Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4556/18.3T8PBL-G.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
AÇÃO EXECUTIVA
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I - A revista de decisão interlocutória proferida em processo de execução mostra-se submetida ao regime especial previsto nos artigos 852.º e seguintes, do CPC, e encontra respaldo nas situações em que o recurso é sempre admissível, isto é, as denominadas impugnações gerais excepcionais contempladas no artigo 629.º, do CPC.


II - A oposição relevante de acórdãos terá de ser frontal em termos da divergência da questão (fundamental) de direito assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, integrando, por isso, a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto. Carece de relevância para tal efeito as contradições relativamente a questões conexas, bem como reportadas à argumentação enquanto obiter dictum.


III - A exequibilidade de uma sentença, ainda que proferida em acção de impugnação pauliana, não passa pela condenação expressa no cumprimento de uma obrigação, bastando que essa obrigação dela ressalte inequivocamente.


IV - A questão da (in)exequibilidade da sentença proferida em acção de impugnação pauliana em que se funda a execução contra a recorrente apreciada no acórdão recorrido não coloca em causa a autoridade do caso julgado por ela formado, situando-se no âmbito de uma problemática diversa reportada à função delimitadora da obrigação exequenda, que embora pressuponha uma actividade interpretativa da referida sentença não a ignora ou desrespeita enquanto comando de acção.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,


I - Relatório


1. AA, notificada do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra (de 07-11-2023), que julgou improcedente a apelação (interposta do despacho que indeferiu a arguição de nulidade do processo executivo por manifesta inexistência de causa de pedir relativamente à requerente), veio recorrer para este tribunal (de revista e revista excepcional), invocando os artigos 629.º, n.º2, alínea a), 671.º, nºs 1 e 2, 672.º, nº 1, alínea c), 674.º, nº1 alíneas a), b) e c), 852.º, 853.º e 854.º, todos do Código de Processo Civil (CPC).


Concluiu nas suas alegações (transcrição):


1 – A recorribilidade do presente afere-se pelo disposto no artº 629 nº 2 alínea a) e 671 nº 2 e 672 nº 1 alínea c) todos do C.P.C


2 – Podem sempre quaisquer questões do conhecimento oficioso, serem conhecidas pelo Tribunal como as versadas nos artºs 726 nº 2 alínea a) e 734 do C.P.C, mesmo que não tenham sido suscitadas pelas partes, e desde que resultem da prova e dos documentos existentes nos autos, como é o caso do presente recurso – sentença de 23/04/2021 – Processo Nº 129/20.9...


3 - O acórdão de que se recorre não se pronunciou, sobre a existência ou não de verdadeira causa de pedir, que sustente a exequibilidade da sentença do processo de Impugnação Judicial em relação à executada recorrente, questão suscitada, e que constitui nulidade insanável, a existir nos autos, do conhecimento oficioso até ao momento definido no disposto no artº 734 do C.P.C. Aliás ainda hoje não se mostra confirmado o despacho de admissão da intervenção da recorrente nos autos de execução. ( Desp. 01-03-2022).


4 – Nem no sentido estrito do título executivo, nem no título alargado, existe naqueles autos, qualquer componente condenatória, quanto ao crédito em relação à recorrente AA.


5 – Porque o Acórdão, não se pronunciou efectivamente sobre tal questão, antes preferindo declarar a preclusão do direito de arguir tal situação por parte do recorrente, o Acórdão é Nulo nos precisos termos do disposto no artº 615 nº 1 alínea d) do C.P.C


6 – Por outro lado, o Acórdão recorrido, na interpretação vertida nos autos, ofende o julgado do Processo Nº 129/20.9..., ao efectivar interpretação contrária ao que ali consta, acrescentando-lhe o que lá não se encontra, defender a exequibilidade do título, apesar da não existência de qualquer sector condenatório da recorrente, o que é contrário ao disposto nos artº 580 nº 2, 619 e 620 do C.P.C, e contra os pressupostos do artº 610 do C.C.


