Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
640/13.8TVPRT.P2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ATO MÉDICO
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA PERICIAL
PROVA TABELADA
Data do Acordão: 03/29/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça controlar a decisão sobre a matéria de facto, enquanto fundada em provas sujeitas ao princípio da livre apreciação, ou seja, sem valor legalmente tabelado. 

II – Os meios de prova em que a Relação baseou a sua argumentação, de facto e de direito, consistiram em testemunhos de médicos e relatórios periciais, sujeitos a uma livre apreciação, que não coincidiu com a interpretação que deles fez o tribunal de 1.ª instância, nem com aquela que defende a recorrente.

III – Uma vez que não decorre da fundamentação de facto e de direito qualquer contradição insanável ou violação manifesta de regras de lógica, não resta a este Supremo senão confirmar o acórdão recorrido, na análise que fez acerca dos pressupostos fácticos e jurídicos da responsabilidade civil médica.

IV – A qualificação de uma intervenção cirúrgica como obrigação de resultado ou obrigação de meios não cabe aos médicos ou aos relatórios periciais, pois trata-se de conceitos jurídicos, que dependem não só dos conhecimentos médicos adquiridos nos autos, mas também de juízos e ponderações de natureza social e moral, que só um tribunal está em condições de fazer.

V – Para efeitos dessa qualificação, não devem ser adotados critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas uma análise casuística centrada no contexto e contornos de cada situação.

VI – Casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir, mesmo tratando-se de cirurgia curativa ou necessária, a natureza de obrigação de resultado.

VII – Se o paciente em face de uma luxação recidivante do ombro direito foi submetido a uma cirurgia Bristow-Latarget (cirurgia aberta que atua através da formação de um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impede a cabeça umeral de migrar para fora da articulação), recomendada pela praxis médica para debelar a referida luxação, e se esse objetivo não foi alcançado por ter ocorrido desmontagem da osteossíntese, a obrigação é de resultado.

VIII – No quadro de uma típica obrigação de resultado, incumbe ao credor lesado provar a não ocorrência do mesmo como facto constitutivo da obrigação de indemnizar (artigos 342.º, n.º 1, e 798.º, ambos do Código Civil), presumindo-se, por efeito da lei (artigo 799.º do Código Civil), a culpa do devedor lesante, sobre quem recai o ónus de ilidir tal presunção legal, demonstrando que usou de toda a diligência e cuidado, no respeito pelas leges artis, no exercício da sua atividade.

IX – Tendo o Tribunal da Relação determinado o montante da indemnização a pagar pelo hospital ao paciente, ponderando todos os elementos disponíveis (as circunstâncias relevantes do caso, o disposto na lei e as orientações da jurisprudência), sem fazer juízos discricionários ou arbitrários, conclui-se que o valor encontrado para a indemnização por danos não patrimoniais – 40.000,00 euros – não é desadequado – nem por excesso, nem por defeito – sendo desejável que os tribunais sigam uma tendência humanista para a subida gradual das indemnizações, fruto da crescente valorização dos bens jurídicos pessoais.

Decisão Texto Integral:


Acordam do Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório


1. AA, residente na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de ..., intenta a presente ação declarativa de condenação, com processo ordinário contra Hospital B..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., ... e Dr. BB, com domicílio Profissional no Hospital B..., S.A. e na qual são intervenientes como parte acessórias as Companhias de Seguros, Fidelidade, SA e Axa Portugal–Companhia de Seguros, S.A. (sucedida pela Ageas Potugal–Companhia de Seguros, S.A.), pedindo para ressarcimento dos graves e irreversíveis danos não patrimoniais elencados, peticiona sobre ambos os Réus, de forma solidária, a quantia global de € 200.000,00 (duzentos mil euros), que se reclama, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, contados desde a data de citação e até integral pagamento.

Como causa de pedir alega ter sido submetido a 3 operações cirúrgicas nas quais o 2º réu atuou com violação das legis artis causando-lhe danos que discrimina.

Alega ainda que não foi informado dos riscos da operação e que caso o tivesse sido não a teria realizado.


2. Devidamente citada contestou a 1ª Ré, alegando em suma que apenas interveio aqui como disponibilizadora de meios, não podendo caber-lhe qualquer responsabilidade na sequência de qualquer decisão tomada ou ato encetado pelo médico-cirurgião, aqui 2.º Réu, ou pela equipa que o mesmo tinha ao seu serviço, equipa esta que atuou, de forma concertada, sob as ordens e instruções do 2.º Réu, tendo este assumido a sua liderança.

Acaba pedindo a improcedência da ação.


3. O 2º Réu contesta pedindo a sua absolvição, alegando em síntese que:

a) Nunca o Réu assegurou ou se comprometeu perante o Autor, ou qualquer outro seu paciente, o resultado da intervenção cirúrgica a que este se submeteu.

b) O 1º ato cirúrgico correu sem qualquer intercorrência de relevo.

A cirurgia foi executada pelo Réu no estrito cumprimento das legis artis e praxis clínica e o seu objetivo – criação de um batente ósseo, fixado por parafuso, que impede a cabeça do úmero de migrar para forma da articulação – foi atingido plenamente, tendo sido verificado, durante a cirurgia, quer pelo Réu, quer pelo 2º cirurgião, Dr. CC, a correta colocação do material e a solidez daí decorrente.

c) O autor foi ainda sujeito a uma terceira cirurgia por ter desenvolvido uma capsulite adesiva ao ombro. A qual se deve apenas ao processo recuperatório do metabolismo do Autor e aos movimentos, esforços e exercícios realizados pelo Autor, pós cirurgicamente e aos quais o Réu e a sua prática clínica e cirúrgica é absolutamente alheia.


4. A interveniente Axa Portugal–Companhia de Seguros, S.A pede a sua absolvição, pois, defende que resulta ter o médico R. agido em tudo de acordo com a boa prática médica, em nada lhe sendo imputáveis as lesões de que o A. diz padecer. Tendo sido, antes, a grande maioria das mesmas, consequência normal e previsível de qualquer intervenção cirúrgica – como é o caso da cicatriz operatória, da perda de algum sangue, de algum nível de dor na recuperação e dos resultados do entubamento – consequências essas que não podia o A. ignorar.

Ademais, como se demonstrou, a desmontagem da osteossíntese ficou-se a dever não a qualquer ação ou omissão por parte do médico R. mas sim da própria ação do A., nomeadamente, com os movimentos abruptos e violentos que efetuou logo após a cirurgia.


5. A interveniente Fidelidade SA, dá por reproduzida a contestação apresentada pela Ré Hospital B..., S.A..


6. Foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.


7. Tendo o processo seguido os seus regulares termos, teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.


8. A final, foi proferida decisão que julgou a ação totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu os Réus dos pedidos contra eles formulados.


9. Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor recurso de apelação, concluindo com extensas alegações que aqui nos abstemos de reproduzir.


10.  O Tribunal da Relação considerou procedente o recurso, proferindo acórdão que terminou com o seguinte dispositivo:

«Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente, por provada, e consequentemente revogando a decisão recorrida condena-se a Ré Hospital B..., S.A. a pagar ao Autor a quantia de € 40.000,00 (quarente mil euros) acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.


Custas por apelante e apelada Ré Hospital B..., S.A. na proporção do decaimento (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil)».


11. Hospital L ..., SA, notificada do Acórdão do Tribunal da Relação ... de 6 de setembro de 2021, que julgou parcialmente procedente a apelação e revogou a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., não se conformando com o teor do mesmo, vem dele interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões:

«I. O Tribunal a quo considerou, erradamente, que a Recorrente estava adstrita a uma obrigação de resultado.

II. O Tribunal de 1.ª Instância entendeu “não poder considerar-se que existisse uma obrigação de resultado, porque este não deu qualquer garantia de cura do paciente, mas apenas a que respeita a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa, mediante observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médica.”

Contrariamente, o Tribunal a quo entendeu estar-se perante uma cirurgia (de Bristow-Latarjet) que “em si consistia num procedimento único, simples e efetivo”, ou seja, na qual “a álea não tinha um papel de relevo”, cujo objetivo era a criação de um batente ósseo, fixado por parafuso, que impedia a cabeça do úmero de migrar para fora da articulação e, assim, evitar a luxação recidivante de que o Autor, aqui Recorrido, sofria.

III. Como é consabido, a obrigação do médico traduz-se, salvo raras exceções, numa obrigação de meios e não de resultado, pois que a sua obrigação é de tratamento e não de cura. Por outras palavras, aquilo a que o médico se vincula, e, por isso, o que dele se pode exigir, é que empregue os específicos conhecimentos científicos e técnicos adequados à patologia em causa, mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis), atento o concreto caso clínico.

IV. No caso concreto, da factualidade assente resulta que nunca o médico-cirurgião assegurou ou se comprometeu perante o Autor o resultado da intervenção cirúrgica a que se submeteu (cf. ponto 58. dos factos provados).

Acresce que, o Réu, aqui Recorrido, não logrou demonstrar que o médico-cirurgião se houvesse comprometido com o resultado da operação de Bristow-Latarjet (cfr. pontos 1. e 3. dos factos não provados). É, desta forma, incorreta e incompreensível a afirmação por parte do Tribunal a quo na parte em que refere que o médico-cirurgião apenas não assegurou que o Autor deixasse de ter luxações recidivantes do ombro direito com a dita intervenção, porque em manifesta contrariedade com a factualidade assente.

V. É fácil de ver que a intervenção em causa, a operação Bristow-Latarjet, não se enquadra, nem sequer se aproxima de qualquer dos serviços médicos caraterizados por uma obrigação de resultado.

VI. Ora, o Tribunal a quo considerou, erradamente, que a realização da cirurgia Bristow-Latarjet era passível de ser qualificada como uma obrigação de resultado – a criação de um batente ósseo – por entender que “a cirurgia em si, consistia num procedimento único, simples e efetivo”, pelo que “a álea não tinha aqui um papel de relevo”.

VII. Acontece que a premissa de que aquela configura uma intervenção de “margem de risco ínfima” não é, afinal, verdadeira. Conforme resultou demonstrado da prova pericial efetuada na 1.ª instância, a desmontagem da osteossíntese é frequente e chega a atingir 15% a 25% dos pacientes submetidos à operação de Bristow-Latarjet (cfr. p. 23 da Sentença).

VIII. A vasta literatura médica aponta, precisamente, para valores da mesma ordem, a partir de estudos empírico e peer-reviewed.

O próprio Dr. DD (testemunha no processo e que procedeu à segunda intervenção cirúrgica) referiu tratar-se de “cirurgia simples, rápida e efetiva, mas nada é garantido” (cfr. p. 19 da sentença; sublinhado da Recorrente).

IX. O Tribunal a quo limita-se a reproduzir de forma parcial e imperfeita aquilo que foi referido por este médico. O qual efetivamente descreveu a cirurgia como um procedimento simples e efetivo. No entanto, o mesmo médico não referiu apenas isso, acrescentando, nomeadamente (e como vimos) que “nada é garantido”, que a própria desmontagem da osteossíntese “já me aconteceu várias vezes” (sem que isso represente erro médico), “não posso imputar ao réu qualquer erro (…) já me aconteceu a mim, mesmo nesta cirurgia fácil” e que existem várias causas que podem contribuir para essa desmontagem – vide súmula desse depoimento na página 19 da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância.

X. Também o Dr. EE, médico ortopedista, diretor de serviço do Hospital  S..., refere uma taxa de sucesso grande mas nunca referiu a inexistência de risco (vide súmula desse depoimento na página 20 da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância).

XI. Outro médico ouvido em julgamento, Dr. FF, refere que as desmontagens podem ocorrer por defeito técnico, mal prática e até do próprio doente (vide súmula desse depoimento na página 21 da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância).

XII. Da mesma forma, o parecer emitido pelo Conselho Médico-Legal Instituto Nacional de Medicina Legal (notificado em 23 de janeiro de 2019) refere (e passamos a citar) “não encontramos sinais de negligência ou de má prática pois as complicações que surgiram (hematoma pós-operatório e desmontagem de osteossíntese), podem acontecer em qualquer cirurgia”.

