Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5036/11.3TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO MENDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
DIVÓRCIO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÔNJUGE
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DIREITO DE ACÇÃO
TRIBUNAL COMUM
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS.
Doutrina:
- Cristina Dias, “Breves notas sobre a responsabilidade civil dos cônjuges entre si”, Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Direito e Justiça, pp. 391e 397.
- Heinrich Ewald Horster, em Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/6/1991, Scientia Ivridica, Tomo XLIV, números 253 – 255, pp. 113 a 124.
- Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, pp. 662 e 663.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 1792.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 8/9/2009, DA 1.ªSECÇÃO.
Sumário :
I - Com a redacção dada ao n.º 1 do art. 1792.º do CC pela Lei n.º 61/2008, de 31-10, a reparação dos danos causados ao cônjuge alegadamente lesado, quer dos resultantes da própria dissolução do casamento, quer de factos que possam ter conduzido à ruptura da vida em comum, passa a ser feita nos meios comuns, de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil.

II - Com excepção dos casos em que a ruptura do casamento é consequência de alteração das faculdades mentais do outro cônjuge – n.º 2 do art. 1792.º do CC –, a lei deixou de fazer qualquer distinção entre os danos directamente resultantes da dissolução do casamento e os danos resultantes de factos ilícitos ocorridos na constância do matrimónio, nomeadamente os que possam ter conduzido ao divórcio, sendo, uns e outros, pelo menos em abstracto, ressarcíveis através de acção judicial para efectivação de responsabilidade civil.

III - Numa ou noutra situação, cabe ao cônjuge alegadamente lesado a demonstração de factos sustentadores da responsabilidade civil por factos ilícitos – art. 483.º do CC.

IV - No caso em análise, a autora alegou, nomeadamente nos arts. 34.º, 50.º, 79.º e 91.º da petição inicial, factos que foram impugnados e que, a provarem-se, podem, dentro das soluções juridicamente plausíveis, ser geradores de responsabilidade civil, devendo nestas circunstâncias serem elencados os factos assentes e elaborada a base instrutória, prosseguindo os autos os seus regulares termos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – AA intentou contra BB acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária do processo comum, pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 33.400,00, sendo €25.000,00 por danos não patrimoniais e € 8.400,00 por danos patrimoniais.
Alegou, para tanto, que foi casada com o R durante 22 anos e que se divorciou em Maio de 2010 por sentença proferida no âmbito de uma acção judicial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge; que por opção do casal, numa primeira fase do casamento, foi mãe e doméstica, tratando do marido e da casa e criando a sua filha e numa segunda fase, que teve início em 1997, começou a trabalhar como educadora de infância num infantário em Espinho.
Invocou, também, que abdicou de uma carreira profissional em prol do R e que este em 2008 começou a relacionar-se sexualmente com a patrona do curso de ensino que frequentava, assumindo tal facto, concluindo que o casamento de ambos tinha terminado e tendo saído da casa de morada da família.
Acrescentou que até ao divórcio o R, apesar de saber que a A se encontrava desempregada e com a filha aos seus cuidados, não contribuiu com qualquer quantia, que deixou as contas bancárias do casal a zero e que quando saiu de casa tirou os seus bens pessoais e outras coisas, que a proibiu de circular com o automóvel que pertencia a ambos, que em Março de 2009 o R a acusou falsamente de ter sequestrado a filha em casa dos pais desta e que em Julho de 2009 agrediu o pai sexagenário dela A.
Concluiu que sofreu danos não patrimoniais por violação dos deveres de respeito, fidelidade e coabitação que quantifica em € 25.000,00 e que o R. deverá pagar a quantia de € 8.400,00, pela violação do dever de assistência, referente ao período compreendido entre o momento em que abandonou o lar conjugal e a data de dissolução do casamento.
Contestou o R., alegando que se encontra a correr uma acção de alimentos proposta pela A. e impugnando a quase totalidade dos factos alegados na petição inicial e peticionou a condenação da A. como litigante de má fé.
Findos os articulados e tendo dispensada a realização de audiência preliminar, nos termos do art.º 508º-B, nº1, al. b) CPC foi proferida decisão que, relativamente ao pedido de condenação no pagamento da quantia de € 8.400,00 por danos patrimoniais, a título de alimentos, absolveu o R. da instância, nos termos dos artºs 101º, 105º, nº1 e 494º, al. a), dada a incompetência absoluta do Tribunal a quo, em razão da matéria, de acordo com o estipulado pela conjugação dos artºs 62º, do C.P.C e 81º, al. f), da Lei nº3/99, de 13 /01 e, quanto aos danos não patrimoniais, considerou não haver qualquer fonte das obrigações que suporte o pedido formulado, motivo pelo qual julgou improcedente a acção e absolveu o R. do pedido.
Relativamente à litigância de má fé, considerou não existir qualquer fundamento para a mesma.
Inconformada, interpôs a A recurso de apelação, na sequência do qual foi proferido acórdão que, entendendo que os factos invocados não preenchiam os requisitos ínsitos no nº 1 do artigo 1792º CC (redacção introduzida pela Lei nº 61/2008), decidiu pela improcedência da apelação absolvendo o R de todo o pedido.