7 – Além do mais, o Acórdão de que se recorre mostra-se em contradição intrínseca com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Proc. Nº 2215/16.0T8OER-A.L1.S3 – 2ª Secção , proferido em 13-05-2021, do qual a final se junta cópia e protesta juntar, certidão com menção de trânsito em julgado, pelo que, além do mais, excepcionalmente deve ser admitido o presente recurso nos precisos termos do artº 672 nº 1 alínea c) do C.P.C , com as legais consequências .


8 – De verdade em ambos os acórdãos a questão em análise, cai dentro dos pressupostos de aplicação do disposto no artº 610 e 616 do C.P.C, sendo assim de conhecer da inexequibilidade do título, o que o Acórdão Fundamento aplica e o Acórdão recorrido não faz.


9 – De verdade a questão suscitada nos autos, é questão da exequibilidade do título, motivo de indeferimento liminar, por aplicação do disposto no artº 734 do C.P.C, conforme requerido, o que impõe sempre a sua sindicância em recurso, por se tratar de despacho a proferir antes da transmissão autónoma dos bens penhorados, seja de imediato, e questão do conhecimento oficioso, por se tratar de nulidade insanável, como é alegado, falta de causa de pedir em relação à recorrente.


10 – É assim clara, a similitude das situações em ambos os processos, por se tratar de impugnação de um acto, de diminuição das garantias do credor, e a aplicação do disposto nos artºs 610 e 616 do C.C.


11- Devem, assim as contradições enunciadas, e nulidades invocadas, serem declaradas, nos precisos termos do disposto no artº 615 nº 1 alínea d) do C.P.C, procedente a revista, e declarada a contradição dos acórdãos, e assim procedente a revista excepcional, revogando-se o Acórdão recorrido e arquivando-se os autos em relação à recorrente.


12 – E assim caso tal nulidade de Acórdão seja conhecida nesta instância, (S.T.J) devem os autos ser remetidos ao Tribunal da Relação a fim de o mesmo Tribunal se pronunciar sobre a mesma, caso tal se mostre necessário e devido enquadramento.


Ainda e sempre,


13 – As questões em apreço são de direito, devendo ser conhecidas nestes autos e instância e por este tribunal.


14 – Assim o aliás douto acórdão viola além do mais o disposto nos artºs 729, 734, do C.P.C e artº 610 e 616 do C.P.C.”.


2. Não foram apresentadas contra-alegações.


3. O tribunal a quo admitiu a revista, justificando nos seguintes termos: “Assim, por ser apresentado por quem tem legitimidade para o efeito e dentro do prazo legal, suba o processo de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo, ao Supremo Tribunal de Justiça – artigo 672.º n.º 3 do Código do Processo Civil/reclamando-se de revista excepcional caberá ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar.”.


II – APRECIAÇÃO DO RECURSO


De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), tendo presente o facto de o Requerente indicar, como um dos fundamentos em que sustenta a sua pretensão recursória, a ofensa de caso julgado, porque a admissibilidade da presente revista se encontra fundada no artigo 629.º, n.º2, alínea a), do CPC, o conhecimento do respectivo objecto encontra-se restrito às seguintes questões, conforme passaremos a justificar:

Da nulidade de acórdão

Da ofensa ao caso julgado


1. Os factos


Atendendo aos elementos disponíveis nos autos e em face das ocorrências processuais assinaladas pelo tribunal a quo, indicam-se as seguintes ocorrências processuais com relevância para o conhecimento do objecto do recurso:


1. Por sentença datada de 10-03-2008, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 53/04.2..., do Tribunal Judicial de ..., BB foi condenado solidariamente com CC a pagar a DD: i. uma revisão/reparação, em oficina da marca, à viatura do Autor de matrícula QJ ..., marca BMW; ii. a quantia de €15,00 (quinze euros) por dia, desde 01.09.2003, até à realização da revisão/reparação; iii. - a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais; iv. juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a data em que foi proferida a sentença até integral cumprimento.


