Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
473/10.3TBVRL.P1-A.S1
Nº Convencional: RECLAMAÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RECLAMAÇÃO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIAL
QUESTÕES SECUNDÁRIAS
Data do Acordão: 04/28/2014
Votação: -----------------------
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 671.º, Nº 3, 672.º, Nº 1.
Sumário :

1. Apesar da confirmação, pela Relação, da decisão da 1ª instância, não existe dupla conforme quando a fundamentação empregue em ambas as decisões seja essencialmente diversa.
2. A alusão à natureza essencial ou substancial da diversidade da fundamentação determina que sejam desconsideradas para o efeito as discrepâncias marginais ou secundárias que não constituem um enquadramento jurídico alternativo.
3. Existindo coincidência em ambas as decisões a respeito da qualificação atribuída pela Autora ao contrato no qual alicerçou a sua pretensão, uma divergência relativamente a uma questão prejudicada por aquela resposta não impede a verificação de dupla conforme.

A.G.

Decisão Texto Integral:

1. Do despacho que rejeitou o recurso de revista, com fundamento na existência de dupla conforme, veio a A. reclamar para este Supremo, alegando que a fundamentação da decisão da 1ª instância é essencialmente diversa da fundamentação do acórdão da Relação, ainda que tenha determinado o mesmo resultado.

A tal pretensão se opôs a R. alegando que a fundamentação é essencialmente idêntica, não havendo motivo para a admissão da revista.


2. Com a reforma do regime dos recursos de 2007, genericamente absorvida pelo NCPC, a necessidade de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça determinou a consagração de uma restrição ao recurso de revista assente na dupla conforme, depois de ser garantido o duplo grau de jurisdição.
Tal solução visou contabilizar os diversos interesses, contrapondo a um generalizado direito de interposição de recurso a necessidade de uma racional e equilibrada gestão dos meios humanos e materiais. Na verdade, se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição constitui elemento potenciador de maior segurança jurídica, também é certo que os meios disponíveis para a tarefa de Administração da Justiça são limitados e que a necessidade de alcançar uma decisão definitiva em tempo razoável não é compatível com a admissibilidade irrestrita do terceiro grau de jurisdição. Daí o estabelecimento de um obstáculo ao terceiro grau de jurisdição que, salvo norma especial, apenas poderá ser ultrapassado através da verificação de algum dos requisitos da revista excepcional.
Na sua versão inicial introduzida em 2007, a verificação de uma situação de dupla conforme era totalmente independente da fundamentação de cada uma das decisões: existia dupla conforme quando a Relação confirmasse, sem voto de vencido, e mesmo com fundamentação diversa, a decisão da primeira instância.
Já no art. 671º, nº 3, do NCPC, foi introduzida uma nuance, deixando de existir dupla conforme e seguindo-se, assim, as regras gerais referentes à admissibilidade do recurso de revista, quando a Relação empregue “fundamentação essencialmente diferente” para a confirmação da decisão da 1ª instância.
No horizonte desta modificação legal estiveram situações em que, por exemplo, a confirmação da decisão da 1ª instância se processa a partir de um quadro normativo substancialmente diverso, como sucede nos casos em que a uma determinada qualificação contratual se sucede uma outra distinta, com um diverso enquadramento jurídico. Outrossim quando uma eventual condenação tenha sido sustentada na aplicação das regras de um determinado contrato, sendo confirmada pela Relação, mas ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa ou das normas que regulam os efeitos da nulidade do mesmo contrato. Ou quando um determinado resultado tenha sido sustentado na apreciação da validade de um contrato e a Relação, oficiosamente, reconheça a existência de nulidade que nenhuma das partes invocou. Ou, ainda, quando a primeira decisão tenha absolvido o réu da instância com fundamento numa determinada excepção dilatória e a Relação tenha encontrado motivo para a mesma decisão noutra excepção.
Na realidade, em cada um destes exemplos, ainda que o resultado final seja idêntico, a diversidade do percurso acaba por revelar duas decisões substancialmente diversas, não se justificando a ablação de terceiro grau de jurisdição em situações em que o mesmo resultado seja alcançado no final de um percurso jurídico substancialmente diverso.
A alusão à natureza essencial ou substancial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não revelam um enquadramento jurídico alternativo. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido.
A restrição ao conceito de dupla conformidade que decorre agora do art. 671º, nº 3, do NCPC, com atribuição de relevo à fundamentação jurídica, não pode servir de pretexto para, na prática, se restaurar de forma irrestrita o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou, sustentado nas vantagens que uma tal restrição assegura, por evitar o recurso indiscriminado ao Supremo Tribunal de Justiça, só porque o valor do processo ou da sucumbência o permite.
Não podem para o efeito exponenciar-se as objecções dirigidas àquela opção legislativa, nem superar, por via de meros juízos valorativos, o pressuposto negativo representado pela dupla conforme, agora circunscrita aos casos em que a fundamentação jurídica seja essencialmente idêntica.
Em suma, a admissão, fora das regras da revista excepcional, do recurso de revista interposto de um acórdão da Relação que confirmou a decisão da 1ª instância, depende da verificação de uma situação em que o núcleo essencial da fundamentação jurídica é diverso. Já se for substancialmente idêntica a resposta que as instâncias deram à questão ou questões jurídicas que, em concreto, se revelem em concreto essenciais para o resultado, a situação contém-se nos limites da dupla conforme, dependendo a admissibilidade da revista da demonstração de algum dos fundamentos previstos no art. 672º, nº 1, do NCPC.

