Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
725/12.8TBCHV.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
INDICAÇÃO EXACTA DAS PASSAGENS DA GRAVAÇÃO
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 128.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.º 2, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 29-10-2015, PROCESSO N.º 233/09.4TBVNG.G1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 04-06-2015, PROCESSO N.º 287/13.9TBAW.G1.
Sumário :
I. O ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados (art. 640º, nº2, al. a) do CPC) deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, ao nível dos minutos ou segundos em que foram proferidas pela testemunha as expressões tidas por decisivas pelo recorrente, - não se possa perspectivar a existência de dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o pretenso erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, complemente tal indicação com uma transcrição, na própria alegação, dos excertos que tem por relevantes para o julgamento do objecto do recurso.

II. Tal ónus aplica-se à reapreciação de prova gravada, não condicionando a possível reapreciação de depoimentos que, por terem sido colhidos mediante carta rogatória, constem documentalmente dos próprios autos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA - Companhia de Seguros, SA, veio intentar acção com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB, onde conclui pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de €108.979,99, acrescida de juros vincendos, desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, em direito de regresso, por ter pago as indemnizações relativas a um acidente, em que interveio um veículo segurado na autora e conduzido pelo réu, que apresentava uma TAE de 0,62 mg/l.

O réu apresentou contestação onde conclui entendendo dever a acção ser julgada improcedente, por não provada, absolvendo-o do pedido.

A autora AA - Companhia de Seguros, SA, apresentou réplica onde conclui entendendo deverem as excepções ser julgadas improcedentes, por não provadas, concluindo como na petição inicial.

Foi elaborado despacho saneador onde foi apreciada a invocada excepção de prescrição, tendo o tribunal decidido que parte do pedido da autora, no montante de €74.860,21, referente aos pagamentos por si suportados a título de indemnização aos lesados CC e DD se encontrava prescrito, tendo o réu sido absolvido parcialmente do pedido.

Inconformada com esta decisão, a ré AA - Companhia de Seguros, SA, veio interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir em separado, com efeito devolutivo.

Foi proferido o acórdão constante do apenso que decidiu julgar a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenar o réu a pagar à autora a quantia de €25.326,96, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data da citação até integral pagamento.



2. Inconformado com a decisão proferida, veio o réu apelar, impugnando, desde logo, o decidido quanto à matéria de facto: tal impugnação foi, porém, tida por improcedente – não se apreciando sequer a impugnação deduzida quanto à valoração dos depoimentos das testemunhas, por se entender que o apelante não havia dado cumprimento adequado aos respectivos ónus – o que ditou a estabilização do seguinte quadro factual:

A. A autora exerce a atividade de seguradora de exploração de seguros.

B. No exercício da sua atividade, a autora celebrou com EE, o contrato de seguro de ramo automóvel titulado pela apólice ns 067…, nos termos do qual a autora assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula OX-...-....

C. No dia 28/01/2007, pelas 8 horas de Portugal {9 horas de Espanha), o veículo supra referido era conduzido pelo réu na Estrada N - 532, em Verin, Espanha.

D. O veículo OX circulava no sentido Verim - Portugal.

E. Após ter-se despistado, o veículo OX entrou numa abertura com cerca de um metro de profundidade que ladeia a estrada no seu lado direito.

F. Após capotou e deu diversas cambalhotas vindo a imobilizar-se a cerca de 150 metros da via.

G. No veículo seguia, além do condutor (o réu), ao seu lado direito DD, no assento traseiro direito FF e no assento traseiro esquerdo CC.

H. Em consequência do acidente DD ficou ferido e foi assistido no local e transferido para o Hospital de Verin.

I. Em consequência do acidente ficou ferido FF que foi assistido no local e transferido para o Hospital de Verin.

J. Após o que este iniciou em Portugal tratamentos de recuperação e reabilitação e consultas necessárias ao seu restabelecimento.

K. Sendo que tais lesões sofridas por FF implicaram 245 dias em que ficou impedido de realizar as atividades habituais.

L. Como consequência do acidente supra descrito FF ficou com lesões e sequelas que lhe determinaram incapacidade permanente parcial, dores e dano estético.