2. DD, instaurou execução de sentença, por apenso ao mencionado processo n.º 53/04.2..., a qual veio a ser declarada extinta por falta de impulso processual do Exequente.


3. Por despacho datado de 14.11.2018, o Tribunal indeferiu o pedido de renovação da instância executiva.


4. Em 10.12.2018, DD deu entrada de novo requerimento executivo instaurado contra BB, dando origem ao Processo Executivo n.º 4556/18.3...


5. Na execução foi indicado como quantia exequenda global €31.868,66, tendo sido nomeado à penhora o quinhão hereditário que o executado BB era titular na herança aberta por óbito de seu pai EE, falecido em ........2018, no estado de casado com AA (Recorrente na presente revista).


6. Em 16.07.2018, entre BB, como primeiro outorgante, FF, como segundo outorgante e AA, como terceira outorgante, foi celebrado um contrato de doação, no qual o primeiro e segundo outorgantes declararam doar à terceira, por conta da quota disponível, o quinhão hereditário que lhes pertence na herança aberta por óbito de EE.


7. No referido contrato de doação, o primeiro e segundo outorgantes declararam que a referida herança tem o valor patrimonial global de €389.239,40 (trezentos e oitenta e nove mil, duzentos e trinta e nove euros e quarenta cêntimos) e ainda que, considerando o testamento exarado pelo falecido, os seus quinhões hereditários correspondiam a um nono cada, ou seja, o valor de €43.284,82 (quarenta e três mil, duzentos e oitenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos).


8. Nos autos de execução n.º 4556/18.3... (aludidos em 4.) foi proferido despacho (de 01.03.2022), que admitiu a intervenção principal provocada de AA, na qualidade de Executada, nos termos e limites que constam da sentença (de 23.04.2021, transitada em julgado em 29.09.2022) de impugnação pauliana (acção intentada por DD contra BB e AA, Processo n.º 129/20.9...), onde, para além do mais, foi decidido: “Declarar a ineficácia em relação ao Autor DD do contrato de doação do quinhão hereditário de que o 1.º Réu BB é titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE, a favor de AA, no valor de €43.284,82 (quarenta e três mil, duzentos e oitenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) descrito em 8.º dos factos provados, reconhecendo-lhe o direito a executar o referido quinhão no património da 2.ª Ré.”.


9. A Interveniente foi citada na execução, em 07.03.2022, tendo junto procuração em 17.03.2022 e declarado fazer seus os embargos de executado que, oportunamente, haviam sido deduzidos por BB.


10. Em 24.10.2022, juntou aos autos de execução requerimento arguindo nulidade insanável do processo, nos seguintes termos:


1 – A requerente, sendo notificada da insistência do pedido de penhora dos seus bens e a propósito do decidido no Processo de Impugnação Nº 129/20.9..., conforme requerido em 17/10/2022, pelo exequente, vem em sua defesa referir o seguinte:


2 – Apesar da sua deferida intervenção nos autos, e correspondente citação, conforme já anteriormente referido, vem para os devidos efeitos, arguir a nulidade insanável do processo em relação à requerente, por manifesta inexistência da causa de pedir, e mesmo independentemente, do já decidido no invocado processo de impugnação ( artº 195 nº 3, 186 e 196 e 200 do C.P.C;”.


11. Sobre tal requerimento recaiu despacho de indeferimento da arguição de nulidade, com o seguinte teor:


1. AA, admitida a intervir, nestes autos, como Executada, veio arguir a nulidade do processo, por inexistência de causa de pedir; que a ação de impugnação pauliana n.º 129/20.9... encontra-se em fase de recurso de fixação de jurisprudência; que nunca foi reconhecido qualquer crédito do aí impugnante; que a interveniente não foi condenada no pagamento de qualquer prestação; que inexiste titulo contra a si.


