemente de habilitação, para o caso de se verificar a sua ausência em parte incerta ou o seu falecimento.
(…)
7 - A notificação edital é feita pela simples afixação de editais, pelo prazo de 30 dias, na conservatória competente para o registo, na sede da junta de freguesia da situação do prédio ou da sede da sociedade e, quando se justifique, na sede da junta de freguesia da última residência conhecida do ausente ou falecido.


O artigo 117.º-G do CRPred., sob a epígrafe, Notificação dos interessados, afirma, para o que aqui releva, o seguinte:
(…)
6 - As notificações editais são feitas pela simples afixação de editais, pelo prazo de 30 dias, no serviço de registo da situação do prédio, na sede da junta de freguesia da situação do prédio e, quando se justifique, na sede da junta de freguesia da última residência conhecida do ausente ou do falecido.
(…)

O nº 4 do artigo 99º do CNot. estabelece que o notário, quando profere despacho a ordenar a notificação do titular inscrito, deve, desde logo, ordenar igualmente a notificação edital daquele, para o caso de se verificar a sua ausência em parte incerta. Verificada a ausência em parte incerta do titular inscrito, deve ser feita a sua notificação edital. A notificação edital, conforme estatuí o nº 7 do artigo 99º do CNot. e também o nº 6 do artigo 117º-G do CRPred, é feita pela simples afixação de editais, pelo prazo de 30 dias, na conservatória competente para o registo e na sede da junta de freguesia da situação do prédio ou da sede da sociedade.
Ora, nenhuma destas normas impõe as formalidades exigidas pelo tribunal recorrido: 1) a citação do legal representante da autora, e 2) a confirmação da morada da sede junto do RNPC.
Por outro lado, como resulta dos factos do presente caso, as formalidades previstas no artigo 99.º, n.ºs 4 e 7 do CNpt e no n.º 6 do artigo 117.º-G do CRPred. foram observadas.

Vejamos.
Sintetizando a factualidade relevante para a apreciação do caso, decorre o seguinte:
a) A Notária em 01-04-2013 expediu, para efeitos de notificação da autora, carta registada com aviso de receção para a morada desta constante do registo predial.
b) Esta carta foi devolvida em 02-04-2013, com a menção de “encerrada” e “sem recetáculo para o aviso”.
c) Por a carta para notificação pessoal da autora ter sido devolvida, a Notária realizou a notificação prévia edital da autora, através de editais afixados pelo prazo de 30 dias, juntos das seguintes entidades:
i. 2ª Conservatória do Registo Predial de …, por ser esta a entidade competente para o registo;
ii. Junta de Freguesia de …., por ser esta a junta de freguesia da localização do prédio;
iii. Junta de Freguesia de …, por ser a junta de freguesia da área da sede da sociedade;
d) Os editais foram afixados pela 2ª Conservatória do Registo Predial de …, pela Junta de Freguesia de … e pela Junta de Freguesia de …, respetivamente, em 23, 17 e 20 de maio de 2013.

Perante esta factualidade, não pode deixar de se entender que a modalidade da notificação edital foi devidamente utilizada no caso em apreço.


2. A repercussão de eventuais irregularidades da notificação prévia na validade da escritura de justificação notarial

Invoca a recorrente que, mesmo a entender-se que havia alguma irregularidade na notificação prévia ou na citação edital, não passaria disso mesmo, uma mera irregularidade, que, nos termos da lei processual civil, apenas poderia ser invocada para o autor do ato, a notária, e que não inquinaria de nulidade a escritura de justificação notarial, nem poderia ser invocada no processo de impugnação dos factos declarados na citada escritura.
Diferentemente, entende a autora, agora recorrida, que, no presente processo, a omissão de formalidades essenciais equivale ao vício da falta de citação prévia da sociedade autora, o que consubstancia nulidade de que o Tribunal pode conhecer no processo de impugnação do ato justificado, por não estar em causa mera irregularidade formal do ato notarial ou do processo a que este conduziu.
Estando esta questão prejudicada pela solução dada à questão da validade da notificação prévia, sempre se dirá que não tem razão a autora.
É princípio geral do direito processual que cabe ao órgão que praticou o ato nulo apreciá-lo e suprir a nulidade, quando for o caso, nos termos da disciplina dos actos nulos tal como fixada nos artigos 196.º a 200.º do CPC. É seguindo este princípio processual que as nulidades nos procedimentos que correm nos notários e conservatórias são arguidas junto de quem praticou o ato, apenas cabendo recurso judicial da decisão final.
Também o Código do Notariado regula a matéria de acordo com este princípio, como decorre do regime da revalidação dos atos nulos, em que igualmente se prevê o recurso da decisão do notário (78.º, n.º 1, do CNot.) e não a apreciação dos atos alegadamente nulos. O regime geral da reação aos atos dos notários regula no mesmo sentido: só as recusas - ou “decisões negativas” – são suscetíveis de reação junto dos tribunais, por via de recurso (175.º do CNot.), sempre com prévia sustentação ou reparo da decisão (178º, n.º1, do CNot.). Também é assim no processo de justificação notarial; a norma do artigo 101.º do CNot., sob a epígrafe “impugnação”, apenas admite que seja judicialmente impugnado o facto justificado, mas já não os atos parcelares que fazem parte do procedimento.

Neste sentido, decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15-11-2011 (proc. n.º 884/07.1TBLNH.L1-7), em relação aos vícios verificados no processo de justificação junto das conservatórias, com argumentos igualmente aplicáveis aos processos de justificação notarial, em cujo sumário se lê:
«III - No recurso da decisão do conservador ataca-se a criação do título, em si mesma; através da acção judicial vai impugnar-se o próprio direito que lhe subjaz e que aquela decisão não constituiu;
IV - Se os interessados não puderem nem tiverem condições (especialmente por não terem intervindo no processo respectivo) de, pela via do recurso da decisão do conservador, atacar a criação do título ali constituído pelo processo de justificação respectivo e obstar ao registo do facto correspondente, disporão sempre da possibilidade de, nos termos gerais, impugnar a existência do próprio direito registado;
V -As irregularidades respeitantes ao processo de justificação na conservatória não podem ser invocadas através da acção judicial em que se impugne o direito que subjaz ao registo;
VI - Tal como sucede na acção de impugnação de escritura de justificação notarial, na acção de impugnação de processo de justificação na conservatória, tendo os réus ali afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, dando lugar à inscrição definitiva no registo do mesmo a seu favor, incumbe aos referidos réus a prova dos factos constitutivos do direito que haviam reclamado perante o Conservador».

Sendo assim, na presente ação, a autora podia apenas, nos termos do artigo 8.º do CRPred, impugnar judicialmente o direito que subjaz ao registo, mas não já irregularidades cometidas no processo de criação do título, apenas impugnáveis por via do recurso da decisão da Notária.
Em conclusão, não podia o tribunal recorrido fazer repercutir as alegadas irregularidades no processo notificação prévia na validade da escritura de justificação notarial, a fim de a declarar nula.
O único objeto admissível para o presente processo reporta-se à impugnação dos factos justificados.
Os interesses da autora não perdem, assim, a tutela pretendida, pois pode prosseguir com a presente ação a fim de impugnar a existência do próprio direito registado, cabendo aos réus o ónus da prova do direito de propriedade, designadamente dos requisitos da usucapião, tal como se passaria numa ação de reconhecimento do direito real.
III – Decisão
Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença do tribunal de 1.ª instância.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 5 de Novembro de 2019


(Maria Clara Sottomayor)



(Alexandre Reis)



(Pedro de Lima Gonçalves)