Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1658/03.4TBETR.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : Em caso de venda de coisa com defeito deve aplicar-se, primordialmente, as disposições próprias da venda defeituosa e depois, com as devidas adaptações, o prescrito para a venda de bens onerados.
Deve, assim, ser reconhecido ao comprador, em primeira linha, o direito de exigir do devedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver a natureza fungível, a substituição dela (art. 914º nº 2). Para além deste direito, deve-se reconhecer ao mesmo o direito de anulação do contrato (art. 909º), de redução do preço e da indemnização (- art. 908º, todos do C.Civil, pelo interesse contratual negativo).

O art. 914º impõe uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa, reparando-a e, só não sendo possível a eliminação da anomalia, é que deverá proceder à substituição da coisa vendida.

O nº 3 deste art. 921º impõe a denúncia do defeito do bem ao vendedor, dentro do prazo da garantia, ou em trinta dias depois de conhecido.
No que toca a acção com vista à reparação ou substituição da coisa, ela deve ser instaurada, sob pena de caducidade, até cessar o prazo para a denúncia, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi realizada.
No caso, porque entre a denúncia dos defeitos e a propositura da acção, decorreram mais de seis meses, ocorre a excepção da caducidade da acção.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I- Relatório:
1-1- “AA - Recolha, Locação, Exploração, Saneamento e Limpeza, Ldª”, com sede em ..., ..., Oliveira de Azeméis, propôs a presente acção com processo ordinário contra BB, Ldª, com sede na Rua …, nº …, Estarreja e CC Portuguesa - Sociedade Comercial e Industrial, S.A., com sede na …, …, …, Lisboa pedindo que as RR. sejam condenadas, solidariamente, a entregar-lhe uma viatura nova, em substituição da que foi inicialmente entregue, da mesma marca e modelo, a pagar-lhe as quantias relativas a rendas pagas e a pagar à “... Mobiliária”, até efectiva entrega da viatura, que neste momento ascendem a € 12.628,22, e a quantia que despendeu respeitante ao aluguer de uma viatura de substituição, no montante de € 2.729,20, acrescidas juros de mora à taxa legal sobre todas as quantias em que vier a ser condenada, desde a citação.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que na sequência de um contrato de locação financeira que celebrou com “... Mobiliária, S.A.”, foi-lhe entregue o veículo automóvel que identifica, adquirido pela referida sociedade de locação financeira à 1ª R., que é concessionária da marca …, representada pela 2ª R., veículo que, no prazo de garantia, se pôs diversas vezes em movimento, por si só, devido a mau funcionamento do travão de mão, ocorrências de que deu conhecimento à 1ª R., exigindo-lhe a substituição do veículo, a que esta respondeu remetendo a responsabilidade pela verificação das deficiências para a 2ª R., sem lhe ter entregue nenhum veículo idêntico. Com isso o veículo sofreu diversos danos e teve vários prejuízos relacionados com os encargos financeiros atinentes ao veículo e à sua substituição, de que se quer ver ressarcida.
Contestaram as RR. por excepção, invocando a ilegitimidade da A. e a sua própria ilegitimidade, e a caducidade do direito de reclamação dos defeitos e, por impugnação, afirmando, em síntese, que os danos se devem a causas externas ao funcionamento do veículo e que não são responsáveis pelo pagamento dos valores peticionados pela A., concluindo pela procedência das excepções e pela improcedência da acção, com as legais consequências.
Respondeu a A. sustentando a improcedência das excepções tendo, no mesmo articulado, deduzido o incidente de intervenção principal provocada de “DD S.A.”, que foi admitido, tendo a interveniente apresentado articulado em que afirmou fazer sua a contestação das RR..
O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se realizado audiência preliminar onde se proferiu o despacho saneador, despacho em que se julgou improcedentes as excepções de ilegitimidade da A. e das RR. levantadas por estas, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou-se a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.
Nesta julgou-se procedente a excepção da caducidade da acção, absolvendo-se as RR. e interveniente dos pedidos.
Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí, por acórdão de 18-06-2009, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
1-2- Irresignado com este acórdão, dele recorreu a A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Em 10 de Março de 2003 a recorrente deu conhecimento à vendedora do veículo em causa que tinha graves anomalias no seu sistema de travagem, o que originou acidentes que com o mesmo ocorreram e causou danos muito significativos que se encontram perfeitamente atestados no processo.
2ª- A partir de 9 de Março de 2003 a viatura passou a estar na posse da entidade alienante, permanecendo na sua oficina, ficando a recorrente a aguardar que as deficiências apontadas fossem reparadas ou, a não ser possível a reparação, que fosse a mesma substituída por viatura similar em estado novo.
3ª- Foi-lhe, porém, depois transmitido que o veículo não apresentava qualquer anomalia e em face disso cuidou a recorrente de adoptar postura mais formal e solene, mesmo de pendor contencioso, deduzindo em 8/05/2003 notificação judicial avulsa em que instava a alienante da viatura à entrega de automóvel similar em estado novo.
4ª- Em todas as partes envolvidas inexiste qualquer dúvida no que toca à posição da recorrente a partir do momento em que a viatura se passou a encontrar na posse da entidade que a vendera, já que passou a aguardar pelo bom cumprimento daquilo a que instara a contraparte alienante.
5ª- Tal encontrava-se expresso de forma cabal na notificação judicial avulsa e tratava-se da única coisa que a recorrente na altura podia fazer.
6ª- Seria sempre mal compreendido e profundamente incorrecto que a recorrente, depois de apresentar uma notificação judicial avulsa em que denotava claramente o que pretendia, passando a aguardar pela actuação em conformidade da contraparte, simultaneamente intentasse uma acção declarativa de condenação contra a mesma.
7ª- Estando as partes em negociação para solucionar o conflito, há uma impossibilidade moral de agir judicialmente (Romano Martinez, citando Carbonnier, in Cumprimento Defeituoso).
8ª- A vendedora do veículo apercebeu-se naturalmente de que havia problemas com aquela viatura, sempre tendo sido o propósito por si manifestado o de se furtar a quaisquer responsabilidades, as quais logo relegou para o fabricante do veículo, a quem o automóvel foi levado.
9ª- A existência de anomalias foi reconhecida pela entidade alienante e é aliás atestada pelas inúmeras diligências por si efectuadas de que os autos nos dão conta, sendo porém certo porém que aquela sempre declinou a respectiva responsabilidade.
10ª- Não é exigível que a confirmação do defeito revista o mesmo valor do acto que deveria ter sido praticado no seu lugar, e o art. 331°, n° 2 do Código Civil apenas exige o reconhecimento do direito.
11ª- O reconhecimento efectuado pela contraparte implica que a excepção peremptória da caducidade do direito da recorrente possa produzir efeito.
12ª- A vendedora do veículo diligenciou efectivamente no sentido de apurar se os defeitos eram ou não de fabrico, uma vez que sempre se encontrou ciente dessa sua obrigação, sendo que a caducidade não opera se o devedor, reconhecendo perante o credor a sua obrigação, o convence, por isso mesmo, da desnecessidade de recurso a acção judicial e o afasta, por isso, de pedir o reconhecimento judicial do direito que lhe assiste, solução que, em vista do reconhecimento pelo devedor, se revela escusada.
13ª- Uma vez reconhecido o direito à reparação, na sequência de denúncia realizada, não se extingue o direito se a acção não for proposta no prazo de um ano, conforme doutamente vem atestado no acórdão do STJ relativo ao processo 08B1356 de 21-05-2009, www.dgsi.pt.
14ª- A caducidade não opera se o devedor, reconhecendo perante o credor a sua obrigação, o convence, por isso mesmo, da desnecessidade de recurso a acção judicial, e o afasta, por isso, de pedir o reconhecimento judicial do direito que lhe assiste - solução que, em vista do reconhecimento pelo devedor, se revela escusada, de harmonia com o propugnado no muito douto acórdão do STJ de 26.04.78, in BMJ 276/298—1V e V.