Vejamos:


Por despacho de 01 de março de 2022 foi admitida a intervenção principal provocada de AA, viúva, com o NIF ... ... .80 e residente na Rua ..., ..., na qualidade de Executada, nos termos e limites que constam da sentença de impugnação pauliana - declarou a ineficácia em relação ao Exequente do contrato de doação do quinhão hereditário de que o Executado BB é titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE, a favor de Requerida AA, no valor de 43.284,82€, reconhecendo ao Exequente o direito a executar o referido quinhão no património da Requerida AA.


A Executada / Interveniente foi citada em 7 de março de 2022.


Juntou procuração aos autos em 17 de março de 2022 e, nesse mesmo dia, neles interveio fazendo seus os embargos de executado deduzidos oportunamente por BB.


Até 24 de outubro de 2022 a Executada /Interveniente nunca questionou a razão de ser da sua intervenção nestes autos executivos e, por essa razão, aceitando-a, na esteira do exposto, fez seus os articulados deduzidos em embargos pelo primitivo Executado e nunca arguiu qualquer nulidade, anulabilidade ou qualquer outro vicio, nomeadamente o que agora invoca.


Concluímos assim pela extemporaneidade da arguição, relativamente à qual já cumprimos o contraditório.


2. Não obstante, não podemos deixar de salientar que inexiste qualquer nulidade, anulabilidade ou vicio.


Como a Executada bem sabia à data em que formulou os temerários requerimentos que agora se apreciam, em 7 de junho de 2022 o Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente a revista (notificada à Ilustre Mandatária da Executada em 08 de junho) e em 15 de setembro de 2022 foi julgada improcedente a arguição de nulidades (notificada à ilustre Mandatária da Executada em 16 de setembro) – cfr. consulta do processo n.º 129/20.9... através da plataforma viewer, o que é de conhecimento pessoas das partes (Exequente e Executados).


É assim, no mínimo, com desfaçatez, que em 24 de outubro de 2022 alega que o processo n.º 129/20.9... se encontra em fase de recurso de fixação de jurisprudência, o que reitera em 09 de dezembro.


Mesmo que assim não fosse – e é -, atente-se que nunca foi conferido efeito suspensivo às decisões, pelo que sempre se concluiria pela sua exequibilidade extrínseca e intrínseca e a Executada / Interveniente, como atual titular do quinhão hereditário, parte legítima.


Nestes termos, conclui-se, não só pela inexistência de qualquer vicio, nomeadamente nulidade e ainda, que ao formular este requerimento (e respetiva insistência), a Executada agiu sem qualquer prudência, sabendo que o mesmo é manifestamente improcedente e, por isso, vai condenada na taxa sancionatória excecional que se fixa em 2UC.”.


12. A Requerente interpôs recurso do despacho de indeferimento de nulidade, tendo o tribunal da Relação de Coimbra proferido acórdão (de 07.11.2023, que julgou a apelação improcedente), objecto da presente revista.


Questão prévia: Da admissibilidade da revista


Se bem se percepciona a pretensão recursória da Recorrente, a mesma fundamenta a revista, designando-a, para o efeito, de recurso de revista e revista excepcional:


- ao abrigo dos artigos 671.º, n.º2 e 629.º, n.º 2 alínea a), do CPC, por ofensa de caso julgado;


- ao abrigo do artigo 672.º nº 1 alínea c), do CPC, por contradição de acórdãos, indicando como acórdão-fundamento, o proferido, em 13.05.2021, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do Processo n.º 2215/16-T80ER-A.L1.S3, tendo junto cópia da publicação do aresto nas Bases Documentais do ITIJ.


Vejamos.


1. Constitui objecto da pretendida revista o recurso do acórdão do tribunal da Relação de Coimbra confirmativo do despacho de indeferimento da arguição de nulidade processual insanável, de todo o processo executivo, relativamente à Recorrente, interveniente na execução.


Está, por isso, em causa a recorribilidade de decisão com natureza interlocutória1, proferida em processo de execução.