II. Deste acórdão foi interposto o presente recurso de revista.
Apresentou a recorrente as alegações que constam de fls. 598 a 603 (e que aqui se dão por reproduzidas) tendo o recorrido contra-alegado nos termos do que consta de fls. 651 a 654 (que igualmente se dão por reproduzidos.
Alega, em síntese, a recorrente que:
- a interpretação do Tribunal da Relação do Porto é no sentido de o artigo 1792 nº 1 CC de apenas se permitir a indemnização pelos danos decorrentes dos efeitos do divorcio (cuja génese seja o próprio divorcio);
- a referida disposição consagra, porém, a indemnização pelos danos resultantes da violação dos deveres conjugais, os quais representam uma causa de pedir da acção de responsabilidade civil aludida;
- a interpretação no sentido que foi consagrado no acórdão recorrido é inconstitucional por violação dos princípios da tutela judicial efectiva, da proibição da indefesa, do processo equitativo e da proporcionalidade – artigo 20º CRP.

III. Do mérito – Tal como se enuncia no acórdão recorrido a questão que importa apreciar e decidir – tendo nomeadamente em conta as conclusões da alegação da recorrente - consiste exclusiva ou quase exclusivamente em saber qual interpretação a dar ao art.º 1792, nº1 do C.C. (na redacção introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31/10) ou seja, e concretizando, saber se na previsão da norma está exclusivamente prevista a reparação dos danos causados ao cônjuge lesado resultantes da própria dissolução do casamento (tese que aparece sustentada no acórdão) ou se essa mesma previsão normativa abrange, igualmente, os danos emergentes daqueles factos que conduziram à ruptura da vida comum e ao divorcio (tese que vem sustentada nas alegações da recorrente).
Fazendo o enquadramento geral da questão e com base no quadro legal aplicável importa ter em conta que com as alterações introduzidas pela Lei 61/2008 de 31/10 ao regime jurídico do divórcio[1]alterações que aqui se aplicam e que determinaram, por um lado, o fim do divórcio litigioso e, por outro, consagração do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (art.º 1773º, n.º 1 CC) nas situações de ausência de acordo ou consentimento mutuo – o legislador cuja intenção, conforme manifestamente se reconhece na exposição de motivos, foi no sentido de fazer convergir a nossa legislação nesta matéria com a vigente na maioria dos países europeus (convergência que aparece sustentada num estudo publicado pela Comission on European Family Law de que o nosso País é membro e que naquela exposição de motivos aparece citado) pôs definitivamente termo à figura do divórcio-sanção ou divorcio remédio, ainda que no nosso direito anterior à reforma de 2008 estivesse já consagrado um sistema de compromisso cuja componente dominante era a do divorcio-constatação da ruptura do casamento[2].
Ao mesmo tempo e no sentido de assegurar verdadeira sistematização e coerência lógica a todo o regime implementado e protecção legal adequada ao cônjuge eventualmente lesado eliminou definitivamente aqueles que eram os últimos elementos subsistentes da doutrina da fragilidade da garantia[3][4], por via da qual a responsabilidade civil se não aplicava, pelo menos em principio, no âmbito dos direitos familiares pessoais[5][6].
Com a nova redacção dada ao artigo 1792 pela Lei nº 61/2008, de 31/10 permite-se que o cônjuge lesado possa intentar acção para efectivação de responsabilidade civil nos tribunais comuns, fazendo-o nos termos gerais dos artigos 483º e seguintes.[7][8]