15ª- Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins que se destinam a produzir os efeitos que se lhes atribuem, de acordo com as legítimas expectativas do consumidor, como preceitua o n° 1 do art. 4° da legislação de defesa dos consumidores — DL n° 24/96 de 31.07.
16ª- A presente questão respeita a uma viatura automóvel, que se trata de bem em relação ao qual se encontra perfeitamente estabilizada no domínio comum a percepção relativa à panóplia de atribuições que lhe são inerentes.
17ª- À acção de reparação ou substituição de coisa a que alude o art. 914° do C. Civil não é aplicável o prazo consignado no art. 907° e sim o estatuído duma forma geral no art. 309°, ambos do mesmo diploma legal.
18ª- Entende muito respeitosamente a recorrente que deverá ser renegada a excepção de caducidade aduzida na douta sentença inicialmente recorrida e confirmada no douto acórdão que se lhe seguiu, por forma a ter depois lugar a prolação de sentença no Tribunal de Primeira Instância, em conformidade com a prova que resultou efectiva nos autos.
As recorridas contra-alegaram, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, será a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- Se ocorre, ou não, a excepção da caducidade da acção relativamente à substituição do veículo e ao recebimento das indemnizações pedidas pela A..
2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1) A A. dedica-se essencialmente à actividade de prestação de serviços de recolha de resíduos e seu transporte a destino final, bem como à locação de contentores (A).
2) A 1ª R. dedica-se à venda de automóveis, em estabelecimento que explora para o efeito em Estarreja (B).
3) A 2ª R. é representante em Portugal da “CC” (C).
4) Em Janeiro de 2003, a A. celebrou com a “... Mobiliária - Sociedade de Locação Financeira, S.A.” um contrato de locação financeira para aquisição à 1ª R. de um veículo automóvel novo, de marca …, modelo …, com a matricula …, pelo preço de € 33.134,45, acrescido de IVA, fixando-se o respectivo valor global de aquisição em € 39.430,00, conforme documento junto a fls. 11 a 14 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (D).
5) O automóvel referido sofreu danos avultados, tanto na parte de chaparia como inclusive na mecânica, tendo-se verificado uma deslocação do motor, tendo sido arrancadas as barras de apoio do mesmo, a destruição do pára-choques, incluindo guarda-lamas, a destruição da barra estabilizadora, a danificação do capot e do porta bagagens, ficando ainda as longarinas do chassis vergadas nas partes laterais (E).
6) Em 10 de Março de 2003, a A. remeteu à 1ª R. a carta junta a fls. 16 a 18 e cujo teor se da como integralmente reproduzido (F).
7) Em 20 de Março de 2003, a A. remeteu à 1ª R. a carta junta a fls. 19 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido (G).
8) A 1ª R. respondeu à carta da A. de 20 de Março de 2003 através de carta junta a fls. 20 e que aqui se dá por integralmente reproduzida (H).
9) Em 8 de Maio de 2003, a A. deu entrada no Tribunal da Comarca de Estarreja de uma notificação judicial avulsa dirigida à R., que se mostra junta a fls. 21 a 27 e que aqui se dá por integralmente reproduzida (I).
10) A R. foi notificada, no âmbito do procedimento referido em I), em 12 de Maio de 2003 (J).
11) A 1ª R. respondeu à notificação judicial avulsa requerida pela A., nos termos constantes da carta de fls. 93 (L).
12) Antes de 10 de Março de 2003, a A. não reclamou junto das RR. e chamada qualquer defeito do veículo nem o mesmo havia sido objecto de qualquer intervenção (M).
13) A 2ª R. garante, durante um período de doze meses, sem limite de quilometragem, os defeitos de material de cada veículo vendido no estado de novo, da marca … (N).
14) Nos termos da garantia contratual da marca, excluem-se desta “as consequências indirectas de um eventual defeito tais como: perdas de exploração, duração de imobilização, etc.” (O).
Resultantes das respostas dadas à base instrutória.