4. Ao caso sub judice é aplicável já o NCPC, considerando, além do mais, que o acórdão da Relação data de 5-12-2013, tratando-se de uma acção que foi instaurada em 2010.

Nesta acção a A., ora reclamante, veio alegar que sucedeu na posição jurídica que uma sociedade comercial detinha num contrato que foi celebrado com a R., invocando, assim, os direitos que para tal sociedade decorrem do referido contrato.

Alegou a A. que se tratava de um contrato de compra e venda de infra-estruturas e de equipamento para distribuição e fornecimento de gás combustível, comprometendo-se a R. a pagar à antecessora da A. um determinado preço pela transferência dos activos que no futuro fosse efectuada, encontrando-se a R. em mora relativamente à obrigação de pagamento do preço.

Tal pretensão foi impugnada pela R., alegando, além do mais, que a A. não cumpriu as obrigações a que se vinculara, o que determinou a perda de interesse na transmissão dos activos que fora acordada.

5. Tanto a 1ª instância como a Relação julgaram improcedente a acção, embora sem uma completa coincidência de fundamentos:

a) Em primeiro lugar, a primeira instância considerou que não estava demonstrada a legitimidade substantiva da A. relativamente à pretensão que deduziu contra a R. (fls. 102). Invocando a A. que sucedera na posição jurídica que outra sociedade – a AA - Companhia Produtora e Distribuidora de Gás, SA - detinha num contrato que foi celebrado com a ora R. BB - Sociedade Distribuidora de Gás Natural do Douro, SA, concluiu o tribunal de 1ª instância, em via principal, que, assim, improcedia a acção.

Já no recurso de apelação que a A. interpôs, a Relação alterou a decisão da matéria de facto e, a partir daí, concluiu que “a A. sucedeu na posição daquela (AA-Companhia Produtora e Distribuidora de Gás, SA”) no contrato aqui em causa e, portanto, tem legitimidade substantiva para, com fundamento nele, pretender exigir e efectivar os direitos resultantes do seu alegado incumprimento” (fls. 77).

Porém, como o revela o segmento posterior do acórdão, tal não foi suficiente para considerar procedente a acção, uma vez que a improcedência da acção foi confirmada a partir de fundamentos que também foram analisados na sentença.

Nesta perspectiva, a resposta positiva que a recorrente obteve relativamente à primeira questão que foi apreciada na sentença de 1ª instância não apresenta qualquer relevo para levar à admissão do recurso de revista.

b) Em segundo lugar, a 1ª instância não aceitou a qualificação jurídica do contrato que foi indicada pela A. – contrato de compra e venda de activos - conclusão que foi confirmada também pela Relação.

A A. sustentou a sua pretensão na outorga de um contrato de compra e venda, nele sustentando a existência de obrigações que não foram cumpridas pela R. e nas quais fundou o pedido de pagamento de numerário.

Na sentença de 1ª instância considerou-se que a qualificação que as partes deram ao contrato que celebraram (“contrato de compra e venda de infraestruturas e de equipamentos para distribuição e fornecimento de gás combustível canalizado”) não encontra correspondência com o seu conteúdo, já que nada convencionaram que seja típico de um contrato de compra e venda, sendo de qualificar, isso sim, como “contrato-promessa de venda dos bens e direitos nele contemplados, mediante o qual a A. se obrigou a celebrar acordos de transmissão das redes e clientes que detinha nos pólos de Amarante e Marco de Canaveses”. Tratar-se-ia, assim, de um “contrato-promessa de compra e venda unilateral, mediante o qual a A. assumiu o dever de alienar os bens nele contemplados, mediante preço a fixar de acordo com os critérios fixados no Anexo I ao mesmo contrato-promessa”, de modo que de tal contrato não resultaria para a ora R. “qualquer obrigação de pagamento da quantia reclamada nos autos” (fls. 107).