Dispõe o nº 1 do art.º 1792º CC, na redacção introduzida pelo diploma legal acima citado que “o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”, acrescentando no nº 2 que o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do artigo 1781.º (casos de alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum”) deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento, devendo este pedido deve ser deduzido na própria acção de divórcio.
Interpretando restritivamente o disposto no nº1 da citada disposição legal entendeu-se no acórdão recorrido, reconhecendo embora que “o cônjuge que se sinta lesado e que deseje ser ressarcido por danos provocados pelo outro cônjuge, pode requerer uma indemnização junto dos tribunais comuns, através de acção autónoma, ficando com o encargo de alegar e provar o preenchimento dos requisitos da responsabilidade civil”, que os danos indemnizáveis deveriam limitar-se “aos danos decorrentes do decretamento do mesmo como sejam os danos morais que sejam consequência da própria dissolução do casamento, entre os quais se podem enunciar os que resultem da desconsideração social para o divorciado, e no meio onde vive, do divórcio decretado, bem como a dor sofrida pelo cônjuge não culpado pela frustração do projecto de vida em comum, pelo mesmo idealizado ao contrair matrimónio” (cita-se no acórdão recorrido e em suporte da orientação ali seguida o Acórdão deste S.T.J., de 11/1/11, relatado pelo Cons. Sousa Leite[9]) concluindo-se, nessa linha de raciocínio, que não tendo a A “alegado quaisquer factos atinentes aos efeitos do divórcio, passíveis de reparação, nos termos supra apontados, é manifesta a inexistência de suporte factual e legal para todo o pedido formulado”.
A posição sustentada no acórdão recorrido não tem, como aliás resulta de toda a análise antes efectuada, qualquer suporte legal, não cabendo na letra nem no espírito da actual redacção do artigo 1792 nº 1 uma interpretação no sentido da que ali é efectuada, uma vez que de acordo com essa actual redacção (introduzida, como referimos, pela Lei nº 61/2008) quer os danos eventualmente decorrentes da dissolução do casamento quer os que resultem de factos (ilícitos) que possam ter ocorrido durante a relação conjugal, são indemnizáveis nos termos do regime geral da responsabilidade civil.[10]
Em conclusão:
a) com a redacção dada ao nº 1 do artigo 1792 CC pela Lei nº 61/2008, de 31/10, a reparação dos danos causados ao cônjuge alegadamente lesado, quer dos resultantes da própria dissolução do casamento quer de factos que possam ter conduzido à ruptura da vida em comum passa a ser feita nos meios comuns de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil; b) com excepção dos casos em que a ruptura do casamento é consequência de alteração das faculdades mentais do outro cônjuge – nº 2 do artigo 1792º CC – a lei deixou de fazer qualquer distinção entre os danos directamente resultantes da dissolução do casamento e os danos resultantes de factos ilícitos ocorridos na constância do matrimónio, nomeadamente os que possam ter  conduzido ao divorcio, sendo, uns e outros, pelo menos em abstracto, ressarcíveis através de acção judicial para efectivação de responsabilidade civil;
c) numa ou noutra situação cabe ao cônjuge alegadamente lesado a demonstração de factos sustentadores da responsabilidade civil por factos ilícitos – artigo 483º CC;
d) no caso em análise a A alegou nomeadamente nos artigos 34º, 50º, 79º e 91º da petição inicial factos que foram impugnados e que, a provarem-se, podem, dentro das soluções juridicamente plausíveis, ser geradores de responsabilidade civil, devendo nestas circunstancias serem elencados os factos assentes e elaborada a base instrutória prosseguindo os autos os seus regulares termos.