15) A A. destinava a viatura para ser utilizada diariamente pela pessoa de EE (4º).
16) No dia 7 de Fevereiro de 2003, quando EE se prestava para sair da respectiva residência de manhã, deparou-se com o automóvel em posição diversa daquela em que tinha ficado imobilizado no dia anterior, já que o mesmo havia deslizado uns metros para a frente até embater no veículo estacionado à sua frente (5º).
17) O local configura uma via com cerca de 6% de inclinação (6º).
18) O condutor, no dia anterior, quando havia estacionado a viatura, havia imobilizado a mesma accionando o travão de parqueamento da mesma, vulgo “travão de mão” (7º).
19) No dia 20 de Fevereiro de 2003, o condutor EE estacionou a viatura junto ao escritório da empresa A., em local que também se caracteriza por uma inclinação (8º).
20) Também nesta situação tinha sido accionado o “travão de mão” da viatura (9º).
21) Cerca de quinze minutos depois de estacionado, o condutor deslocou-se à viatura para daí retirar uns documentos, tendo constatado que a mesma se encontrava na posição em que tinha sido deixada (10º).
22) Cerca de trinta minutos depois de haver estacionado, veio o condutor a ser alertado de que o automóvel tinha deslizado, indo embater na parte traseira de uma viatura pesada (11º).
23) No dia 9 de Março de 2003, a viatura … foi estacionada pelo seu habitual condutor junto das instalações da A., em ... (12º).
24) O referido condutor accionou o “travão de mão” do veículo, nesta ocasião (13º).
25) Sendo que o local apresentava uma pequena inclinação (14º).
26) Em frente do local onde a viatura ficou estacionada há um declive de cerca de três metros, passando por baixo a estrada entre Nogueira do Cravo e ..., freguesias do concelho de Oliveira de Azeméis (15º).
27) Passado cerca de trinta minutos, a viatura que se encontrava estacionada começou abruptamente a deslizar para a frente, ganhando velocidade e acabando por tombar na referida estrada, de forma estrondosa, atravessando-se na mesma (16º).
28) Os danos referidos no ponto E) dos factos assentes ficaram a dever-se à ocorrência referida no ponto anterior (17º).
29) A reparação dos danos referidos no ponto E) dos factos assentes, têm um custo de € 9.321,41 (18º).
30) A A. tem vindo a suportar perante a “... Mobiliária” as prestações constantes do plano de pagamento afecto ao contrato de locação financeira que com ela celebrou, e que ascendem na sua globalidade ao montante de € 42.121,32, com o valor residual já incluído (20º).
31) De 24 de Março de 2003 a 23 de Maio de 2003, a A. viu-se forçada a alugar uma viatura de substituição, por impossibilidade, durante esse período de tempo, de utilização da viatura de matrícula … (21º).
32) Despendendo para esse efeito a quantia global de € 2.729,20 (22º).
33) Os danos referidos no ponto E) dos factos assentes são reparáveis (23º).
34) Tais danos mostram-se já reparados e a viatura de matricula … em condições de circular, desde 29 de Maio de 2003 (24º).
35) A 1ª R. é agente da “CC Portuguesa” com quem não tem relações directas, uma vez que depende do concessionário de Aveiro, a chamada “DD, S.A.” (25º).
36) Foi a chamada “DD, S.A.” que vendeu o veículo dos autos (26º).
37) O sistema de “travão de mão” que equipa o veículo dos autos é de extrema simplicidade, sendo constituído por um conjunto mecânico de duas alavancas, interligadas por um cabo, uma delas com uma engrenagem (arco de roda dentada), provida de uma prisão por veio, accionada por um botão com uma mola (27º).
38) As avarias são imediatamente perceptíveis para o condutor, já que a alavanca do travão de mão não se solta, ou não prende, ou fica morta, sem qualquer resistência, devido a ruptura ou folga excessiva do cabo (28º).---------------------------------
2-3- A A. propôs a presente acção, em 16-12-2003, com o objectivo de lograr das RR. a substituição da viatura “…” que lhe foi inicialmente entregue em razão do contrato de compra que efectuou e a pagar-lhe a quantia que referencia relativa a rendas de “leasing” por si pagas e o montante que despendeu respeitante ao aluguer de uma viatura de substituição, importâncias acrescidas juros de mora à taxa legal desde a citação.
Fundamenta este pedido na circunstância de as RR. lhe terem vendido o veículo (…) que refere (viatura entregue a 30-1-2003) que, por sofrer de deficiência mecânica a nível do sistema de travagem originou a que, quando se encontrava estacionado, deslizasse sozinho e fosse tombar na estrada sofrendo danos avultados.
Na contestação as RR. invocam a excepção da caducidade da acção, uma vez que o invocado defeito lhes foi denunciado em Março de 2003, tendo sido citadas para a acção em 19-12-2003, razão por que decorreram mais de seis meses desde o momento da denuncia de tal facto, pelo que se verifica a dita caducidade (art. 917º do C.Civil, diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem).
As instâncias entenderam aplicar à situação o regime jurídico da venda de coisas defeituosas a que se referem os arts. 913º e seguintes, tendo considerado caduca a acção por haverem decorrido mais de seis meses entre a data da denúncia do defeito e o momento em que foi instaurado o pleito (art. 921º).
Na presente revista a recorrente defende, de essencial e em síntese, que a caducidade não opera se o devedor, reconhecendo perante o credor a sua obrigação, o convence, por isso mesmo, da desnecessidade de recurso a acção judicial e o afasta, por isso, de pedir o reconhecimento judicial do direito que lhe assiste. Por outro lado, à acção de reparação ou substituição de coisa a que alude o art. 914º não é aplicável o prazo consignado no art. 917° e sim o estatuído, duma forma geral, no art. 309°, pelo que deverá ser considerada improcedente a excepção de caducidade da acção aduzida pelas RR..
Vejamos:
Dada a deficiência de funcionamento a nível do sistema de travagem que o veículo apresentou, parece-nos isento de dúvida que a respectiva venda deve ser entendida como de coisa defeituosa.
Nos termos do art. 913º nº 1 “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”.
De sublinhar que esta norma faz equivaler o vício à falta de qualidade da coisa. Como refere Calvão da Silva (1) em relação a este paralelismo “a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante à aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera. Nesta medida, diz o mesmo autor que “diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º nº 2)”. Pedro Marinez (2) diz que "o defeito da coisa constitui um desvio com respeito à qualidade corpórea que seria devida".
Quer dizer, a coisa será defeituosa quando for imprópria para o uso concreto destinado pelo contrato, ou quando não satisfaça a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo (nº 2 do art. 913º).
O vício que haverá, no presente caso, de ponderar, será o que impede a coisa da “realização do fim a que é destinada”, visto que se trata de um automóvel que apresenta evidentes problemas a nível de segurança (deficiência dos travões), o que o impede de circular de forma regular.
Face à disposição evidenciada, o regime a aplicar à situação será o determinado na secção precedente (venda de bens onerados) em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
Quer dizer, deve aplicar-se ao caso, primordialmente, as disposições próprias da venda defeituosa e depois, com as devidas adaptações, o prescrito para a venda de bens onerados.
Como diz Calvão da Silva (3) em relação a este aspecto “desta sorte o comprador de coisa defeituosa goza do direito de anulação do contrato e do direito de redução do preço, nos termos previstos para a venda de bens onerados… Por força da mesma remissão, o comprador da coisa defeituosa goza igualmente do direito à indemnização do interesse contratual negativo…”.
Significa isto que deve ser reconhecido ao comprador, em primeira linha, o direito de exigir do devedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver a natureza fungível, a substituição dela (art. 914º nº 2). Para além deste direito, deve-se reconhecer ao mesmo o direito de anulação do contrato (art. 909º), de redução do preço e da indemnização (- art. 908º -pelo interesse contratual negativo) (4)
No caso vertente, de harmonia com o disposto no art. 914º (disposição própria da venda defeituosa), a compradora tinha o direito de reivindicar dos RR. vendedores, a reparação da coisa (5) ou a sua substituição se se reputasse como necessária, dado o veículo ter o carácter fungível (art. 207º). Poderia também, face à remissão para as normas de venda de bens onerados, pedir a anulação do contrato (por erro ou dolo), a redução do preço (quando as circunstâncias do contrato, mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior -art. 911º-), a indemnização pelo interesse contratual negativo (traduzido no prejuízo que sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato) (6)
No caso dos autos, a A. não pediu a anulação do contrato, nem a redução do preço e nem qualquer indemnização pelo interesse contratual negativo, pelo que a disciplina jurídica destas prerrogativas serão de afastar de imediato. A A. pediu, como se viu, a substituição do veículo “queimando” a etapa prévia de reparação da viatura, o que não poderia fazer. A norma (art. 914º) impõe uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa, reparando-a e, só não sendo possível a eliminação da anomalia, é que deverá proceder à substituição da coisa vendida.
Significa isto que, segundo cremos, desde o início, a viabilidade da acção seria polémica.
Mas como não é este o assunto que se debate no recurso, não adiantaremos mais sobre ele.
Diversamente do disposto no art. 914º, em que se estabelece a extinção da obrigação do vendedor de reparar ou substituir a coisa em caso de desconhecimento, sem culpa da sua parte, do vício do bem, o art. 921º, que se aplica aos casos em que o vendedor está obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, impõe a reparação ou substituição do bem, independentemente da culpa do vendedor ou de erro do comprador. Há aqui como que uma responsabilidade objectiva.
Dado que, no caso, se trata da alienação de um veículo cujo vendedora garantiu, durante um período de doze meses sem limite de quilometragem, os defeitos do material (vide facto provado acima referido sob o nº 13), o regime desta disposição tem aplicação à presente situação.
Quer dizer, mediante a concessão da garantia, o vendedor assegura pelo prazo da sua duração o bom funcionamento do veículo, assumindo a responsabilidade pela reparação das deficiências de funcionamento verificadas durante esse período. De resto, mesmo que convencionalmente não tivesse sido dada a garantia de bom funcionamento ao veículo, notoriamente, por força dos usos, essa garantia deveria ter-se como adquirida (7) . Também o art. 4º nº 2 do Lei 24/96 de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor), ao estabelecer que “sem prejuízo do estabelecimento de prazos mais favoráveis por convenção das partes ou pelos usos, o fornecedor de bens móveis não consumíveis está obrigado a garantir o seu bom funcionamento (sublinhado nosso) por período não inferior a um ano”, impõe, igualmente, a aplicação ao caso, o regime do art. 921º nº 1.
Nesta conformidade, a vendedora, ao alienar o veículo com garantia de bom funcionamento, em caso da verificação de deficiências, ficou obrigada reparar ou a substituir o bem, nos termos já ditos.
O nº 3 deste art. 921º estabelece que o defeito de funcionamento deve ser denunciado ao devedor dentro do prazo de garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido. Acrescenta, por sua vez, o nº 4 da disposição que a acção caduca logo que finde o prazo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efectuada.
Impõe, assim, esta disposição a denúncia do defeito do bem ao vendedor, dentro do prazo da garantia, ou em trinta dias depois de conhecido. No que toca a acção com vista à reparação ou substituição da coisa, ela deve ser instaurada, sob pena de caducidade, até cessar o prazo para a denúncia, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi realizada.
Foi precisamente nesta disposição que as instâncias concluíram pela verificação da caducidade da presente acção.