M. A autora, por intermédio da sua congénere e representante em Espanha, GG, SA, pagou, em 30/07/2009 a FF a quantia de € 22.281,25 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente.

N. A autora, por intermédio da sua congénere e representante em Espanha, GG, S.A, pagou os tratamentos hospitalares e assistência a FF, necessários por causa do acidente:

  a. Em 20/03/2007: a quantia de €584,34. 6

  b. Em 29/11/2007: a quantia de €291,37.

0.    A autora suportou as despesas com os tratamentos, transportes, consultas, medicamentos e reabilitação de FF, necessários por causa do acidente:

  a.          Em 14/02/2007: a quantia de €681,87.

  b.          Em 06/06/2007: a quantia de €665,90.

  c.          Em 08/06/2997: a quantia de €75,00.

  d.          Em 26/09/2007: a quantia de €440,00.

  e.          Em 30/12/2009: a quantia de €307,23.

P. A autora suportou as despesas com honorários da sua representante e de advogados em Espanha, para acompanhamento do acidente, tendo despendido:

  a.          Em 03/03/2010: a quantia de €3.500;

  b.          Em 03/03/2010: a quantia de €3.842.

Provaram-se, ainda, os seguintes factos:

1.    Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos factos assentes, o condutor do OX circulava a uma velocidade superior à que era adequada para o local.

2.      Ao descrever uma curva à direita, o condutor do OX embateu num sinal STOP, despistou-se e saiu da via.

3.     O réu foi submetido a teste de alcoolemia, sendo que o primeiro teste resultou que conduzia com uma taxa de álcool no ar expirado de 0,64 mg/l e num segundo teste com uma taxa de álcool no ar expirado de 0,62 mg/l.

4.     Apresentando sinais evidentes de ingestão de bebidas alcoólicas, designadamente: vista sanguínea, pupilas dilatadas, fala arrastada, hálito alcoólico notório e à distância e deambulação titubeante.

5.     Por conduzir sob a influência do álcool, o Réu tinha os seus reflexos diminuídos e, por isso, perdeu controlo do veículo e saiu da estrada.

6.      Também por isso, conduzia sem domínio sobre o veículo, não conseguindo impedir o despiste.

7.     O réu conduzia o veículo supra descrito no sentido Verin-Portugal, e, ao entrar na curva, entrou em despiste.



3. Passando a apreciar o objecto do recurso, considerou a Relação:

O apelante BB discorda da decisão quanto à matéria dos quesitos 32, 42, 52 e 69 da base instrutória, cuja formulação é a seguinte:

32. O réu foi submetido a teste de alcoolemia, sendo que o primeiro teste resultou que conduzia com uma TAS de 0,64g/l e num segundo teste com uma TAS de 0,G2g/l?

42. Apresentando sinais evidentes de ingestão de bebidas alcoólicas, designadamente: vista sanguínea, pupilas dilatadas, fala arrastada, hálito alcoólico notório e à distância e deambulação titubeante?

52. Por conduzir sob a influência do álcool, o réu tinha os seus reflexos diminuídos e, por isso, perdeu controlo do veículo e saiu da estrada?

69. Também por isso, conduzia sem domínio sobre o veículo, não conseguindo impedir o despiste?

A matéria em questão foi considerada provada pelo tribunal a quo e o apelante entende que a mesma deverá considerar-se como não provada.

Por outro lado, o apelante entende que a matéria do quesito 9º, onde se perguntava se o réu conduzia o veículo supra descrito no sentido Verin-Portugal, e, ao entrar na curva, entrou em despiste devido ao gelo existente na via que causou falta de aderência ao piso?", que o tribunal considerou não provada, deverá considerar-se provada.


Importa dizer, antes de mais que relativamente à matéria deste último quesito, o tribunal a quo não considerou toda a matéria aí constante não provada mas, apenas, uma parte.

Com efeito, resultou provado {ponto 7) que o réu conduzia o veículo supra descrito no sentido Verin-Portugal e, ao entrar na curva, entrou em despiste, não se tendo provado, apenas, que o réu tenha entrado em despiste devido ao gelo existente na via que causou falta de aderência ao piso.