O presente recurso, porque interposto no âmbito de um processo executivo, não pode deixar de se encontrar submetido ao regime especial previsto nos artigos 852.º e seguintes, do CPC.


Para o caso e no que aqui assume cabimento, determina o artigo 854.º, do CPC:


Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução”.


Assim sendo, a admissibilidade da revista em causa apenas encontra respaldo nas situações em que o recurso é sempre admissível, isto é, ao abrigo das denominadas impugnações gerais excepcionais contempladas no artigo 629.º, do CPC.


Todavia e porque a Recorrente invoca, também, como fundamento da revista, a existência de oposição de acórdãos, fazendo referência à revista excepcional (artigo 672.º, n.º2, alínea c), do CPC), importa fazer salientar que a mesma não assume cabimento em face da natureza da decisão em causa – decisão interlocutória2.


Com efeito conforme constitui entendimento solidificado neste tribunal, a revista excepcional apenas pode incidir sobre decisões finais3.


Ainda que no caso não assuma cabimento o recurso de revista com fundamento em oposição de acórdãos (designadamente ao abrigo do artigo 671.º, n.º2, alínea b), do CPC), cumpre sublinhar que, ao invés do pugnado pela Recorrente, não se verifica a invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do STJ de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2215/16.0T8OER-A.L1.S3, indicado como acórdão-fundamento.


2. Como tem sido reiteradamente defendido por este Tribunal, a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.


Por conseguinte, a contradição de acórdãos impõe a identidade da questão essencial objecto de apreciação nos acórdãos em confronto, constituindo pressuposto do conceito de identidade da questão que a subsunção jurídica efectuada por cada uma dessas decisões decorra do mesmo núcleo central factual.


Por outro lado, tal oposição terá de ser frontal4 em termos da divergência da questão (fundamental) de direito assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, isto é, tem de integrar a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto, carecendo de relevância para tal efeito as contradições relativamente a questões conexas, bem como reportadas à argumentação enquanto obiter dictum; nessa medida, inexistirá contradição relevante de julgados se confinada entre a decisão de uma e fundamentação de outra.


Reportando tais considerações para o caso sob apreciação, não podemos deixar de concluir que os juízos formulados no acórdão recorrido relativamente à questão da exequibilidade da sentença de impugnação pauliana de modo algum podem ser entendidos como confrontando com o entendimento em que o acórdão-fundamento sustentou a sua decisão. Acresce ainda a circunstância de tais considerações terem sido produzidas a latere do objecto do recurso5; nessa medida, não constituírem a sua ratio decidendi pelo que, ainda que se verificassem contradições, não poderiam as mesmas assumir importância de essencialidade indispensável à caracterização de oposição relevante de acórdãos.


Todavia e contrariamente ao defendido pela Recorrente (de acordo com a argumentação tecida pela mesma, a contradição dos julgados mostra-se justificada por o acórdão recorrido, ao invés do acórdão fundamento, ter entendido não ser necessário que o (re)conhecimento de crédito do exequente resulte da sentença da impugnação pauliana), os entendimentos veiculados nos acórdãos quanto à exequibilidade da sentença de impugnação pauliana mostram-se em consonância, como resulta da interpretação do teor de cada um deles.


Na esteira do posicionamento do acórdão-fundamento, o acórdão recorrido considera que a procedência da acção de impugnação pauliana permite ao credor a possibilidade de promover a execução contra o terceiro adquirente com vista a executar o bem objecto dessa impugnação no próprio património deste. E tal como defendido no acórdão fundamento6, o acórdão recorrido considerou que a exequibilidade da sentença de impugnação pauliana, para efeitos de viabilizar a execução cumulativa contra o devedor e contra o terceiro adquirente “terá de apresentar um título executivo integrado por aquele dotado de exequibilidade contra o devedor e pela sentença obtida na acção pauliana”.