XIII. O mesmo autor deste parecer acrescentou em audiência “que a desmontagem é frequente e chega a atingir 15% a 25% e é mais frequente em pacientes jovens porque têm mais massa muscular” (vide súmula desse depoimento na página 21 da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância).

XIV. Tudo isto junto, é bem demonstrativo que esta cirurgia tem evidentes riscos quanto à ocorrência da desmontagem da osteossíntese.

XV. A desmontagem é assim um risco não tão invulgar (principalmente em pessoas jovens), que pode ter várias causas, nem sempre decorrentes do erro médico.

XVI. Constando, inclusive, dos factos provados (n.º 58) que “Nunca o Réu assegurou ou se comprometeu perante o Autor, ou qualquer outro seu paciente, o resultado da intervenção cirúrgica a que este se submeteu”.

XVII. Não estando provada a alegação do Recorrido, na sua Petição Inicial, que “o Especialista Dr. BB informou o Autor que a intervenção cirúrgica a realizar seria “coisa simples”, sem complexidade técnica, sem riscos associados ou sequelas (…)” – vide facto provado n.º1.

XVIII. Assim sendo, é com manifesta surpresa que o Tribunal a quo entende estarmos perante uma obrigação de resultado, referindo que a “álea não tinha aqui um papel de relevo”.

XIX. O Tribunal a quo fez assim considerações de ordem técnica para as quais manifestamente não estava habilitado. E, salvo o devido respeito, mais grave, desconsiderou aquilo que foi referido por médicos qualificados, quer no âmbito da prova testemunhal, quer no âmbito da prova pericial.

XX. Chega, inclusive, a ser chocante a forma como o Tribunal a quo despreza os depoimentos de vários e qualificados médicos que alertam para os riscos desta cirurgia, em particular da verificação da desmontagem da osteossíntese, para ainda assim concluir com a maior segurança e sem hesitação que estamos perante uma cirurgia com obrigação de resultado.

XXI. Aliás, o próprio Recorrido por bem saber que a sua tese da existência de erro médico estava frustrada face à prova produzida é que veio, já tarde e em desespero de causa (como o Tribunal a quo o reconhece), trazer (de forma extemporânea) um novo argumento, o da falta do consentimento informado.

XXII. Pois bem, a cirurgia de Bristow-Latarjet assemelha-se, outrossim, à intervenção médico-cirúrgica destinada a aplicar a prótese no organismo do paciente, já que, em ambos os casos, se verifica uma interação com as condições pessoais do paciente e com outros fatores muitas vezes estranhos e/ou desconhecidos da ciência médica, de tal sorte que o sucesso da intervenção escapa, em larga medida, ao controlo do médico-cirurgião.

XXIII. Em consonância, o simples facto de a finalidade da cirurgia não ter sido alcançada não permite, sem mais, asseverar o incumprimento da prestação médica devida. Pelo contrário, haverá, em todo o caso, que demonstrar “a falta de diligência do médico, a falta de utilização de meios adequados de harmonia com as leges artis, o defeito do cumprimento, ou que o médico não praticou todos os atos normalmente considerados necessários para alcançar a finalidade desejada: é essa falta que integra o erro médico e constitui incumprimento ou cumprimento defeituoso.”

XXIV. Em suma, o Tribunal a quo errou ao qualificar a cirurgia Bristow-Latarjet, destinada à criação de um batente ósseo, fixado por parafuso com anilha, que impedisse a cabeça do úmero para migrar para fora da articulação e, assim, evitar a luxação recidivante do paciente, como uma intervenção na qual a álea não tem um papel relevante, errando, por conseguinte, na qualificação da mesma como uma obrigação médica de resultado.

XXV. A partir da premissa errada, o Tribunal da Relação equivocou-se ao considerar que o Autor, aqui Recorrido, logrou demonstrar o cumprimento defeituoso da prestação a que a Recorrente estava adstrita, pela simples constatação de que veio a ocorrer a desmontagem da osteossíntese.

Solução, portanto, errada, em opinião da Recorrente, tendo em conta que a obrigação merecia antes a qualificação “de meios”.

XXVI. Ora, em sede de distribuição de ónus da prova perante obrigações de meios, incumbe ao paciente lesado, na qualidade de credor, provar a falta de cumprimento do referido dever de objetivo de diligência ou de cuidado na atuação técnica, nomeadamente à luz das leges artis, como fundamento de ilicitude na responsabilidade contratual médica, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil (“CC”). Não basta, pois, a falta de verificação do resultado (no entendimento do Tribunal a quo, a “não desmontagem da osteossíntese”) para se afirmar o incumprimento.

XXVII. Numa palavra, cabia ao paciente demonstrar a ocorrência de “erro médico” na execução da cirurgia em causa, que constituiria o incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação.

XXVIII. Definitivamente, o Autor, aqui Recorrido, não demonstrou qualquer infração suscetível de enquadrar o conceito de erro médico, pelo que não ficou provada qualquer ilicitude por parte da Recorrente. De resto, do elenco de factos não provados, resulta que não ficou demonstrada a ocorrência de complicações no decurso da cirurgia (cfr. pontos 4., 5., 11. e 18. da factualidade não provada).

XXIX. Sendo assim, soçobra, logo à partida, a pretensão indemnizatória do Autor, com fundamento em responsabilidade contratual médica, por falta de um pressuposto essencial.

XXX. Sem prejuízo de tudo quanto acima se disse, por mero dever de patrocínio se dirá que, ainda que a intervenção devesse ser encarada como uma obrigação de resultado, a saber a criação do batente ósseo, nunca o Tribunal a quo poderia ter chegado à conclusão de que tal resultado não fora efetivamente atingido.

XXXI. Na verdade, o Acórdão sob escrutínio afirma, sem qualquer base factual que sustente tal afirmação, que o “que aqui se verificou foi a não realização de procedimento prévio, qual seja, a não criação de um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impedia a cabeça umeral de migrar para fora da articulação”.

XXXII. Acontece que, ao longo quer da sentença quer do acórdão, em nenhures se encontra ou se identifica que procedimento prévio seja esse que tenha levado à não criação de um batente.

XXXIII. Mas a verdade é que, tudo quanto o Tribunal a quo pode afirmar é que a desmontagem veio a ocorrer em momento posterior, e não que a osteossíntese não tenha ficado (corretamente) colocada.

XXXIV. Embora não tenha ficado demonstrado, ao contrário do que sucedera em primeira instância, que a desmontagem ocorreu por ocasião do acordar com movimentos bruscos do paciente, não ficou de modo algum demonstrado que a desmontagem da osteossíntese se ficou a dever a ato médico, tanto mais que a demonstração do pressuposto da ilicitude é tarefa probatória que cabe ao credor-lesado (precisamente por se estar perante uma obrigação de meios, como se referiu acima).

XXXV. Acrescente-se que foi realizada uma prova pericial pela entidade competente e foram inquiridos quatro qualificados médicos mais o autor do parecer médico-legal e não existe uma testemunha, um perito, um documento, do qual resulte a conclusão que existiu um erro médico e que estávamos perante uma intervenção médica sem risco.

XXXVI. Tendo sido unânime a afirmação de que a desmontagem da osteossíntese é efetivamente um risco possível (e que não é raro), com diversas causas possíveis.

XXXVII. Mesmo excluindo-se dos factos provados a causa aduzida pelos Réus (o  acordar agitado e brusco do Recorrido após a operação), não ficou demonstrada qual a real causa para a desmontagem da osteossíntese (entre as várias possíveis).

XXXVIII. Ainda que se pudesse considerar que a intervenção de Bristow-Latarjet configura uma autêntica obrigação de resultado e que o resultado não fora atingido com a sua realização – o que não se concede –, seria tão-só de concluir pela:

(iii) verificação do pressuposto da ilicitude (incumprimento); e

(iv) funcionamento da presunção legal de culpa da Recorrente, nos termos do disposto no artigo 799.º do CC.

XXXIX. Acontece que, à luz do disposto no artigo 350.º, n.º 2 do CC, a presunção de culpa do devedor é, por definição, ilidível, cabendo àquele demonstrar que, ao invés, atuou de acordo com o padrão de diligência exigido no caso concreto (ou que, em face da situação particular, não lhe era exigível que adotasse um comportamento diferente).

XL. Todos os profissionais médicos que se pronunciaram no âmbito deste processo – incluindo Réu, equipa médica que assistiu a operação, peritos independentes e testemunhas arroladas pelas partes – concordaram que o diagnóstico foi corretamente realizado, a técnica empregue era a adequada e que a cirurgia decorreu dentro da normalidade, sem intercorrências anormais.

XLI. A este nível, é incompreensível que o Tribunal a quo tenha ignorado, por completo, toda a factualidade assente e prova realizada, maxime a prova pericial, para afirmar que a Recorrente não logrou afastar a presunção de culpa que sobre si impendia.

XLII. Posto isto, deveria o Tribunal a quo ter considerado que a Ré, ora Recorrente, ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, ao demonstrar que atuou de acordo com os procedimentos médicos adequados, empregando as técnicas e os meios considerados científica e clinicamente corretos, falecendo assim qualquer imputação dos danos a título de responsabilidade civil médica.

XLIII. O Tribunal a quo entendeu ter-se por verificado o nexo de causalidade entre o incumprimento da prestação médica (a não criação de um batente ósseo, por desmontagem da osteossíntese) e o desenvolvimento de uma capsulite adesiva ou retrátil por parte do paciente, que o levou a ser intervencionado uma terceira vez.

XLIV. Conforme resulta dos factos provados, “a capsulite adesiva ao ombro não é uma consequência da prática clínica do 2º Réu” (cfr. ponto 75. dos factos provados e ainda o ponto 18. dos factos não provados).

XLV. Mais: os especialistas médicos ouvidos no processo confirmam que se trata antes de uma consequência normal da lesão (luxações recidivantes), não dependendo causalmente da conduta médica (cfr. p. 17 da sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância). Já o Prof. GG, perito ouvido no âmbito do processo e autor do Parecer do Conselho Médico-Legal, entendeu ser a capsulite “condição ligada à cicatrização, sendo independente do da atuação do cirurgião” (cfr. p. 1 do Parecer).

XLVI. Contrapõe o Tribunal a quo que, ainda assim, se trata de uma “decorrência” da segunda cirurgia, que “quiçá terá mesmo contribuído para que o Autor desenvolvesse a referida capsulite”. Salvo o devido respeito, não pode a Recorrente concordar com o “salto” lógico e especulativo que o Tribunal a quo dá. Como é sabido, a prova do nexo causal, como um dos pressupostos da obrigação de indemnizar e medida da mesma, cabe ao credor-paciente, pelo que a este caberia demonstrar, com relativa certeza, que a não desmontagem da osteossíntese (e, por conseguinte, a não desnecessidade de realizar a segunda cirurgia) impediria ou evitaria o desenvolvimento da referida capsulite.

XLVII. Manifestamente, essa prova não foi efetuada. Mais, de tudo quanto se sabe, a capsulite estará antes relacionada com a lesão subjacente ou poderá inclusivamente ter sido desenvolvida na sequência da primeira cirurgia – que sempre teria de ser efetuada.

XLVIII. O Tribunal a quo (tal como já havia feito na caraterização da cirurgia como sendo uma obrigação de resultado), também aqui se atreve a especular em matéria que não domina, ao mencionar que a capsulite teria decorrido da segunda intervenção cirúrgica, algo que nenhum médico, dos muitos que foram ouvidos em Tribunal, afirmou ter ocorrido com toda a certeza e probabilidade.

XLIX. No que aos alegados danos sofridos pelo paciente, aqui Recorrido, diz respeito, em consonância do que acima se deixou escrito relativamente ao pressuposto do nexo de causalidade, não pode a Recorrente concordar com a integração dos danos decorrentes do desenvolvimento da capsulite adesiva, incluindo a alegada agressão na integridade física associada à terceira cirurgia, o acréscimo de dor relacionada com a mesma patologia, o acréscimo de sessões de terapia, bem como internamento pelo período de dois (2) dias associado à terceira intervenção cirúrgica. A exclusão dos referidos danos resulta do normativo do artigo 563.º do CC.

