Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
277/12.9TBALJ-B.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLAÇÃO DE LEI
PODERES DA RELAÇÃO
RENOVAÇÃO DA PROVA
PROVA POR DECLARAÇÕES DE PARTE
PROVA TESTEMUNHAL
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
EXECUÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. É admissível recurso para o STJ dos acórdãos proferidos pelas Relações em que seja questionado o modo como a Relação usou (ou não usou) os poderes que lhe são conferidos pelo art.º 662º, nºs 2, do CPC;
II. O art.º 662º, nº 2, als. a) e b), do CPC estabelece um poder/dever de proceder à renovação da prova ou à produção de prova suplementar quando sobre a credibilidade do depoente ou o sentido do seu depoimento houver dúvida séria ou haja dúvida fundada sobre a prova realizada;

III. Dúvida séria ou fundada é aquela que, por um lado, surge da incerteza quanto ao preenchimento do adequado estalão probatório, e que, por outro lado, se apresenta como susceptível de, segundo padrões de praticabilidade, ser resolvida. Não há dúvida séria/fundada se se tem por adquirido o preenchimento ou não preenchimento do adequado estalão probatório, nem se, apesar da incerteza, não se descortina modo útil e efectivo de a afastar;

IV. Se a Relação, em contrário da 1ª instância, considerou a prova documental insuficiente, mas não deixou de considerar que a incerteza decorrente dos documentos apresentados era susceptível de ser suprida com a apresentação de outros documentos cuja obtenção estava ao alcance das partes, deveria ter diligenciado pela obtenção e junção aos autos desses outros documentos.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA





NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS




ENTRE




CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, SA

(aqui patrocinada por …, adv. )





Exequente / Impugnante / Apelante / Recorrido




E




AA

BB

CC

DD

EE

(aqui patrocinados por …, adv.)


Executados




E




FF

GG

(Aqui patrocinados por … (Filho), adv.)


Credores Reclamantes / Impugnados / Apelados / Recorrentes




E


HH

II

(Aqui patrocinados por … (Filho), adv.)





Credores Reclamantes



I – Relatório


   O Exequente intentou contra os Executados execução para pagamento de quantia certa tendo em vista a cobrança de 1.205.030,95 €. Penhorado nessa execução um prédio urbano vieram os ora Recorrentes reclamar um crédito no valor de 234.436,00 €, e juros, correspondente ao dobro do sinal que, enquanto promitentes-compradores, prestaram ao antecessor dos Executados, que lhes prometeu vender duas fracções autónomas (uma para habitação e outra para comércio) de um imóvel a construir e que foi construído, correspondendo ao prédio penhorado; essas fracções vieram a ser-lhes entregues e desde então os Recorrentes as vêm utilizando em exclusivo, sem que o contrato prometido tenha sido outorgado, pelo que lhes assiste direito de retenção.

     O Exequente impugnou o crédito reclamado pelos Recorrentes.

   Veio a ser proferida sentença que reconheceu o crédito reclamado pelos Recorrentes e estar o mesmo garantido por direito de retenção.

    Inconformado, apelou o Exequente, impugnando a matéria de facto e invocando a ilegitimidade dos credores, a falta de alegação do incumprimento definitivo, a inexistência do crédito e a inexistência do direito de retenção.

   A Relação considerou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade e alterou para não provado o ponto 11 do elenco factual (o pagamento do sinal) daí concluindo ser inexorável o não reconhecimento do reclamado crédito, considerando prejudicada a apreciação das demais questões.

   Para justificar aquela alteração factual invocou que atento o montante em causa a simples prova testemunhal não se afigura idónea à demonstração do pagamento do sinal. Além disso a prova testemunhal produzida apresenta-se pouco credível porquanto produzida por pessoas com interesse directo ou potencial na causa, tendo os depoimentos prestados apresentado contradições e incongruências e nenhum deles (excepto o do Reclamante) invocar conhecimento directo do facto; por outro lado os factos de nos contratos-promessa constar que o valor da fracção autónoma «será integralmente pago nesta data» e de a caderneta da conta dos credores evidenciar o levantamento de montante correspondente ao sinal não têm a virtualidade de, só por si, demostrar, com o alto grau de probabilidade exigido, o efectivo pagamento de sinal, ademais porque não acompanhados de qualquer outro meio de prova susceptível de fazer aquela demonstração ou de justificação da sua eventual perda ou impossibilidade de apresentação.

  Agora irresignados vêm os Credores Reclamantes interpor revista concluindo pela violação da lei processual na medida em que a Relação não usou dos poderes conferidos pelo art.º 662º, nº 2, als. a) e b), do CPC.