A apelada, AA - Companhia de Seguros, SA, suscita a questão de dever ser rejeitado o recurso, quanto à matéria de facto, uma vez que o apelante não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, relativos a cada ponto concreto de facto impugnado e que impõe uma decisão diversa da tomada.

Vejamos.

No caso em apreço, no que se refere aos depoimentos das testemunhas em que funda a sua pretensão de alteração da decisão da matéria de facto, a apelante indica várias testemunhas e, invariavelmente, quanto a cada uma delas não indica, em concreto quais as passagens da gravação em que se funda a sua pretensão, antes se limita a indicar a totalidade dos depoimentos das mesmas, tendo em conta que indica a totalidade da duração da gravação.

Ora, estabelece-se no n5 1 do artigo 6405 do NCPC que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

  a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

  b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

  c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por sua vez estabelece-se no nº 2 alínea a) que no caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Ora, como resulta claramente do normativo citado, a omissão da indicação das passagens da gravação implica a imediata rejeição do recurso, o que significa que não há, sequer, lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento, uma vez que a consequência não é a rejeição do recurso mas a imediata rejeição do recurso.


Cremos que a exigência da indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso, tem a ver com a necessidade de situar exatamente a localização de tais passagens no decurso do depoimento, para que se permita, mais facilmente, a análise dos depoimentos indicados, implicando, simultaneamente uma maior responsabilização dos recorrentes na interposição dos recursos.

A propósito da rejeição do recurso, quanto a esse fundamento, refere o Dr. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, a páginas 128 que "esta solução é inteiramente compreensível e tem a sustentá-la a enorme pressão {geradora da correspondente responsabilidade) que durante décadas foi feita para que se modificasse o regime de impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliassem os poderes da Relação a esse respeito, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitiria corrigir.

Além disso, pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1a instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas...

Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor.

Trata-se, afinal de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.

Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça."

Ora, relativamente a todos os pontos da matéria de facto de que o apelante discorda, este invoca depoimentos de testemunhas em que falta, em todos eles, a indicação exata das passagens da gravação em que se fundamenta - uma vez que indicar a totalidade dos depoimentos das testemunhas é o mesmo que não indicar os concretos pontos da gravação em que se apoia para fundamentar a alteração da matéria de facto - no seu entender, a alteração da matéria de facto.

Com efeito o apelante, em todos os depoimentos das testemunhas limita-se a referir qual o início da gravação e o fim, que corresponde ao tempo total da gravação.


A lei pretendeu que as partes, ao recorrerem da decisão quanto à matéria de facto, concretizassem as passagens da gravação para se poder aquilatar da bondade das suas posições e do acerto da decisão recorrida.

A falta de indicação de tais passagens, a ser admitida, levar-nos ia à possibilidade de haver recursos genéricos contra decisão de facto, que bem poderia passar pela remissão genérica para os depoimentos de todas ou de algumas das testemunhas, quando é seguro que, dada a diversidade da matéria a que as testemunhas depõem ou podem depor, uma parte dos depoimentos nada tem a ver com a argumentação necessária à defesa da posição do recorrente.

E, como contrapartida da possibilidade de recurso da matéria de facto, não pode deixar de se exigir uma maior objetividade e acutilância na argumentação, para permitir que efetivamente se limitem os recursos às situações em que haja uma real discordância das decisões recorridas e para correção de erros da decisão e não também às situações em que apenas se pretende diferir a decisão e, assim, ganhar tempo, protelando o trânsito em julgado da mesma.

Sucede, porém, que o apelante transcreve brevíssimos excertos de depoimentos, sem, porém - mais uma vez - indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, limitando-se a referir qual o início da gravação e o fim, que corresponde ao tempo total da gravação.

Conforme se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 04/06/2015, na apelação nº 287/13.9TBAW.G1, "poder-se-á colocar a questão de saber se tal omissão - da indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso - não se deverá considerar cumprida pela transcrição do depoimento, mas parece-nos que a resposta terá de ser negativa.

Há que ponderar que, muitas das vezes, as transcrições dos depoimentos que, aliás, atualmente são facultativas, apresentam-se parcelares e não contribuem para a sua localização na gravação."