L. Em segundo lugar, não se vê como os “riscos inerentes à anestesia geral”, que daí podiam advir, mas que não chegaram a concretizar-se, podem configurar danos efetivamente sofridos pelo paciente. Tratando-se de cenário meramente hipotético, errou o Tribunal a quo ao considerá-los como lesões a ressarcir.

LI. Depois, e em terceiro lugar, não se compreende como se pode considerar um dano de natureza não patrimonial o internamento durante dois (2) dias e sujeição a vários exames e tratamentos, bem como a participação num programa de recuperação de hidroterapia com alternância com fisioterapia.

LII. Em quarto lugar, o Tribunal a quo entende que as segunda e terceira intervenções levaram a uma maior acentuação da cicatriz, quando não existe nada nos factos provados que permita chegar a essa conclusão.

LIII. Também aqui o Tribunal entendeu, e bem, que o Recorrido não passou por elevado sofrimento físico e psicológico, com afetação da sua imagem, fruto da cicatriz (vide facto não provado n.º 9). Assim, não se percebe como pode ser relevante a existência da cicatriz para se concluir pela existência de um dano não patrimonial que deva ser ressarcível.

LIV. Por outro lado, não é possível avaliar a situação do Recorrido sem ter em atenção a primeira cirurgia, a qual era inevitável e sempre foi tido como o tratamento mais adequado face à sua lesão. Quer isto dizer que o Recorrido sempre seria sujeito a uma intervenção, com as consequências e sequelas que dai adviriam (veja-se o exemplo da cicatriz). Ora, o Tribunal a quo não faz qualquer ponderação a esse respeito (provavelmente por não estar habilitado para o fazer ou ter informação para o efeito), imputando todos os danos e sequelas às segunda e terceira intervenções.

LV. Não deixa de se considerar como contraditório o Tribunal considerar a existência de danos patrimoniais embora (e bem) tenha considerado como factos não provados um conjunto de factos relevantes para aferir a existência desses alegados danos.

LVI. Finalmente, considera a Recorrente, com o devido respeito, que o Tribunal a quo se equivocou na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pelo Recorrido em consequência da atuação da primeira, ao abrigo do disposto no artigo 496.º do CC.

LVII. É notório que a indemnização fixada em €40.000,00 pelo Tribunal a quo para os danos relevados não respeita manifestamente os critérios supra explanados, e bem assim se afasta de modo substancial das práticas jurisprudenciais recentes. Assim, em casos análogos, inclusive com situações mais gravosas, foram fixadas indemnizações bem divergentes da valoração feita pelo Tribunal a quo.

LVIII. O acórdão ora recorrido violou, nomeadamente, os artigos 342.º, 350.º, 496.º, 563.º, 799.º do Código Civil

LIX. Em suma, por tudo o que se disse, deve ser revogada a decisão agora objeto de recurso, absolvendo-se assim a Recorrente do pedido, assim se fazendo

JUSTIÇA!».


12. O autor, AA, notificado das alegações e conclusões apresentadas pela Ré/Recorrente Hospital L ..., SA vem, em consequência, apresentar:

- Contra-alegações, defendendo que o acórdão recorrido fez um apuramento correto da matéria de facto e aplicou corretamente as regras de direito pertinentes;

- Recurso subordinado, quanto ao segmento que fixou o quantum indemnizatório,

Formulando as seguintes conclusões:

 «I - No segmento em que se decidiu atribuiu a indemnização a satisfazer ao Autor pela 1.ª Ré Hospital, aqui Recorrida, pelo montante de € 40.000,00 (quarenta mil euros), pese embora a assertada matéria de facto e de direito apreciadas, salvo devido respeito, atenta a matéria provada impõe-se alterar o quantum indemnizatório.

II - Provado que se mostra o erro médico, como melhor entendido pelo Venerando Tribunal recorrido, da factualidade provada, nomeadamente do que resulta dos factos 1, 30, 31, 32, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 52.1, 53, 55 e 56 é iniludível terem resultado danos não patrimoniais ao Autor merecedores de tutela do direito, dada a sua gravidade.

III - Dispõe o art.º 798.º do Código Civil que: “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.

IV – Os danos não patrimoniais sofridos pelo Recorrente ressaltam expressamente dos factos provados: a consequência da cirurgia foi devastadora e irreversível, causadora de sofrimento físico e psíquico, o autor ficou definitivamente incapacitado, limitado na mobilidade do ombro, com omalgia, com afectação da imagem decorrente da cicatriz, sendo que antes da cirurgia o autor sofria apenas as consequências da luxação recidivante do ombro, que no fundo se resumiam a dor esporádica aquando dos três episódios havidos, fazendo de forma absolutamente normal a sua vida pessoal, profissional, social e familiar.

V - É manifesto que por causa da atuação do réu médico, o autor, jovem estudante sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, jamais podendo fazer a vida que até então fazia e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo com as consequências irreversíveis que apresenta.

VI - Conforme resulta inequivocamente da matéria de facto provado: 1. Antes da cirurgia realizada pelo Réu médico em setembro de 2010, o doente padecia episódios de luxação do ombro direito - facto provado n.º 4); 2. Antes da cirurgia, pelo exame de espectroscopia de ressonância magnética nuclear (RMN) efectuado em 29.07.2010 concluiu-se que o autor apresentava: “estigmas de luxação antero-inferior ao ombro, com lesão Hill-Sacks na parte postero-superior da cabeça do úmero e sinais de ruptura da parte-inferior do labrum (lesão ou variante de lesão de Bankart). Coifa dos rotadores sem alterações, “Todos os músculos quem compõem a coifa e o musculo deltoide têm volume e sinais normais”, conforme doc. n.º 4 cujo teor se dá por reproduzido” – facto provado n.º 6; 3. Em 20.05.2011, o Autor submeteu-se a uma electromiografia, na qual consta “lesão parcial com componente axonal dos nervos axilar e (mais discreto) supra-escapular direitos, com alguma perda axonal”, conforme documento que se junta sob o n.º 31 – facto provado n.º 43; 4. A primeira cirúrgica não efectuou a osteossíntese ao ombro direito do Autor e deixou alojado no seu corpo parte da broca cirúrgica – factos provados n.ºs 24, 27, 28, 28.1 e 64; 5. O Autor teve que ser intervencionado uma segunda vez, para a retirada da ponta da broca e correcção da osteossíntese, sujeitando-se a acréscimo de dor, nova anestesia, novo período de internamento, consultas e tratamentos – factos provados n.ºs 24, 27, 28, 28.1, 29, 30, 31,32, 35, 36, 37, 38,39, 52.1; 6. O Autor desenvolveu uma capsulite adesiva ao ombro, decorrente das cirurgias efectuadas em 17/09/2010 e 07/10/2010 – factos provados n.ºs 41, 44; 7. A qual originou a necessidade de ser novamente intervencionado cirurgicamente, em 20.05.2011, sujeito a um acréscimo de dor, nova anestesia, novo período de internamento, novas consultas e tratamentos – factos provados n.ºs 44, 45, 46, 47, 48. ; 8. O Autor teve alta médica fixável em 30.09.2011, mais de um ano após a cirurgia – facto provado n.º 52; 9. O Autor ficou com inegáveis lesões e danos, nomeadamente: citarizes, atrofia da cintura escapular, rigidez nos movimentos passivos do ombro no fim dos arcos, limitação dos arcos activos da abdução em 85%, rotação externa em 30%, flexão do ombro em 105.º, um quantum doloris fixável no grau 5, um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixado em 9 pontos, necessidade de esforços suplementares e acrescidos na actividade profissional, dano estético fixável no grau 1, necessidade de tratamentos fisiátricos pelo menos 1 vez por ano, durante 5 anos, um défice funcional temporário total fixado em 9 dias e parcial fixado em 370 dias, “actividade completamente interrompida, pelo menos até à desistência do curso que frequentava à época” – factos provados n.ºs 51 e 52.; 10. O Autor apenas teve a situação clínica consolidada em 30 de setembro de 2011 – facto provado n.º 51; 11. Na sequencia directa, necessária e imediata da intervenção cirúrgica a que o Autor foi submetido no dia 17 de setembro de 2010, executada pelo 2.º Réu, nas instalações da 1.º Ré, resultou um quadro de limitação da mobilidade do ombro direito do Autor – factos provados n.º 49, 51 e 52; 12. A realização de mais duas intervenções cirúrgicas ao ombro direito do Autor, obrigaram a que o mesmo tivesse de se sujeitar a mais duas anestesias gerais e suas consequências, a um acréscimo da dor e a um acréscimo de sessões de fisioterapia – facto provado n.º 52.1; 13. Durante os 12 dias de internamento (dentro do período de 17 de setembro a 16 de julho de 2011) o Autor ficou totalmente privado de autonomia na realização dos actos básicos do seu dia-a-dia e assim dependente da ajuda de terceiros quanto a alimentação, higiene pessoal, vestir, calçar, transportes – facto provado n.º 53; 14. O Autor tem vergonha das cicatrizes visíveis no ombro direito – facto provado n.º 55; 15. O Autor concluiu o curso de ..., mas não consegue com o braço afectado levantar pesos, carregar materiais, facto que o coloca em desvantagem perante os colegas de profissão – facto provado n.º 56.

VII - A grande maioria da doutrina e da jurisprudência sustenta a tese da admissibilidade da reparação. Neste sentido encontramos Galvão Telles (Direito das Obrigações, 4 ed., pag. 300); Almeida Costa (Direito das Obrigações, pag. 396); Vaz Serra (Rev. Leg. Jur. ano 108, pag. 222); mesmo Autor em BMJ n. 83, pag. 69 e segs. António Pinto Monteiro (“Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil”, pag. 85 nota 164 e “Clausula Penal e Indemnização, pag. 31, nota 77).

VIII - No mesmo sentido, encontramos na jurisprudência diversos acórdãos, designadamente os Acórdãos do S.T.J. de 30-1-81 (BMJ n. 303, pag. 212), de 17-1-93 (Col. Jur. ano I, tomo I, pag. 61) de 09.12.93 (CJ 93-3º-174) e de 25.11.98 (BMJ 481-470), da Relação do Porto de 4-2-92 (Col. Jur. ano XVII, tomo I, pag. 232), da Relação de Coimbra de 14-4-93 (Col. Jur. ano XVIII, tomo 2, pag. 39) e da Relação de Lisboa de 17-6-93 (Col. Jur. ano XVIII, tomo 3, pag. 129) e de 15.05.03 (recurso nº 3081/03 disponível na Internet).

IX - E, mais recentemente, o Acórdão do STJ, de 07.03.2017, com referência ao processo n.º 6669/11.3TBVNG.S1, disponível em www.dgsi.pt.

X – São, assim, indemnizáveis os danos não patrimoniais emergentes da falta de cumprimento de obrigações contratuais – cfr. Acórdão do STJ de 15.06.93 (BMJ 428-534 e 534 e 535).

XI - Nos termos do artigo 496.º do Código Civil, na fixação da indemnização deverá, assim, atender- se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem, como bem foi referenciado do douto acórdão recorrido.

XII – Seguindo-se de perto o que escreveu o Prof. Inocêncio Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, pág. 297: “na impossibilidade de reparar directamente os danos pela sua natureza não patrimonial, procura-se repará-los indirectamente através de uma soma em dinheiro susceptível de proporcionar satisfações porventura de ordem espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados”; e o Prof. A. Varela in “Das Obrigações em Geral” Vol. I, pág. 502 diz que “a indemnização” por danos morais reveste uma natureza acentuadamente mista: “por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reparar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.

XIII – Para o juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de “dano”, socorremo-nos do ensinamento dos Professores PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág.501, segundo o qual “O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”; MENEZES CORDEIRO in “Direito das Obrigações”, 2° vol, p. 288 ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”, GALVÃO TELLES in “Direito das Obrigações”, 387, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma “pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado” e PINTO MONTEIRO, de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante” – cfr. “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n°l, 1° ano, Setembro, 1992, p. 21.

XIV – In casu, o erro médico de que o autor foi vítima provocou consequências, danos e sequelas graves para o Autor, pelo que entende o recorrente que o quantum indemnizatório fixado no douto acórdão recorrido não atendeu ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado, ficando muito aquém e desproporcional, por defeito, face à gravidade do dano do Autor, Recorrente.

