Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18/07.2TBTBC.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
ACTO DE FUNCIONÁRIO
ACTO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
COMISSÃO
CONTRATO DE MÚTUO
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
HIPOTECA
RENÚNCIA
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
DOCUMENTO
FIANÇA
EXTINÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º, 500.º, 644.º, 653.º, 730.º, ALÍNEA D), 731.º/1, 998.º/1
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL: - ARTIGO 56.º.
Sumário :

I - O art. 653.º do CC quando prescreve que “os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem”, consagra a designada exceção ou benefício cedendarum actionem.
II - Assim sendo, ficam desonerados da obrigação que contraíram os fiadores de um mútuo com garantia hipotecária se a instituição de crédito renunciou à hipoteca, emitindo documento de cancelamento em conformidade com o disposto nos arts. 730.º, al. d), 731.º, n.º 1, do CC e 56.º do CRgP.
III - A instituição de crédito é responsável enquanto comitente, nos termos dos arts. 500.º e 998.º, n.º 1, do CC, pelo ato de emissão do documento necessário ao cancelamento praticado pelo seu gerente ainda que contra as instruções da própria instituição de crédito, sendo certo que a emissão de documento válido teria necessariamente de provir de funcionário com poderes bastantes conferidos pela instituição de crédito.
IV - O crédito que a instituição de crédito continua a manter sobre o respetivo devedor não lhe permite, sob pena de ilicitude, compensá-lo sem mais com imediata apropriação das quantias que nela se encontram depositadas in casu pelos fiadores.
V - Uma tal apropriação, pela sua importância, tem a gravidade que justifica a tutela indemnizatória nos termos do art. 496.º do CC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA e BB propuseram no dia 1-2-2007 ação declarativa com processo ordinário contra a Caixa Geral de Depósitos pedindo a sua condenação nos seguintes termos:

- Que, julgada a ação procedente e provada, seja a ré condenada a restituir aos AA a quantia de 53.159,17€ (cinquenta e três mil cento e cinquenta e nove euros e dezassete cêntimos) acrescido de juros moratórios à taxa legal desde 14-12-2006 até restituição efetiva e ainda a pagar ao A. marido a quantia de 3.750€ (três mil setecentos e cinquenta euros) e à A. mulher a quantia de 7.500€ (sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelos danos morais por eles sofridos e resultantes da descrita situação com as demais consequências legais.

2. Na base do pedido está a seguinte situação: os AA assumiram-se como fiadores de um mútuo com hipoteca destinado à aquisição de um imóvel por CC; entretanto faleceu CC. Então, o genro dos AA, gerente da ré C.G.D., com procuração dos pais de CC, outorgou escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, figurando na escritura como vendedores os pais do falecido CC, representados pelo genro dos AA e, como comprador, DD que dos autores é neto.

3. A hipoteca que garantia o mútuo contraído pelo falecido CC de que os AA eram fiadores foi cancelada.

4. A C.G.D. considerando que o mútuo de que os AA eram fiadores não tinha sido liquidado, compensou o crédito que detinha sobre o falecido mutuário debitando conta bancária de que os AA fiadores eram titulares na ré na importância de 53.159,17€.

5. Contra isto se insurgem os AA - a A faleceu entretanto tendo sido habilitados como herdeiros para com eles prosseguir a presente ação o A. AA e a filha EE.

6. Consideram os AA que a ré não podia proceder à compensação, apropriando-se dos valores que os AA tinham em depósito na ré sendo certo que o cancelamento da hipoteca resultou de ato do gerente da ré que não liquidou o mútuo de que os AA eram fiadores com os valores do mútuo contraído para aquisição do imóvel, permitindo o cancelamento da hipoteca.

7. Por isso, os AA, para além da restituição da importância de que foram espoliados por indevida compensação, reclamam indemnização pelo dano moral que esta situação lhes causou.

8. A ação foi julgada improcedente.

9. Interposto recurso pelos AA, o Tribunal da Relação revogou a sentença, condenado a ré nos seguintes termos:

- A restituir aos AA a importância de 53.159,17€ (cinquenta e três mil cento e cinquenta e nove euros e dezassete cêntimos) acrescida de juros, à taxa legal, vencidos desde 14-12-2006 e vincendos até efetiva restituição.

- A pagar a cada um dos AA  a importância de 2.500€ a título de indemnização.

10. Interpôs a ré C.G.D. recurso de revista para o Supremo Tribunal concluindo a sua minuta nos seguintes termos:

1- Como se refere no douto acórdão recorrido a fundamentação de direito para responsabilizar a CGD pelo ato do seu gerente ( se ocorresse) encontraria apoio no disposto no artigo 6.º/5 do Código das Sociedades Comerciais e também no artigo 165.º do Código Civil mas não no disposto no artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais, citado no douto aresto, na medida em que não está em causa uma qualquer conduta praticada por um órgão da administração da ré (sociedade anónima) mas sim de um gerente, tal qual este cargo é definido nos artigo 248.º e segs. do Código Comercial.

2- Somos, assim, encaminhados para a norma do artigo 500.º/1 e 2 do Código Civil que, independentemente de culpa, responsabiliza o comitente pelos danos que o comissário causar, "desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar, mas desde que o facto danoso tenha sido praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada

3 - In casu, o ato praticado pelo gerente traduziu-se no cancelamento da hipoteca que onerava o imóvel sem que a C.G.D. houvesse recebido o crédito cujo reembolso a mesma hipoteca assegurava e impedindo a sub-rogação dos AA, fiadores no aludido contrato de mútuo.

4 - Como emerge dos factos provados, ainda que gerente de uma agência da ré, não foi no exercício dessas funções que o mesmo procedeu a esse cancelamento, antes e apenas enquanto representante dos alienantes, no uso de cujos poderes também tinha intervindo na venda a favor do próprio filho ( neto dos AA)( facto provado 14)

5- Pelo que, ao abrigo desse normativo - artigo 500.º do Código Civil - não poderá a ré ser responsabilizada pelo ato praticado pelo referido DD.

6- Decidindo de modo diferente o Tribunal violou o disposto nos artigos 6.º/5 do C.S.C. e 165.º e 500.º/1 e 2 do Código Civil.

11. Factos provados:

1. Por escritura pública outorgada no dia 21 de dezembro de 1999 no Cartório Notarial de Tabuaço, os Autores declararam que “se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à caixa credora em consequência do empréstimo aqui titulado (…)”. No mesmo documento a Ré declarou “conceder aos segundos outorgantes (CC) um empréstimo no regime de crédito jovem bonificado, na quantia de doze milhões de escudos”. Pela ré e por CC foi ainda declarado que “a parte devedora constitui hipoteca sobre as frações supra citadas”. No mesmo documento FF e esposa GG declararam vender a CC as frações aí identificadas – tudo conforme o documento de fls. 7 a 11, cujo teor se dá por reproduzido.

2. Pela apresentação 01/171299 foi registada a aquisição a favor de CC, por compra, abrange duas frações do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Tabuaço sob o nº 00000000.

3. Pela Apresentação 000000000 foi registada a hipoteca voluntária, garantia de empréstimo sobre o prédio referido em 2.

4. No dia 18 de outubro de 2001, por escritura pública, outorgada no Cartório Notarial de Tabuaço, DD e esposa EE, casados sob o regime de comunhão geral de bens “(…) outorgando o marido por si e na qualidade de procurador, em nome e em representação, de: HH e esposa II” declarou vender a DD as habitações e garagem referidas em 1 – cf. documento de fls. 14 e ss cujo teor se dá aqui por reproduzido.

5. Consta dessa escritura que a compra por ela titulada foi financiada através de um empréstimo concedido a DD pela C.C.A.M. de Vale do Távora, C.R.L.

6. Pela apresentação 31/20011122 encontra-se registada a aquisição a favor de DD, “por compra, abrange duas frações” dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00000000.

7. A ré enviou aos autores a carta junta a fls. 24, cujo teor se dá aqui por reproduzido, onde consta “informamos que procedemos à compensação de créditos acima mencionados, debitando na vossa conta à ordem a quantia de 53.159,17€ e creditando igual valor na conta de empréstimo de que V. Exas. são fiadores”.

8. Os autores enviaram à ré a carta junta a fls. 25, cujo teor se dá aqui por reproduzido, à qual a Ré não respondeu.

9. A situação referida em 7 provocou aos autores desgosto e inquietação, o que ainda hoje perdura.

10. Os autores tomaram conhecimento do referido em 4.

11. Após a morte de CC, DD procedeu ao pagamento de algumas prestações do empréstimo que a “CGD” concedeu àquele primeiro para aquisição das frações.

12. Os autores estavam cientes de que, com a morte do filho, jamais o HH e a esposa II teriam possibilidades económicas para pagar o empréstimo em questão.

13. HH e II emitiram a favor de DD procuração concedendo-lhe poderes para tratar de todas as questões relacionadas com as frações em causa, incluindo os poderes para vender.

14. Foi com base em tais poderes que o DD, em representação daqueles, registou as frações a favor dos mesmos, em 13/09/01 e no dia seguinte procedeu ao cancelamento da hipoteca que incidia sobre as mesmas e em 18/10 do mesmo ano vendeu ao filho as frações em causa.

15. DD, à data gerente da agência de Armamar da Caixa Geral de Depósitos, procedeu à emissão de documento bastante para o cancelamento da hipoteca e dele fez entrega na conservatória.

16. Apesar de bem saber que o empréstimo não tinha sido liquidado e que conforme instruções internas da CGD, sua entidade patronal, tal documento só poderia ser emitido e entregue contra a liquidação do mútuo que a hipoteca garantia.

Apreciando:

12. A recorrente Caixa Geral de Depósitos circunscreve o recurso à questão de saber se o seu gerente, que atuou na escritura de compra e venda do imóvel representando os vendedores, quando procedeu à emissão de documento bastante para cancelamento da hipoteca e dele fez entrega nas Conservatória, agiu fora do exercício das suas funções pois a atividade por ele exercida - cancelamento na Conservatória do Registo da hipoteca - " nada tem a ver com as funções de gerente exercidas pelo falecido DD, antes e apenas com a procuração que a seu favor foi emitida pelos referidos HH e II".

13. A Caixa Geral de Depósitos renunciou à hipoteca sem , no entanto, ter recebido a importância relativa ao crédito mutuado que os AA  afiançaram, o que aconteceu por ato da responsabilidade do seu gerente que emitiu o documento necessário para o cancelamento da hipoteca, desrespeitando as instruções internas da C.G.D. ( ver 15 e 16 supra), ficando, assim, inviabilizada a sub-rogação dos fiadores na posição de credor mutuante com garantia real (artigo 644.º do Código Civil).

14. Face a um tal comportamento, e em conformidade com o disposto no artigo 653.º do Código Civil, os fiadores " ficam desonerados da obrigação que contraíram". Diz este preceito que consagra a designada exceção ou benefício cedendarum actionem que " os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem".

15. No caso houve um facto positivo do credor que renunciou à hipoteca (artigos 730.º, alínea d) do Código Civil), renúncia que "não carece de aceitação do devedor ou do autor da hipoteca para produzir os seus efeitos" (artigo 731.º/1 do Código Civil);  fê-lo sem liquidação do mútuo, obtendo o cancelamento do registo de hipoteca averbado pela Ap. 0000000(fls. 21 dos autos) em conformidade com o disposto no artigo 56.º do Código do Registo Predial que, na redação então vigente, prescrevia que " o cancelamento do registo de hipoteca é feito com base em documento autêntico ou autenticado de que conste o consentimento do credor".

16. Saliente-se, tal como se mencionou no acórdão da Relação, que "nada se provou sobre o alegado conhecimento e até conluio dos autores com os atos praticados por DD, seu genro, como decorre das respostas aos quesitos 4º a 7º e 9º a 14º, não podendo, portanto, ser-lhes imputada qualquer responsabilidade na perda da garantia – hipoteca – de que a ré beneficiava".

17. E também, como se refere no acórdão, " é certo que, como se provou, essa extinção ocorreu contra instruções da própria ré, uma vez que o empréstimo concedido por esta não havia sido liquidado. Todavia, esta circunstância em nada afeta a eficácia do ato praticado e as consequências que daí advêm para terceiros, designadamente os autores, inteiramente estranhos em relação a essa questão de foro interno da ré. Esta é, com efeito, responsável pelos atos e omissões de quem legalmente a representa, ficando vinculada por estes atos".