No que se refere, assim, à prova testemunhal, o recurso da matéria de facto terá de ser rejeitado, nos termos do disposto no artigo 640º nº 1 alínea b) e 2 alínea a) do NCPC.



4. Novamente inconformado, interpôs o R. a presente revista, sustentando ter cumprido adequadamente, ao impugnar a matéria de facto, os ónus procedimentais a que estava vinculado, pelo que tal impugnação devia ter sido integralmente apreciada pela Relação.

Questiona ainda a consideração que as instâncias fizeram, quer da sentença penal espanhola que o condenou pelos crimes de homicídio e ofensas corporais, invocando que a mesma não se mostra reconhecida nos termos legais, impugnando a existência de nexo causal entre o invocada taxa de alcoolemia e o despiste subsequente, sem o que não se poderiam ter por verificados os pressupostos do direito de regresso da seguradora.

A seguradora pugna pela integral confirmação do decidido no acórdão recorrido.



5. Importa, deste modo, verificar, em primeira linha, se o recorrente, ao impugnar a prova gravada, cumpriu adequadamente os ónus impostos nesta sede pela lei de processo.

O exercício efectivo pela 2ª instância do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto – incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados ou registados, prestados oralmente em audiência e sujeitos à livre valoração do tribunal – inovatoriamente consagrado na reforma de 1995/96 foi acompanhado da indispensável cautela para prevenir o risco de um abuso – ou uso imoderado pelos recorrentes – de tal direito; ao procurarem, na prática, provocar um novo julgamento, envolvendo a sistemática reapreciação global das provas produzidas.

Assim, para além de sempre ter vigorado um rigoroso ónus de delimitação do objecto da impugnação deduzida pelo apelante e de fundamentação minimamente concludente de tal impugnação (traduzido na necessária e cabal indicação dos pontos de facto questionados e dos meios probatórios que imponham decisão diversa sobre eles, complementado entretanto pela vinculação do recorrente a indicar qual o exacto sentido decisório que decorreria da correcta apreciação dos meios probatórios em causa, assim mostrando claramente onde estava situado o invocado erro de julgamento), estabelecia ainda o regime originário, emergente do DL 329-A/95 um ónus de transcrição das passagens da gravação em que o recorrente se fundava para demonstrar a existência do erro na apreciação das provas gravadas ou registadas (facultando-se assim ao Tribunal da Relação um suporte físico escrito, tendente a facilitar grandemente a tarefa de reapreciação dos depoimentos e, pela onerosidade da tarefa de transcrição, inteiramente a cargo do recorrente, desmotivando impugnações manifestamente infundadas e ostensivamente inviáveis).

Por outro lado, procurou inviabilizar-se a possibilidade de formulação de convites ao aperfeiçoamento, geradores de incidentes dilatórios, no que se refere ao adequado cumprimento dos ónus a cargo do apelante, cabal e claramente definidos pela lei de processo, por se considerar tal possibilidade geradora de possíveis abusos e potenciadora de atrasos processuais: a falta de cumprimento adequado pelo recorrente dos ónus, claramente definidos na lei, seria, pois, indício de uma falta de consistência e seriedade na impugnação da matéria de facto que, sem mais, deveria ditar o imediato insucesso do recurso, nessa parte.

O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto: continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. Mas, se os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tiverem sido gravados, passou a caber-lhe, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC.

Ou seja: a tarefa do recorrente foi substancialmente aligeirada, ao substituir-se o pesado ónus de transcrição pelo de mera localização dos depoimentos em que se funda para invocar e demonstrar o pretendido erro de julgamento – deixando, consequentemente, a Relação (perante a evidente impossibilidade prática de se proceder à transcrição oficiosa) de dispor de um suporte escrito como base do exercício da sua função.

O artigo 690º-A foi revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que, em sua substituição, acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida); mas determinando – em termos, aliás, de duvidosa inteligibilidade (ao admitir o legislador como possível a impossibilidade de identificar de forma precisa e separada os vários depoimentos e impondo, nesse caso, a transcrição às partes) - que, sendo possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, cabe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.