XV - Tomando em atenção os padrões jurisprudenciais que aqui se compatibilizam, exemplificativamente (Acórdão de revista do STJ n.º 183/08, 6.ª secção, datado de 04.03.2008 – relator, o Senhor Juiz Conselheiro Fonseca Ramos;- Acórdão de Revista do STJ, datado de 07.03.2017 – relator, o Senhor Juiz Conselheiro Gabriel Catarino; - Acórdão de Revista do STJ, datado de 02.12.2020 – relatora, a Senhora Juíza Conselheiro Maria Clara Sottomayor; - Acórdão de Revista do STJ, datado de 15.05.2013 – relator, o Senhor Juiz Conselheiro Salazar Casanova) e os elementos factuais expostos, entende o recorrido como justa, adequada e equitativa a compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor a verba de 100.000,00 (cem mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.

XVI - Pelo que, tendo o douto acórdão recorrido violado, nomeadamente o disposto no artigo 496.º do Código Civil, deve ser alterada o douto acórdão recorrido, no segmento em crise, e, em consequência, ser a Recorrida Hospital condenada a pagar ao Recorrente, Autor, a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, a contar da citação até efectivo pagamento, como é de direito e de justiça».


13. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento, é pelas conclusões que se delimita o objeto de recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I - Recurso da 2.ª Ré, Hospital L ..., SA:

1 - Da questão de saber se estamos perante uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado e das consequências desta distinção para o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil contratual por ato médico;

2 – Da indemnização por danos não patrimoniais.

           

II - Recurso subordinado do autor:

2 - Da indemnização por danos não patrimoniais


Cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação

A – Os factos

Em face das alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação à matéria de facto, estão provados os seguintes factos:

1. O Autor nasceu no dia .../.../1989

2. O Dr. BB, (aqui 2.º Réu), tem clínica privada, e acompanhou (o autor) em consultas médicas ao longo do tempo, prestadas na Clínica ..., Lda., na cidade ..., conforme documento que se junta sob o n.º 3.

3. E sob sua prescrição, realizou exames radiológicos, e a toma de analgésicos.

4. Pelo referido médico especialista foi o Autor alertado para o facto de, caso se voltassem a repetir os episódios de luxação do ombro, num número máximo de três episódios, a situação só poderia ser resolvida cirurgicamente.

5. Repetiram os episódios de luxação, do mesmo ombro direito, no número de 3 (três) vezes.

6. Por ordem do Dr. BB, o autor realizou um exame de espectroscopia de ressonância magnética nuclear (RMN) efetuado em 29.07.2010, cujo relatório concluiu:

“Estigmas de luxação antero-inferior ao ombro, com lesão Hill-Sacks na parte postero-  superior da cabeça do úmero e sinais de ruptura da parte-inferior do labrum (lesão ou variante de lesão de Bankart). Coifa dos rotadores sem alterações.”, “Todos os músculos que compõem a coifa e o músculo deltóide têm volume e sinais normais”, conforme doc nº 4 cujo teor se dá por reproduzido

7. Por aquele médico especialista foi o Autor informado que apresentava uma luxação recidivante do ombro direito, (sinal de instabilidade crónica), e que, nessa medida, propunha como necessária e imprescindível a realização de uma intervenção cirúrgica, para debelar a referida luxação.

8. Entre o Autor e o médico Especialista senhor Dr. BB foi combinada a marcação por aquele de uma consulta no Hospital B..., S.A., o qual, após, lhe marcaria a intervenção cirúrgica ao ombro direito, naquela unidade hospitalar.

9. Como acordado, o Autor, ao abrigo da sua apólice de seguro n.º ...13 à Multicare–Seguros de Saúde, S.A, com sede no Apartado 24213, EC Campo de Ourique, 1251-997 Lisboa, dirigiu-se ao Hospital B..., S.A., administrado pela 1.ª Ré, a fim de marcar consulta na especialidade de Ortopedia, para ser examinado pelo Médico Especialista senhor Dr. BB.

10. O que viria a suceder no dia 09.09.2010, conforme fatura recibo emitida pela 1.ª Ré, que aqui se junta sob o documento n.º 6.

11. Foi então que, nesse dia (09.09.2010), o Autor consultou naquele hospital, o senhor Dr. BB, Especialista em Ortopedia e Traumatologia, ali ao serviço da 1.ª Ré, que examinou o autor e marcou a intervenção cirúrgica ao ombro direito, em consequência da luxação recidivante do ombro do Autor, a realizar naquela instituição hospitalar, no dia 17.09.2010.

12. Informou que, com a realização da referida cirurgia, o Autor deixava de ter as luxações recidivantes do ombro direito.

13. No dia 17.09.2010, pela manhã, deu entrada, em regime de internamento, nas instalações da 1.ª Ré, conforme faturas/recibos emitidas pela 1.ª Ré e juntam sob os documentos n.ºs 7 e 8.

14. Nesse dia tiveram lugar diligências pré-operatórias, realizadas pelos profissionais de saúde ao serviço da 1º Ré.

15. Ao final da tarde, do dia 17.09.2010, teve lugar a enunciada cirurgia, no Hospital B..., S.A., administrado pela 1.ª Ré.

16. A cirurgia foi dirigida e executada pelo 2.º Réu, o Médico Especialista Senhor Dr. BB (Facto modificado pelo Tribunal da Relação).

17. No bloco operatório, administrado pela 1.º Ré encontravam-se também presentes diversos enfermeiros e anestesista(s).

18. E consistiu numa operação de Bristow-Latarget (cirurgia aberta que atua através da formação de um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impede a cabeça umeral de migrar para fora da articulação).

19. Finda a cirurgia, o Autor foi encaminhado para uma área de recobro.

20. O 2.º Réu, nem no dia da intervenção cirúrgica, nem no dia seguinte, compareceu junto do Autor ou seus familiares, facto que já tinha comunicado e explicado, pois, estaria ausente no fim de semana.

21. O 2.º Réu, senhor Dr. BB apenas compareceu perante o Autor, para lhe conferir a alta Hospitalar, em 23.09.2010.

22. O 2º réu decidiu nesse dia, quando questionado pelo Autor sobre as faladas complicações no decorrer da cirurgia, informar o autor em data posterior.

23. Conforme agendado pelo 2.º Réu, no dia 30.09.2010, o Autor compareceu nas instalações da 1.ª Ré, foi consultado pelo 2.º Réu e, por ordens do 2.º Réu, realizou um exame radiológico–RX ao Ombro Direito, nas instalações da 1.ª Ré. Conforme doc. n.º 11 cujo teor se dá por reproduzido.

24. Ao Autor, pelo 2.º Réu foi comunicado então que tinha ocorrido a quebra da ponta da brica usada, e que esta com cerca de 2 mm não trazia nenhuma complicação, inconveniente, nem risco para a saúde do Autor, mas que seria necessário proceder a nova intervenção para colmatar a desmontagem da osteossíntese.

25. Com o intuito de recolher uma segunda opinião médica e especializada, o Autor conseguiu agendar uma consulta com o médico especialista em Ortopedia e Traumatologia, senhor Dr. DD, para o dia 06.10.2010.

26. Na referida consulta realizada pelo Dr. DD, pelo Autor foi mostrado o exame radiológico realizado nas instalações da 1.ª Ré, por prescrição do 2.º Réu.

27. Ao analisar o exame radiológico, o referido médico especialista confirmou a existência da ponta da broca alojada no ombro direito do Autor e constatou a desmontagem da osteossíntese realizada pela intervenção cirúrgica.

28. Factos que ditavam – na sua opinião – a necessidade urgente de nova intervenção cirúrgica, para nova osteossíntese ao ombro direito, sendo que o segundo Réu também considerava a necessidade urgente dessa segunda intervenção cirúrgica (Facto modificado pelo Tribunal da Relação).

28.1 A 2ª operação ocorreu face à desmontagem da osteossíntese (Facto aditado pelo Tribunal da Relação)

29. Ao final da tarde, do dia 07.10.2010, teve lugar a enunciada cirurgia, no Hospital B..., S.A., administrado pela 1.ª Ré.

30. A cirurgia foi efetuada pelo Dr. DD assistido pelo 2.º Réu, o Médico Especialista senhor Dr. BB, no bloco operatório, administrado pelo 1.º Réu, também com a presença de diversos enfermeiros e anestesista(s).

31. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, foi retirada a ponta da broca que se encontrava alojada no ombro direito o Autor, e efetuada nova osteossíntese ao ombro direito do Autor.

32. Após a cirurgia, o Autor ficou internado três dias nas instalações da 1.ª Ré, até ao dia 09.10.2010–data em que teve alta hospitalar (conforme documento que se junta sob o n.º 15).

33. Nesse dia, o 2.º Réu comunicou ao Autor que a cirurgia tinha corrido bem, sem qualquer intercorrência.

34. Mais acrescentando que, para além de ter sido realizado com sucesso o objetivo da cirurgia, (realizado a osteossíntese) tinham aproveitado para retirar os restos da broca que se encontravam alojados no ombro do Autor.

35. Posteriormente foi o Autor seguido em consulta pelo 2.º Réu, nas instalações da 1ª Ré,

36. Onde, em 21.10.2010, por indicação médica do 2.º Réu, o serviço de enfermagem da 1.ª Ré retirou os pontos da sutura e colocou os pensos na zona intervencionada, conforme documentos que se juntam sob os n.ºs 18 a 21.

37. Nessa consulta, o Autor manifestou sempre as dores que sentia.

37.1 Todos os tratamentos foram pagos diretamente ao Hospital B..., S.A., recebendo o 2º Réu uma percentagem (Facto modificado pelo Tribunal da Relação).

38. Na sequência das instruções que foram dadas pelo 2.º Réu, no dia 25.10.2010, o Autor iniciou um programa de recuperação fisiátrica da mobilidade articular, durante aproximadamente um ano, que o Autor cumpriu escrupulosamente, na esperança de uma recuperação total, natural e espontânea, conforme relatório elaborado pelo técnico Fisioterapeuta, que se junta sob o documento n.º 22.

39. Com frequência, o Autor era observado em consulta, pelo senhor Dr. BB, (2.ª Réu) nas instalações da 1.ª Ré, conforme documentos comprovativos que se juntam sob os números 23 a 30.

40. O qual ao longo do ano de 2011 não notou qualquer progressão da recuperação da mobilidade da rotação interna do ombro direito do Autor.

41. O autor manifestou um processo de capsulite retráctil adesiva decorrente das cirurgias efetuadas em 17/09/2010 e 07/10/2010” (Facto modificado pelo Tribunal da Relação)

42. O 2.º Réu comunicou ao Autor e reencaminhando-o para o aludido senhor Dr. DD, quem considerada ser o médico de referencial nacional capaz de efetuar o tratamento da capsulite adesiva por artroscopia, que considerava necessário proceder.

43. Em 20.05.2011, o Autor submeteu-se a uma eletromiografia, na qual consta “lesão parcial com componente axonal dos nervos axilar e (mais discreto) supra-escapular direitos, com alguma perda axonal”, conforme documento que se junta sob o n.º 31.

44. Em meados de julho de 2011 foi o Autor consultado pelo senhor Dr. DD, na Clínica ...., sita na Rua ..., ..., da cidade ..., após observação pelo referido especialista, foi diagnosticado ao Autor uma capsulite adesiva ao ombro “frozen shoulder”, o que ditou que o Autor fosse novamente operado, em 15.07.2011, pelo senhor Dr. DD, nas instalações do Hospital M..., na cidade ..., onde aquele presta serviço,

45. A referida cirurgia, consistiu na realização de uma artrólise artroscópica do ombro direito,

46. Tendo o Autor tido alta hospitalar, em 16.07.2011, tudo, conforme relatório clínico que se junta sob o n.º 32 e documentos n.ºs 33 e 34.

47. O autor foi sujeito a anestesia geral, esteve internado durante 2 (dois) dias, e foi sujeito a vários exames e tratamentos, nomeadamente raio-x e sutura.

48. Por prescrição do senhor Dr. DD, o Autor iniciou um programa de recuperação de hidroterapia, com alternância com fisioterapia, tendo tido alta médica em setembro de 2011 (cf. doc. n.º 22).

