Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P335
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: SJ200503030003353
Data do Acordão: 03/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Sumário : I  -   No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas - art. 412.º, n.º 2, als. a), b) e c), do CPP.

II - Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do art. 412.º, as especificações previstas nas als. b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição: esta disposição separa inteiramente dois momentos, partindo do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas.

III - Dos procedimentos regulados nos arts. 3.º a 9.º do DL 39/95, de 15-02, quanto ao modo como se efectua a gravação resulta que os suportes técnicos (fitas magnéticas ou outros suportes contendo a gravação) devem ser colocados pelo tribunal à disposição das partes no prazo máximo de oito dias a contar da respectiva diligência.

IV - É a tais suportes técnicos que a lei se refere no art. 412.º, n.º 4, do CPP, e não a quaisquer transcrições da prova gravada; e, como decorre da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após tal identificação e na estrita medida da referência feita, é que se procederá à transcrição do que for relevante - não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que sejam previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que lhe impõe a norma do art. 412.º, n.º 4, do CPP.

V - A transcrição é um acto posterior que incumbe ao tribunal efectuar, nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, e destina-se a permitir (rectius, a facilitar) ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada.

VI - Sendo assim, a oneração ou tarefa complementar (e posterior) da transcrição rigorosamente nada tem a ver com o prazo de recurso: é-lhe posterior, e pressupõe mesmo que esteja definido o objecto do recurso na motivação e consequentemente interposto o recurso em devido tempo.

VII - O prazo de oito dias fixado no art. 7.º do DL 39/95, de 15-02, para o tribunal facultar cópia das gravações é inteiramente compatível com o exercício do direito ao recurso nos prazos fixados, sendo que em caso de demora na disponibilidade das cópias o interessado disporá da faculdade de invocar justo impedimento: este é o sentido da jurisprudência maioritária e mais recente deste Supremo Tribunal sobre a questão.

VIII - O regime fixado no processo penal relativamente aos procedimentos para impugnar a decisão em matéria de facto revela-se, assim, coerente, com inteira autonomia, e completo, sem qualquer lacuna de regulamentação.

IX -      Se assim é no que respeita ao recurso da decisão em matéria de facto, mais impressivamente será quando o recurso se restringe à questão de direito relativamente à determinação da medida da pena: neste caso o prazo do recurso está directa e imediatamente fixado na lei e não poderá sequer sofrer qualquer dúvida de interpretação.

X - E os actos com prazos peremptórios devem ser praticados nos prazos fixados na lei, não podendo estes ser "acautelados" por declaração de intenção de exercício do direito para além deles, salvo invocação e demonstração de justo impedimento.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. "AA", solteiro, nascido em 23.01.1965, em Angola, filho de BB e de CC, residente na Rua Tenente Coronel Alfredo Pereira da Conceição, n.° ..., foi acusado pelo Ministério Público da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21°, n°1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-A anexa.
Na sequência de julgamento, o arguido foi absolver da acusação da prática de um crime de tráfico, p. nos termos do art. 21°, n°1, do Decreto-Lei nº 15 /93, de 22 de Janeiro, e condenado pela prática de crime de tráfico de menor gravidade, p. pelo art. 25° ai. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, pena que foi suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, com sujeição ao regime de prova e com a imposição ao arguido da obrigação de continuar n tratamento iniciado junto do CAT.

2. Não se conformando com a decisão, interpõe recurso para o Supremo Tribunal, limitado à «apreciação da determinação da medida da pena aplicada em virtude da condenação pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
O magistrado do Ministério Público pronunciou-se, na resposta à motivação, no sentido de que o recurso deve ser rejeitado por extemporâneo.

3.Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta foi também de opinião de que o recurso não foi interposto em tempo.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
Os elementos do processo relevantes para a decisão da questão suscitada pelo Ministério Público são os seguintes:
O acórdão recorrido foi publicado em 31 de Maio de 2004, com a leitura em audiência na presença do arguido e da sua defensora (cfr. acta de fls. 639), e depositado na secretaria na mesma data (cfr. declaração de fls. 640).
Em 16 de Junho de 2004, o arguido apresentou requerimento no qual diz vir, por esse meio, «consignar que pretende interpor recurso [...] visando, com isso, acautelar o respectivo prazo processual».
Requereu, também, «considerando que tem sido entendimento [do tribunal] o acréscimo do prazo de dez dias previsto no artigo 698º, nº 6 do CPC ao prazo indicado no artigo 411º, nº 1 do CPP (ex vi do artigo 4º do CPP) que seja autorizada a entrega dos registos magnéticos das várias sessões do julgamento para o que se facultarão, oportunamente, as respectivas cassetes».
Em 21 de Junho, o juiz despachou «satisfaça».
O recurso foi interposto em 28 de Junho de 2004, restrito à matéria de direito («apreciação da determinação da medida da pena de prisão aplicada»).