2. O direito


2.1 Da nulidade por omissão de pronúncia


De acordo com o artigo 615.º, n.º1, alínea d), 1ª parte, do CPC, é nulo o acórdão quando “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.


Esta nulidade decorre da exigência prescrita no n.º2 do artigo 608.º, do CPC, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.


Relativamente ao sentido exacto a dar ao termo legal “questões”, quer a doutrina quer a jurisprudência fazem apelo à necessidade de se proceder à distinção entre “questões”, “argumentos” ou “razões”, concluindo que só a ausência de apreciação das primeiras é determinante da nulidade em referência.


Mostra-se também uniforme o entendimento quanto a considerar que na expressão «questões» não se incluem os elementos, argumentos ou raciocínios utilizados, quer pelas partes, quer pelo tribunal, para a resolução das questões que efectivamente cumpre apreciar.


Igualmente tem vindo a ser pacificamente entendido que não há omissão de pronúncia sempre que a matéria tida por omissa ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada.


Acresce que nada obriga a que o tribunal aprecie todos os argumentos invocados pelas partes, impondo-se apenas que indique a razão que serve de fundamento à decisão proferida.


Pugna a Recorrente pela nulidade do acórdão considerando que se impunha ao tribunal a quo pronunciar-se acerca da existência da causa de pedir que sustentasse a exequibilidade da sentença de impugnação pauliana. Refere nesse sentido que não se “analisou em concreto, a efectiva sustentabilidade do título, qual seja a da condenação efectiva no pagamento, de quantia exequenda, quer do devedor, quer da recorrente, mesmo no dispositivo da sentença do Processo de Impugnação Pauliana, ou seja, dizer se existe ou não tal fundamento”.


Carece de razão.


Com efeito, embora o objecto da apelação se circunscrevesse à questão da extemporaneidade da arguição da falta de causa de pedir, o tribunal recorrido quis emitir pronúncia acerca da referida questão da exequibilidade do título executivo, conforme se evidencia da simples leitura do aresto, tendo para o efeito concluido “Ora, reconhecendo tal sentença o direito do exequente a executar o referido quinhão no património da Requerida AA, esta decisão constitui título executivo, também, contra o ora Apelado”.


Não padece, pois, o acórdão da nulidade invocada.


2.2 Do caso julgado


Considera a Recorrente que o acórdão recorrido ao concluir pela exequibilidade da sentença de impugnação pauliana pressupõe uma realidade que não acontece – a demonstração do valor da condenação do devedor originário no respectivo dispositivo – e, nessa medida, ofende o julgado formado naquele processo.


Pretende, por isso, que se declare a inexequibilidade da sentença em relação à Recorrente, por falta de título.


Entende, assim, que a decisão recorrida inconsiderou (ofensa implícita) o caso julgado anteriormente formado na acção de impugnação pauliana.


O posicionamento da Recorrente reflecte um equívoco quanto à figura jurídica em que faz assentar o recurso (violação do caso julgado), uma vez que o vício que aponta ao acórdão consubstancia erro de julgamento.


2.2.1 O caso julgado pode funcionar como obstáculo ao conhecimento de mérito (é a sua característica de excepção dilatória - artigos 576.º, n.º2, 577.º, alínea i), 580.º, do CPC) ou impor na mesma ou noutra acção, entre as mesmas partes, o sentido da decisão que lhe é inerente, entrando, neste caso e desse modo, nos fundamentos da nova decisão. Neste sentido se consubstancia a sua característica de força e autoridade dentro do processo e fora dele, reconhecida e regulamentada nos artigos 619.º e ss., do CPC7.


A função do caso julgado é, assim, a de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir decisão anterior – artigo 580.º, n.º2, do CPC.