E, a nosso ver, correctamente. É que como se diz no acórdão recorrido, referindo o que sobre o assunto se escreveu na sentença de 1ª instância, “in casu, o contrato de locação financeira foi celebrado em Janeiro de 2003, no dia 7/2/03, verificou-se a primeira ocorrência com a viatura, em 20/2/03, a segunda e, em 9/3/03, a terceira. Em 10/3/03 e 20/3/03, respectivamente, a Autora remeteu à 1ª Ré as missivas juntas a fls. 16 a 18 e 19 e, em 8/5/03, procedeu à notificação judicial da mesma. Em todas estas comunicações a Autora alude aos factos que determinam a sua reclamação. A presente acção entrou em 16/12/03. O prazo da garantia dado pela “…” é de 12 meses. Concatenando todas estas datas e os procedimentos adoptados pela Autora podemos concluir que procede a invocada excepção da caducidade. Tendo a primeira denúncia do alegado defeito do sistema de travagem/parqueamento do veículo sido detectado e denunciado à Ré a 10/3/03, começou a correr a partir daí o prazo de 6 meses para ser intentada a acção respectiva. Prazo esse que terminou a 10/8/03. E como prazo de caducidade que é, não está sujeito a suspensões ou interrupções (ut artº 328º, do Cód. Civil). Mesmo que se considere a data da notificação judicial avulsa, apesar de entendermos que está sempre em causa o mesmo defeito e por isso é a primeira denúncia que vale, os 6 meses contados a partir daí também fazem surgir a caducidade. Assim sucedendo porque a acção foi proposta já depois do fim desse prazo (Novembro de 2003)”. Isto é, como acertadamente se disse nos referidos arestos, entre a denúncia dos defeitos (10-3-2003) e a propositura da acção (16-12-2003), decorreram mais de seis meses, pelo que ocorre a excepção da caducidade da acção. Quando a acção foi interposta já o direito de propositura havia caducado.
Diz a recorrente que a caducidade não opera se o devedor reconhecer perante o credor a sua obrigação, convencendo-o, da desnecessidade de recurso a acção judicial.
Até poderemos aceitar este entendimento (vide art. 331º nº 2, sendo que neste sentido decidiram, por exemplo, os Acórdãos deste STJ de 4-7-2002 e de 21-5-2009, ambos acessíveis através de www.dgsi.pt/jstj), mas o certo é que os factos dados como provados não denunciam qualquer reconhecimento por parte dos devedores da obrigação de substituição da viatura pretendida pela ora recorrente (8) .
No que toca ao argumento da recorrente segundo o qual se deve aplicar à situação o prazo estatuído no art. 309° (prazo ordinário de 20 anos), diremos que carece de razão porque, como já se disse, pelos motivos aduzidos, ao caso deve ser aplicado o regime estabelecido no art. 921º (9).
Por fim, como se diz correctamente no douto acórdão recorrido, para onde se remete, a procedência da excepção da caducidade impede a apreciação dos pedidos de indemnização, pois procedem da mesma causa de pedir. Os pedidos de indemnização estão relacionados e dependem da compra de coisa defeituosa, pelo que não têm existência autónoma, ficando, assim, sujeitos ao regime de caducidade da compra.
O recurso é, pois, improcedente.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2010
Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Sebastião Póvoas
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(1) In Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 41
(2) In Cumprimento Defeituoso, Em Especial Na Compra e Venda e Empreitada, pág. 198
(3) In Obra citada pág. 48
(4) Vide novamente Calvão da Silva, obra citada pág. 56.
(5) Vide a este propósito Pedro Martinez, obra citada, pág. 338
(6) Sobre a questão vide o acórdão deste STJ 27-4-2006 em www.dgsi.pt/jstj.nsf.
(7) É comummente sabido que faz parte dos usos do comércio automóvel, os vendedores de carros novos concederem garantia de bom funcionamento aos compradores
(8) Nem sequer os factos assentes denunciam o reconhecimento da obrigação de reparação da viatura. A necessidade de averiguação da existência de defeitos que os factos provados podem indiciar, não coincide, obviamente, com uma aceitação de anomalias.
(9) O acórdão deste STJ de 12-11-1998 invocado pela recorrente, diz respeito a situação diversa dos presentes autos, já que no caso aí julgado não estava em causa um bem vendido com garantia de bom funcionamento (art. 921º do C.Civil).