Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S4106
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CREDITO SALARIAL
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
ÓNUS DA PROVA
APLICAÇÃO DE CONTRATO COLECTIVO DE TRABALHO
SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO
ABONO PARA FALHAS
PRÉMIO
Nº do Documento: SJ200805210041064
Data do Acordão: 05/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I – A arguição de nulidades de acórdãos da Relação deve, por força do estatuído nas disposições combinadas dos artigos 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), e 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), ser feita, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, sob pena de se considerar extemporânea e não se conhecer das nulidades arguidas somente nas alegação de recurso.
II – A rejeição do recurso em matéria de facto, por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 690.º-A, n.os 1, 2 e 5, e 712.º do CPC, não configura qualquer dos vícios típicos da sentença, mas erro de interpretação e aplicação de lei processual, pelo que tal questão, por não estar contemplada no citado artigo 77.º do CPT, não está sujeita à limitação consignada neste preceito, do que decorre que pode ser conhecida pelo Supremo, quando suscitada na alegação da revista, conforme dispõe o artigo 722.º, n.º 1, do CPC.
III – O facto de a parte recorrente impugnar toda a decisão proferida sobre a matéria de facto não é motivo de rejeição, desde que, na alegação, cumpra integralmente as exigências contidas no referido artigo 690.º-A, n.os 1, 2, podendo e devendo o recurso ser parcialmente rejeitado, quanto à matéria de facto impugnada em relação à qual seja pedida, pura e simplesmente, a reapreciação de provas produzidas em 1.ª instância, em manifestação de genérica discordância com o decidido.
IV – A ampliação da matéria de facto, prevista no artigo 729.º, n.º 3, do CPC, passa não só pela averiguação de factos que, tendo sido alegados, não foram apurados, mas também pela reapreciação de factos que, também alegados, terão sido deficientemente aquilatados, designadamente porque a Relação, indevidamente, não cuidou de proceder à reapreciação das provas gravadas, posto que o objectivo da ordem de ampliação da matéria de facto é o de fazer averiguar factos de que o tribunal pode tomar conhecimento e que não foram apurados ou que o foram deficientemente, mostrando-se o apuramento de tais factos indispensável para a decisão de direito.
V – Deve ser ordenada a ampliação da decisão proferida sobre a matéria de facto, quando, sendo controvertidos os factos invocados para a resolução com justa causa do contrato de trabalho por parte do trabalhador, para fundamentar o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, e para fundamentar a condenação no pagamento de diferenças salariais, as instâncias não emitiram pronúncia sobre aqueles factos.
VI – Em face do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, parte final, da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, aos créditos retributivos vencidos depois de 1 de Dezembro de 2003, aplica-se o regime deste diploma, estando os que venceram antes daquela data sujeitos ao regime anteriormente vigente.
VI – Em ambos os regimes, ao trabalhador que reclama o pagamento prestações retributivas, incumbe, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o ónus de alegar e provar os factos concretos de que emergem os correspondentes créditos – a prestação do trabalho, a categoria profissional respectiva, e, quando for o caso, as condições específicas em que tal sucedeu determinantes de atribuições patrimoniais que excedam a remuneração de base; sobre o empregador impende o ónus de impugnar aqueles factos ou de alegar e demonstrar que as correspectivas prestações foram satisfeitas (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
VII – Em face do disposto nos artigos 7.º e 8.º do Regime Jurídico das Relações Colectivas de Trabalho e 552.º e 553.º do Código do Trabalho, as normas dos Contratos Colectivos de Trabalho não têm aplicação directa às relações individuais de trabalho se não se provou, nem foi alegada, a filiação do empregador em alguma das associações de empregadores subscritoras.

VIII – As normas constantes do Contratos Colectivos de Trabalho (CCT’s) celebrados entre a UNIHSNOR – União das Associações da Hotelaria e Restauração do Norte de Portugal e a FESHOT – Federação dos Sindicatos da Hotelaria e Turismo de Portugal e outros, e entre a mesma associação de empregadores e a FESAHT – Federação dos Sindicatos da Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal e outros, e respectivas alterações, aplicam-se às relações individuais de trabalho estabelecidas entre trabalhadores e empregadores do sector de actividade económica neles contemplada, exercida no distrito do Porto, independentemente da filiação nas associações sindicais e empresariais subscritoras, na medida em que foram objecto de extensão por via administrativa, através de Portarias de Extensão.

IX – O reconhecimento do direito ao subsídio de alimentação, em substituição da alimentação em espécie, reportado ao período de efectiva prestação de trabalho, previsto nos referidos CCT’s, depende da alegação e prova, pelo trabalhador, de que o estabelecimento, onde o serviço é prestado, não confecciona ou não serve refeições; e do mesmo subsídio, em períodos de férias, da alegação e prova, pelo trabalhador, de que, nesses períodos, não lhe podia ser fornecida alimentação, ou de que o trabalhador optou por não tomar as refeições no estabelecimento onde presta serviço.
X – O reconhecimento do direito a perceber o “prémio de conhecimento de línguas”, consignado nos mesmos CCT’s, depende da alegação e prova, pelo trabalhador, da utilização, no exercício das respectivas funções, de conhecimentos de idiomas estrangeiros.
XI – O reconhecimento do direito a perceber “abonos para falhas”, previsto para os trabalhadores com a categoria de recepcionista, naqueles CCT’s, pressupõe a alegação e prova, pelo trabalhador, do exercício de funções de caixa.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1. AA demandou, em acção com processo comum emergente de contrato individual de trabalho, proposta em 26 de Setembro de 2005 no Tribunal do Trabalho da Maia, “Residencial Aeroporto, Lda.”, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de € 26.027,09 – respeitante a indemnização por rescisão do contrato com justa causa (€ 3.880,56), indemnização por danos não patrimoniais (€ 5.000,00), diferenças salariais (€ 3.099,94), subsídio de alimentação (€ 2.392,91), subsídio de alimentação em períodos de férias (€ 433,01), “prémio de línguas” (€ 2.163,67), abono para falhas (€ 1.496,86), retribuição do mês de Setembro de 2004, férias não gozadas, proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal relativos ao trabalho prestado em 2004 (€ 1.565,95) e remuneração de trabalho suplementar (€ 5.990,19) –, acrescida dos juros vencidos e vincendos à taxa legal, desde a data da cessação do contrato até à efectivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que:

– Foi admitida ao serviço da Ré em 13 de Novembro de 1998, para, sob as suas ordens, direcção, fiscalização e no seu interesse, exercer as funções de empregada de rouparia, tendo, à data da cessação do seu contrato de trabalho, a categoria de recepcionista de 2.ª;
– O contrato de trabalho que vigorava entre as partes foi por ela rescindido, em 30 de Setembro de 2004, com fundamento em justa causa, consubstanciada em ofensas à integridade física, à honra e dignidade praticadas pelo sócio-gerente da Ré, em virtude das quais sofreu danos não patrimoniais.
– Auferia, à data da rescisão, a retribuição base mensal de € 399,54, quando a estabelecida no Contrato Colectivo de Trabalho aplicável era de € 444,00, e a Ré não lhe pagou as importâncias a que tinha direito, nos termos do mesmo instrumento de regulamentação, referentes a subsídio de alimentação, “prémio de línguas”, abono para falhas, nem lhe pagou as quantias correspondentes à retribuição do mês de Setembro de 2004, a férias não gozadas, proporcionais de férias, subsidio de férias e subsídio de Natal relativos ao trabalho prestado em 2004, e a trabalho suplementar.

Na contestação, a Ré pediu a absolvição da instância, alegando correr processo-crime contra o seu sócio-gerente, relativamente aos factos invocados como justa causa para a rescisão e, em todo o caso, impugnou a versão desses factos constante da petição inicial, bem como a idoneidade dos documentos juntos com esse articulado para provar os créditos reclamados.

Houve resposta da Autora, à qual se seguiu requerimento da Ré para pedir que fosse considerada nula na parte em que excedeu a matéria de excepção.

Em audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, tendo sido elaborada a condensação, com a especificação dos factos assentes e a organização da base instrutória, sem reclamações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, e decidida, sem reclamações, a matéria de facto, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos.

2. Tal decisão foi impugnada pela Autora que, em recurso de apelação, com vista a sustentar a revogação da mesma, pugnou pela alteração da matéria de facto, defendendo, outrossim, que, independentemente de vir a proceder a pretendida alteração da matéria de facto, sempre ela teria direito, com base nos factos provados, aos créditos que reclamara, a título de “diferenças salariais, subsídio de alimentação, prémio de línguas, abono para falhas, retribuição do mês de Setembro e proporcionais relativos ao trabalho prestado em 2004”, terminando a alegação a pugnar no sentido de “a acção ser julgada provada e procedente, condenando-se a recorrida no pedido”.

O Tribunal da Relação do Porto rejeitou o recurso sobre a matéria de facto e confirmou a sentença.

Ainda irresignada, a Autora interpôs o presente recurso de revista, que veio a motivar mediante peça alegatória onde formulou as seguintes conclusões:

1.ª Independentemente da alteração ou não da matéria de facto, a Recorrente teria direito aos créditos peticionados, tais como diferenças salariais, subsídio de alimentação, prémio de línguas, abono para falhas, retribuição do mês de Setembro e os proporcionais relativos ao trabalho prestado em 2004.

2.ª Resulta do presente processo (factos assentes, depoimentos e documentos) o seguinte:

- data de admissão da Recorrente 13/11/98 e data da cessação efectiva da prestação de trabalho e do contrato de trabalho - 1/10/04;

- a sua categoria era a de recepcionista de 2.ª, falava línguas e fazia a "caixa" diariamente no fim do seu turno;

- a sua remuneração ilíquida era de Euros 399,54, nada mais constando dos recibos de vencimento além desta;

- a Recorrente era sindicalizada;

- à sua actividade aplica-se o Contrato Colectivo de Trabalho identificado pelo Sindicato, numa declaração junta aos autos em 8/03/2006, que não foi objecto de qualquer impugnação;

- desse CCT resulta que a Recorrente, tinha direito às alterações salariais, ao subsidio de alimentação, ao prémio de línguas e ao abono para falhas,

- decorre do art. 249.º do CT que a Recorrente tem direito à retribuição correspondente aos dias que trabalhou;

- e dos arts. 211.º, 221.º, 254.º e 255.º que tem direito aos proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal.

3.ª Estes são os factos constitutivos do seu direito, que a Recorrida “impugnou” não alegando que pagou ou que não pagou, mas alegando apenas que tais créditos estão dependentes da existência ou não de justa causa.

4.ª Argumento este que carece de fundamentação legal.

5.ª Os factos levados à base instrutória são factos negativos – pontos 6 a 9, 11 a 13, são factos negativos cujo ónus da prova incumbiria à Recorrida, nos termos do disposto nos arts. 342.º e segs do CCivil.

6.ª Ou seja, por serem factos negativos de prova muito difícil para a Recorrente, incumbiria à Recorrida provar que a Recorrente não teria direito a tais quantias ou, então que já pagou tais quantias.

7.ª Prova essa que a Recorrida não logrou fazer.

8.ª A sentença recorrida viola assim o disposto no CCT, aplicável in casu, bem como os arts. 249.º, 211.º, 221.º, 254.º e 255.º do CT e ainda, art. 342.º e segs. do C.Civil, pelo que é nula.

9.ª O douto Acórdão Recorrido viola igualmente Lei de processo, pelo que é o mesmo admissível nos termos do disposto, nos arts. 722.º, n.º 1 e 754.º, n.º 2 do C.P.C..

10.ª A decisão recorrida rejeitou o recurso da matéria de facto, por entender que o que a Recorrente pretendia, seria um segundo julgamento a realizar pela 2.ª instância, duplo julgamento que a Lei não consagra.

11.ª Tudo isto com base nos argumentos aduzidos no Acórdão, nas páginas 6 a 8 que por uma questão de economia processual, aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

12.ª Tais argumentos não podem colher, porquanto resulta do Acórdão que o Tribunal da Relação não reapreciou a prova gravada, nem a prova documental.

13.ª Não examinando os meios de prova, também não fundamentou devidamente, em nosso modesto entender, a sua decisão de rejeitar o recurso da matéria de facto.

14.ª Os argumentos expostos pelos Exmos. Desembargadores estão em clara contradição, com o Acórdão proferido por este mesmo Tribunal, em 21-06-2007, no processo n.º 06S3540, publicado in site www.dgsi.pt.

15.ª A decisão recorrida violou assim o disposto no art. 712.º do C.P.C., bem como o dever de fundamentação consignado nos arts. 205.º, n.º 1 da C.R.P. e 158.º do C.P.C., pelo que é nula.

TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE A DECISÃO DE 2.ª INSTÂNCIA SER REVISTA, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, COM O QUE SE FARÁ, ALIÁS COMO SEMPRE, INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

A recorrida não contra-alegou e, neste Supremo Tribunal, o Exmo. Magistrado do Ministério Público exarou parecer, que não foi objecto de qualquer resposta, no sentido de ser negada a revista.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


II

1. Vêm suscitadas nas conclusões do recurso as seguintes questões, que se enumeram por ordem de precedência lógica:
1.ª Saber se acórdão impugnado é nulo, por violação dos artigos 712.º do CPC e do dever de fundamentação consignado nos artigos 205.º da Constituição da República Portuguesa;
2.ª Saber se, independentemente da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, a Autora tem direito aos créditos peticionados a título de diferenças salariais, subsídios de alimentação, “prémio de línguas”, abonos para falhas, retribuição do mês de Setembro de 2004, e “proporcionais” de retribuição de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal relativos ao ano de 2004.
2. Da nulidade do acórdão:

Dispõe o artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), que “[a] arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”.

Tal exigência, justificada por razões de celeridade e economia processual, que, marcadamente, inspiram o processo laboral, visa possibilitar ao tribunal recorrido a rápida e clara detecção das nulidades arguidas e respectivo suprimento, daí que a explanação das razões pelas quais se suscita a nulidade haja de constar do requerimento de interposição de recurso, dirigido à instância recorrida.

As razões que justificam o regime especial de arguição das nulidades da sentença estabelecido na lei adjectiva laboral permanecem válidas quando se trate da imputação de nulidades ao acórdão da Relação.

Por isso, de há muito, este Supremo, no entendimento de que a remissão constante do artigo 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) – ao mandar aplicar aos acórdãos da 2.ª instância o que se acha disposto nos artigos 666.º a 670.º, e, pois, o regime de arguição de nulidades da sentença da 1.ª instância – contempla, tratando-se de processo laboral, o regime especial consignado no artigo 77.º, n.º 1, do CPT, do que decorre que a arguição das nulidades do acórdão da Relação deve ser feita, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, sob pena de se considerar extemporânea e não se conhecer das nulidades arguidas somente na alegação de recurso (1).

A recorrente, no requerimento de interposição da revista, apresentado em 30 de Maio de 2007 (fls. 418 dos autos), não fez qualquer referência à nulidade do acórdão.

Tal referência apenas veio a ser feita na peça apresentada para motivar o recurso, em 25 de Julho de 2007 (fls. 428 e segs.), na qual conclui que a decisão recorrida, ao rejeitar o recurso em matéria de facto, não examinando os meios de prova, infringiu o disposto no artigo 712.º do CPC, e, porque não fundamentou devidamente tal rejeição, violou o dever imposto pelos artigos 205.º da Constituição da República Portuguesa e 151.º do CPC, pelo que é nulo.

Este modo de proceder não respeita a exigência contida no n.º 1 do artigo 77.º do CPT, uma vez que a arguição da nulidade do acórdão da Relação, omitida no requerimento de interposição do recurso, e feita só no momento da apresentação da alegação da revista, não cumpre a finalidade prosseguida por aquele preceito que é a de permitir que o tribunal recorrido, no momento em que se debruça sobre o requerimento de interposição, designadamente para apreciar da admissibilidade do recurso, facilmente se aperceba de quais os vícios apontados à decisão impugnada e respectivos fundamentos, de modo a que, rapidamente, deles tome conhecimento, procedendo, se for caso disso, à sanação, do que poderá resultar a desnecessidade de subsistir o recurso – por exemplo, se o suprimento da nulidade conduzir a uma solução favorável à parte recorrente, no tocante ao mérito da causa.

A arguição da nulidade mostra-se, por conseguinte, no caso que nos ocupa, intempestiva, do que decorre não poder conhecer-se da pretensa nulidade.

Tal não impede que sejam apreciados os fundamentos e questões objecto do recurso que, embora invocados pelo recorrente como determinantes de nulidade do acórdão, possam configurar, pela forma como foram explanados no texto da alegação, erros de interpretação e aplicação da lei substantiva e/ou adjectiva.

É dizer que, face à intempestividade da arguição, não é permitido ao Supremo Tribunal conhecer do vício de falta de fundamentação, vício típico da sentença [artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação, por força do disposto no artigo 716.º, n.º 1, do mesmo diploma], invocado na alegação da revista.

Diversamente, a violação do disposto no artigo 712.º do CPC, nos termos em que a recorrente a invoca, não configura qualquer dos vícios típicos da sentença, mas erro de interpretação e aplicação de lei processual de que resultou a rejeição do recurso em matéria de facto, sendo que tal questão, por não estar contemplada no citado artigo 77.º do CPT, não está sujeita à limitação consignada neste preceito, do que decorre que pode ser conhecida pelo Supremo, quando suscitada na alegação da revista, conforme dispõe o artigo 722.º, n.º 1, do CPC, o que, adiante, se fará.

3. Os factos materiais da causa foram, na 1.ª instância, fixados nos seguintes termos:

1. A R., sociedade comercial por quotas, regularmente constituída, tem como objecto a exploração de uma residencial sita na morada da sua sede acima identificada. [al. A) da matéria de facto assente].

2. No exercício dessa actividade, admitiu ao seu serviço a A. em 13 de Novembro de 1998. [al. B) da matéria de facto assente].

3. Para, sob as suas ordens, direcção, fiscalização e no seu interesse, exercer as funções de empregada de rouparia. [al. C) da matéria de facto assente].

4. A A. tinha à data da cessação do seu contrato de trabalho a categoria de recepcionista de 2ª, auferia a remuneração mensal ilíquida de Euros 399,54. [al. D) da matéria de facto assente].

5. O seu local de trabalho era na sede da Ré, o seu horário de trabalho era das 8h às 16h. [al. E) da matéria de facto assente].

6. Por carta registada datada de 30 de Setembro de 2004 a A. rescindiu o contrato de trabalho celebrado com a R., invocando justa causa, pelos motivos constantes da mesma, que expressamente aqui se dão por reproduzidos. [al. F) da matéria de facto assente].

7. A rescisão do contrato de trabalho produziu os seus efeitos em 01 de Outubro de 2004. [al. G) da matéria de facto assente].

8. A Autora no dia 23/09/2004 foi assistida no serviço de urgência do Hospital de S. João, no Porto, sendo-lhe diagnosticada uma crise de ansiedade, frequentando depois disso consulta de psiquiatria no mesmo Hospital. (item 1.º da base instrutória).

9. Foi-lhe então dada “baixa médica”, por se encontrar incapacitada para o trabalho. (item 2.º da base instrutória).

10. A Autora foi surpreendida pela entidade patronal na pessoa do Sr. BB junto do aparelho de fax do estabelecimento hoteleiro a recepcionar um fax enviado por um fornecedor da Ré – Clube Viajar, Viagens e Turismo, Lda.. (item 15.º da base instrutória).

11. O fax em causa vinha dirigido ao cuidado da Autora e reportava-se a um extracto da conta corrente do ano de 2002, relativo à actividade comercial entre as duas empresas. (item 16.º da base instrutória).

12. O sócio-gerente Sr. BB, na presença de testemunhas interpelou a Autora no sentido de obter uma explicação sobre o sucedido, fazendo-o de modo pacífico, embora determinado a levar tal ocorrência até as últimas consequências. (item 17.º da base instrutória).

13. Resultante dessa interpelação e de informações prestadas por terceiros, apurou-se que desde o dia 21 desse mês, terem informações semelhantes sido solicitadas pela trabalhadora a outros fornecedores. (item 18.º da base instrutória).

14. Tal(is) fax(es) foram sendo sucessivamente enviados ao cuidado da Autora, sem que tal actuação tivesse sido previamente instruída pela gerência ou por responsáveis da entidade patronal. (item 19.º da base instrutória).

4. No recurso de apelação, a Autora impetrou a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, no respeitante às respostas aos quesitos 1.º (parte), 3.º a 14.º, da base instrutória, que obtiveram resposta de “não provado”, e 15.º a 19.º, a que o tribunal respondeu “provado” (conclusões 17.ª a 25.ª).

Sustentou essa pretensão, nos seguintes termos:

[...]


Matéria de Facto

A) A Meritíssima Juiz “a quo” dá como não provados os factos constantes dos quesitos 1.º (em parte), 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º, que por uma questão de economia processual aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

Porém a prova produzida em audiência de julgamento e os documentos juntos aos autos impunham decisão diversa. Senão vejamos:

Quesito 1 – Foi dado como provado que a Autora no dia 23/09/2004 foi assistida no serviço de urgência do Hospital de S. João, no Porto, sendo-lhe diagnosticada uma crise de ansiedade, frequentando depois disso a consulta de Psiquiatria no mesmo Hospital. Entendeu a Meritíssima Juiz que não ficou provado, que “devido aos factos acontecidos em 23 de Setembro, a Autora ficou muito abalada”.

Dos documentos clínicos resulta que quando chegou ao Hospital estava com uma crise de ansiedade, dos documentos e do depoimento da filha DD (gravado na 2.ª cassete, lado B, desde o 712 ao 959) resulta que se deslocaram da residencial directamente para o Hospital, de onde saíram cerca das 4 da manhã, é assim inquestionável que foi por causa dos factos acontecidos nesse dia que a Autora teve que recorrer ao serviço de urgência e, se estava com uma crise de ansiedade tinha forçosamente que estar muito abalada. Caso contrário ter-lhe-iam dado alta muito mais cedo e, não teria necessidade de frequentar a consulta de psiquiatria, como o fez desde então.

A testemunha CC (1.[ª] cassete, lado A, do início ao fim) afirmou inclusive que a Autora ficou afectada, [e] as consultas de psiquiatria foram devidas aos factos acontecidos nesse dia.

A testemunha EE (2.ª cassete, lado B, do início até ao fim) afirmou que a Autora foi para o Hospital porque se estava a sentir mal, porque tinha uma dor no peito, e que ficou a ser assistida em Psiquiatria.

O quesito em causa deveria ter sido dado como provado na sua totalidade, tendo em conta o atrás exposto.

Quesito[s] 3.º, 4.º, e 5.º – Todos os factos aqui vertidos foram dados como não provados.

O depoimento das testemunhas arroladas pela Autora impunham decisão diferente, impunham que tais factos fossem dados como provados:

1 - CC (1.[ª] cassete, lado A, do início ao fim) afirmou que a Autora se empenhava bastante na residencial; que a Autora estava arrasada; não tinha outros meios de rendimento; e que ainda não havia ultrapassado isto.

2 - EE (2.ª cassete, lado B, do início até ao fim) afirmou que a Autora estava mesmo realmente doente, desde que aconteceu o que aconteceu ela ficou muito mal; o salário que ali auferia era uma fonte de rendimento essencial para o sustento dela e da filha menor, “porque não tem ninguém que lhe dê”; continua desempregada; e ainda hoje está afectada com toda esta situação; ela era muito dedicada, até de mais, para quem não merecia...

Quesitos 6 a 14 – foram dados também como não provados, quando deveriam ter sido dados como provados, tendo em conta não só os depoimentos das duas testemunhas acima devidamente identificadas FF e GG, como os recibos de vencimento juntos aos autos, a declaração emitida pelo Sindicato junta aos autos em 8 de Março de 2006, pois todos estes documentos não foram objecto de qualquer impugnação.

Bem como o depoimento das testemunhas arroladas pela Ré EE (2.ª cassete, lado B, do 960 até ao fim), e GG (2.ª cassete, lado A, do início ao 1223).

B) A Meritíssima Juiz deu ainda como provados os factos constantes dos quesitos 15.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º, que aqui igualmente se dão por reproduzidos.

A esta matéria foram indicadas para responder as seguintes testemunhas todas já acima identificadas, por referência ao que consta das actas de julgamento: FF, DD (só ao 17.º), a EE (com a ressalva supra descrita) e a GG. De acordo com a fundamentação constante das respostas à base instrutória, só as testemunhas da Ré mereceram credibilidade para a Meritíssima Juiz.

Então analisemos tais depoimentos no que a estes quesitos diz respeito:

1 - a EE não estava presente à data da prática dos factos, conforme declarou estava de férias, portanto, não sabe nada do que aconteceu no dia e hora aqui em causa. O seu depoimento não pode servir de fundamento para a resposta dada aos quesitos 15.º, 16.º e 17.º. Quanto ao quesito 18.º nada lhe foi questionado, portanto aplica-se o mesmo. Quanto ao quesito 19.º apenas disse a instâncias do Ilustre mandatário da Ré, que à sua frente o Sr. BB nunca pediu nada à D. AA, quanto a contas-correntes. Afirmou ainda durante o seu depoimento que a Autora merecia a confiança do Sr. BB – gerente da Ré!!!

Porém, ter-se-á esquecido a Meritíssima Juiz de valorar aqui o documento junto a fls. 135, em que o outro sócio-gerente solicitou à D. AA que lhe prestasse todas as informações sobre a sociedade, documento esse que não foi impugnado pela parte contrária.

2 - a GG começou por referir que presenciou os acontecimentos para posteriormente, afirmar que apenas ouviu.

Atentemos em alguns dos factos que relata a instâncias do mandatário da Ré: “sim presenciei”; vi o S. BB entrou e dirigiu-se à recepção onde estava a AA, a partir daí não sei mais nada; não os viu a discutir? Não. Eles normalmente conversam; Viu faxes? Não. Não assisti a mais nada. A discussão foi de tarde, não sei a que horas. ...A DD estava presente, andava comigo nos quartos.

A instâncias da mandatária da Autora: eu não fiquei na recepção, porque eu estava nos quartos; eu não vi eu ouvi; ouvia falar alto, quando estava na recepção; quando o Sr. BB entrou eu estava nos quartos, vim para baixo porque ouvi a discussão; o Sr. BB queria saber o que se passava; a D. AA disse-lhe que estava a fazer coisas para a casa; a AA chamou-me disse-me anda para baixo que vem aí o patrão e quer falar; a DD andava comigo nos quartos. A DDdiz que a Sra. impediu o Sr. BB de dar com uma cadeira na D. AA? Mas é que eu não vi cadeira nenhuma. A DD está a mentir? Não sei. Não sabe se ela está a mentir? Eu não sei, Sr. Dra......

Foi a Sra. que apanhou os vidros que ficaram na recepção? Não foi a outra Colega, a Li..a. (...)

É este o depoimento seguro, detalhado, sereno, isento, convicto e concordante com o anterior que pode servir de fundamentação para as respostas dadas a esses quesitos? Na nossa humilde opinião, qualquer pessoa minimamente atenta diria que não!!!

Além disso, resulta dos vários depoimentos que a DD estava presente e contrariamente ao que se pode ler, quanto à fundamentação das respostas aos quesitos, ela depôs de forma verdadeira, sem que as respostas lhe tivessem sido induzidas ou sequer sugestionadas!!!

Por tudo isto, os quesitos 15.º a 19.º deveriam ter sido dados como não provados.

[...]

Perante o assim alegado, o Tribunal da Relação, para concluir pela rejeição do recurso, discorreu como segue:

[...]

Da alteração da matéria de facto

A autora impugna a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, considerando incorrectamente julgada toda a matéria da base instrutória, com excepção do quesito 20.º - Não provado - que versa sobre o montante da retribuição já assente na alínea D) da Matéria Assente.

Dito de outro modo: a recorrente pretende que o Tribunal de recurso proceda à reapreciação de toda a factualidade vertida na base instrutória.

A audiência de discussão e julgamento foi gravada, como resulta da respectiva Acta de Julgamento (cfr. fls. 223-226).

Conforme dispõe o artigo 690.°-A, n.º 1, do CPC, “Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

E o n.º 2 acrescenta: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º- C”.

O artigo 690.º-A, do CPC, foi aditado pelo artigo 2.º, do DL n.º 39/95, de 15.02, diploma que introduziu o registo das audiências finais e da prova no direito processual civil.

Ora, no preâmbulo deste diploma pode ler-se:

A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.

A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

Essa delimitação do objecto do recurso, que o próprio legislador consagra, significa que o recurso sobre a matéria de facto não deve constituir um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecie toda a matéria de facto controvertida ou toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não tivesse existido.

Como é referido no acórdão do Tribunal Constitucional, de 2006.01.18, "o recurso em matéria de facto decidido pelo Tribunal da Relação implica uma reapreciação da matéria de facto, dentro dos limites inerentes a um recurso, no qual têm aplicação os princípios da imediação e da oralidade.

Afigura-se evidente que o «julgamento» a efectuar em 2.ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso (nomeadamente, só são apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente).

Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa a matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1.ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de «duplo julgamento».

A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução”. (cfr. Acórdão n.º 59/2006, DR, II.ª Série, n.º 74. de 2006.04.13).

Ora, na prática, o que a recorrente pretende, ao impugnar toda a matéria de facto vertida na base instrutória, é um segundo julgamento a realizar pela 2.ª instância, duplo julgamento esse que a lei não consagra (cfr. artigos 690.º-A e 712.º, ambos do CPC), razão pela qual o recurso deve ser rejeitado, nesta parte.

E rejeitado o recurso sobre a matéria de facto, é de manter, nos seus precisos termos, a factualidade dada como provado na 1.ª instância e transcrita no § II.

[...]

Revela o trecho que vem de transcrever-se do acórdão impugnado que, na perspectiva da Relação, o facto de a recorrente ter impugnado todas (ou quase todas) as respostas à base instrutória, significa, na prática, que pretendeu um novo julgamento a realizar pela 2.ª instância, duplo julgamento esse que a lei não consente.

É certo que a lei não consente um “novo julgamento”, no sentido de que a reapreciação da matéria de facto com base nas provas gravadas, a efectuar pela Relação, não pode ser a repetição do julgamento, não sendo permitido, em sede de recurso, julgar ex novo a matéria de facto, ou seja, proferir nessa fase as respostas aos quesitos.

O “novo julgamento” que a lei não permite é aquele que, atendo-se, exclusivamente às provas disponíveis, ou seja, sem ter como ponto de partida a decisão proferida sobre a matéria de facto e respectiva motivação e desprezando o valor da imediação e da oralidade inerentes ao julgamento da 1.ª instância, conduz a uma nova decisão, como se fosse a primeira, alheada do exercício de análise crítica da anterior.

É, também, certo que o legislador, no preâmbulo do diploma que veio ampliar o âmbito do recurso em matéria de facto (Decreto-Lei n.º 39/95, de 25 de Fevereiro), afirma que “[a] garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.

Este trecho deve ser interpretado em conjugação com o que, logo a seguir, se pode ler no mesmo preâmbulo: “[n]ão poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido” e “[a] consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

O ónus específico imposto ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, consiste, apenas, nos termos do artigo 690.º-A, n.os 1, alíneas a) e b) e 2, do CPC, em indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada – neste caso, mencionando os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta de audiência – que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

Ora, interpretando as afirmações constantes do referido preâmbulo, tendo presente o comando consignado no preceito a que se reportam, não se afigura que fosse intenção do legislador sancionar com a rejeição do recurso a atitude do recorrente que, cumprindo integralmente as exigências contidas no referido artigo, impugna, ponto por ponto, toda a decisão da matéria de facto.

O que a lei não permite é que o recorrente impugne “de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido”, daí a estatuição das aludidas exigências como ónus de alegação.

A entender-se – como parece que entendeu o acórdão revidendo – que nunca a decisão da matéria de facto pode, na sua totalidade, ser objecto de impugnação, mesmo que esta se revele, em termos formais, devidamente fundamentada em relação a cada ponto concreto de facto, frustrada seria a garantia do duplo grau de jurisdição, pois não é de excluir, em absoluto, eventuais erros na apreciação das provas atinentes a todos os factos controvertidos – ao contrário do que parece sugerir, numa leitura descontextualizada, o passo do supra referido preâmbulo onde se afirma que a reapreciação das provas visa “apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento”.

É que a excepcionalidade ali referida, no contexto em que surge afirmada, não se reporta – nem se vê como poderia reportar-se – a todos e cada um dos processos concretos, tratando-se de uma generalização inferida do que sucede na normalidade dos casos submetidos aos tribunais para justificar a imposição das referidas exigências quanto ao ónus de alegação.

Pense-se, por exemplo, na hipótese de, em determinado litígio, serem apenas dois ou três os factos controvertidos, sobre os quais apenas foi produzida prova por duas ou três testemunhas, e o recorrente considera que toda essa prova foi incorrectamente apreciada e pretende, motivadamente, que em relação a tais factos seja modificada a decisão.

Naquele entendimento, se o recorrente viesse a impugnar, especificando como prescreve o aludido preceito os fundamentos da sua discordância, ponto por ponto, a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recurso teria de ser rejeitado, pois tratar-se-ia de um “novo julgamento”, por ter sido impugnada toda a matéria de facto.

Não pode, com todo o respeito por opinião diferente, aceitar-se esta perspectiva.

Na verdade, em tal caso, o que é proposto ao tribunal de segunda instância não é que proceda a um “novo julgamento” – desprezando o juízo formulado na primeira instância sobre as provas produzidas e a expressão do processo lógico que conduziu à pronúncia sobre a demonstração (ou não) dos factos ajuizados –, mas, tão só, que, no uso dos poderes próprios de tribunal de recurso, averigúe – examinando a decisão da primeira instância e respectivos fundamentos, analisando as provas gravadas e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, sem deixar de ter presentes as limitações inerentes à ausência da imediação e da oralidade no tribunal de recurso – se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido se apresenta com o mínimo de razoabilidade, face às provas produzidas.

No caso que nos ocupa, a recorrente, como se vê do excerto da alegação supra transcrito, não se limitou a impugnar de forma global e genérica, nem a simplesmente pedir a reapreciação de toda a prova produzida, nem, ainda, a manifestar, em termos vagos e genéricos, a sua discordância com o decidido.

Com efeito, relativamente à matéria constante dos quesitos 1) a 5) e 15) a 19), individualizou, em relação a cada facto (ou grupo de factos conexionados com cada uma das questões submetidas a juízo), os depoimentos que, na sua óptica, haveriam de conduzir a decisão diferente, com a menção dos suportes de registo fonomagnético e, quando necessário, das rotações, em que se encontravam gravados, dando-se até ao cuidado de transcrever passagens de alguns dos depoimentos, e aduziu argumentos, baseados na análise que fez das provas, para sustentar o alegado erro de apreciação assacado ao tribunal da primeira instância, deste modo cumprindo o ónus imposto pelo artigo 690.º-A supra citado.

Não havia, pois, fundamento para rejeitar o recurso e não proceder à reapreciação das provas, quanto à referida matéria, daí que, neste particular, haja de concluir-se que a Relação, não interpretando correctamente os n.os 1 e 2 do artigo 690.º-A, incumpriu o disposto no seu n.º 5 e no n.º 1 do artigo 712.º do CPC, daí que não pode subsistir, nessa parte, a decisão do acórdão ora sob censura.

Procede, no que concerne, a alegação da recorrente.

Já quanto à matéria constante dos quesitos 6) a 14), a impugnação mostra-se feita de forma global e genérica, não se descortinando, no texto da alegação, os motivos concretos por que a Autora entende que deveriam ter merecido respostas diferentes, por isso que, nesta parte, havia fundamento para rejeitar o recurso.

Face à procedência parcial da alegação da recorrente, importa averiguar que consequências daí advêm relativamente à pretensão de ordem substantiva formulada na revista.

5. Dispõe o n.º 3 do artigo 729.º do CPC que “[o] processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito [...].

Como se observou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Janeiro de 2003(2), a ampliação da matéria de facto ali prevista passa não só pela averiguação de factos que, tendo sido alegados, não foram apurados, mas também pela reapreciação de factos que, também alegados, terão sido deficientemente aquilatados, designadamente porque a Relação, indevidamente, não cuidou de proceder à reapreciação das provas gravadas, posto que o objectivo da ordem de ampliação da matéria de facto é o de fazer averiguar factos de que o tribunal pode tomar conhecimento e que não foram apurados ou que o foram deficientemente (3).

A necessidade da ampliação da matéria de facto pressupõe que os factos objecto da impugnação se mostrem relevantes para a decisão de direito, isto é, que, sem a reapreciação das provas e consequente pronúncia sobre a matéria de facto impugnada, não seja possível, correctamente, decidir a causa.

O juízo sobre a necessidade da ampliação implica a valoração jurídica, prévia, dos factos disponíveis, fixados pelas instâncias, sendo que, só após a apreciação global, à luz do regime jurídico aplicável, de todo o material de facto disponível poderá afirmar-se a indispensabilidade da ampliação.

É, pois, mister, apurar se a alteração da matéria de facto, pretendida pela Autora, no recurso de apelação, tem virtualidade para influenciar a decisão quanto às pretensões formuladas na acção.

6. Como acima se deixou relatado, a Autora formulou pedidos respeitantes a indemnização por rescisão do contrato com justa causa, indemnização por danos não patrimoniais, diferenças salariais, subsídio de alimentação, subsídio de alimentação em períodos de férias, “prémio de línguas”, abono para falhas, retribuição do mês de Setembro de 2004, férias não gozadas, proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal relativos ao trabalho prestado em 2004.

No recurso de apelação, visando a revogação da sentença que absolvera a Ré “de todos os pedidos”, a Autora, primacialmente, impugnou a decisão da matéria de facto, de cuja procedência fez decorrer a pretensão de ver julgada “procedente a acção, condenando-se a recorrida no pedido” e, no mesmo recurso, sustentou que, independentemente de vir a proceder a pretendida alteração da matéria de facto, sempre ela teria direito, com base nos factos provados, aos créditos que reclamara, a título de “diferenças salariais, subsídio de alimentação, prémio de línguas, abono para falhas, retribuição do mês de Setembro e proporcionais relativos ao trabalho prestado em 2004”.

Na alegação do recurso de revista, a recorrente começa por afirmar que “não pode conformar-se com o Acórdão de fls..., por entender que o mesmo viola Lei Substantiva, no que diz respeito à manutenção da decisão da 1.ª instância quanto às diferenças salariais, subsídio de alimentação, prémio de línguas, abono para falhas, trabalho extraordinário, retribuição do mês de Setembro de 2004, férias não gozadas, proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal relativos ao trabalho prestado em 2004”.

No entanto, como já se viu, imputou à Relação a violação do disposto no artigo 712.º do CPC, em termos de ver revogado o acórdão, na parte em aquele tribunal superior recusou a reapreciação das provas gravadas.

De tudo concluiu que “deve a decisão da 2.ª instância ser revista, com as demais consequências legais”.

Os termos amplos em que se apresenta formulada a pretensão no recurso de revista levam-nos a aceitar que a Autora, ao afirmar o seu inconformismo face à rejeição de recurso em matéria de facto, pretende que os efeitos da procedência do que a tal respeito alegou se projectem na apreciação de todos os pedidos formulados na petição inicial e reiterados no recurso de apelação.

Há, portanto, que prosseguir, em ordem a determinar se os factos que a Autora pretendia ver declarados provados, uns, e não provados, outros, assumem relevância para a procedência dos atinentes pedidos.

7. Comecemos pelos factos alegados na petição inicial para alicerçar o pedido de indemnização correspondente à justa causa da rescisão do contrato.

O regime jurídico atendível é o que consta do Código do Trabalho, uma vez que a cessação do contrato e os factos que lhe serviram de esteio ocorreram posteriormente à entrada em vigor de tal diploma (artigos 3.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto – adiante, Lei Preambular –, que aprovou aquele Código).

A lei possibilita a desvinculação contratual por declaração unilateral do trabalhador, sem necessidade de observar o período de aviso prévio previsto no artigo 447.º, n.º 1, do Código do Trabalho, em situações que considera serem anormais e particularmente graves, designadamente as elencadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 441.º, em que deixa de ser exigível ao trabalhador que permaneça ligado à empresa por mais tempo, isto é, pelo período fixado para o aviso prévio.

De acordo com a alínea f) do n.º 2 do citado artigo 441.º, constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, as “[o]fensas à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, puníveis por lei, praticados pelo empregador ou seu representante legítimo”.

A declaração de resolução deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos trinta dias subsequentes ao conhecimento desses factos (artigo 442.º, n.º 1), havendo lugar a uma indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, se a mesma se fundar nos factos previstos no n.º 2 do artigo 441.º, indemnização essa a fixar entre quinze e quarenta e cinco dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade ou fracção, neste último caso calculada proporcionalmente (artigo 443.º, n.os 1 e 2).

Para que exista justa causa, que, nos termos expressos do artigo 441.º, condiciona o direito do trabalhador a rescindir o contrato, é ainda necessário que aquelas faltas culposas do empregador se revelem de tal modo graves que tornem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho que o contrato pressupõe.

O n.º 4 do mesmo artigo 441.º dispõe que a justa causa de resolução imediata por parte do trabalhador, tem de ser apreciada pelo tribunal nos termos do n.º 2 do artigo 396.º do mesmo diploma, com as necessárias adaptações, ou seja, deve o tribunal atender ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes e verificar se é de concluir pela impossibilidade imediata e prática da subsistência da relação de trabalho.

Deste modo, o trabalhador só pode resolver o contrato de trabalho com justa causa subjectiva se o comportamento do empregador for ilícito, culposo e tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, em razão da sua gravidade e consequências (4).

Lança-se, assim, mão do conceito de justa causa consagrado pelo artigo 396.º, n.º 1, do Código do Trabalho – como já antes sucedia relativamente ao artigo 9.º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo (LCCT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 69-A/89, de 27 de Fevereiro, e era, também, entendimento generalizado na vigência do Decreto-Lei n.º 372-A/75, de 16 de Junho (Lei dos Despedimentos) –, considerando-se que, embora a lei não o explicitasse, se achava subjacente ao conceito geral de justa causa, a ideia de “inexigibilidade” que enforma igualmente a noção de justa causa disciplinar consagrada na lei no domínio da faculdade de ruptura unilateral da entidade patronal (5).

No caso que nos ocupa, a Autora, no articulado inicial, invocou que “[p]or carta registada datada de 30 de Setembro de 2004 [...] rescindiu o contrato de trabalho celebrado com a R., invocando justa causa, pelos motivos constantes da mesma, que expressamente aqui se dão por reproduzidos (Docs. 3 a 5)” – artigo 6.º da petição.

Na referida carta dirigida à Gerência da Ré, que constitui o documento n.º 3, junto a fls. 13 e 14 dos autos, a Autora invocou para motivar a rescisão do contrato com justa causa, que:

– No dia 23 de Setembro, pelas 15.30 horas, após uma breve troca de palavras sobre assuntos laborais, com o Sr. BB, sócio--gerente da Ré, este dirigiu-se à signatária arremessou-lhe uma cadeira, diversos cinzeiros em vidro e um copo, com intenção de a atingir, gritando e ameaçando-a, dizendo: “Eu mato-a. Mato-a. Se não for aqui é lá fora”;
– Todos estes factos se passaram perante diversas pessoas, inclusive a filha da Autora, e determinaram tratamento médico e dias de baixa médica.
– E tornaram impossível a manutenção do vínculo laboral.

Na contestação, a Ré impugnou os factos descritos na carta e dados como reproduzidos na petição inicial.

Em sede de condensação (fls. 152 e segs.), consignou-se na alínea F) da matéria de facto assente:

[...]

Por carta registada datada de 30 de Setembro de 2004 a A. rescindiu o contrato de trabalho celebrado com a R., invocando justa causa, pelos motivos constantes da mesma, que expressamente aqui se dão por reproduzidos.

[...]

E na base instrutória, contemplando matéria alegada para fundar o pedido de indemnização por danos não patrimoniais (artigos 10.º e 11.º da petição), formularam-se as seguintes perguntas:


1)

Devido aos factos acontecidos em 23 de Setembro, a A. ficou muito abalada, tendo mesmo de ser assistida no serviço de urgência do Hospital de S. João, no Porto, passando desde então a frequentar a consulta de psiquiatria?

2)

Foi-lhe então dada “baixa médica”, por se encontrar incapacitada para o trabalho?

[...]

Nenhuma outra referência, ainda que indirecta (ou implícita), se contém na condensação aos factos invocados na carta de rescisão, que, sendo controvertidos, e relevantes para o apuramento da justa causa, haveriam de ser demonstrados, o que implicava que fossem levados à base instrutória e submetidos ao crivo probatório.

Da redacção da transcrita alínea F) apenas se pode ter como assente que a Autora invocou, na carta, os referidos factos, e não que eles tenham ocorrido como nela se relatam.

Ao primeiro dos mencionados quesitos da base instrutória, o tribunal respondeu: “Provado apenas que a Autora no dia 23/09/2004 foi assistida no serviço de urgência do Hospital de S. João, no Porto, sendo-lhe diagnosticada uma crise de ansiedade, frequentando depois disso consulta de psiquiatria no mesmo Hospital”; e, ao segundo, respondeu: “Provado”.

A factualidade vertida na carta de rescisão mostra-se idónea a integrar o conceito de justa causa de resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador, de acordo com a noção que se extrai da conjugação dos artigos 441.º e 396.º do Código do Trabalho.

Sendo controvertidos os atinentes factos, e revelando-se o seu apuramento indispensável para ajuizar da existência da justa causa invocada, haveriam eles de ser demonstrados, o que implicava que fossem inscritos na base instrutória e objecto de actividade probatória, o que não sucedeu.

Depara-se-nos, assim, a situação prevenida no artigo 729.º, n.º 3, do CPC: a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para decisão de direito, o que consequencia que os autos voltem ao tribunal recorrido, a fim de, aditados novos quesitos à base instrutória, que contemplem os factos invocados na carta de rescisão, ser repetido o julgamento, no que a este aspecto concerne.

8. Relativamente ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, para além do que dispõe o já citado n.º 1 do artigo 443.º do Código do Trabalho, há que ter presente o que se consigna no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, segundo o qual o direito à indemnização pressupõe que os danos assumam gravidade tal que mereçam a tutela do direito.

A matéria alegada no articulado inicial, para suportar o pedido de indemnização por danos não patrimoniais (artigos 10.º a 11.º e 13.º a 15.º), foi levada à base instrutória nos já transcritos quesitos 1) e 2) e, também, nos seguintes quesitos:


3)

A A. sentiu-se e ainda se sente muito triste e humilhada, com a situação de que foi vítima na presença da sua filha e de outras colegas de trabalho?

4)

Anda irritada e infeliz, não se lhe pode falar no assunto que fica logo nervosa e completamente desorientada?

5)

Está desgostosa com a sua sorte, perdeu a paz de espírito que a caracterizava e a sua alegria de viver?

Todos estes quesitos receberam respostas de “não provado”, que vieram a ser impugnadas no recurso de apelação, impugnação, de que, como se viu, o Tribunal da Relação, indevidamente, não conheceu, recusando-se a reapreciar as atinentes provas gravadas.

Trata-se de factos relevantes para a solução jurídica do pleito – à luz dos referidos preceitos – relacionados com os acontecimentos reportados, na versão da Autora, ao dia 23 de Setembro de 2004 sobre os quais as instâncias não se pronunciaram, não sendo de excluir que a produção de prova sobre aqueles acontecimentos venha a ter reflexos na decisão sobre a matéria contida nos quesitos neste ponto referidos.

Aplica-se, também aqui, o disposto no artigo 729.º, n.º 3, do CPC.

9. No que diz respeito aos créditos reclamados pela Autora reportados ao período de vigência do contrato em causa, importa ter presente, para efeito de enquadramento jurídico dos factos alegados, que nesse período ocorreram alterações no panorama legislativo com reflexos no domínio das atribuições patrimoniais devidas pela prestação do trabalho.

Com efeito, nos termos dos supra referidos artigos 3.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, parte final, da Lei Preambular do Código do Trabalho, a apreciação do direito a prestações pecuniárias que se terão vencido antes de 1 de Dezembro de 2003 terá de ser feita à luz das normas a que sucederam as correspondentes disposições do Código do Trabalho, aplicando-se o regime deste diploma às vencidas posteriormente.

Em qualquer caso, pretendendo o trabalhador ver reconhecido o direito a perceber determinadas importâncias como contrapartida da prestação do seu trabalho (artigo 82.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho – adiante, LCT –, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, e artigo 249.º, n.º 1, do Código do Trabalho), sobre ele impende o ónus de alegar e provar os factos concretos de que emerge tal direito (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), isto é, que o trabalho foi prestado, a categoria profissional respectiva e, quando for o caso, as condições específicas em que tal sucedeu determinantes de atribuições patrimoniais que excedam a remuneração de base.

Ao empregador incumbia o ónus de impugnar aqueles factos constitutivos ou de alegar e demonstrar que as correspectivas prestações foram satisfeitas (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

Haverá, outrossim, que ponderar, o que, por força da regulamentação colectiva do trabalho, possa ter repercussão, no contrato de trabalho celebrado entre a Autora e a Ré, face ao que dispunham os artigos 12.º, n.º 1, da LCT, 2.º, 7.º, 14.º, n.º 1 e 27.º do Regime Jurídico das Relações Colectivas de Trabalho (adiante, LRCT), constante do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de Dezembro, e ao que, actualmente, dispõe o Código do Trabalho nos seus artigos 1.º, 2.º, n.os 1 e 4, 531.º e 573.º.

Alegou a Autora ser filiada no Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria e Turismo, Restaurantes e Similares do Norte, daí fazendo decorrer o direito a prestações consignadas no respectivo Contrato Colectivo de Trabalho, que veio reclamar, “independentemente da justa causa para a resolução do contrato de trabalho” (artigos 8.º e 17.º da petição).

Trata-se do Contrato Colectivo de Trabalho (doravante, CCT) celebrado entre a UNIHSNOR – União das Associações da Hotelaria e Restauração do Norte de Portugal e a FESHOT – Federação dos Sindicatos da Hotelaria e Turismo de Portugal e outros, publicado no Boletim do Trabalho e Emprego (BTE), 1.ª Série, n.º 29, de 8 de Agosto de 1998, com as alterações e rectificações publicadas nos BTE’s n.os 36 e 43, respectivamente, de 29 de Setembro e 22 de Novembro, ambos de 1998, 29, de 8 de Agosto de 1999, 30, de 15 de Agosto de 2000, e 26, de 15 de Julho de 2002; e do CCT celebrado entre a mesma associação de empregadores e a e a FESAHT – Federação dos Sindicatos da Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal e outros, publicado no BTE n.º 26, de 15 de Julho de 2002, com as alterações publicadas nos BTE’s n.os 26, de 15 de Julho de 2003, e 38 de 15 de Outubro de 2004.

Sucede que a Autora nada alegou, como lhe competia, quanto à filiação da Ré nas associações empregadoras que subscreveram os referidos instrumentos de regulamentação colectiva e alterações, daí que as respectivas cláusulas de conteúdo normativo não tenham aplicação directa ao contrato individual ajuizado (artigos 7.º e 8.º da LRCT e 552.º e 553.º do Código do Trabalho).

Todavia, na vigência da relação laboral, foram editados diplomas de regulamentação colectiva, por via administrativa, atinente ao sector de actividade económica abrangido pelo referido CCT, contemplando as empresas do distrito do Porto não filiadas nas associações subscritoras.

Assim, as Portarias de Extensão (PE’s) publicadas nos BTE’s, 1.ª Série, n.os 2, de 15 de Janeiro de 1999, 2, de 15 de Janeiro de 2001, e 45, de 8 de Dezembro de 2002.

Atendendo a que foi alegado e dado como provado [alínea A) da “Matéria Assente”] que a Ré é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de uma residencial situada em Maia (distrito do Porto), actividade contemplada nos referidos instrumentos negociais e não negociais, serão aplicáveis, no caso, as normas inscritas no CCT, nas versões que vieram a ser objecto de extensão, sendo a última a que foi publicada no BTE n.º 26, de 15 de Julho de 2002.

9. 1. Quanto às diferenças salariais, no articulado inicial, foi alegado que:

A Autora foi admitida em 13 de Novembro de 1998, para exercer as funções de empregada de rouparia e tinha, à data da cessação do contrato, a categoria de recepcionista de 2.ª (artigos 2.º e 3.º da petição e documento n.º 1, junto a fls. 11, no qual consta a menção da última das referidas categorias a partir de 2001);
Auferia uma retribuição base mensal de € 399,54 (artigo 4.º da petição), mas, de acordo com o CCT aplicável (por ser filiada no Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Norte), e respectiva tabela salarial, tinha direito a receber € 444,00 (artigo 8.º da petição);
Nos termos daquele instrumento de regulamentação colectiva, tem direito a receber de diferenças salariais (artigo 17.º, 1 da petição):
a) Esc.: 2.109$00 (ou € 10,52), resultante da diferença entre Esc.: 37.440$00 e Esc.: 35.331$00, relativamente ao mês de Novembro de 1998;
b) Esc.: 3.500$00 (ou € 17,46), resultante da diferença entre Esc.: 62.400$00 e Esc.: 59.900$00, relativamente ao mês de Dezembro de 1998;
c) Esc.: 2.200$00 (ou € 10,97), resultante da diferença, entre Esc.: 62.400$00 e Esc.: 61.300$00, mensais, relativamente a Janeiro e Fevereiro de 1999;
d) Esc.: 44.400$00 (ou € 121,47), resultante da diferença entre Esc.: 65.000$00 e Esc.: 61.300$00, mensais, relativamente ao período de Março a Dezembro de 1999;
e) Esc.: 13.400$00 (ou € 66,84), resultante da diferença entre Esc.: 62.400$00 e Esc.: 61.300$00, mensais, relativamente a Janeiro e Fevereiro de 2000;
f) Esc.: 156.000$00 (ou € 778,12), resultante da diferença entre Esc.: 76.800$00 e Esc.: 63.800$00, mensais, relativamente ao período de Março a Dezembro de 2000;
g) Esc.: 19.600$00 (ou € 97,76), resultante da diferença entre Esc.: 76.800$00 e Esc.: 67.000$00, mensais, relativamente a Janeiro e Fevereiro de 2001;
h) Esc.: 157.200$00 (ou € 784,11), resultante da diferença entre Esc.: 76.800$00 e Esc.: 63.800$00, mensais, relativamente ao período de Março a Dezembro de 2001;
i) € 103,06, resultante da diferença entre € 399,54 e € 348,01, mensais, relativamente a Janeiro e Fevereiro de 2002;
j) € 66,99, resultante da diferença entre € 415,00 e € 348,01, relativamente ao mês de Março de 2002;
k) € 200,98, resultante da diferença entre € 415,00 e € 399,54, mensais, relativamente ao período de Abril de 2002 a Fevereiro de 2003;
l) € 341,52, resultante da diferença entre € 428,00 e € 399,54, mensais, relativamente ao período de Março de 2003 a Dezembro de 2003;
m) € 400,14, resultante da diferença entre € 444,00 e € 399,54, mensais, relativamente ao período de Janeiro de 2004 a Setembro de 2004.

Dos factos assim alegados, o despacho de condensação apenas consignou, na “Matéria Assente”, que a Ré admitiu ao seu serviço a Autora em 13 de Novembro de 1998, para exercer as funções de empregada de rouparia [alíneas B) e C)] e que tinha, à data da cessação do contrato, a categoria de recepcionista de 2.ª [alínea D)].

Na base instrutória, nenhum facto foi incluído em ordem a apurar a temporalidade do exercício das funções de “empregada de rouparia” e das funções de “recepcionista de 2.ª”, sendo certo que a Autora alegara, por referência ao escrito de fls. 11, junto com a petição – cuja autoria não foi imputada à Ré –, ter exercido as da última categoria em 2001, 2002 e 2003.

Também nada se questionou, na mesma sede, relativamente aos valores da retribuição base, efectivamente pagos pela Ré à Autora, na vigência do contrato, sendo que o alegado pela Autora a tal respeito foi posto em causa na contestação.

Ora, o juízo sobre o invocado direito a diferenças salariais dependia da prova do que efectivamente foi sendo pago pela Ré e do confronto das importâncias pagas com o estabelecido nas tabelas salariais, contemplando as referidas categorias, anexas ao instrumento de regulamentação colectiva, nas versões que sucessivamente vigoraram.

A decisão proferida sobre a matéria de facto apresenta-se, também, neste aspecto, insuficiente para aquilatar, à luz das normas constantes do mencionado CCT, aplicáveis por força das referidas PE’s, do bem fundado da pretensão da Autora.

Por isso, atendendo ao disposto no artigo 729.º, n.º 3, do CPC, terá de ser ampliada aquela decisão, mediante a repetição do julgamento, após a formulação de novos quesitos atinentes a tal matéria.

9. 2. Alegou a Autora que a Ré nunca lhe pagou o subsídio de alimentação a que tinha direito, segundo o estabelecido no CCT, totalizando € 2.392,91, relativamente aos meses de efectiva prestação de trabalho (artigo 17.º, 2, da petição) e € 437,01, relativamente aos períodos de férias (artigo 17.º, 3, da petição).

Na base instrutória foram, quanto essa matéria, formulados dois quesitos, nos seguintes termos:

[...]


6)

A Ré não pagou à Autora o subsídio de alimentação no total de € 2.392,91 conforme o seguinte:

a) Novembro/98 = 3.540$00 ou € 17,66

b) Dezembro/98 a Fevereiro/99 – 5.900$00 x 3 = 17.700$00 ou € 88,29

c) Março/99 a Fevereiro/00 – 6.100$00 x 11 = 67.100$00 ou € 334,69

d) Março/00 a Fevereiro/01 – 6.400$00 x 11 = 70.400$00 ou € 351,15

e) Março/01 a Fevereiro/02 – [€] 34,92 x 11 = € 384,82

f) Março/02 a Fevereiro/03 – [€] 37,00 x 11 = € 407,00

g) Março/03 a Dezembro/03 – [€] 40,00 x 9 = € 360,00

h) Janeiro/04 a Setembro/04 – [€] 50,00 x 9 = € 450,00 [?]


7)

A Ré não pagou à Autora o subsídio de alimentação nas férias de:

a) 1999 = 13.000$00 ou € 64,84

b) 2000 = 13.600$00 ou € 67,84

c) 2001 = 14.300$00 ou € 71,33

d) 2002 = € 74,00

e) 2003 = € 78,00

f) 2004 = € 81,00

no Total de € 437,01?

[...]

A estes quesitos o tribunal respondeu não provado.

9. 2. 1. O CCT, na versão de 1998 (BTE n.º 29), consagra o princípio do direito à alimentação, na sua Cláusula 156.ª, onde estabelece que “[t]êm direito à alimentação completa, constituída por pequeno-almoço, almoço, jantar e ceia simples, conforme o período em que iniciem o seu horário, todos os trabalhadores abrangidos por esta convenção, qualquer que seja o tipo ou espécie de estabelecimento onde prestem serviço” (n.º 1).

De acordo com a Cláusula 157.ª, “[n]os estabelecimentos onde se confeccionem ou sirvam refeições, a alimentação será fornecida em espécie; nos demais estabelecimentos será substituída pelo respectivo equivalente pecuniário previsto na Cláusula 162.ª” (n.º 1), prevenindo que “[a]s empresas e os trabalhadores que por acordo anterior à data de 15 de Junho de 1998 tinham substituído a alimentação em espécie pelo seu equivalente pecuniário manterão este regime” (n.º 2).

Para todos os efeitos da convenção, estipulou-se na Cláusula 162.º o valor da alimentação completa, por mês, não dedutível da parte pecuniária da remuneração, em Esc.: 5.900$00, nos estabelecimentos de alojamento onde não se confeccionem refeições [n.os 1 e 2, alínea a)].

Na versão de 1999 (BTE n.º 29), da mesma Cláusula, aquele valor foi aumentado para Esc.: 6.100$00; na versão de 2000 (BTE n.º 30), para Esc.: 6.400$00; e na versão de 2002 (BTE n.º 26), para € 34, 92.