Na situação sob apreciação interessa perspectivar o caso julgado material sob o seu efeito positivo, ou seja, no dizer do STJ de 30.03.2017, em termos de implicar “o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção ulterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.”.8


A tal respeito refere Miguel Teixeira de Sousa “o caso julgado material pode valer como autoridade de caso julgado, quando o objecto da acção subsequente é dependente do objecto da acção anterior como excepção do caso julgado, quando o objecto da acção posterior é idêntico ao objecto da acção antecedente” e representa “o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente” Assim, “quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente (…). Ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo. 9


Mostra-se o instituto da autoridade de caso julgado caracterizado em termos de uma diversidade entre os objectos dos dois processos (o que não ocorre na excepção que tem subjacente uma identidade entre esses objectos) em que o decidido na primeira acção surge como condição, como pressuposto necessário para apreciação do objecto processual da segunda acção.10


Nesta especificidade - uma relação de prejudicialidade ou dependência entre as causas - não permite que se ultrapasse a exigência de identidade subjectiva.


Como refere a este propósito o acórdão do STJ de 14-05-2019 “A vinculação à anterior decisão pressupõe o trânsito desta e, diferentemente da excepção do caso julgado, depende apenas da verificação da identidade subjectiva dos litigantes, da existência de uma evidente conexão entre os objectos de cada uma das acções, havendo ainda que apurar se o conteúdo daquela decisão se deve ter como prejudicial em relação à decisão a tomar na acção sequente”. 11


2.2.2. Perante as considerações expostas, não há dúvida de que a decisão proferida na acção de impugnação pauliana, ao constituir o título executivo relativamente à Recorrente nos autos de execução (enquanto documento certificativo da obrigação exequenda), assume uma função delimitadora da obrigação exequenda – cfr. artigo 10.º, nº 5, do CPC (toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva) – e, nessa medida, impõe na execução o sentido da decisão que lhe é inerente.


De acordo com o artigo 703.º, n.º1, alínea a), do CPC, as sentenças condenatórias constam do elenco dos títulos executivos.


Conforme tem vindo a ser entendimento dominante, a exequibilidade das sentenças não se reporta somente às proferidas nas acções de condenação, cabendo como título as que, de forma explícita ou implicitamente imponham a alguém determinada responsabilidade ou cumprimento de uma obrigação. Assim, a exequibilidade de uma sentença não passa pela condenação expressa no cumprimento de uma obrigação, bastando que essa obrigação dela ressalte inequivocamente12.


Relativamente à exequibilidade da sentença proferida em acção de impugnação pauliana, refere o citado acórdão do STJ de 13.05.2021 (Processo n.º 2215/16.0T8OER-A.L1.S3t):


Em termos gerais, a ação pauliana traduz-se numa ação constitutivo-modificativa, posto que tem por fim operar a ineficácia, duplamente relativa, do negócio impugnado, mais precisamente quanto ao credor impugnante e na medida do que se mostre necessário à satisfação do seu crédito.


Tal espécie de ação tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento desse crédito, cujo ónus de prova incumbe ao credor conforme se preceitua no artigo 611.º do CC.


(…) Obtida que seja a procedência da impugnação, o credor poderá então promover a execução contra o terceiro adquirente com vista a executar o bem objeto dessa impugnação no próprio património deste (artigos 616.º, n.º 1, do CC e 731.º, n.º 2, do CPC).


A legitimidade passiva do terceiro adquirente decorrerá, segundo uns, da aplicação analógica do disposto no n.º 2 do atual artigo 54.º, correspondente ao anterior art.º 56.º, do CPC e, segundo outros, da eficácia do caso julgado, em relação a terceiros, emergente da sentença proferida na ação pauliana, em consonância com o disposto no artigo 55.º/57.º do mesmo diploma.


(…) Todavia, se a sentença proferida em ação pauliana se limitar simplesmente a reconhecer o crédito em causa sem condenar o devedor no cumprimento da respetiva obrigação e sem que o crédito conste sequer de título executivo, poderá então tornar-se pertinente a questão da exequibilidade desse crédito, a menos que se possa então considerar tal reconhecimento como condenação implícita do devedor.