4. O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, pretendidamente típica do processo penal e das finalidades de interesse público a cuja realização esta vinculado.
A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, ás diversas hipóteses que prevê.
A intenção mantém-se após a reformulação do regime de recursos na Reforma de 1998 (Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), e a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunal das relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a assumir uma autonomia processual com regras próprias e específicas do processo penal.
Esta projecção de regime, por regra, deve conter, por si, a regulação completa relativamente a pressupostos e procedimentos, e é de tal modelo e da sua autonomia que devem partir as coordenadas para o entendimento de algum específico sector ou norma que se mostre carecido de interpretação.

5. O recurso em processo penal deve ser motivado e interposto no prazo de quinze dias a contar da notificação da decisão ou do depósito da sentença na secretaria - artigo 411º, nº 1, do Código de Processo penal (CPP).
O requerimento de interposição deve, pois, por regra, conter a motivação («o requerimento de interposição do recurso é sempre motivado» - artigo 411º, nº 2 do CPP), e a motivação deve enunciar especificadamente os fundamentos do recurso, terminando com a formulação de conclusões, «por artigos», em que o recorrente «resume as razões do pedido» - artigo 412º, n 1 do CPP.
Para além de resumir as razões do pedido, as conclusões da motivação devem respeitar as exigências do nº 2 (quando versem sobre matéria de direito) e do nº 3 (quando seja impugnada a decisão proferida em matéria de facto) do artigo 412º do CPP.
As exigências que a lei impõe para as conclusões (com a consequência, quando faltem e não sejam devidamente completadas, da rejeição do recurso) estão predeterminadas à finalidade de prevenir o uso injustificado do recurso, pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância, e assim delimitando o objecto de recurso e os termos da cognição do tribunal de recurso, tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio e não como procedimento dilatório. As referidas imposições, só aparentemente formais, destinam-se também a permitir a fluidez da decisão do recurso, contribuindo para a celeridade do processo penal na realização dos fins de interesse público a que está determinado.
E é esta também a função dos prazos fixados para a interposição do recurso: 15 dias, na coordenação razoável entre as necessidades de ponderação e de elaboração dos interessados relativamente ao uso do direito e a fluidez do curso do processo para a obtenção da decisão em tempo adequado.
Aliás, em processo penal, a motivação constitui (ou deveria constituir quando bem compreendido o sistema) tão só a enunciação dos fundamentos do recurso com a função de delimitar o respectivo objecto, podendo os recorrentes desenvolver a fundamentação nas alegações, por regra a produzir oralmente na audiência no tribunal de recurso - artigos 411º¸ nº 4 e 423º do CPP.