49. Na sequência direta, necessária e imediata da intervenção cirúrgica a que o Autor foi submetido no dia 17 de setembro de 2010, executada pelo 2.º Réu, nas instalações da 1.ª Ré, resultou um quadro de limitação da mobilidade do ombro direito do Autor.

50. Decorrente da cirurgia e por prescrição do referido médico, o Autor realizou diversas sessões de fisioterapia, em clínica da cidade ....

51. A situação clínica do Autor foi considerada consolidada em 30 de setembro de 2011, com as seguintes sequelas físicas:



52. O autor apresenta nessa data os seguintes danos corporais:






52.1 “A realização de mais 2 (duas) intervenções cirúrgicas ao ombro direito do Autor, obrigaram a que o mesmo tivesse de se sujeitar a mais duas anestesias gerais e suas consequências, a um acréscimo da dor e a um acréscimo de sessões de fisioterapia”. – (Facto aditado pelo Tribunal da Relação)

53. Durante os 12 (doze) dias de internamento hospitalar – 17 a 23 de setembro de 2010; 7 a 9 de outubro de 2010 e 15 a 16 de julho de 2011), o Autor ficou totalmente privado de autonomia na realização dos atos básicos do seu dia-a-dia e, assim, dependente da ajuda de terceiros, nomeadamente da sua mãe e irmãos, quanto a: a) alimentação; b) higiene pessoal; c) vestir; d) calçar e) transportes.

54. Antes da intervenção cirúrgica realizada pelo 2.º Réu, nas instalações da 1.ª Ré, em 17.09.2010 e consequentes lesões sofridas, o Autor era uma pessoa jovial, alegre e confiante.

55. Agora tem vergonha das cicatrizes, visíveis no seu ombro direito,

56. O Autor concluiu o curso de ..., mas não consegue com o braço afetado levantar pesos, carregar materiais, facto que o coloca em desvantagem perante os colegas de profissão.

Da contestação do 2º Réu

57. O Réu possui larga experiência clínica e cirúrgica, é pessoa conceituadíssima no meio profissional, com méritos reconhecidos pelos seus pares nacionais e estrangeiros pelo que nunca, em momento algum, afirmaria ou afirmou, que a cirurgia realizada ao ombro direito fosse “coisa simples”, sem complexidade técnica ou riscos,

58. Nunca o Réu assegurou ou se comprometeu perante o Autor, ou qualquer outro seu paciente, o resultado da intervenção cirúrgica a que este se submeteu.

59. O Autor perdeu, nunca mais de 20 cl, ou 200 ml, pelo dreno.

60. A intubação necessária para a anestesia geral a que o Autor foi sujeito, é causa

61. A cirurgia a que o Autor se sujeitou foi uma cirurgia “Bristow-Latarget”, recomendada pela praxis médica para debelar a luxação recidivante do ombro.

62. Facto eliminado pelo Tribunal da Relação.

63. A estabilidade do material colocado, e do osso, é protegida com a imobilização do braço e do ombro, com a recomendação ao doente de que não pode movimentar bruscamente, fazer força ou pegar em pesos, sob pena de desmontar a osteossíntese.

64. O que se verifica no documento 11 da PI é uma desmontagem da Osteossíntese.

65. Facto eliminado pelo Tribunal da Relação.

66. Facto eliminado pelo Tribunal da Relação.

67. Durante o internamento pós-cirúrgico que decorreu após 17 de setembro de 2010, o Autor foi diariamente visitado pelo Dr. CC, ortopedista que substituiu o Dr. BB, ausente em afazeres profissionais, mas que no entanto, acompanhou a evolução do estado do paciente, através do diálogo permanente com o Dr. CC.

68. O autor foi esclarecido do tipo e objetivo da cirurgia a que se sujeitaria, sobre a qual, aliás, tinha já ouvido a opinião de outro reputado especialista, Dr. DD.

69. É frequente, pela força que é exercida pela broca e pela resistência óssea com que aquela se depara, que a broca se fragmente.

70. Esses pequenos fragmentos, com cerca de um, dois ou três milímetros, no caso concreto eram inofensivos e inócuos para o paciente.

71. Por vezes, o seu diminuto tamanho e a sua difícil visualização num campo profusamente ensanguentado, dificulta e quase impossibilita a sua deteção, sendo até que, pelo facto de tal material ter a mesma constituição e a mesma esterilização que os restantes materiais colocados-parafusos e placas–a sua presença revela-se igualmente benigna.

72. Por isso, a sua deteção não justifica, por si só, a realização de uma cirurgia com o único propósito de ser removido.

73. O autor não está impedido de dormir para o lado direito, pegar em objetos pesados, lavar e secar o cabelo, conduzir veículos automóveis, frequentar ginásios, praticar desportos e apanhar sol.

74. O aparafusamento do osso, limita a total amplitude de alguns movimentos, limitação essa que, de todo o modo, não é incapacitante nem significa uma limitação funcional do membro.

75. A capsulite adesiva ao ombro não é uma consequência da prática clínica do 2º réu.

76. Entre a 1.ª Ré e a interveniente FIDELIDADE–COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. foi celebrado o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, com o capital seguro de 1.000.000€ (Facto modificado pelo Tribunal da Relação)

77. Entre o 2.º R e a interveniente AXA Portugal Companhia de Seguros, S.A. foi celebrado o contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil, na modalidade Ordem Profissionais, titulado pela Apólice ...32 (Facto modificado pelo Tribunal da Relação)


    B – O Direito

I – Recurso de revista da recorrente, Hospital L ..., SA

1. A responsabilidade civil médica pode ter simultaneamente natureza extracontratual e contratual, pois que o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física. Em regra, a jurisprudência aplica o princípio da consunção, de acordo com o qual o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual, solução mais ajustada aos interesses do lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada (cfr., entre outros, Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 02-06-2015, proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1 e 07-03-2017, Revista n.º 6669/11.3TBVNG.S1 - 1.ª Secção).

 As instâncias entenderam que no caso concreto estamos perante um contrato de prestação de serviços de saúde total, em que a 1.º Ré, Hospital L ..., SA, se comprometeu a disponibilizar todos os meios humanos (médicos e enfermeiros) e materiais (instalações, internamento, medicamentos) necessários ao tratamento do autor, tendo o 2º réu, médico, agido sob as ordens e direção da clínica, na medida em que foi esta quem determinou o momento da operação, o seu local, e as regras terapêuticas genéricas através da direção clínica.

Assim, aplicou-se a orientação adotada neste Supremo, segundo a qual, no âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil (cfr., entre outros,  Acórdão de 23-03-2017, proc. nº 296/07.7TBMCN.P1.S1 e 09-12-2021, Revista n.º 3634/15.5T8AVR.P1.S1).

  Pelo que foi absolvido o réu médico, tendo-se discutido no processo apenas a responsabilidade do hospital, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil, pelos atos do médico, enquanto auxiliar, na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados pelo Hospital L ..., SA.

  Relativamente à questão suscitada na revista pela recorrente Hospital L ..., SA – a qualificação da intervenção cirúrgica como obrigação de meios – o tribunal de 1.ª instância entendeu que «(…) não se pode considerar que exista uma obrigação de resultado, porque este [o médico] não deu qualquer garantia de cura do paciente, mas apenas a que respeita a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médica», entendendo que a presunção de culpa do médico (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil) «(…) não é aferida face ao resultado visado pelo paciente (cura) mas sim face ao concreto objecto da prestação que pode consistir tanto numa simples actividade, como na efectiva e concreta obtenção de um resultado» e decidindo que «In casu estamos perante um acto terapêutico pelo que a ré ilidiu a presunção de culpa mediante a demonstração de que adoptou um comportamento diligente adequado à natureza da operação». Ademais, o Tribunal Judicial da Comarca ... considerou que não havia nexo de causalidade entre as intervenções cirúrgicas dos autos e os danos sofridos pelo autor, conforme afirmado no seguinte excerto:

  «Sempre teremos de salientar que o caso presente apresenta vários problemas de causalidade.

Por um lado, não está demonstrado que a perda de rotação do ombro seja uma consequência nefasta e negativa da primeira operação, já que esta visou precisamente criar essa imobilização parcial do ombro. Por isso, o dano funcional não deriva da conduta do réu.

Depois, se a 2º operação foi efectuada precisamente na incisão da primeira então o dano estético concreto também não foi causado pelo réu.

Por último, a longa recuperação e dores acentuadas que o autor sofreu derivam também, principalmente da capsulite que se manifestou após a segunda operação. Ora, esse facto não deriva de qualquer erro do réu mas é uma consequência da simples realização da operação. Deste modo, a maior parte dos danos provados que o autor sofreu nunca poderiam ser causalmente imputados ao réu e ré. Depois, a perda de uma parte da broca, apesar da sua aparente relevância não causou qualquer dano corporal ao autor. E, por fim, a desmontagem da osteossíntese é, provavelmente imputável ao mesmo através de uma conduta não voluntária».

           

O tribunal recorrido, após alteração da matéria de facto, considerou o hospital responsável pelos danos causados pelos atos médicos praticados, e, a respeito da classificação da intervenção cirúrgica dos autos, como obrigação de meio ou de resultado, entendeu o seguinte:

«(…) cumpre salientar como já acima se referiu que independentemente do entendimento que se siga, o certo é que uma ponderação – obrigação de meios/obrigação de resultado – não deve ser feita em função da mera categorização do tipo de actividade médica, mas sim de forma casuística.

          É que se assim não for, ou seja, estende-se de tal maneira a regra base de que salvo raras excepções a obrigação assumida por um médico é de meios, começa a tornar-se mesmo difícil conceber obrigações de resultado assumidas por um médico.

          Importa, pois, retirar a discussão do rigorismo formal e procurar levá-la à materialidade das coisas e à necessidade de obter as soluções mais próximas, adequadas e melhores, isto é, justas, e simultaneamente mais pedagógicas, que operem quer ao nível do caso concreto quer como guia para futuras actuações de médicos e doentes.

Isto     dito,     como      decorre     do     quadro      factual      supra     descrito      sofrendo   o Autor/recorrente de luxação recidivante do ombro direito foi o mesmo, por indicação do 2º Réu, sujeito a uma cirurgia de Bristow-Latarget (cirurgia aberta que actua através da formação de um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impede a cabeça umeral de migrar para fora da articulação) e que é recomendada pela praxis médica para debelar a referida luxação (cfr. pontos 6., 7., 18. e 61. da fundamentação factual).

  Portanto, o objectivo da cirurgia era a criação de um batente ósseo, fixado por parafuso, que impedia a cabeça do úmero de migrar para forma da articulação e, assim, evitar a luxação recidivante de que o Autor sofria.

 Acontece que tal objectivo não foi alcançado, já que ocorreu a desmontagem da osteossíntese realizada pela intervenção cirúrgica o que obrigou a que o Autor/recorrente tivesse que ser sujeito uma 2ª intervenção cirúrgica para nova osteossíntese ao ombro direito.


Mas repare-se que a cirurgia em si consistia num procedimento único, simples, e efectivo como, aliás, foi referido por alguns especialista ortopédicos, entre eles pelo Dr. DD, ou seja, tratava-se, com recurso ao material de osteossíntese, criar um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impede a cabeça umeral de migrar para fora da articulação, ou seja, a aléa não tinha aqui um papel de relevo.


É que importa salientar que o resultado esperado com cirurgia era que a luxação recidivante de que o Autor sofria fosse debelada como, aliás, o 2º Réu informou o Autor (ponto 12. da resenha dos factos provados).

Portanto, quando no ponto 58. dos factos provados se refere que nunca o Réu assegurou ou se comprometeu perante o Autor, ou qualquer outro seu paciente, com o resultado da intervenção cirúrgica a que este se submeteu, está-se, como não pode deixar de ser, a referir que, com a mesma, o Autor deixasse de ter as luxações recidivantes do ombro direito.

           

Ora, a criação do citado batente ósseo está a montante desse resultado.

           

O que aqui se verificou foi a não realização de procedimento prévio, qual seja, a não criação de um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impedia a cabeça umeral de migrar para fora da articulação.


Daqui resulta que tendo ficado provado que o material da osteossíntese se desmontou, o Autor provou o cumprimento defeituoso da obrigação quanto este conspecto.


