Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4730/20.2T8BRG.G2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: SEGURADORA
LESADO
CONDENAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
IDENTIDADE DE FACTOS
IDENTIDADE SUBJETIVA
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
TERCEIRO
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
SENTENÇA CÍVEL
DOCUMENTO
PROVA
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
Numa acção de responsabilidade civil profissional, a sentença que condena o segurado numa indemnização não faz caso julgado positivo relativamente à seguradora, que não foi parte na acção.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- A Autora - AA, residente na Rua ..., da freguesia de ..., ..., instaurou acção declarativa, com forma de processo contra a Ré - MAPFRE SEGUROS GERAIS, S.A., com sede na Rua ...,

Alegou, em resumo:

Instaurou uma acção de responsabilidade civil contra o advogado BB, a quem havia conferido procuração com vista à instauração de uma acção judicial, que o mesmo não interpôs, sendo que o causídico foi condenado a pagar à Autora, a título de indemnização por responsabilidade profissional, a quantia de 28.967,82€, acrescido de juros de mora à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento, valor que o referido advogado nunca lhe pagou.

A Ré é responsável pelo seu pagamento, e bem ainda das custas de parte reclamadas no processo, em atenção ao contrato de seguro que havia celebrado com a Ordem dos Advogados e que cobria a responsabilidade civil profissional do advogado em questão.

Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 33.231,72€, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

1.2. A Ré contestou defendendo-se, em síntese, com a ineficácia, em relação a si, do caso julgado da anterior acção movida pela Autora, por só ter força de caso julgado entre as partes, invocando ainda cláusulas de exclusão da cobertura para obstar à sua responsabilização, sendo que foi estipulada uma franquia de €5.000,00 por sinistro, que sempre seria da responsabilidade do segurado.

1.3. Por sentença de 15/7/2022 decidiu-se:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, condeno a ré a proceder ao pagamento à autora da quantia de 28.967,82€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 22/12/2017 e até efetivo e integral pagamento”.

1.4. – Inconformada, a Ré recorreu de apelação e a Relação, por acórdão de-9/2/2023, julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença.

1.5. – A Ré recorreu e revista excepcional (admitida por acórdão da Formação) com as seguintes conclusões:

1. O acórdão recorrido violou os limites do caso julgado ao decidir impor à ora recorrente a decisão proferida no processo n.º 1835/16.8T8GMR, por força da autoridade de caso julgado.

2. Entre estes autos e os que correram termos sob o n.º de processo1835/16.8T8GMR, não existe a tríplice identidade de pedido, causa de pedir e sujeitos, a que se alude no n.º 1 do artigo 581.º do Código de Processo Civil.

3. Pelo que, não se formou caso julgado com a decisão transitada em julgado no processo n.º 1835/16.8T8GMR em relação à ré ora recorrente.

4. A ré ora recorrente não foi demanda nem chamada a intervir na acção que correu termos sob o n.º de processo 1835/16.8T8GMR.

5. Sendo a recorrente terceira juridicamente interessada a decisão proferida na acção com o n.º 1835/16.8T8GMR não lhe é oponível, não se formando autoridade de caso julgado quanto a ela.

6. Ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 580.º, 581.º, 619.º e 621.º, todos do Código de Processo Civil, e o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

7. A interpretação conjugada das normas constantes dos artigo 580.º, 581.º e 619.º, do Código de Processo Civil, no sentido de que é admissível a verificação do caso julgado na sua vertente positiva (autoridade de caso julgado) sem que se encontrem verificados os requisitos de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, é incompatível com o princípio do acesso ao direito e aos tribunais (designadamente na sua dimensão de direito a um processo equitativo), consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, mais se revelando incompatível com o direito a um processo justo e equitativo consagrado no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – O objecto do recurso

A questão submetida a revista consiste em saber se a sentença condenatória, proferida numa acção de responsabilidade civil profissional (acção n.º 1835/16.8T8GMR, do Juízo Central Cível de ... – Juiz ..., contra o Segurado, faz caso julgado positivo na presente acção de responsabilidade civil contra a Seguradora.

2.2. – Os factos provados

A. A autora intentou uma ação declarativa de condenação contra o Sr. Dr. BB, que correu seus termos no Juízo Central Cível de ... – Juiz..., com o n.º 1835/16.8T8GMR, peticionando o pagamento da quantia de 54.070,00€, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.

B. Tal acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, o ali réu foi condenado a pagar à autora a quantia de 28.967,82€, acrescida de juros de mora à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento.

C. Na sentença proferida no processo referido em A., transitada em julgado, foi dado como provado o seguinte:

1. Em 1998 a autora teve conhecimento de uma perspetiva de negócio da iniciativa do Grupo..., Crl. (G...);

2. Tal negócio tinha como objeto um Centro Comercial com hipermercado, em que o G... exploraria o hipermercado, e cada investidor, querendo, passaria a explorar uma loja comercial;

3. A autora investiu a quantia de 3.000.000$00 em 2 participações, no valor unitário de 1.500.000$00 cada;

4. Na altura, e segundo as sugestões e orientações que recebeu, a autora perspetivava rentabilizar a sua participação para o valor unitário superior a 5.000.000$00.

5. Dando seguimento ao projeto, a G... mandou realizar um estudo de mercado, elaborar o projeto do edifício a construir e mandou proceder à limpeza do terreno que havia adquirido para esse efeito.

6. Volvido, porém, algum tempo, a G... viria a comunicar aos investidores que o empreendimento do hipermercado não seria viável, tendo proposto a cada investidor a restituição da quantia de 1.650.000$00, por cada participação, o que a Autora não aceitou.

7. Entretanto, por decisão unilateral e sem que os investidores tivessem sido ouvidos, a G... decidiu alienar o imóvel que havia adquirido para execução do projeto, tendo proposto aos que se mantiveram na posição de investidores a restituição da quantia líquida de 1.863.908$00, por cada participação, o que a Autora voltou a não aceitar.

8. Foi então que a Autora solicitou os serviços do Réu, que elaborou uma carta que a Autora remeteu à G... em 02-11-2000, solicitando a quantia de 3.500.000$00 por cada participação, que esta última não aceitou.

9. O réu aconselhou a autora a intentar a competente ação judicial, tendo a Autora outorgado a seu favor uma procuração para esse efeito.

10. Passado algum tempo, o réu deu conta à autora ter intentado a competente ação judicial no Tribunal de Lisboa, por, alegadamente, se tratar do Tribunal do domicílio da G....

11. Volvidos dois ou três anos, e quando questionado sobre o processo, o réu alegava aguardar pela notificação do Tribunal para a marcação da audiência prévia.

12. Chegou o réu, inclusive, a dar conta à autora que a mesma já estaria agendada, mas que, segundo o mesmo, por razões alheias à sua vontade, não se tinha ainda realizado.

13. Em 2007, depois do réu se desculpar perante a autora pela falta de notícias, solicitou-lhe o nome das testemunhas para indicar ao processo, alegando ainda que, a partir de então, apenas faltaria ser designada a data do julgamento.

14. Com o decorrer do tempo, e uma vez mais, sem qualquer resposta novidade por parte do réu, a Autora chegou a solicitar-lhe, por mais que uma vez, o número do processo e o Tribunal onde o mesmo estava a correr e/ou a solicitar-lhe uma reunião logo que possível, já que o tempo entretanto decorrido teria ultrapassado o razoável.

15. Na falta de resposta, a autora solicitou ao Sr. CC para passar no escritório do réu, a fim de agendar a pretendida reunião ou de lhe solicitar esclarecimentos concretos acerca dos processos, não tendo, porém, conseguido falar com aquele.

16. No entanto, com as explicações e justificações dadas pelo réu e com a promessa por si feita de que em breve daria novidades, quando houvesse de se deslocar a ..., lá conseguiu convencer a autora da normalidade dos processos.

17. Passado algum tempo, o réu informou a autora de que o julgamento estaria já agendado para finais do mês de Abril de 2011.

18. Antes uns dias da data que o réu havia indicado, a autora solicitou-lhe informações sobre o assunto, ao que o réu viria a responder que o julgamento fora adiado, por impedimento do Tribunal. 19. A autora voltou a interpelar o réu no sentido de saber se já estava marcado o novo Julgamento e, na falta de resposta e cansada de ouvir o referido CC, a autora insistiu junto do réu no sentido de lhe ser fornecido o número do processo.

20. O réu continuava a garantir à autora que o julgamento seria marcado em breve e que, quando tivesse de se deslocar à ... agendaria com o autor e com o CC uma reunião para falar do assunto.

21. Como, porém, o réu voltou a não atender as chamadas à autora, viria esta a insistir pela marcação da predita reunião.

22. Volvidos alguns meses, e com desculpas pelo meio, viria o réu a informar a autora de que, atendendo à demora que se verificava no Tribunal de ..., iria requerer que o processo viesse para o Tribunal da ..., por forma a ser resolvido mais rapidamente.

23. Entretanto, em finais de 2012 e depois de solicitada nova reunião com o réu, acabaram por se encontrar no café das piscinas em ..., altura em que aquele garantiu que o processo iria ser remetido para o Tribunal da ....

24. Desde então não mais a autora conseguiu contactar o réu, ainda que, para o efeito, se tivesse deslocado, por várias vezes ao seu escritório.

25. na verdade, quando ali se deslocava ou o réu não estava ou não os podia receber, dando, contudo, indicação de que os iria contactar em breve;

26. O Réu não instaurou a referida ação judicial.

27. A G..., no ano de 2004, fez parte de um projeto de fusão por integração, juntamente com as sociedades C...e ...T, que deu origem à sociedade G..., Crl.

28. Esta sociedade foi declarada insolvente, por sentença proferida em 14/3/2013.

29. A autora sentiu-se traída, enganada, ludibriada e iludida com as falsas promessas do réu, que era uma pessoa que estimava e considerava.

30. A Autora, como amiga pessoal do réu, sente-se desapontada e triste com a sua conduta.

D. A ré celebrou com a Ordem dos Advogados de Portugal um contrato de seguro do ramo de responsabilidade civil profissional, titulado pela apólice n.º ...58, com início em 01/01/2014, sujeito aos termos e condições constantes do documento 1 junto com a contestação, cujos dizeres aqui se dão por reproduzidos.

E. No âmbito da referida apólice, a Ordem dos Advogados – tomador do seguro – transferiu para a ré as obrigações de indemnização que legalmente sejam exigíveis aos advogados nela inscritos, em consequência de dados patrimoniais e não patrimoniais causados a clientes e ou terceiros, desde que resultem de atos ou omissões no exercício da atividade de advogado.

F. É o seguinte o teor do ponto 9 das “Condição particulares da apólice referida em F.: “Estabelece-se uma franquia de 5.000,00€ por sinistro, não oponível a terceiros lesados”.

G. É o seguinte o teor do artigo 8.º, n.º 1, da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato referido em F.: “Notificação de reclamações ou incidência: O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível:

a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;

b) Qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;

c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.”

H. É o seguinte o teor do artigo 3.º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato referido em F.: “Exclusões: Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações: a) Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data do início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação; (…)”,

I. É o seguinte o teor do artigo 10.º da “Condição Especial de Responsabilidade Civil Profissional” do contrato referido em F.: “Convenção de gestão de sinistros: (…) 1. O segurado (…) deverá comunicar ao corretor ou ao segurador, com a maior brevidade possível, o conhecimento de qualquer reclamação efetuada contra ele ou de qualquer outro facto ou incidência que possa vir a dar lugar a uma reclamação. 2. A comunicação (…) deverá circular entre os intervenientes de modo tal que o conhecimento da reclamação possa chegar ao segurador no prazo improrrogável de oito dias. (…)”.

J. Em 14 de dezembro de 2017, a autora, por intermédio de advogado, participou o sinistro, tendo formulado uma participação/reclamação para a A..., S.A., solicitando o pagamento dos valores arbitrados à autora, tendo recebido uma comunicação via email por parte da A..., S.A. a informar que procedeu ao envio da participação do sinistro à ré.

2.3. – A eficácia subjectiva da autoridade do caso julgado

Problematiza-se no recurso a questão de saber se a sentença que condena o segurado numa indemnização faz caso julgado positivo relativamente à Seguradora, que não foi parte na acção.

A resposta não tem sido uniforme, como se verá, e convoca a teoria do caso julgado, nomeadamente quanto aos limites subjectivos.

O caso julgado material (art.619 CPC) confere “força obrigatória” à decisão de mérito, dentro dos limites em que julga, sendo justificada a res judicata sobretudo por exigências de segurança jurídica.

É hoje consensual, tanto no plano jurisprudencial, como doutrinário, a opinião de que o caso julgado material ( arts.619 e 621 CPC) implica dois efeitos - um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado ( cf., para a distinção de ambas as figuras, cf., por ex., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 320; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 576, e “O objecto da sentença e o caso julgado material “, BMJ 325, pág.171; Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, pág.43 e segs.)

A excepção do caso julgado pressupõe uma tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir (arts.580 e 581 CPC) e distingue-se da autoridade do caso julgado, onde este se manifesta no seu aspecto positivo.

O Professor Miguel Teixeira de Sousa, definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, escreve – “ A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente ( “ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs. ).

A jurisprudência tem acolhido esta distinção. Como se sintetizou no Ac RC de 14/11/2017 ( do aqui relator ), proc nº 826/14.8T8GRD.C1, em www dgsi.pt - “A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil ( razões de economia processual ), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo uma total identidade entre ambas as causas.A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença ( razão de certeza ou segurança jurídica ), não se exigindo a tríplice identidade”.

Discute-se se a autoridade do caso julgado exige a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.581 do CPC. A este propósito, tem-se entendido que não se pode prescindir da identidade subjectiva, por exigência do princípio do contraditório, limitando-se a independência à identidade objectiva.

Afirma-se, por exemplo, no Ac STJ de 26/11/2020 (proc nº 7597/15.9T8LRS.S1) – “Nesta linha, a extensão da autoridade do caso julgado não depende da verificação integral ou completa da tríplice identidade prescrita no artigo 581.º do CPC, mormente no plano do pedido e da causa de pedir. Já no respeitante à identidade de sujeitos, o efeito de caso julgado só vinculará e aproveitará a quem tenha sido parte na respetiva acção ou a quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos”, e no Ac STJ de 21/6/2022 ( proc nº 43/21.OYHLSB.L1 ) – “A autoridade do caso julgado dispensa a verificação da tríplice identidade requerida para a procedência da exceção dilatória, não dispensando a identidade subjectiva (sendo as mesmas as partes em ambas as acções, desde logo por exigência do princípio do contraditório – art. 3º do CPC), o que significa que tal dispensa se reporta apenas à identidade objectiva, a qual é substituída pela exigência de que exista uma relação de prejudicialidade entre o objecto da segunda acção e o objecto da primeira, ainda que parcial”.

O caso julgado, tanto na vertente negativa, como na positiva, tem, em princípio, apenas eficácia entre as partes, ou seja, possui eficácia meramente relativa, o que se justifica em face dos princípios do dispositivo e do contraditório.

Porém, em determinadas situações o caso julgado pode afectar terceiros. A doutrina, a partir do critério do prejuízo, costuma designar os terceiros como juridicamente indiferentes e os terceiros juridicamente interessados.

A afectação de terceiros pelo caso julgado pode acontecer através de uma das seguintes situações: a eficácia reflexa do caso julgado e a extensão do caso julgado a terceiros (cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código Civil, pág.588 e segs.)

A eficácia reflexa do caso julgado dá-se quando estão em juízo todos os interessados directos, significando que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores deve impor-se a terceiros, erga omnes, ou seja, todos estão sujeitos a aceitar a situação reconhecida ou constituída entre as partes na decisão transitada

A extensão do caso julgado a terceiros visa obter a vinculação directa a certos interessados/terceiros, “aqueles em cuja esfera jurídica se constitui, modifica ou extingue uma situação jurídica em consequência do definido na decisão transitada” (e essa extensão pode fundamentar-se na identidade da qualidade jurídica entre a parte e o terceiro, na situação de substituição processual, na titularidade pelo terceiro de uma situação jurídica dependente (cf. Teixeira de Sousa, loc cit., pág.595).

O acórdão recorrido, acolhendo a os fundamentos expostos no Ac STJ de 8/1/2019 (proc nº 5992/13.7TBMAI.P2. S1), disponível em www dgsi.pt, sobre um caso similar, concluiu pela autoridade do caso julgado em relação à Ré Seguradora, apesar de esta não ter intervenção na acção contra o segurado. Considerou-se existir uma relação de prejudicialidade porque a decisão proferida na acção proposta pelo lesado contra o segurado, onde foi condenado, por sentença transitada em julgado, “é pressuposto indiscutível da decisão a proferir na acção proposta contra a Seguradora, já que foi esse o risco que esta cobriu”, pelo que é logicamente “inevitável a repercussão”.

Diz o acórdão: - “Transpondo os ensinamentos do referido acórdão para o caso dos autos, temos que, em atenção ao teor da decisão que foi proferida na anterior ação que correu termos entre a autora e o segurado da ré no Juízo Central Cível de ... – Juiz ..., com o n.º 1835/16.8T8GMR, se deve ter por definitivamente fixada e definida a responsabilidade profissional do Dr. BB para com a autora e a medida dos danos a indemnizar com fundamento em tal responsabilidade, não podendo ser objeto de nova discussão os fundamentos e a decisão proferida na causa prejudicial, cabendo assim concluir que, por transferência da responsabilidade profissional daquele causídico, a ré deve ser considerada sem mais responsável pela indemnização peticionada pela autora, pouco importando a data de tomada de conhecimento, pelo segurado, dos factos fundadores da sua responsabilidade profissional.”

Pode sintetizar-se hoje, a partir dos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, que uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira possa influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser à mesma.

No entanto, é indispensável aferir dada a natureza da intervenção da Ré Seguradora, tendo em conta a relação jurídica material subjacente.

O contrato de seguro de responsabilidade civil dos advogados celebrado pela Ordem dos Advogados é legalmente qualificado com um seguro de grupo em que a OA é a tomadora e cada um dos advogados inscritos os segurados. Ao celebrar o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, a Seguradora assumiu, no âmbito do contrato, a obrigação de indemnizar o terceiro lesado (a qui Autora) pelos danos causados pelo advogado (condenado em acção anterior), pessoa civilmente responsável.

Ao contrato de seguro é aplicável a Lei do Contrato de Seguro (LCS), aprovada pelo DL nº 72/2008 de 16/4, designadamente o art.101 nº4, tratando-se, por isso, de um seguro obrigatório (cf., por ex., Ac STJ de 21/5/2019 (proc nº 5/14.4TCFGN), e Ac STJ de 17/10/2019 (proc. nº 5992/13.7TBMA.I. P2), em www dgsi.pt).

Não derivando a obrigação da seguradora da regra do art.497 nº1 CC, mas do contrato de seguro, fica obrigada a garantir a responsabilidade do segurado (arts.137 e 138 LCS), nascendo, assim, duas obrigações: a do segurado, responsável pelo facto danoso, e a da seguradora, obrigada contratual.

Muito embora no regime do seguro obrigatório o lesado tenha o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador (art.146 nº1 LCS), a verdade é que não lhe impõe que o demande conjuntamente com o segurado. Assim, o lesado pode demandar apenas o segurado ou a seguradora, ou ambos.

Esta possibilidade resulta da articulação do art.146 nº1 (direito de acção directa) com o direito de acção do lesado contra o responsável (cf. por ex., Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 4ª ed., pág.499). Não é assim no seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação dado o regime específico do art. 64 nº1 do DL nº 291/2007, de 21/8, ao impor a expressa obrigatoriedade da demanda apenas contra a seguradora quando o pedido se contiver dentro do capital legalmente garantido.

Neste sentido, afirma-se no Ac STJ de 18/2/2021 (proc nº 35/19.0T80DMA.E1), em www dgsi.pt – “o lesado, nos contratos de seguro obrigatórios regulados pelo D.L. 72/2008, pode optar por demandar só o lesante, só a seguradora ou ambos, em regime de litisconsórcio voluntário porque a interpelação directa da seguradora é uma possibilidade e não uma obrigatoriedade, como ocorre no contrato de seguro automóvel que, sendo obrigatório, tem regulação própria no DL nº 291/2007, de 21 de Agosto”.

Por isso, verifica-se uma obrigação plural solidária, porque o credor pode exigir a prestação de qualquer dos devedores, qualquer dos obrigados (segurado e /ou seguradora) pode ser demandado à escolha do credor, e o pagamento da indemnização libera a prestação do outro devedor (art.512 nº1 CC) (cf., por ex., Ac STJ de 29/5/2003 ( proc nº 02A041), em www dgsi.pt )

Podemos concluir que a obrigação da Ré Seguradora se apresenta solidária perante o lesado, embora se trate de solidariedade imperfeita ( art. 512 nº1 e 2 CC ) pelo que tem aplicação a norma do art.522 CC sobre o caso julgado – “ O caso julgado entre o credor e um dos devedores não é oponível aos restantes devedores, mas pode ser oposto por estes, desde que não se baseie em fundamento que respeite pessoalmente àquele devedor”.

O legislador, adaptando a eficácia do caso julgado ao condicionalismo específico das obrigações solidárias, adoptou uma posição intermédia, consoante a sentença seja condenatória ou absolutória, ao permitir que a sentença transitada em julgado em relação a um dos devedores aproveite aos restantes (salvo quando se basear em razões pessoais do demandado), mas não os prejudique.

Daqui resulta que sendo o caso julgado condenatório, ele não é oponível aos condevedores que não foram parte do processo. A justificação é apontada pelo Professor Antunes Varela da seguinte forma: “A razão justificativa da solução está no intuito de facultar aos devedores a arguição de todos os meios de defesa e a produção de todos os meios de prova que disponham, não os vinculando ao resultado de uma acção em que não puderam dizer de sua justiça, nem os sujeitando ao possível conluio do credor com o devedor demandado, no sentido de este lhes facilitar a obtenção da sentença favorável” ( Das Obrigações em Geral, 2ª ed., pág.636).

Seguindo esta orientação, decidiu-se no Ac STJ de 27/1/1993 (CJ ano I, tomo I (1993), pág.93) – “A sentença condenatória do segurado proferida em acção civil para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação não tem eficácia de caso julgado para com a seguradora não demandada, nem interveniente, nessa acção”.

Para além disso, verifica-se que o acórdão recorrido deu como provados (cf. ponto C) os factos provados descritos na sentença condenatória da anterior acção, mas importa ter presente que o caso julgado incide sobre a decisão e não abrange os fundamentos de facto, conforme orientação doutrinária e jurisprudencial prevalecente.

Neste sentido, Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 1984, pág 697) – “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”. Também Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577), para quem “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressupostos, valor de caso julgado”.

No plano jurisprudencial, por ex. Ac do STJ de 2/03/2010 (proc. n.º 690/09.9), disponível em www.dgsi.pt/jstj, onde se afirma – “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente (…)”. No mesmo sentido, o Ac STJ de 5/5/2005 (proc. nº 05B691), disponível em www dgsi.pt, ao decidir que “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui”.

Perspectivando-se no âmbito do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados num processo não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento (dos actos praticados pelo juiz), mas não quanto à realidade dos factos dados como provados, implicando a rejeição de qualquer “eficácia probatória” das premissas de uma decisão (cf. Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, pág.114 e segs.).

2.4. Síntese conclusiva

Numa acção de responsabilidade civil profissional, a sentença que condena o segurado numa indemnização não faz caso julgado positivo relativamente à Seguradora, que não foi parte na acção.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar o acórdão recorrido.

2)


Condenar a Autora nas custas do recurso e na das instâncias.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Fevereiro de 2024.


Jorge Arcanjo (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Jorge Leal