O actual CPC não trouxe consigo alteração relevante no ónus de delimitação e fundamentação do recurso em sede de matéria de facto, já que o nº 1 do artigo 640º:

– manteve, sob pena de rejeição do recurso quanto à matéria de facto, o ónus de indicação obrigatória dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (al. a) e de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida (al. b), exigindo ainda ao recorrente que especifique expressamente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c);

- e à mesma rejeição imediata conduz, no actual CPC, a falta de indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de o recorrente poder apresentar a “transcrição dos excertos” relevantes.

Percorrendo, deste modo, os regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.

E – como temos entendido – devem revestir consequências substancialmente diferenciadas o incumprimento pelo recorrente do referido ónus fundamental de delimitação e estruturação do objecto da impugnação deduzida e do deficiente cumprimento daquele ónus secundário ou instrumental, tendente a permitir apenas uma localização mais fácil pelo tribunal ad quem dos meios probatórios relevantes para dirimir o objecto do recurso (cfr., por exemplo, o ac. de , proferido em 29/10/15 pelo STJ no P. 233/09.4TBVNG.G1.S1).

Na verdade, este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, ao nível dos minutos ou segundos em que foram proferidas pela testemunha as expressões tidas por decisivas pelo recorrente, não se possa perspectivar a existência de dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o pretenso erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, complemente tal indicação com uma transcrição, na própria alegação, dos excertos que tem por relevantes para o julgamento do objecto do recurso.

Saliente-se, desde já, que o depoimento dos guardas civis foi, neste caso, obtido através de carta rogatória, constando, portanto, de documento, contendo as respectivas declarações, incorporado no processo, a fls. 299/300, não se suscitando, consequentemente, quanto à respectiva valoração, qualquer problema decorrente do cumprimento ou incumprimento dos ónus referentes à impugnação de prova gravada.

Relativamente aos depoimentos gravados, prestados pelas testemunhas citadas pelo recorrente, verifica-se que este se limita efectivamente a fazer uma referenciação parcelar e truncada de determinadas respostas, atomisticamente consideradas e descontextualizadas da globalidade dos depoimentos prestados; ou seja: o recorrente não faz uma análise crítica e global das provas produzidas sobre os pontos de facto questionados, citando apenas certos excertos descontextualizados dos depoimentos de certas testemunhas.

Afigura-se, todavia, que tal fragilidade argumentativa não justifica uma decisão adjectiva, estritamente formal, de não conhecimento do objecto do recurso, dirigido à reapreciação da matéria de facto, com base na circunstância de não ter indicado, com absoluta exactidão, os momentos temporais da gravação que continham as passagens invocadas: na verdade, são realidades diferentes a rejeição liminar do recurso por razões estritamente procedimentais ou de forma, decorrentes do incumprimento formal dos ónus que a lei de processo impõe ao recorrente, e a sua possível rejeição, no plano da apreciação do mérito do recurso (mesmo nos casos em que este possa estar manifestamente votado ao insucesso, pela fragilidade da argumentação do recorrente, que não logrou, porventura, identificar adequadamente e de forma consistente um erro na apreciação da prova gravada ou registada)…


Deste modo, tendo o recorrente que impugna a matéria de facto cumprido os ónus fundamentais impostos pelo nº1 do art. 640º, delimitando o objecto do recurso, por referência a determinados quesitos, identificando os depoimentos que considera incorrectamente valorados e justificando que a resposta adequada a tal matéria de facto seria, no seu entender, a de não provado – indicando ainda, por referência ao conteúdo da acta, a localização no suporte físico da gravação de tais depoimentos, cujos excertos transcreve na alegação – considera-se que não existe obstáculo formal à apreciação do mérito da impugnação deduzida.

6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, concede-se provimento à revista, na parte em que a mesma tinha por objecto a violação da norma constante do art. 640º, nº1, al. b) e 2, al. a) do CPC, revogando, consequentemente, o acórdão recorrido no segmento em que se decidiu não proceder à reapreciação dos depoimentos invocados pelo apelante, determinando que a Relação proceda à integral apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deduzida no recurso de apelação, pelos mesmos juízes, se for possível, valorando, perante os resultados de tal reapreciação, todo o objecto do recurso.

Custas da presente revista pela entidade recorrida.


Lisboa, 02 de Junho de 2016


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor