Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2628/23.1T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: DESTITUIÇÃO DE GERENTE
JUSTA CAUSA
SUSPENSÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
LEGITIMIDADE ATIVA
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

Invocando justa causa de destituição do gerente, tem qualquer sócio legitimidade ativa par requerer a suspensão e a destituição de gerente, em ação intentada contra a sociedade (cfr. art. 257.º/4 do CPC) que não tenha apenas dos sócios.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 2628/23.1T8STR.E1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório:

“Verso Move, Ld.ª” moveu, nos termos do art. 1055.º do CPC, ação de suspensão e destituição de gerente contra “Street Move, Unipessoal, Ldª”, pedindo a suspensão e destituição das funções de gerente (desta última) de AA.

Alegou, em síntese, que, no dia 07/07/2023, se realizou uma Assembleia Geral extraordinária da “Verso Move, Ld.ª”, tendo sido aprovados por unanimidade os seguintes pontos da ordem de trabalhos: «Ponto 1 – A propositura de um processo pela VM de destituição por justa causa e suspensão de gerente, intentado contra a SM, contra a SFT e eventualmente contra o gerente da SM, o Sr. AA, pelos factos acima descritos e outros de idêntica natureza que se venham a descobrir pela análise às contas das sociedades, na medida em que a VM é a sócia única da SM»; «Ponto 2 – Designação do Dr. BB, advogado, para efeitos de representação desta, perante as entidades competentes e judiciais, para a propositura de um processo pela VM de destituição por justa causa e suspensão de gerente, intentado contra a SM, contra a SFT e eventualmente contra o gerente da SM, o Sr. AA, pelos factos acima descritos e outros de idêntica natureza que se venham a descobrir pela análise às contas das sociedades, na medida em que a VM é a sócia única da SM».

Daí a propositura da presente ação em que alegou, muito em resumo, que o referido AA, enquanto gerente da “Street Move, Unipessoal, Ldª”, não tem dado conhecimento, à “Verso Move, Ldª”, de diversas transações e tem efetuado transferências de valores por sua iniciativa e sem dar conhecimento ao outro gerente ou sem pedir autorização à gerência da requerente.

Distribuídos os autos, foi determinada, por despacho de 26/09/2023, a notificação da requerente “Verso Move, Ldª” para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos procuração que conferisse mandato judicial para a presente ação; tendo a requerente, em 03/10/2023, juntado aos autos procuração forense subscrita pelo seu gerente CC.

Após o que, considerando-se que a requerente se obriga com a intervenção conjunta dos dois gerentes, foi, por despacho de 06/10/2023, determinada a notificação da requerente para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos procuração que conferisse mandato judicial para a presente ação e ratificasse o processado (invocando-se para tal o art. 48º do CPC).

Ao que a requerente respondeu que a procuração em causa teve como base as atas de deliberação social da “Verso Move, Ldª” e que a procuração não precisava da assinatura do outro gerente considerando os termos das referidas atas e o estatuído no art. 75.º/3 do CSC.

Vindo, nesta sequência, a ser proferido, em 20/10/2023, despacho com o seguinte conteúdo/sentido:

«Cumpre, desde logo, indicar que a autorização, nos termos do art. 73.º/3 do CSC a que a requerente faz referência, nada tem que ver com a regular constituição do mandato forense, tendo sim que ver com a necessidade de autorização ou deliberação em determinadas situações/ações, prevista no art. 29.º, do CPC.

A notificação realizada à requerente foi expressa no sentido de indicar que a questão em apreciação tinha que ver com eventual irregularidade do mandato, nos termos e para os efeitos do art. 48.º, do CPC.

Considera a requerente que a procuração em causa não padece de qualquer irregularidade.

Vejamos se assim é.

Como se extrai da certidão permanente junta aos autos pela requerente Verso Move, Lda. Esta obriga-se com a intervenção conjunta de dois gerentes, sendo gerentes da Verso Move, Lda. AA e CC.

No caso concreto a procuração forense emitida em nome da referida sociedade e junta aos autos em 03-10-2023 [10038260] foi outorgada apenas por um dos gerentes da Verso Move, Lda., a saber, CC.

Realizada a notificação, nos termos do art. 48.º, do CPC, para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos procuração que confira mandato judicial para a presente ação e bem assim ratificação do processado, nenhuma nova procuração foi junta., pugnando a requerente pela regularidade da procuração junta.

Nos termos do art. 25.º, n.º 1 do CPC “As demais pessoas coletivas e as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem”.

No âmbito do CSC, o art. 192.º, n.º 1 sob a epígrafe “Competência dos gerentes” estatui no seu n.º 1 que “A administração e a representação da sociedade competem aos gerentes.”. Sendo que, no que diz respeito ao funcionamento da gerência plural, nos termos do art. 261.º, do CSC “1 – Quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respetivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados. 2 – O disposto no número anterior não impede que os gerentes deleguem nalgum ou nalguns deles competência para determinados negócios ou espécie de negócio, mas, mesmo nesses negócios, os gerentes delegados só vinculam a sociedade se a delegação lhes atribuir expressamente tal poder. 3 - As notificações ou declarações de terceiros à sociedade podem ser dirigidas a qualquer dos gerentes, sendo nula toda a disposição em contrário do contrato de sociedade”.

Revertendo ao caso em apreço, da certidão do registo comercial resulta que a forma de a sociedade/requerente Verso Move, Lda. se obrigar é com a “Intervenção conjunta de dois gerentes”.

(…)

Assim, face ao supra exposto, obrigando-se a Verso Move Lda. com a intervenção conjunta de dois gerentes, resulta claro que o contrato de mandato consubstanciado na procuração junta aos autos é irregular, pelo que se verifica a irregularidade de representação da requerente Verso Move, Lda., o que determina nos termos do art. 48.º/2 que fique sem efeito tudo o que foi praticado pelo mandatário, ou seja o requerimento inicial e demais requerimentos.

Pelo exposto, julgo extinta a presente instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do Código de Processo Civil.

Custas pelo Ilustre mandatário subscritor do requerimento inicial – 48.º, n.º 2, do CPC.

(…)”

Inconformada, interpôs a requerente recurso de apelação, tendo-se, por Acórdão da Relação de Évora, proferido em 25/05/2023, julgado improcedente o recurso, absolvendo-se da instância a R., mas “por motivo de ilegitimidade ativa.” (após o devido exercício do contraditório relativamente à potencial decisão surpresa, de acordo e nos termos do art. 3.º/3 do CPC).

Ainda inconformada, interpõe agora a requerente o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que considere “que a A. tendo legitimidade ativa válida para a propositura da presente ação e que é válida a procuração forense apesentada com a PI, (…) a fim de que o tribunal de 1ª instância retome o processo e averigue dos pedidos efetuados na PI apresentada pela A.”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I. O TRE considerou erradamente que se aplicava ao presente caso o nº 7 do art. 191º; e o nº 5 do art. 257º ambos do CSC.

II. Considerou erradamente que o que estava em causa no presente processo era a destituição e suspensão de um gerente de uma sociedade com dois sócios, quando a presente ação tem por objeto a destituição e suspensão de um gerente único de uma sociedade unipessoal (A SM - Ré).

III. Esta sociedade comercial (SM) é detida em 100% por um único sócio (VM – Autora), sendo que, pretendendo esta destituir e suspender o gerente da Ré SM, deve-se aplicar o nº 4 do art. 257º do CSC, ou seja, deverá a sócia única (que é a VM), intentar ação contra a sociedade em causa (A SM).

IV. Desta forma, está a presente ação bem intentada, contra a entidade correta e pela entidade correta, cumprindo todos os requisitos do pressuposto processual em causa da legitimidade activa e passiva.

V. A decisão da VM em intentar esta ação foi fundamentada na AG de 07.07.2023 cuja ata se encontra junta aos autos.

VI. Esta AG é válida e legitima legalmente, assim como as decisões na mesma tomada.

VII. Esta assembleia deliberou validamente pretender que se intentasse ação contra a SM para destituição e suspensão do gerente da SM.

VIII. A procuração forense junta com a PI é válida apenas com a assinatura de um gerente da VM, considerando esta AG.

IX. Tendo em conta o exposto, julgou mal o TRE ao considerar o recurso da sentença de 1ª instância improcedente e absolvendo a Ré da instância por motivo de ilegitimidade activa, devendo antes pelo contrário ter considerado o recurso interposto da sentença de 1ª instância procedente e considerado a A. com tendo legitimidade activa válida para a propositura da presente ação, assim como válida a procuração forense junta com a PI, devendo ter revogado a referida sentença e substituindo-a por outra que assim considerasse, a fim de que o tribunal de 1ª instância retomasse o processo e averiguasse dos pedidos efetuados na referida ação.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação

II – A – Elementos factuais relevantes

a) A sociedade por quotas requerente, “Verso Move, Lda.”, tem dois sócios, cada um com uma quota de 50%: a sociedade “A....... ......., Ld.ª” que é representada pelo seu sócio e gerente CC; e a sociedade “S... ...., Ldª” que é representada pelo seu único sócio AA, proprietário da totalidade do capital social.

b) A sociedade requerida, “Street Move, Unipessoal, Ld.ª”, é uma sociedade unipessoal por quotas detida em 100% do seu capital social pela “Verso Move, Ldª” e o seu gerente único é AA.

c) A gerência da requerente, “Verso Move, Ldª”, é exercida em conjunto por CC e AA.

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II – B – de Direito

A 1.ª Instância considerou (na decisão alvo da apelação) que a requerente não apresentava mandato forense suficiente e regular para os autos e, em função disso, julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do CPC.

O Acórdão recorrido, após várias ponderações jurídicas, considerou que “aquilo que se verifica é um problema de legitimidade e não de representação” e “por via da verificação da existência de uma ilegitimidade ativa, que conduz à absolvição da instância”, julgou improcedente a apelação interposta.

Observou-se no Acórdão recorrido, inter alia, o seguinte:

“(…)

no caso da sociedade ter apenas dois sócios que partilham a gerência da sociedade, a destituição com fundamento em justa causa só pode ser decidida pelo Tribunal em ação intentada por um sócio contra o outro, pois qualquer outra solução significaria um entrave absoluto ao acesso ao acesso à Justiça e a uma tutela jurisdicional efetiva e constituiria uma solução contrária à previsão do artigo 20º da CRP.

Na realidade, em sociedades em que o capital social se acha repartido em duas quotas de igual valor e onde a forma de obrigar a pessoa coletiva implica a assinatura de ambos os gerentes, tanto o sócio que pretende a destituição do co-gerente, como o outro que possa vir a ser afetado com essa decisão, age em nome próprio e não na defesa ou em representação da sociedade.

E, assim, ao contrário daquilo que foi alvitrado na decisão sob recurso, não se trata aqui de apurar se um deles, o que pretende a destituição, pode conferir, de forma voluntária, em nome da sociedade, um mandato forense, pois isso, como já se alertou, inviabilizaria a propositura de qualquer ação judicial com esse tipo de objeto.

A intenção do nº5 do artigo 257º do Código das Sociedades Comerciais é deslocar o litígio do campo da sociedade-sócio para o campo sócio-sócio, pois nenhum deles deve ser considerado como sendo «a sociedade». E, prosseguindo diz Raúl Ventura, quanto ao sujeito ativo da pretensão, o preceito esclarece que o legitimado é o outro sócio, em seu nome próprio, e não em representação da sociedade, mesmo que também seja gerente desta.

Este entendimento é sufragado por Coutinho de Abreu que avança que a acção «“é intentada pelo outro” (sócio). Contra, parece, o sócio gerente a destituir». Também é esta a posição de Taveira da Fonseca.

Por ambas as pessoas concentrarem ambas as posições numa situação de paridade, Rui Polónia avança que «se uma sociedade por quotas tiver só e apenas dois sócios-gerentes, ou seja, sem mais nenhum sócio nem nenhum gerente, e um deles quiser destituir o outro do cargo de gerência com justa causa, essa decisão deve ser tomada por via judicial», um contra o outro. Esta interpretação é validada pela voz autorizada de Menezes Cordeiro.

(…)”

Não se diverge de tais observações, porém, é o ponto, não têm aplicação ao caso vertente.

A requerida é uma sociedade unipessoal por quotas – que tem como única sócia a sociedade por quotas requerente – pelo que ao caso vertente tem aplicação o art. 257.º/4 (ex vi art. 270.º-G do CSC) e não, como nos raciocínios acabados de transcrever, o art. 257.º/5 (cuja previsão é justamente o de se estar perante uma sociedade com dois sócios1), ou seja, invocando-se, como é o caso dos autos, justa causa de destituição do gerente, “pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em ação intentada contra a sociedade”.

Contempla o art. 257.º do CSC duas modalidades de destituição do gerente: por deliberação dos sócios e pelo tribunal, sendo que esta (a destituição pelo tribunal) é obrigatória nos casos dos n.º 3 e 5 do art. 257.º (sócio com direito especial à gerência e sociedade com apenas dois sócios) e facultativa exatamente no caso do n.º 4 do art. 257.º.

Estamos pois perante um caso de ação facultativa de suspensão e destituição do gerente, prevista no art. 257.º/4 do CSC, em que um sócio (no caso, a sócia única “Verso Move, Ld.ª”) pode requerer a suspensão de destituição do gerente (no caso, AA) em ação intentada contra a sociedade (no caso, a Street Move, Unipessoal, Ldª) do gerente a suspender/destituir.

É exatamente isto que temos nos autos, sem que portanto ocorra qualquer ilegitimidade ativa ou qualquer irregularidade de mandato ou representação do lado da requerente.

Aliás, na medida em que o sócio da requerida (sócio esse que é a aqui requerente) é uma sociedade (e não uma pessoa física), foi no seu seio deliberado intentar a presente ação e foi ainda deliberado designar “o Dr. BB, advogado, para efeitos de representação desta, perante as entidades competentes e judiciais, para a propositura de um processo pela VM de destituição por justa causa e suspensão de gerente, intentado contra a SM, contra a SFT e eventualmente contra o gerente da SM, o Sr. AA”, pelo que o Dr. BB deve ser considerado representante especial da requerente para a presente ação2.

O que poderá acontecer – como a própria requerente admitiu quando, na Relação, foi interpelada para se pronunciar sobre a ilegitimidade ativa – é uma situação de ilegitimidade passiva: como sustenta Carolina Cunha (CSC em Comentário, Vol. IV, pág. 132), uma ação como a presente “deve ser intentada não apenas contra a sociedade mas também, respeitando o princípio do contraditório, contra o gerente a destituir”.

Seja como for, é “questão” que não faz parte do objeto da revista e, sendo esta concedida, tal “questão” não tem que ser aqui oficiosamente suscitada, na medida em que poderá ser suscitada/apreciada na 1.ª Instância, para onde os autos voltam e irão prosseguir.

Em conclusão final, a revista é concedida: a requerente está regularmente representada e possui legitimidade ativa.

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III - Decisão

Nos termos expostos, concede-se a revista e declara-se que a requerente está regularmente representada e possui legitimidade ativa (devendo assim os autos voltar e prosseguir os seus termos na 1ª instância).

Sem custas (da apelação e da revista).

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Lisboa, 31/01/2024

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Correia de Mendonça

Rui Gonçalves

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1. Quem tem dois sócios é a sociedade requerente e não a sociedade requerida, estando talvez aqui a origem do lapso do Acórdão recorrido.↩︎

2. Tal deliberação, no seio da requerente, não corresponde à deliberação prévia prevista, v. g., no art 257.º/3 (esta deliberação prévia é tomada no seio da sociedade do gerente a destituir e, no caso, a deliberação foi tomada no seio do sócio da sociedade do gerente a destituir), porém, a designação de representação especial, como se prevê no art. 257.º/3/in fine, foi o que identicamente aconteceu, na deliberação que aqui foi tomada no seio da requerente.↩︎