Relativamente a esta questão, a Relação acabou por concluir (fls. 86) “não encontrar motivos bastantes para divergir da conclusão retirada pelo tribunal recorrido”, negando também a existência de um contrato de compra e venda onde a A. sustentara a sua pretensão, negação esta que foi acompanhada de diversa argumentação.

Posto que não tenha sido tão categórica como foi a 1ª instância quanto à qualificação jurídica do contrato, confirmou a asserção inicial de que não se estava perante um contrato de compra e venda em cujo incumprimento a A. sustentara a sua pretensão.

Nesta ordem de ideias, a fundamentação que levou à confirmação da improcedência da acção acaba por ser substancialmente idêntica, nesta parte, uma vez que recusou a qualificação jurídica pretendida pela A., a única que, de acordo com a causa de pedir invocada, permitiria acolher a pretensão que foi deduzida.

Ainda que a Relação tenha considerado que existiria um “compromisso que, sendo pré-contratual ou já vinculativo, quiçá bilateralmente – coisa que nem sequer nos compete decidir e fixar aqui – e de à R. ser imputável conduta violadora das regras da boa fé (art. 227º) ou incumpridora (art. 442º), geraria crédito indemnizatório e não crédito de preço, sendo neste contexto que, em caso de dúvida e nos termos do art. 237º, se haveria de encontrar a solução mais razoável e equilibrada para liquidar a relação entre as partes decorrente daquele negócio” (fls. 69), não tomou posição inequívoca quanto à qualificação jurídica do contrato. Admitindo ora uma relação pré-contratual, ora um contrato-promessa, cada um deles gerador de um eventual direito de indemnização, por violação das regras da boa fé, no primeiro caso, ou por violação da promessa, no segundo, o que é relevante para o caso é a confirmação do que fora afirmado pela 1ª instância quando recusou qualificar o contrato como contrato de compra e venda, o único que poderia sustentar a pretensão relacionada com alegados preços que não teriam sido pagos pela R. à A.

Sendo a qualificação jurídica do contrato o elemento essencial de que poderia derivar a procedência da acção, o facto de ambas as instâncias negarem a qualificação proposta pela A. revela que não existe qualquer divergência essencial – no sentido de decisiva para o resultado da lide – emergente da fundamentação do acórdão a respeito da segunda questão suscitada nos autos.

c) Em terceiro lugar, a 1ª instância argumentou ainda, de forma subsidiária, que mesmo que fosse de qualificar o contrato como contrato de compra e venda nem assim a pretensão procederia, uma vez que a A. “não logrou demonstrar nos autos o respectivo preço”, isto é, “o preço das redes e clientes alienados” (fls. 107).

Relativamente a esta questão, a Relação considerou, em primeiro lugar, que estaria prejudicada pela resposta que foi dada à segunda questão. Depois, ainda que não tenha aceite o argumento referente à falta de demonstração do preço no âmbito de um putativo contrato de compra e venda, acabou por concluir que “sempre o preço devia ser encontrado, se fosse o caso, no seio do regime privativo do contrato de compra e venda, se este se tivesse demonstrado – o que não sucedeu. Não pelo que a apelante preconiza”.

Ou seja, posto que exista uma divergência de entendimentos quanto ao modo como num contrato de compra e venda se determinaria o preço a pagar, tal divergência é circunstancial e não apresenta relevo para evitar uma situação de dupla conforme, já que ocorreu num segmento que se mostra prejudicado pela resposta que foi dada à segunda questão que era verdadeiramente central.

Na verdade, o que se mostra decisivo numa e noutra decisão é sempre a recusa de qualificação do contrato como contrato de compra e venda, base de toda a demais argumentação expendida pela A. para sustentar o direito de crédito sobre a A.

5. Por conseguinte, uma vez que o confronto de ambas as decisões das instancias não nos revela uma fundamentação substancialmente ou essencialmente diversa, comprova-se uma situação de dupla conforme que é impeditiva da admissibilidade da revista normal.

6. Face ao exposto, indefere-se a reclamação.

Custas a cargo da reclamante.

Notifique.

Lisboa, 28-4-14

Abrantes Geraldes