(…) Neste quadro diversificado, a exequibilidade da sentença proferida em ação de impugnação pauliana, para efeitos de promover a execução contra o terceiro adquirente, não deverá ser aferida de forma categorial, genérica ou abstrata, mas sim em função do que ali for dado como provado e concretamente reconhecido relativamente ao crédito em causa e ao modo como o mesmo se encontra titulado.”.


Verifica-se, assim, que a decisão recorrida ao concluir pela exequibilidade da sentença proferida em acção de impugnação pauliana em que se funda a execução contra a Recorrente, atribuindo-lhe a qualidade de título executivo, não está a colocar em causa a autoridade do caso julgado por ela formado, mas situa-se no âmbito de uma problemática diversa reportada à função delimitadora da obrigação exequenda, que embora pressuponha uma actividade interpretativa da referida sentença não a ignora ou desrespeita enquanto comando de acção.


Não ocorre, por isso, a alegada violação do caso julgado.


Improcedem, assim, as conclusões do recurso.


Custas pela Recorrente.


Lisboa, 6 de Março de 2024


Graça Amaral (Relatora)


Amélia Alves Ribeiro


Ricardo Costa





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1. A decisão interlocutória encontra definição em contraposição à decisão final, que é aquela que, em termos gerais, põe termo à causa ainda que não conheça de mérito (que tem como consequência a extinção da instância com o arquivamento ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito).↩︎

2. Tratando-se de decisão final, ocorrendo dupla conformidade, conforme defende Abrantes Geraldes, existe a possibilidade de apresentação da revista excepcional (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª edição, Almedina, p 443).↩︎

3. Cfr. Neste sentido e entre outros, acórdão do STJ de 30-11-2022, Processo n.º 1323/20.8T8CLD-A.C1.S1, a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎

4. Não quando é apenas implícita ou pressuposta.↩︎

5. O tribunal a quo, só após julgar a apelação improcedente (por considerar sanado o vício da ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir), teceu tais considerações referindo para o efeito que “De todo o modo sempre se dirá o seguinte”.↩︎

6. Mostra-se bem explicitado o posicionamento defendido no acórdão-fundamento quanto à exequibilidade da sentença proferida em acção de impugnação pauliana nas duas situações: quando o credor/exequente pretender dirigir a execução simultaneamente contra o executado e o terceiro adquirente e quando apenas instaure a execução contra o terceiro adquirente. No primeiro, com base na respectiva sentença de impugnação pauliana, poderá “requerer a intervenção do terceiro adquirente naquela execução com vista a executar o bem no próprio património deste”, pressupondo a existência de título executivo contra o próprio devedor, de que conste a exequibilidade do crédito em causa. No caso de instauração de execução autónoma contra o terceiro adquirente, a exequibilidade da sentença proferida em ação de impugnação pauliana (…) deverá ser aferida em função do que ali for dado como provado e concretamente reconhecido relativamente ao crédito em causa e ao modo como o mesmo se encontra titulado.↩︎

7. De acordo com o disposto no n.º1 do artigo 619 do CPC, a decisão (transitada em julgado) sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro e fora do processo, constituindo assim o caso julgado material.↩︎

8. Processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1 – disponível nas Bases Documentais do ITIJ.↩︎

9. O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ, nº 325, pp. 171, 172.↩︎

10. Cfr. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354.↩︎

11. Processo n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S3, disponível nas Bases Documentais do ITIJ. Também nesse sentido e entre outros os acórdãos do STJ de 6/11/2018, Processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1, de 27-02-2018, Processo n.º 2472/05.8TBSTR.E1 e de 07-03-2017, Processo n.º 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1, todos disponíveis nas Bases Documentais do ITIJ.↩︎

12. Cfr. Acórdão do STJ de 08.01.2015, Processo n.º 117-B/1999.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ. Na Doutrina, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva, p.. 73, Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, p. 62, Lebre de Freitas, Acção Executiva, 6ª ed., pp. 47-48, indicada no referido aresto.↩︎