 Ora, demonstrado que o objectivo da cirurgia não foi alcançado nos moldes supra referidos, justifica-se recair sobre o 2º Réu o ónus de provar que usou de toda a diligência e cuidado, no respeito pelas leges artis, no exercício da sua actividade, como forma de afastar a culpa que se presume (artigo 799.º do CCivil).


Sob este conspecto (desmontagem da osteossíntese) veio o 2º Réu alegar que a mesma ocorreu porque, quando a cirurgia já tinha terminado e o paciente foi acordado pelo anestesista, teve uma reacção inesperada ergueu-se na marquesa, gesticulando com ambos os braços no ar, procurando atirar-se para o chão.

 Acontece que o referido facto não se mostra provado nos autos, já que foi eliminado, como supra se decidiu, da resenha dos factos provados.

Aliás, mesmo que assim fosse, vem provado nos autos que a estabilidade do material colocado, e do osso, é protegida com a imobilização do braço e do ombro, com a recomendação ao doente de que não pode movimentar bruscamente, fazer força ou pegar em pesos, sob pena de desmontar a osteossíntese (cfr. ponto 63. dos factos provados).


 Portanto, não se entende como, antes de acordar da anestesia, o Autor não estava já com o braço imobilizado como se impunha, procedimento que foi, aliás, referido abundantemente pelas várias testemunhas (médicos especialistas de ortopedia e enfermeiros) que depuseram a esse respeito.


Ou seja, impunha-se a um médico diligente promover uma oportuna e adequada imobilização do doente antecipando, assim, qualquer movimento que o mesmo involuntariamente pudesse fazer e que pudesse pôr em causa a operação cirúrgica.

Portanto, mesmo que os referidos movimentos bruscos tivessem ocorrido, sempre haveria de concluir-se ter então ocorrido violação da diligência e prudência na técnica de imobilização.

Diga-se, aliás, que sintomático de que a desmontagem da osteossíntese não terá advindo do comportamento do Autor quando acordou da anestesia, é o facto de a segunda cirurgia para colocação da osteossíntese ter sido feita pelo Dr. DD.

Como vem demonstrado nos autos quer o Dr. DD quer o 2º Réu foram concordantes, após a análise do exame radiológico efectuado ao ombro direito do Autor recorrente, na necessidade urgente de nova intervenção cirúrgica, para nova osteossíntese.

Acontece que, se tivesse sido o referido comportamento do Autor a causar a desmontagem, era então expectável que fosse também o 2º Réu a efectuar a segunda cirurgia, já que outra causa não teria ocorrido para a mencionada desmontagem.

É que importa enfatizar que nenhuma explicação se encontra provada nos autos, como acontece em relação à capsulite retráctil (cfr. ponto 42. dos factos provados), para que tivesse sido o Dr. DD a corrigir a osteossíntese.


Ainda neste segmento recursivo não deixa de relevar alguma falta de imperícia, falta de zelo e falta de cuidado, a circunstância de um médico experiente, independentemente de daí resultarem ou não danos, ter deixado alojado no ombro direito do Autor material cirúrgico (fragmento de broca).


É certo que ficou provado que é frequente, pela força que é exercida pela broca e pelo resistência óssea com que aquela se depara, que a broca se fragmente (cfr. ponto 69. Dos factos provados) e que o seu diminuto tamanho e a sua difícil visualização num campo profusamente ensanguentado, dificulta e quase impossibilita a sua detecção.


Todavia, para além dessa factualidade não ter ficado demonstrada nos autos em relação ao caso que nos ocupa, mesmo que assim fosse, sempre essa conduta constitui falta de zelo e cuidado, já que a mãe do Autor afirmou que o 2º Réu mostrou estranheza ao ver o exame radiológico e verificou que ponta da broca estava alojada no ombro, já que pensava que teria caído no chão, ou seja, sabendo da quebra da referida broca devia ter-se certificado que estava mesmo no chão e, não a encontrando nesse local, devia ter verificado que não estava alojada no ombro do Autor situação, aliás, mais provável».


Quid iuris?


2. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do Código Civil, será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço daquela instituição.

Ambas as instâncias aplicaram à situação dos autos, as regras da responsabilidade civil contratual, e entenderam que a classificação de um ato médico como obrigação de resultado ou de meios não pode resultar aprioristicamente do tipo de operação realizada, mas de uma análise casuística dos factos e do seu contexto.

O tribunal recorrido entendeu que, por estarmos perante uma intervenção cirúrgica simples, que não apresenta qualquer álea, se trata de uma obrigação de resultado, onerando o hospital com o ónus da prova do cumprimento das leges artis, e decidindo após alteração da matéria de facto, que fixou e interpretou de acordo com os seus poderes funcionais de livre apreciação da prova, condenar o Hospital L ..., SA ao pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais de 40.000 euros.

A recorrente contesta este entendimento, afirmando, em síntese, que as afirmações expressas no acórdão recorrido em relação ao tipo de cirurgia em causa e suas consequências assenta num conjunto de especulações contrárias aos factos provados e que não têm suporte nos relatórios periciais nem nos conhecimentos médicos.  Mais alega que existem contradições entre a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância e os factos novos aditados ou modificados pelo Tribunal da Relação e que, de qualquer modo, ficou ilidida a presunção de culpa prevista no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, bem como inexiste nexo de causalidade entre o facto imputado ao médico e os danos suportados pelo paciente.

           

Vejamos:

O tribunal recorrido eliminou da matéria de facto o n.º 65 que dava como provada um comportamento pós-operatório, involuntário, do paciente, ao qual o tribunal de 1.ª instância atribuiu o fracasso da primeira intervenção cirúrgica traduzido na desmontagem da osteossíntese e aditou um facto novo segundo o qual «41. O autor manifestou um processo de capsulite retráctil adesiva decorrente das cirurgias efetuadas em 17/09/2010 e 07/10/2010» (Facto provado n.º 41). Eliminou também o facto n.º 62, segundo o qual a cirurgia foi executada pelo Réu no estrito cumprimento das legis artis e praxis clínica e o seu objetivo foi atingido plenamente. Segundo o facto aditado pelo acórdão recorrido (facto n.º 28.1.), a 2ª operação ocorreu face à desmontagem da osteossíntese e foi opinião do 2.º Réu que seria necessário fazer uma segunda operação (facto provado n.º 28, de acordo com a modificação feita pelo acórdão recorrido). Com a passagem do ponto 12. da resenha dos factos não provados para os factos provados (Facto n.º 52.1), ficou demonstrado que “A realização de mais 2 (duas) intervenções cirúrgicas ao ombro direito do Autor, obrigaram a que o mesmo tivesse de se sujeitar a mais duas anestesias gerais e suas consequências, a um acréscimo da dor e a um acréscimo de sessões de fisioterapia”.

O tribunal recorrido com base nestas alterações factuais e na interpretação global de toda a matéria de facto, em que ponderou também a negligência do médico deixar material cirúrgico no ombro direito do paciente, durante a primeira intervenção, recorreu a conclusões e a presunções de facto para fundamentar a responsabilidade da ré pelos atos dos médicos.

 Afirmou também que a facilitação do ónus da prova do paciente, através do conceito de obrigação de resultado aplicada a uma operação curativa que costuma ser simples e eficaz, é necessária para encontrar soluções pedagógicas, adequadas e justas, que operem quer ao nível do caso concreto, quer como guia para futuras atuações de médicos e doentes. Perante a onerosidade da prova para o paciente sobre a inobservância das leges artis pelo médico, como bem afirma o acórdão recorrido, têm vindo a ser consideradas outras soluções, por exemplo, a que distingue entre atividade médica de caráter mais geral, aleatória ou complexa, e as atividades médicas especializadas em que a margem de risco seja ínfima.

Este juízo já tem sido adotado pela jurisprudência deste Supremo que tem admitido que pode haver intervenções cirúrgicas curativas que, em virtude das circunstâncias concretas do caso, devem ser tratadas como obrigações de resultado, e intervenções voluntárias e estéticas (não curativas) que devem ser consideradas obrigações de meios, tudo dependendo de uma análise casuística que tome em linha de conta o fim do ato médico, o conteúdo do ato médico, a probabilidade de o fim pretendido pelas partes ser, ou não ser, realizado e a vontade das partes, de forma a definir a distribuição do ónus da prova da tipicidade e da ilicitude da conduta do médico (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de março de 2022, Revista 33796/15.5T8LSB.L1.S1 e Nuno Pinto de Oliveira, Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica, Centro de Direito Biomédico, disponível para consulta in  https://www.centrodedireitobiomedico.org/publica%C3%A7%C3%B5es/publica%C3%A7%C3%B5es-online/imateriais-para-o-direito-da-sa%C3%BAde-ilicitude-e-culpa-na).  Na doutrina também se tem feito sentir esta tese do afastamento da relevância da diferenciação da natureza da obrigação assumida pelo médico (cfr. Carla Gonçalves, A responsabilidade civil médica: um problema para além da culpa, Centro de Direito Biomédico, número 14, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 30, nota 35 e Ferreira de Almeida). Este último Autor afirma que «O conceito de ‘obrigação de meios’ poderá gerar afinal uma ideia injustificada de responsabilidade diminuída. Colocada no âmbito adequado, como consequência da violação da obrigação de tratar, a responsabilidade contratual do médico não deve ser colocada em plano de exigência menor do que o correspondente a qualquer outra obrigação».  

Tem entendido a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que «(…) o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis). Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação» - destaque nosso (cfr. Acórdão de 23-03-2017, Revista n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1 - 2.ª Secção).

 No mesmo sentido, se pronunciaram, entre outros os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: o Acórdão de 15/12/2011, proferido no processo n.º 209/06. 3TVPRT.P1.S1[15], no qual se observa que “(…) casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, constituindo exemplo de escola a cirurgia estética de embelezamento (mas já não a cirurgia estética reconstrutiva geralmente considerada como exemplo cirúrgico de obrigação de meios), a par da execução das manobras próprias de parto, no campo da odontologia, por exemplo, a simples extracção de um dente ou colocação de um implante, a ainda nas áreas de vasectomia e exames laboratoriais”; o Acórdão de 07/10/2010, proferido no processo n.º 1364/05. 5TBBCL.G1[16], em que se considerou que, “Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios (ou de pura diligência), cabendo, assim, ao lesado fazer a demonstração em juízo de que a conduta (acto ou omissão) do prestador obrigado não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem propiciar a produção do almejado resultado. Já se se tratar de médico especialista (v.g. um médico obstetra) sobre o qual recai um específico dever do emprego da técnica adequada, se torna compreensível a inversão do ónus da prova, por se tratar de uma obrigação de resultado– devendo o mesmo ser civilmente responsabilizado pela simples constatação de que a finalidade proposta não foi alcançada (prova do incumprimento), o que tem por base uma presunção da censurabilidade ético-jurídica da sua conduta.”;  o Acórdão de 26/04/2016, proferido no processo n.º 6844/03.4TBCSC.L1.S1[17], em que se considerou que “(…) no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis”.

 A doutrina também tem adotado este critério flexível de obrigação de resultado, que não se aplica apenas, como era entendimento comum, às intervenções cirúrgicas voluntárias, mas também excecionalmente às necessárias. Neste sentido, afirma Rute Pedro, no seu estudo, A Responsabilidade Civil do Médico–Reflexões Sobre a Noção da Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, edição 2008, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 93-96, «Se o resultado desejado for, em regra (…) atingido com a actuação diligente do devedor, com a adopção da “technique appropriée”– não jogando a álea, aqui um papel de relevo–estaremos (…) perante uma obrigação determinada (…)», sendo então necessária «(…) uma actuação zelosa e competente por parte do devedor, mas ela assume uma importância menor, dada a sua quase certa eficiência profícua para a produção do resultado final. Este ocupa, assim, o lugar de maior visibilidade, quase que apagando o comportamento prévio indispensável à sua obtenção», pelo que «A não verificação da consequência pretendida e verificada num curso normal de acontecimentos, constitui base suficiente para presumir a culpa do devedor, podendo este provar a existência de um caso de força maior inultrapassável pela diligência exigível e efectivamente empregue».

Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de março de 2022, «Sendo a ilicitude um juízo de censura dirigido a um determinado comportamento, sempre será necessário aferir da desconformidade da prestação em relação ao programa contratual definido, tendo em consideração as características concretas da intervenção levada a cabo, sem ficar refém da tradicional dicotomia meios versus resultado.

De resto, para que esteja em causa a responsabilidade civil médica, a desconformidade da prestação (cumprimento defeituoso) sempre existirá, quer se trate de uma obrigação de meios ou de resultado. É evidente que em intervenção com risco diminuto uma falha pode indiciar a violação das leges artis, facilitando tal demonstração, sendo que em intervenção com elevado risco associado, uma qualquer falha poderá determinar um encargo probatório superior, em todo o caso, sempre a cargo do lesado, no âmbito da demonstração da ilicitude da conduta do médico».

 Em relação às questões de direito conhecidas pelo tribunal recorrido – a qualificação do ato médico como obrigação de resultado com a consequente inversão do ónus da prova, a presunção de culpa do médico, o nexo de causalidade entre o facto e o dano – deve dizer-se que nenhuma objeção lógico-jurídica merece o raciocínio do tribunal recorrido. Por outro lado, estes conceitos jurídicos dependem, na economia do caso concreto, estritamente da interpretação de factos e de ilações deles retiradas, o que subtrai a decisão do tribunal recorrido ao exercício do poder de revisão deste Supremo Tribunal.

 Sendo a intervenção cirúrgica dos autos, acordada entre autor e réu, simples e com uma álea muito reduzida quanto aos potenciais riscos, como entendeu o acórdão recorrido, tem lógica o raciocínio do Tribunal da Relação de que as sequelas sofridas pelo autor, bem como a necessidade de repetir a operação, demonstram que não foi devidamente executado o programa curativo acordado para a primeira cirurgia e que o resultado não foi atingido, devido à desmontagem da osteossíntese (27. Ao analisar o exame radiológico, o referido médico especialista confirmou a existência da ponta da broca alojada no ombro direito do Autor e constatou a desmontagem da osteossíntese realizada pela intervenção cirúrgica. 28. Factos que ditavam – na sua opinião – a necessidade urgente de nova intervenção cirúrgica, para nova osteossíntese ao ombro direito, sendo que o segundo Réu também considerava a necessidade urgente dessa segunda intervenção cirúrgica. 28.1 A 2ª operação ocorreu face à desmontagem da osteossíntese). Ocorrendo na 1.ª operação o alojamento da ponta da broca no ombro direito do Autor e a desmontagem da osteossíntese, entendeu o tribunal recorrido que o resultado visado pela intervenção cirúrgica não foi atingido, estando assim demonstrado o incumprimento do médico, a quem cabe, a esta luz, demonstrar o cumprimento das leges artis e dos deveres de zelo, diligência e cuidado, para afastar as presunções de ilicitude e de culpa que sobre ele recaem. Ora, em face do facto n.º 41, modificado pelo Tribunal da Relação, (O autor manifestou um processo de capsulite retráctil adesiva decorrente das cirurgias efetuadas em 17/09/2010 e 07/10/2010”), e tendo sido eliminado da factualidade provada o facto n.º 62 (A cirurgia foi executada pelo Réu no estrito cumprimento das legis artis e praxis clínica e o seu objectivo–criação de um batente ósseo, fixado por parafuso, que impede a cabeça do úmero de migrar para forma da articulação - foi atingido plenamente, tendo sido verificado, durante a cirurgia, quer pelo Réu, quer pelo 2º cirurgião, Dr. CC, a correta colocação do material e a solidez daí decorrente), não pode o litígio ser decidido a favor do médico, a não ser que este tivesse ilidido a presunção de culpa (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil), o que não logrou fazer. Como se afirma no acórdão recorrido, «no quadro de uma típica obrigação de resultado, incumbe ao credor lesado provar a não ocorrência do mesmo como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (artigos 342.º, n.º 1, e 798.º do CCivil), face ao que se presume a culpa do devedor lesante, sobre quem recai o ónus de ilidir tal presunção legal, nos termos do artigo 799.º do CCivil, demonstrando que usou de toda a diligência e cuidado, no respeito pelas leges artis, no exercício da sua actividade».

Alega ainda a recorrente que o raciocínio do Tribunal da Relação para concluir pelo erro médico incorre em contradição com os factos provados e não provados.

Mas não tem razão.

O tribunal recorrido, para fundamentar a sua decisão, recorreu a uma metodologia jurídica, não sindicável por este Supremo, que opera uma osmose entre o facto e o direito e se baseia em presunções de experiência retiradas da especificidade dos factos provados. Recorrendo às regras da ciência, da lógica e da experiência, em matéria de livre apreciação da prova, o tribunal recorrido fez ilações das quais a recorrente discorda, por defender a valia de testemunhos médicos desconsiderados pelo Tribunal da Relação ou por entender que as ilações tiradas pelo tribunal recorrido não são conformes à ciência médica e a relatórios periciais juntos aos autos ou à opinião de peritos (conclusões VII a XV e XIX, XXX, XXXVI, XL, XLI e XLV). Além do mais, a qualificação de uma cirurgia como obrigação de resultado ou obrigação de meios não cabe aos médicos ou aos relatórios periciais, pois trata-se de conceitos jurídicos, que dependem não só dos conhecimentos médicos adquiridos nos autos, mas também de juízos e ponderações de natureza social e moral, que só um tribunal está em condições de fazer.

Ademais, o tribunal recorrido, interpretando a prova na sua globalidade, baseou-se na sua convicção e interpretação dos factos, esclarecendo as partes e a comunidade jurídica, com pormenor, dos motivos que o levaram a alterar a matéria de facto e a decisão de direito. Não tendo o Supremo Tribunal de Justiça poderes cognitivos para rever a livre convicção do Tribunal da Relação, nem para conhecer de erros na apreciação da prova e na fixação da matéria de facto, salvo os casos de violação de direito probatório material (artigo 674.º, n.º 3, do CPC), aqui ausentes, resta indagar se o Tribunal da Relação utilizou os seus poderes-deveres de apreciação e modificação da matéria de facto dentro dos seus pressupostos formais e sem contradições manifestas das regras da lógica, sendo certo que extrair ilações ou presunções da matéria de facto provada é função que cabe exclusivamente às instâncias (cfr., por todos, Acórdão deste Supremo Tribunal, de 28-03-1995, proc. n.º 086116). Com efeito, não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça controlar a decisão sobre a matéria de facto, enquanto fundada em provas sujeitas ao princípio da livre apreciação, ou seja, sem valor legalmente tabelado. No que diz respeito à apreciação das provas livremente apreciadas pelo julgador existe apenas um grau de recurso, tendo a Relação o poder de alterar a decisão da 1.ª instância, desde que a decisão de facto tenha sido regularmente impugnada (cfr. artigos 674.º, n.º 3, 682.º, n.º 2, e 640.º do CPC).

Neste sentido, sobre os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-04-2013 (proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1) determinando que: «I - O STJ é, organicamente, um tribunal de revista (art. 26.º da Lei n.º 3/99, de 13-01), pelo que a sua capacidade de cognoscibilidade em matéria de recurso (de revista) está confinada a questões de direito (arts. 722.º e 729.º do CPC), confinação essa que apenas sofre um “desvio” ou entorse nos casos em que, analisada a factualidade adquirida pelas instâncias, o Supremo verifica não ser compaginável com a assumpção ou eleição de uma arrimada decisão de direito, caso em que, depois de fixar a questão de direito, envia o processo para ampliação da decisão de facto para a 2.ª instância. II - No âmbito do julgamento da matéria de facto, cabe, quase em exclusivo, às instâncias fixar os parâmetros em que o STJ terá de se movimentar para aplicar o direito, cabendo a este o papel residual de sindicar a forma e o modo como as instâncias procederam à aplicação das normas de direito probatório de que se serviram para obtenção dos juízos e veredictos a que chegaram. III - O STJ pode sindicar a decisão da matéria de facto a que as instâncias chegaram nas duas hipóteses da 2.ª parte do n.º 2 do art. 722.º do CPC: quando o tribunal recorrido tiver dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando tenham sido desrespeitadas as normas que regulam a força probatória de algum dos meios de prova admitidos no nosso sistema jurídico. IV - Não compete ao STJ, perante o quadro normativo delineado pelos arts. 721.º, n.º 2, e 722.º do CPC, sindicar a valoração feita da prova testemunhal, incluindo as presunções naturais, que as instâncias tenham extraído dos depoimentos prestados pelas testemunhas, já que se trata de apreciar livremente provas, desprovidas manifestamente de valor legal ou tarifado».

 No Acórdão de 11-07-2019 (proc. n.º 24369/16.6T8LSB.L1.S1), entendeu-se que «II. A reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte da Relação, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica a reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de o tribunal de recurso formar a sua própria convicção em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa. III. O exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respetiva disciplina processual. IV. Nesse domínio, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.ºdo CPC. V. Em face da impugnação da decisão de facto configurada pelo recorrente, a Relação deve empreender a análise crítica dos concretos meios de prova por ele convocados, não se limitando a uma apreciação global ou sincrónica da factualidade envolvente».  

Ora, apreciada a fundamentação aduzida pelo Tribunal da Relação, verifica-se que os meios de prova foram analisados de forma global e numa perspetiva crítica e fundamentada, e as conclusões de facto e de direito foram extraídas, de forma lógica e juridicamente não censurável, da matéria de facto dada como provada. O tribunal recorrido explicou porque validou um determinado testemunho e não outro, porque se afastou das conclusões de um determinado relatório pericial ou porque é que as interpretou de forma distinta do tribunal de 1.ª instância, ou porque é que se convenceu que um determinado facto não se verificou.

Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, visando o legislador garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve aquele tribunal formar a sua própria convicção. Eventuais erros na apreciação da prova não são cognoscíveis por este Supremo Tribunal, que não pode envolver-se na aplicação das presunções de facto feitas pelo Tribunal da Relação nem na sua conformidade à ciência médica ou à opinião dos peritos, como pretende a recorrente.

É aqui pertinente a orientação adotada no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 23-02-2021 (proc. n.º 2445/12.4TBPDL.L1.S1), segundo a qual «V- Cabe nos poderes da Relação alterar a decisão fáctica proferida na 1.ª instância, extraindo ilações em matéria de facto, induzindo, a partir dos factos provados, mediante raciocínios lógicos sobre conhecimentos radicados na experiência comum e na normalidade da vida, a existência de factos desconhecidos, que poderiam ser adquiridos nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigos 351.º, e 396.º do CC, e 607.º, n.º 5, do CPC). VI - É jurisprudência assente que essa atividade da Relação não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, por envolver um juízo de facto baseado em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador; admitindo-se que só assim não será se o uso de presunções pela Relação ofender qualquer normal legal, padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos julgados não provados».

 Os meios de prova em que a Relação baseou a sua argumentação, de facto e de direito, consistiram em testemunhos de médicos e relatórios periciais, sujeitos a uma livre apreciação, que não coincidiu com a interpretação que deles fez o tribunal de 1.ª instância. Uma vez que não decorre da fundamentação de facto e de direito qualquer contradição insanável ou violação manifesta de regras de lógica, não resta a este Supremo senão confirmar o acórdão recorrido, na análise que fez acerca dos pressupostos fácticos e jurídicos da responsabilidade civil médica.


4. Por último, importa indagar se o montante de indemnização arbitrado é excessivo, se não respeita os critérios legais e as práticas dos tribunais em casos anteriores, como entendeu a recorrente.

Em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade (artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil). O controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da fixação equitativa da indemnização deve dirigir-se a averiguar se estão preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria, foram aplicados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, devem ser aplicados (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 01-07-2021, Revista n.º 1279/13.3TVLSB.L1.S1).

           

O tribunal recorrido refere os seguintes danos não patrimoniais:

«Aqui chegados torna-se evidente que, em consequência da segunda e terceira cirurgias o Autor teve de se sujeitar a mais duas agressões na sua integridade física, a uma anestesia geral com os riscos inerentes que daí podiam advir (cardiovasculares e respiratórios, alérgicas, náuseas e vómitos etc.) a um acréscimo de dor e de sessões de fisioterapia (cfr. ponto 52.1 dos factos provados)».