6. No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas - artigo 412º¸ nº 3¸ alíneas a)¸ b) e c) do CPP.
Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o nº 4 do artigo 412º¸ as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Esta disposição, que descreve um iter procedimental para quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, separa inteiramente dois momentos, partindo do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas.
A gravação da prova, enquanto meio que permite a constituição de uma base para a reapreciação da decisão em matéria de facto pelo tribunal de recurso, obedece a modos regulamentados de execução constantes dos artigos 3º a 9º do Decreto-Lei nº 39/95¸de 15 de Fevereiro.
Dos procedimentos regulados quanto ao modo como se efectua a gravação resulta que os suportes técnicos (fitas magnéticas ou outros suportes contendo a gravação) devem ser colocados pelo tribunal à disposição das partes no prazo máximo de oito dias a contar da respectiva diligência.
Deste modo, é a tais suportes técnicos (fitas gravadas ou outros) que a lei de se refere no artigo 421º¸nº 4 do CPP¸ e não a quaisquer transcrições da prova gravada a especificação das provas que no entender do recorrente impõem decisão diversa e das provas que devem ser renovadas não é feita por referência à transcrição, mas por referência aos suportes técnicos donde consta a gravação das provas.
E como decorre da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após tal identificação e na estrita medida da referência feita, é que se procederá à transcrição do que for relevante - não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que sejam previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que lhe impõe a referida norma do artigo 412º¸nº 4 do CPP.
A transcrição é um acto posterior que incumbe ao tribunal efectuar (cfr Assento nº 2/2003¸de 16 de Janeiro de 2003¸ in DR¸I série-A, de 30 de Janeiro de 2003) nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, e destina-se a permitir (rectius, a facilitar) ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada.
Mas, sendo assim, a oneração ou tarefa complementar (e posterior) da transcrição rigorosamente nada tem a ver com o prazo de recurso; é-lhe posterior, e pressupõe mesmo que esteja definido o objecto do recurso na motivação, e consequentemente interposto o recurso em devido tempo.
Esta interpretação, que resulta da simples descrição das sequências procedimentais, é inteiramente compatível com o respeito pelas exigências impostas pelo respeito dos prazos do recurso.
Com efeito, como dispõe o artigo 7º do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, o tribunal facultará cópia das gravações, devendo o mandatário, com a solicitação da cópia, fornecer as fitas magnéticas necessárias; a resposta do tribunal, no prazo máximo que a lei impõe (oito dias) é inteiramente compatível com o exercício do direito ao recurso nos prazos fixados, sendo que, em caso de demora na disponibilidades das cópias, o interessado disporá da faculdade de invocar justo impedimento. Este é o sentido da jurisprudência, maioritária e mais recente, deste Supremo Tribunal sobre a questão (cfr. v. g., os acórdãos de 30/Jan/ 02, proc. 3428/01; de 20/Março/02, proc. 363/02; de 21/Abril/04, proc. 143/04; de 23/Set/04, proc. 3028/04 e de 10/Nov/04, proc 3215/4).
O regime fixado no processo penal relativamente aos procedimentos para impugnar a decisão em matéria de facto, revela-se, assim, coerente, com inteira autonomia, e não apresenta qualquer espaço vazio; é um sistema que, nos termos descritos, apresenta completude na previsão, nos procedimentos e nos resultados da sua execução.
Sendo completo, não deixa espaços de regulamentação em aberto que importe preencher; não existe, pois, lacuna de regulamentação.
E na sua completude é diverso, em momentos essenciais, do regime relativo à impugnação da matéria de facto em processo civil. Neste, com efeito, e para além do diverso prazo de interposição (artigo 685º, nº 1 do Código de Processo Civil), e das diferentes modalidades para a apresentação dos fundamentos, a indicação dos concretos meios de prova em que se funda («passagens da gravação». - artigo 690º-A, nº 2 do CPC) é feita por referência à transcrição, que («mediante escrito dactilografado») incumbe ao recorrente.

7. Mas se é assim no que respeita ao recurso da decisão em matéria de facto, mais impressivamente será quando o recorrente efectivamente não impugne a matéria de facto, mas restrinja o recurso, como no caso, à questão de direito relativamente á determinação da medida da pena.
Neste caso, o prazo do recurso está directa e imediatamente fixado na lei e não poderá sequer sofrer qualquer dúvida de interpretação, como a que se refere aos casos de recurso em matéria de facto; o recurso deve ser interposto, e motivado, no prazo de quinze dias a contar do depósito da sentença na secretaria (artigo 411, nº 1 do CPP).
Por isso, o recorrente deveria ter interposto, e motivado, o recurso no referido prazo, não sendo bastante para tanto um requerimento como o de 16 de Junho de 2004 no qual refere pretender acautelar o prazo processual: os actos com prazos peremptórios devem ser praticados nos prazos fixados na lei, não podendo tais prazos ser «acautelados» por declaração de intenção de exercício do direito para além deles.
Salvo invocação e demonstração de justo impedimento que, no caso, não foi sequer invocado.
Na data de interposição do recurso, em 28 de Junho de 2004, estava esgotado o prazo de quinze dias fixado no artigo 411º, nº1 do CPP; o recurso é, assim, extemporâneo, e não deveria ter sido admitido (artigo 414º, nº 2 do CPP).

8. Nestes termos, rejeita-se o recurso (artigo 420º, nº 1 do CPP).
O recorrente pagará 3 UCs, como impõe o artigo 420º, nº 4 do CPP.
Taxa de justiça: 2 UCs.

Lisboa, 3 de Março de 2005
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
 Silva Flor