O novo CCT, publicado no BTE n.º 26, de 15 de Julho de 2002, tratou a matéria da alimentação, nas Cláusulas 104.ª e segs., em termos idênticos ao da anterior convenção, estipulando o valor pecuniário a praticar nos estabelecimentos de alojamento onde não se confeccionem ou sirvam refeições, em € 37,00 [Cláusula 110.ª, n.os e 2, alínea a)], valor que veio a ser aumentado para € 40,00, na versão de 2003 (BTE n.º 26), e para € 50,00, na versão de 2004 (BTE n.º 38).

Do regime estabelecido nos referidos CCT’s, aplicável ao contrato em causa, por força das supra mencionadas PE’s, decorre que o direito a atribuição pecuniária substitutiva da prestação de alimentação em espécie pressupõe que se trate de estabelecimento onde não se confeccionem ou sirvam refeições.

Desconhece-se se, no estabelecimento em que a Autora prestou serviço, eram ou não confeccionadas ou servidas refeições, sendo que tal facto, constitutivo do direito a perceber as reclamadas prestações substitutivas, reportadas aos meses de efectiva prestação de trabalho, deveria ter sido alegado pela Autora (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), o que não foi, oportunamente, feito.

Assim, quanto à pretensão adrede formulada, pode, desde já afirmar-se, independentemente de quaisquer considerações em volta dos termos em que se formulou o atinente quesito 6) da base instrutória, que, por não ter sido provado, nem alegado, aquele pressuposto do direito ao “subsídio de alimentação”, em período de execução do trabalho, a pretensão da Autora não poderia, no que concerne, proceder.

Na verdade, não tendo a Autora alegado os factos constitutivos do seu direito, não faz sentido convocar-se o ónus de alegação e prova dos factos modificativos ou extintivos do mesmo direito, como, por exemplo, o pagamento.

9. 2. 2. Relativamente ao “subsídio de alimentação em período de férias”, dispõe a Cláusula 70.ª, n.º 1, do primeiro CCT, que a retribuição correspondente ao período de férias, não podendo ser inferior à que os trabalhadores receberiam se estivessem em serviço efectivo, inclui na sua base de cálculo, entre outros valores, “o subsídio de alimentação”.

Decorre do n.º 4 da Cláusula 162.ª da mesma convenção, na versão de 1998 (BTE n.º 29), que, quando ao trabalhador não possa ser fornecida alimentação nos casos de férias a substituição far-se-á pelo valor estabelecido para os casos em que o estabelecimento não confeccione ou sirva refeições.

Na versão de 1999 (BTE n.º 29), foi aditada ao n.º 2 da mesma Cláusula a alínea d), nos termos da qual, “[n]os casos em que os trabalhadores optem por não tomar as refeições durante as férias nos estabelecimentos de alojamento e casinos” teriam direito a receber Esc.: 13.000$00, mantendo-se a redacção do n.º 4.

A referida alínea d) foi alterada na versão de 2000 (BTE n.º 30), passando a constar dela que “[p]ara todos e quaisquer casos previstos neste CCT, os trabalhadores poderão optar no período de férias por receber um subsídio de alimentação, referente à retribuição de férias e subsídio de férias no valor global e unitário de 13 600$00 [...]”.

Na versão de 2002 (BTE n.º 26) reduzido que foi a três alíneas o n.º 2 da referida Cláusula, aquele texto passou para a alínea c), alterando-se o valor para € 71,33.

As referidas versões do CCT vigoraram, relativamente ao contrato em apreço, a primeira, desde 20 de Janeiro de 1999, data do início da vigência da PE publicada no BTE n.º 2, de 15 de Janeiro de 1999; a segunda, desde 3 de Janeiro de 2000, data do início da vigência da PE publicada no BTE n.º 48, de 29 de Dezembro de 1999; a terceira, desde 20 de Janeiro de 2001, data do início da vigência da PE publicada no BTE n.º 2, de 15 de Janeiro de 2001; a quarta, desde 13 de Dezembro de 2002, data do início da vigência da PE publicada no BTE n.º 45, de 8 de Dezembro de 2002.

O novo CCT, de 2002 (BTE n.º 26), acolheu na Cláusula 72.ª, n.º 1, com irrelevantes alterações, o texto do n.º 1 da Cláusula 70.ª da anterior convenção e, na Cláusula 110.ª a redacção da antedita Cláusula 162.ª, apenas alterando o valor estipulado na alínea c) para € 74,00, cobrando as respectivas normas aplicação ao caso dos autos, a partir de 13 de Dezembro de 2002, data do início da vigência da PE publicada no BTE n.º 45, de 8 de Dezembro de 2002.

Já se viu que a Autora não alegou que o estabelecimento não confeccionava ou não servia refeições, caso em que, naturalmente, teria direito ao subsídio de alimentação, não apenas nos meses de execução do trabalho, mas, também, nos meses de férias, de acordo com as normas convencionais supra citadas.

Por outro lado, não alegou que, nos períodos de férias dos anos a que se refere a petição inicial, não podia ser-lhe fornecida alimentação no estabelecimento da Ré, pressuposto do direito invocado, nos termos do n.º 4 da Cláusula 162.ª do antigo CCT, e do n.º 4 da Cláusula 110.ª do novo CCT; e, também não alegou que, relativamente às férias gozadas nos anos de 2000 e seguintes, tenha optado por não tomar as refeições no estabelecimento da Ré, conforme a norma introduzida no texto do n.º 2 da referida Cláusula pela revisão de 1999 do antigo CCT, mantida nas posteriores versões e no novo CCT.

Valem aqui as considerações relativas ao ónus de alegação e prova, supra vertidas a propósito do direito ao subsídio de alimentação em período de trabalho, do que decorre que, também neste particular, a pretensão da recorrente não podia proceder, pois, ao contrário do que sustenta, não lhe bastava, para ver reconhecido o direito a tais prestações, alegar e provar a vigência do contrato, a prestação do trabalho e o gozo de férias.

9. 3. Invocando os “termos do mencionado CCT”, reclamou a Autora “prémio de línguas não pago”, relativamente ao período de Janeiro de 2000 a Setembro de 2004, no total de € 2.163,67 (artigo 17.º, 4, da petição).

Na base instrutória foi, quanto essa matéria, formulado quesito, nos seguintes termos:

[...]


8)

A Ré não pagou à Autora o Prémio de línguas de:

a) Janeiro e Fevereiro/00 – 5.640$00 x 2 = 11.280$00 ou € 56,26

b) Março/00 a Fevereiro/01 – 6.144$00 x 14 = 86.016$00 ou € 429,05

c) Março/01 a Fevereiro/02 – 6.408$00 x 14 = 89.712$00 ou € 447,48

d) Março/02 a Fevereiro/03 – € 33,20 x 14 = € 464,80

e) Março/03 a Dezembro/03 – € 34,24 x 9 = € 308,16

f) Janeiro/04 a Setembro/04 – € 35,52 x 10 = € 450,00

no Total de € 2.163,67?

[...]

A este quesito o tribunal respondeu não provado.

Sob a epígrafe Prémio de Conhecimento de línguas, a Cláusula 100.ª do CCT, na versão de 1998, publicada no BTE n.º 29, estipulava, no seu n.º 1, que: “[o]s profissionais de hotelaria e telefonistas que no exercício das suas funções utilizem conhecimentos de idiomas estrangeiros em contacto directo ou telefónico ou por escrito com o público, independentemente da sua categoria, têm direito a um prémio no valor de 8% sobre a remuneração mensal certa mínima por cada uma das línguas francesa, inglesa ou alemã, salvo se qualquer destes idiomas for o da sua nacionalidade”.

O mesmo texto passou a figurar no n.º 1 da Cláusula 102.ª do CCT de 2002, publicado no BTE n.º 26.

Não há nos autos quaisquer elementos que permitam afirmar que a Autora, no exercício das funções de recepcionista, utilizava “conhecimentos de idiomas estrangeiros”, carecendo de base factual o que, a este respeito, vem alegado no recurso de revista.

Aliás, a Autora nem sequer alegou, no articulado inicial, aquele facto, que, por ser constitutivo do direito invocado lhe competia alegar e demonstrar.

Tanto basta para se julgar, desde já, improcedente, a correspondente pretensão.

9. 4. Ainda sob a invocação dos “termos do mencionado CCT”, reclamou a Autora abonos para falhas não pago, relativamente ao período de Janeiro de 2000 a Setembro de 2004, no total de € 1.496,86 (artigo 17.º, 5, da petição).

Na base instrutória foi, quanto essa matéria, formulado quesito, nos seguintes termos:

[...]


9)

A Ré não pagou à Autora o Abono para falhas de:

a) Janeiro e Fevereiro/00 – 5.200$00 x 2 = 10.400$00 ou € 51,87

b) Março/00 a Fevereiro/01 – 5.360$00 x 11 = 58.960$00 ou € 294,09

c) Março/01 a Fevereiro/02 – 5.600$00 x 11 = 61.600$00 ou € 307,26

d) Março/02 a Fevereiro/03 – € 29,08 x 11 = € 319,88

e) Março/03 a Dezembro/03 – € 30,32 x 9 = € 272,78

f) Janeiro/04 a Setembro/04 – € 31,36 x 8 = € 250,88

no Total de € 1.496,86?

A este quesito respondeu o tribunal não provado.

Nos termos do n.º 1 da Cláusula 93.ª do CCT, na versão de 1998, publicada no BTE n.º 29, “[o]s controladores-caixas que movimentem regularmente dinheiro, os caixas, os recepcionistas que exerçam funções de caixa, os tesoureiros e os cobradores têm direito a um subsídio mensal para falhas de 8 % da remuneração pecuniária prevista para o nível VII do grupo C do anexo I, enquanto desempenharem efectivamente essas funções”.

A Cláusula 95.ª do CCT de 2002, publicado no BTE n.º 26, no seu n.º 1 reproduz o texto daquela norma, alterando, apenas, a referência ao anexo, que passou para “anexo II”.

Também quanto a este aspecto competia à Autora alegar e demonstrar que, enquanto recepcionista, exercia funções de caixa, o que não fez.