  O quantum doloris foi fixado em 5 numa escala de 7 (cfr. ponto 52. Dos factos provados).


Por outro lado, torna-se evidente que as referidas intervenções levaram a maior acentuação da cicatriz que está agora hipopigmentada (cfr. ponto 51. da resenha dos factos provados) o que, naturalmente, levou a acentuar a vergonha que o Autor sente da mesma (cfr. ponto 55. dos factos provados). Para além disso durante o internamento para a segunda cirurgia o Autor ficou totalmente privado de autonomia na realização dos actos básicos do seu dia-a-dia e, assim, dependente da ajuda de terceiros, nomeadamente da sua mãe e irmãos, quanto a: a) alimentação; b) higiene pessoal; c) vestir; d) calçar e) transportes (cfr. pontos 37., 38. e 52.1 dos factos provados).


Acresce que, na terceira cirurgia, para além da anestesia geral, o Autor esteve internado durante 2 (dois) dias, e foi sujeito a vários exames e tratamentos, nomeadamente raio-x e sutura e por prescrição do senhor Dr. DD, o Autor iniciou um programa de recuperação de hidroterapia, com alternância com fisioterapia (cfr. pontos 47. e 48. Dos factos provados).

 

Sobre a quantificação do dano não patrimonial afirmou o Tribunal da Relação o seguinte:

«A quantificação dos danos não patrimoniais, no presente caso de evidente gravidade, será feita, tal como preceitua o citado artigo 496.º, nº 4, com recurso à equidade, tendo-se em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º, que são o grau de culpabilidade do agente (neste caso culpa presumida), a sua situação económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifiquem.

Ou seja, a equidade no que concerne à indemnização por danos não patrimoniais será o critério determinante para a fixação do seu montante, sendo que na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição”.

Porém, a fixação deste montante indemnizatório não pode cair num puro arbítrio judicial nem ser fruto da ponderação aleatória de factores, devendo-se ter em atenção critérios que se mostrem sedimentados na nossa jurisprudência.


Neste sentido, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2012, que “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.”


Ora, no que toca ao dano o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos consolidou-se na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o mesmo se situa, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e € 80.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 [cf., entre outros, os Acs. do STJ, de 10-5-12 (451/06), de 12-9-13 (1/12), de 24-9-13 (294/07), de 19-12-14 (1229/10), de 9-9-14 (121/10), de 11-2-15 (6301/13), de 12-3-15 (185/13), de 12-3-15 (1369/13), de 30-4-15 (1380/13), de 18-6-15 (2567/09) e de 16-9-16 (492/10)].

Deste modo, tomando em atenção os padrões jurisprudenciais e os elementos factuais que já atrás foram referidos entendemos como justa e adequada à compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor a verba de 40.000,00 € (quarenta mil euros)».

Atente-se que o tribunal recorrido, conforme resulta da fundamentação aduzida, teve em conta a jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal, aplicou os critérios legais da equidade e da proporcionalidade, e teve a preocupação de respeitar o princípio da igualdade entre todos os lesados, bem como a hierarquia entre bens jurídicos, entre os quais figura em primeiro lugar a vida, pelo que não se pode considerar o montante arbitrado excessivo, nem desrazoável, até porque é desejável que se siga uma tendência humanista para a subida gradual das indemnizações, fruto da crescente valorização dos bens jurídicos pessoais.


Em consequência, improcedem todas as conclusões de recurso da recorrente, Hospital L ..., SA.


5. Vejamos, agora, o recurso subordinado do Autor, que incide sobre a determinação do quantum indemnizatório, pugnando o recorrente pelo valor total do pedido, 100.000, euros.

É sempre difícil e delicado medir o sofrimento dos lesados. Estão em causa bens jurídicos pessoais como a qualidade da vida, a liberdade, a saúde, a integridade física e psíquica, integradores dos modos de ser físicos e morais da personalidade (artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil e artigos 24.º a 26.º da Constituição). Cada um destes bens é ferido de uma forma única em cada pessoa lesada, tal como única é a dor de cada indivíduo. No caso vertente o lesado era um jovem de 21 anos à data das intervenções cirúrgicas: perdeu tempo da descontração e alegria da juventude com as dores (quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7), as cirurgias e os internamentos, perdeu a sua autonomia numa idade em que é fundamental o convívio social com os pares e a sensação de liberdade, e ficou com um grau de incapacidade, que não sendo elevado, implicará ao longo da vida um esforço acrescido no seu trabalho.

Todavia, o valor total peticionado não se ajusta ao quadro geral das indemnizações em Portugal, porque equivalente às indemnizações que os tribunais costumam arbitrar em situações de lesões irreversíveis ou no caso de perda da vida. Se bem que seja defensável a subida do montante das indemnizações por danos não patrimoniais, não se pode criar uma desproporção no peso atribuído aos vários bens jurídicos consoante a sua importância e a gravidade da lesão.

Tratando-se de uma indemnização determinada de acordo com a equidade, tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, que, “(…)importa, essencialmente, num recurso de revista, verificar se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados e se se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devem ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis (…)” (…) “Sempre que se trate de compensar a dor física ou a angústia moral sofridas pelo lesado, atender-se-á ao critério pelo qual a quantia em dinheiro há-de permitir alcançar situações ou momentos de prazer bastantes para neutralizar, quanto possível, a intensidade dessa dor, sem descurar que a obrigação de ressarcir os danos morais tem mais uma natureza compensatória do que indemnizatória, fazendo funcionar a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, de forma que se tenha em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.11.2019, processo nº 1585/12.4TBGDM.P1.S1).               

Conforme se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-12-2019 (proc. n.º 669/16.4T8BGC.S1), «I – É possível ao Supremo Tribunal de Justiça aplicar critérios de equidade, nomeadamente ao nível indemnizatório, não se aderindo ao entendimento segundo o qual tal categoria pertenceria ao domínio do facto e não do direito. Além disso, um “controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado” na grande maioria dos casos, conseguirá obter resultados muito idênticos, se não até exatamente os mesmos, ao uso da equidade tout court». II – Além da equidade, igualmente proporcionalidade, igualdade e razoabilidade levam a que o montante da indemnização por danos não patrimoniais possa ser considerado não como uma espécie de simples bónus ou suplemento, mas, pelo contrário, como um “proporcionar um certo desafogo económico ao lesado que de algum modo contrabalance e mitigue as dores, desilusões, desgostos e outros sofrimentos suportados e a suportar por ele, proporcionando-lhe uma melhor qualidade de vida, fazendo eclodir nele um certo optimismo que lhe permita encarar a vida de uma forma mais positiva”, como já declarado por este Supremo Tribunal, em Acórdão de 11 de janeiro de 2011».

A esta luz, julgamos que o acórdão recorrido aplicou corretamente o critério da equidade, quer tendo em conta os seus pressupostos, quer recorrendo a uma ideia de igualdade e de proporcionalidade dentro do sistema. Foi também ponderada a gravidade dos danos que o tribunal recorrido reconheceu ser elevada, a juventude do autor e a sua sensibilidade, bem como as circunstâncias para que remete o artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil, entre elas, o grau de culpa e a situação económica do lesante e do lesado. A propósito do grau de culpa do devedor, o tribunal recorrido sopesou a circunstância de a responsabilidade médica resultar de culpa presumida e não de culpa provada, o que afasta a função sancionatória da responsabilidade civil e o aumento da indemnização através do conceito de danos punitivos, pretendido pelo recorrente.

Em face da fundamentação elaborada pelo acórdão recorrido, seria artificial apurar novamente o quantum compensatório com base em fatores aparentemente objetivos, devendo reconhecer-se ao tribunal recorrido margem para valorar a situação fáctica à luz da perspetiva do lesado. É visível na fundamentação do acórdão recorrido, que o Tribunal da Relação não omitiu nenhum elemento e que não resulta da sua argumentação qualquer discricionariedade. O acórdão recorrido “(…) julgou com base nos critérios e orientações seguidas pela jurisprudência, não fazendo um qualquer juízo discricionário ou arbitrário, conseguindo alcançar uma solução que respeita os princípios da igualdade e proporcionalidade, verificados pelo STJ enquanto tribunal de revista e no julgamento de direito” (Acórdão de 23-02-2021, proc. n.º 91/13.4TBSCD.C1.S1), ponderou cuidadosamente a factualidade provada, observou as regras jurídicas aplicáveis e alicerçou a sua decisão em critérios razoáveis, tendo ainda em consideração elementos de referência coligidos na jurisprudência.  

Como se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-01-2016 (Revista n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1), «O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade». 

Verificada a ponderação que o Tribunal da Relação fez de todos os elementos disponíveis (as circunstâncias relevantes do caso, o disposto na lei e as orientações da jurisprudência), conclui-se que o valor encontrado para a indemnização não é desadequado e, por conseguinte, não existem razões para o alterar.


Em consequência, improcedem todas as conclusões do recurso subordinado do autor.


6. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

           

I – Não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça controlar a decisão sobre a matéria de facto, enquanto fundada em provas sujeitas ao princípio da livre apreciação, ou seja, sem valor legalmente tabelado. 

II – Os meios de prova em que a Relação baseou a sua argumentação, de facto e de direito, consistiram em testemunhos de médicos e relatórios periciais, sujeitos a uma livre apreciação, que não coincidiu com a interpretação que deles fez o tribunal de 1.ª instância, nem com aquela que defende a recorrente.

III – Uma vez que não decorre da fundamentação de facto e de direito qualquer contradição insanável ou violação manifesta de regras de lógica, não resta a este Supremo senão confirmar o acórdão recorrido, na análise que fez acerca dos pressupostos fácticos e jurídicos da responsabilidade civil médica.

IV – A qualificação de uma intervenção cirúrgica como obrigação de resultado ou obrigação de meios não cabe aos médicos ou aos relatórios periciais, pois trata-se de conceitos jurídicos, que dependem não só dos conhecimentos médicos adquiridos nos autos, mas também de juízos e ponderações de natureza social e moral, que só um tribunal está em condições de fazer.

V – Para efeitos dessa qualificação, não devem ser adotados critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas uma análise casuística centrada no contexto e contornos de cada situação.

VI – Casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir, mesmo tratando-se de cirurgia curativa ou necessária, a natureza de obrigação de resultado.

 VII – Se o paciente em face de uma luxação recidivante do ombro direito foi submetido a uma cirurgia Bristow-Latarget (cirurgia aberta que atua através da formação de um batente ósseo, com um parafuso com anilha, que impede a cabeça umeral de migrar para fora da articulação), recomendada pela praxis médica para debelar a referida luxação, e se esse objetivo não foi alcançado por ter ocorrido desmontagem da osteossíntese, a obrigação é de resultado.

VIII – No quadro de uma típica obrigação de resultado, incumbe ao credor lesado provar a não ocorrência do mesmo como facto constitutivo da obrigação de indemnizar (artigos 342.º, n.º 1, e 798.º, ambos do Código Civil), presumindo-se, por efeito da lei (artigo 799.º do Código Civil), a culpa do devedor lesante, sobre quem recai o ónus de ilidir tal presunção legal, demonstrando que usou de toda a diligência e cuidado, no respeito pelas leges artis, no exercício da sua atividade.

IX – Tendo o Tribunal da Relação determinado o montante da indemnização a pagar pelo hospital ao paciente, ponderando todos os elementos disponíveis (as circunstâncias relevantes do caso, o disposto na lei e as orientações da jurisprudência), sem fazer juízos discricionários ou arbitrários, conclui-se que o valor encontrado para a indemnização por danos não patrimoniais – 40.000,00 euros – não é desadequado – nem por excesso, nem por defeito – sendo desejável que os tribunais sigam uma tendência humanista para a subida gradual das indemnizações, fruto da crescente valorização dos bens jurídicos pessoais.


  III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista do Hospital L ..., SA e considerar improcedente o recurso subordinado do autor, confirmando-se o acórdão recorrido.           

Custas da revista pela recorrente, Hospital L ..., SA

Custas do recurso subordinado a cargo do autor.


Lisboa, 29 de março de 2022


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)