IV. Decisão - Pelo exposto acorda-se em conceder a revista anulando-se o acórdão recorrido e determinando-se a baixa do processo à 1ª Instancia para que ali se proceda à discriminação dos factos assentes é à elaboração da base instrutória, após o que os autos prosseguirão a demais tramitação legal. Custas a final.

Lisboa, 17 de Setembro de 2013

Mário Mendes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

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[1] V. exposição de motivos constante do Projecto de Lei nº 509/X.
[2] V. Curso de Direito da Família, Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, páginas 662 e 663.
[3] A doutrina da fragilidade da garantia tinha como base de sustentação racional a regra da imunidade interconjugal (interspousal immunity) que determinava a impossibilidade de um cônjuge poder agir contra o outro para obter ressarcimento de prejuízo causado por acto ilícito praticado pelo outro cônjuge, fora dos deveres conjugais. (Cristina Dias – “Breves notas …” – Direito e Justiça – Estudos dedicados ao Prof. Doutor Carvalho Fernandes – Volume I, pagina 397.
[4] A garantia constitui um dos elementos fundamentais de toda a relação jurídica materializando-se quando se verifique a violação de um direito existente e susceptível de ser exercido. A maior ou menor fragilidade da garantia está em relação ou é proporcional à intensidade dos meios adequados de oposição à violação, meios (legais) que o Estado proporciona para esse efeito.
[5] Tais direitos apresentavam-se com uma garantia mais frágil do que os direitos de crédito uma vez que a violação dos direitos familiares pessoais, nomeadamente a violação do direito de um dos cônjuges pelo outro, não determinava obrigação de indemnizar, não se aplicando nesta sede as regras da responsabilidade civil – artigos 483 e seguintes CC.
[6] Sobre a doutrina da “fragilidade da garantia” na responsabilidade civil dos cônjuges entre si v. Artigo de Heinrich Ewald Horster – “Scientia Ivridica” – Tomo XLIV – números 253 – 255, páginas 113 a 124, no qual o autor comenta acórdão deste STJ, de 21 de Junho de 1991, no qual se atribui indemnização pela violação culposa de deveres conjugais.
[7] V. Cristina Dias – “Breves notas sobre a responsabilidade civil dos cônjuges entre si” – “Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, Direito e Justiça, pagina 391 – onde a autora defende, justificando que os resquícios da doutrina da fragilidade da garantia no domínio dos deveres conjugais pessoais deixam definitivamente de existir com a Lei nº 61/2008, abrindo-se (expressão usada pela autora) “as portas do santuário familiar” que estavam por aquela doutrina fechadas.
[8] No projecto de Lei nº 509/X, de alteração do regime do divorcio considerou-se como corolário da retirada da culpa nas acções de divórcio a consagração do principio de os pedidos de reparação dos danos fossem julgados nos termos gerais da responsabilidade civil, sem qualquer restrição.
[9] O acórdão fundamento depois de referir que, na acção de divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, o Tribunal não pode determinar e graduar a violação culposa dos deveres conjugais com vista à aplicação de quaisquer sanções patrimoniais ou outras  afirma que o lugar próprio para avaliação e reparação de danos resultantes da violação culposa dos deveres conjugais que, afirma, continuam a merecer tutela do direito é a acção judicial de responsabilidade civil para reparação de danos.
[10] V. Neste sentido o acórdão deste STJ (e desta 1ª Secção) de 8/9/2009, de que foi relator o Conselheiro Sebastião Póvoas.