Mostra-se, por conseguinte, inviabilizado o reconhecimento do direito às importâncias reclamadas a título de abono para falhas.

9. 5. No artigo 18.º da petição inicial, foi alegado que a Autora “tem ainda direito a receber da Ré [...], férias ainda não gozadas referentes ao [ano] de 2003 (só gozou 16 dias úteis) [...]”.

A este respeito formularam-se dois quesitos na base instrutória:

[...]

10)

A Autora em 2003 só gozou 16 dias úteis de férias?

[...]

12)

A Ré não pagou à Autora as férias não gozadas referentes ao ano de 2003?

[...]

A ambos os quesitos o tribunal respondeu não provado e, como se viu, a impugnação das respostas no recurso de apelação foi feita de forma a não permitir a reapreciação das provas gravadas.

Deste modo, tem de considerar-se definitivamente não provado que a Autora só gozou 16 dias úteis de férias, o que tira sentido ao facto inscrito no quesito 12).

Também nesta matéria, as regras do ónus da prova funcionam em desfavor da Autora, pois aquele facto não provado se apresenta como constitutivo do direito invocado.

9. 6. No mesmo artigo 18.º da petição, mostra-se alegado que a Autora “tem ainda direito a receber da Ré, retribuição de Setembro de 2004 [...], proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal referentes ao ano de 2005 [...]”.

A propósito, foram elaborados os seguintes quesitos.

[...]

11)

A Ré não pagou à Autora a retribuição do mês de Setembro de 2004?

[...]

13) A Ré não pagou à Autora os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal referentes a 200[4]?

[...]

Também a estes quesitos o tribunal respondeu não provado, o que, como se vai ver, não tem o efeito de impedir o reconhecimento do direito da Autora às correspondentes prestações.

Demonstrou-se que a Autora, desempenhando funções da categoria de recepcionista de 2.ª, auferia à data da cessação do contrato, que ocorreu em 30 de Setembro de 2004, a remuneração mensal ilíquida de € 399,54 [alíneas D) e F) da “Matéria Assente].

Destes factos emerge o direito à retribuição do mês de Setembro 2004, como contrapartida do trabalho prestado nesse último mês da vigência do contrato (artigo 249.º, n.º 1, do Código do Trabalho), bem como o direito a receber a retribuição correspondente a um período de férias, proporcional ao tempo de serviço prestado até à data da cessação do contrato, bem como ao respectivo subsídio (artigo 221.º, n.º 1, do Código do Trabalho), e, ainda, a receber um subsídio de Natal de valor proporcional ao tempo de serviço prestado nesse ano (artigo 254.º, n.º 2, do mesmo Código).

À Ré competia alegar e demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos dos referidos direitos, designadamente que havia pago as correspondentes importâncias (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), o que não fez.

Alegou a Autora que auferia a retribuição base mensal de € 399,54, facto este que foi declarado provado.

Alegou, também que, nos termos do CCT aplicável, tinha direito à retribuição base mensal de € 444,00.

Por sua vez, a Ré alegou que pagava € 450,00, facto que não se provou [resposta negativa ao quesito 20)].

O valor de € 444,00 é o que foi estipulado, para vigorar entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2004, como remuneração mínima para o nível VIII, correspondente à categoria de recepcionista de 2.ª, na versão do CCT publicada no BTE n.º 38 de 15 de Outubro de 2004 (Cláusulas 4.ª, n.º 2, e 101.ª, Anexo I, 2, e Anexo II).

Recorde-se que, nada tendo sido alegado quanto à filiação da Ré nas associações subscritoras de tal convenção, não pode afirmar-se a sua aplicação directa ao contrato em causa.

Sucede que as condições de trabalho estabelecidas na dita versão do CCT só vieram a ser estendidas às relações de trabalho entre empregadores não filiados nas associações que o subscreveram e trabalhadores ao seu serviço, exercendo actividade no distrito do Porto, pelo Regulamento de Extensão aprovado pela Portaria publicada no BTE n.º 29, de 8 de Agosto de 2005, que entrou em vigor no dia 13 do mesmos mês e ano, portanto, muito depois de cessado o contrato de que nos ocupamos.

À data da extinção da relação laboral, esta achava-se subordinada às normas de regulamentação colectiva da versão do CCT publicada no BTE n.º 26, de 15 de Julho de 2002, – por força da PE publicada no BTE n.º 45, de 8 de Dezembro de 2002 – que estipulou, para vigorar entre 1 de Março de 2002 e 28 de Fevereiro de 2003, o valor de € 415,00, como remuneração mínima para o nível VIII, correspondente à categoria de recepcionista de 2.ª (Cláusulas 4.ª, n.º 2, e 101.ª, Anexo I, 2, e Anexo II).

É de referir que, tendo aquele valor sido aumentado para € 428,00 pelas alterações ao CCT publicadas no BTE n.º 26 de 15 de Julho de 2003, essas alterações não foram objecto de extensão por via administrativa.

Decorre do exposto que a Autora tem direito a receber da Ré as importâncias de € 415,00, relativa à retribuição do mês de Setembro de 2004, e € 933,75 (€ 311,25 X 3), correspondente aos proporcionais de retribuição de férias, respectivo subsídio e subsídio de Natal do mesmo ano.

9. 7. Por último, no artigo 19.º da petição inicial alegou que “prestou trabalho extraordinário, que se encontra devidamente documentado nos seus cartões de ponto, adiante juntos, não lhe tendo sido paga qualquer quantia a esse título”, do que fez decorrer o direito a haver da Ré a importância total de € 5.990,19.

A base instrutória, a este respeito, apresenta um quesito, que recebeu a resposta de “não provado”, assim redigido:


14)

A A. prestou trabalho extraordinário, que se encontra devidamente documentado nos seus cartões de ponto, não lhe tendo sido paga qualquer quantia a esse título, sendo

Ano de 2001 = € 2.398,95 (Docs. 8 a 23);

Ano de 2002 = € 2.830,42 (Docs. 24 a 43);

Ano de 2003 = € 760,82 (Docs. 44 a 57);

num Total de € 5.990,19?

[...]

Também neste aspecto, a impugnação da matéria de facto, no recurso de apelação, se mostra feita de forma genérica e global, sem a expressão dos motivos concretos que poderiam levar à alteração da decisão, o que traduz fundamento bastante para que o Tribunal da Relação se recusasse a dela conhecer.

Na verdade, recorde-se, a Autora, no corpo da alegação daquele recurso, afirmou, quanto aos quesitos 6) a 14), que “foram também dados como não provados, quando deveriam ter sido dados como provados, tendo em conta não só os depoimentos das duas testemunhas acima identificadas FF e GG, como os recibos de vencimentos juntos aos autos, a declaração do Sindicato junta aos autos em 8 de Março de 2006, pois todos estes documentos não foram objecto de qualquer impugnação”, “[b]em como o depoimento das testemunhas arroladas pela EE (2.ª cassete, lado B, do 960 até ao fim), e GG (2.ª cassete, lado A, do início ao 1223)”.

Este modo de alegar, aludindo a meios de prova, com referência a um grupo de factos sem conexão lógica entre eles, omitindo a expressão de qualquer exercício de análise das provas e a relação de cada um daqueles meios com cada um dos factos concretos objecto de impugnação, não respeita as exigências consignadas no artigo 690.ª-A, do CPC.

Tem, por isso, de considerar-se definitiva a decisão relativa a esse ponto de facto, ou seja, que a Autora não provou ter prestado o trabalho suplementar que invocou para fundar o direito à correspondente remuneração, sendo que tal prova lhe competia, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

Improcede, assim, o que, a este respeito vem alegado na revista.


III

Por tudo o exposto, decide-se:

– Conceder, parcialmente, a revista, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.348,75, soma da retribuição do mês de Setembro de 2004 com os proporcionais de retribuição de férias, respectivo subsídio e subsídio de Natal do ano de 2004;
– Negar a revista, no que concerne às pretensões relativas a subsídio de alimentação, “prémio de línguas”, abonos para falhas, férias não gozadas e trabalho suplementar;
– Ordenar que os autos voltem ao tribunal recorrido a fim de ser ampliada a decisão proferida sobre a matéria de facto, por forma a contemplar os factos alegados para fundamentar a justa causa da resolução do contrato e consequente pedido de indemnização, o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, e o pedido relativo a diferenças salariais, nos termos sobreditos em II, 7, 8 e 9.1., julgando-se, novamente a causa, segundo o regime jurídico supra definido, quanto aos referidos aspectos da lide (artigos 729.º, n.º 3 e 730.º, n.º 3, do CPC).

Custas a cargo da Autora e da Ré, na acção e nos recursos, na proporção do decaimento já definido; na parte por definir, a responsabilidade por custas será apurada a final, consoante o vencimento.

Lisboa, 21 de Maio de 2008

Vasques Dinis (Relator)

Bravo Serra

Mário Pereira

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(1) - Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos de 10 de Maio de 2001 e de 14 de Março de 2006, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, Documentos n.os SJ200105100018124 e SJ200603140040284.

(2) - Proferido na Revista n.º 3433/02-1.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ200301280034331.

(3) - Acórdãos deste Supremo de 14 de Janeiro de 1997 (Processos n.os 269/96 e 367/96 da 1.ª Secção), sumariados em www.stj.pt, Jurisprudência/Sumários de Acórdãos, e de 30 de Abril de 2002 (Processo n.º 917/02-1.ª Secção), disponível em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ200204300009171.

(4) - Neste sentido, e já no âmbito da vigência do Código do Trabalho, os Acórdãos deste Supremo de 18 de Abril de 2007 (Revista n.º 4282/06), de 22 de Maio de 2007 (Revista n.º 54/07), de 26 de Setembro de 2007 (Revista n.º 1932/07) e de 9 de Janeiro de 2008 (Revista n.º 2902/07), todos da 4.ª Secção, sumariados em www.stj.pt, Jurisprudência/Sumários de Acórdãos. Na doutrina, Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 797 e 1045, e Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Volume I – Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pp. 1044-1045.

(5) - Cfr. António Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 1, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1981, pp. 340-341, e Direito do Trabalho, 10.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 539-540; e os Acórdãos de 13 de Janeiro de 1993 e de 10 de Fevereiro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo I, 220, e Ano VII, Tomo I, 271, respectivamente.