18. O ato de cancelamento do registo traduzindo a renúncia à hipoteca é da inteira responsabilidade, tal como se provou, do gerente da Caixa Geral de Depósitos que o praticou  contra as instruções da C.G.D. no exercício da função que lhe foi confiada, sendo, por conseguinte, a credora responsável nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos ou omissões dos seus comissários ( artigos 500.º e 998.º/1 do Código Civil).

19. Um tal ato só podia ter sido realizado com sucesso, salvo falsificação de documento, situação que não está aqui em causa, com a emissão de documento autêntico ou autenticado de que conste o consentimento do credor e à qual só podia proceder quem na Caixa Geral de Depósitos detivesse o respetivo poder funcional.

20. Por isso, ainda que a procuração conferida ao gerente da ré para proceder à venda do imóvel em representação dos proprietários incluísse poderes para proceder ao respetivo cancelamento da hipoteca, o ato de cancelamento não deixa, por isso, de constituir um ato do gerente no exercício das suas funções, pois só no exercício dessas funções é que ele poderia proceder "à emissão de documento bastante para o cancelamento da hipoteca dele fazendo entrega na Conservatória" e, obviamente, só com abuso de funções poderia emitir o aludido documento sem prévia liquidação do mútuo.

21. Se não tivesse tais poderes o cancelamento da hipoteca só poderia ser efetuado, nas condições lesivas da instituição de crédito,  com a conivência de quem na Caixa Geral de Depósitos autorizasse a emissão do documento sem estar liquidado o mútuo, desrespeitando as instruções da instituição de crédito. Ainda que assim fosse, os autores, alheios a uma tal situação, ficariam sempre desonerados face ao disposto no artigo 653.º do Código Civil, tudo isto evidenciando que o cancelamento do registo de hipoteca apenas foi viabilizado pela atuação do gerente da ré que se aproveitou da sua posição de gerente abusando das funções que lhe foram confiadas. O cancelamento da hipoteca teria, portanto, sempre de provir de funcionário com poderes bastantes conferidos pela instituição de crédito para proceder à emissão do documento apto a produzir os efeitos próprios da renúncia.

22. Não está em causa neste recurso a ilicitude da atuação da instituição de crédito quando abusivamente procedeu à compensação do seu crédito com os valores depositados pelos autores nem o reconhecimento de que um tal comportamento foi incorreto que a Relação, e bem,  houve mesmo por prepotente por se valer a ré  " da sua especial posição, de acesso e controlo da conta dos autores, e por não poder desconhecer que, face a terceiros, a perda do direito (hipoteca) só a ela podia ser imputada"; nem está questionado que, no caso, um tal comportamento importa responsabilização por danos morais face ao disposto no artigo 496.º do Código Civil.

Concluindo

I- O artigo 653.º do Código Civil quando prescreve que " os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem, consagra a designada exceção ou benefício cedendarum actionem.

II- Assim sendo, ficam desonerados da obrigação que contraíram os fiadores de um mútuo com garantia hipotecária se a instituição de crédito renunciou à hipoteca, emitindo documento de cancelamento em conformidade com o disposto nos artigos 730.º, alínea d), 731.º/1 do Código Civil e 56.º do Código do Registo Predial.

III- A instituição de crédito é responsável enquanto comitente nos termos dos artigos 500.º e 998.º/1 do Código Civil pelo ato de emissão do documento necessário ao cancelamento praticado pelo seu gerente ainda que contra as instruções da própria instituição de crédito, sendo certo que a emissão de documento válido teria necessariamente de provir de funcionário com poderes bastantes conferidos pela instituição de crédito.

IV- O crédito que a instituição de crédito continua a manter sobre o respetivo devedor não lhe permite, sob pena de ilicitude, compensá-lo sem mais com imediata apropriação das quantias que nela se encontram depositadas in casu pelos fiadores.

V- Uma tal apropriação, pela sua importância, tem a gravidade que justifica a tutela indemnizatória nos termos do artigo 496.º do Código Civil. 

Decisão: nega-se a revista.

Custas pela recorrente

Lisboa, 24 de Abril d e 2012


Lisboa, 24 de Abril de 2012

Salazar Casanova (Relator)
Fernandes do Vale
Marques Pereira

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[1] Processo distribuído no Supremo Tribunal no dia 6-3-2012 [P. 2012/306 18/07]