  Houve contra-alegação onde se propugnou pela inadmissibilidade do recurso e pela manutenção do decidido.

II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

  O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se mostra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

  Tal requerimento mostra-se devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

    O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º, 671º e 854º do CPC).


    Invoca o Recorrido que o recurso não pode ser conhecido uma vez que, limitando-se os Recorrentes a pôr em causa o modo como a Relação procedeu à reapreciação da matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça não tem poderes para o efeito, uma vez que não pode alterar os factos materiais fixados pela Relação (artigos 682º, nºs 1 e 2, e 662º, nº 4, do CPC).

    Não lhe assiste, porém, razão.

   A proibição de alterar os factos materiais fixados pelas instâncias decorrente do art.º 682º do CPC consiste em vedar ao STJ a pronúncia sobre o juízo probatório levado a cabo pela Relação, estando fora dessa proibição o conhecimento do modo como a Relação exerceu os seus poderes relativos à reapreciação da matéria de facto; se o fez de acordo com os ditames legais ou se, pelo contrário, não respeitou aqueles ditames. Essa apreciação insere-se no âmbito da violação ou errada apreciação da lei de processo, que é um dos fundamentos da revista (art.º 674º, nº 1, al. b), do CPC).

   Em particular, temos por consolidado o entendimento de que é admissível recurso para o STJ dos acórdãos proferidos pelas Relações em que seja questionado o modo como a Relação usou (ou não usou) os poderes que lhe são conferidos pelo art.º 662º, nºs 2, do CPC (isto é, se a Relação agiu dentro dos limites traçados pela lei processual). Nesse sentido pode ver-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08JAN2015, proc. 780/11.8TVLSB.L1.S1, 09JUL2015, proc. 284040/11.0YIPRT.C1.S1, 09JUL2015, proc. 961/10.1TBFIG.C1.S1, 24SET2015, proc. 355/12.4TBSJM.P1.S1, 12ABR2018, proc. 414/13.6TBFLG.P1.S1, e 24SET2020, Proc. 2882/16.5T8LRA.C1.S1; e, ainda, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., 2020, pgs. 358-359, e TEIXEIRA DE SOUSA, Prova, poderes da Relação e convicção: a lição de epistemologia, em Cadernos de Direito Privado, nº 44, pg. 34.

    Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

     Destarte, o recurso merece conhecimento.

   Vejamos se merece provimento.


-*-


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

   De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

  Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

   Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este tribunal é a de saber se a Relação ao alterar o ponto 11 do elenco probatório violou ou não o dever imposto pelo art.º 662º, nº 2, do CPC.

III – Os Factos


Para além do referido no relatório deste acórdão (e para o qual se remete), vem fixada pelas instâncias a seguinte factualidade:


1. Factos provados


1) JJ, faleceu no dia … .10.2003, no estado de viúvo.

2) Por escritura pública, outorgada a … de Outubro de 2003, no Cartório Notarial de …, foram habilitados como herdeiros universais e exclusivos de JJ, o seu filho, 1º executado, AA, e suas netas, 3ª e a 5ª executadas, CC e EE.

3) AA é casado com BB no regime da comunhão de bens adquiridos.

4) CC é casada com DD no regime da comunhão de bens adquiridos.

5) EE é solteira.

6) Por auto de penhora datado de … de Abril de 2013, foi penhorado no processo principal de que estes são apenso o prédio urbano, composto de terreno para construção urbana, resultante da anexação das fichas nº 00481/06…8; 00613/30…9; 02150/18…8; 02329/27...9; 00691/21…9 e 00692/21…9, pela Ap. 1…91 de 2013/03/… .

7) Por documentos escritos, denominado “contrato-promessa de compra e venda” outorgados a … de Abril de 2002, JJ, declarou prometer vender aos reclamantes FF e GG, e estes por sua vez declararam prometer comprar-lhe, pelos preços respetivamente de €79.808,00 e €37.410,00, um apartamento destinado a habitação, tipo T3, no … andar, e uma loja destinada ao comércio, no rés-do-chão, de edifício então a construir (e ora construído) nos prédios – a que corresponderam as fichas 481, 613, 2150, 2329, 691 e 692 / … .

8) Os prédios a que corresponderam as fichas 481, 613, 2150, 2329, 691 e 692 /… que deram origem (por anexação) ao prédio a que corresponde encontra-se penhorado nos autos e, actualmente, está inscrito na ficha 2798 / …, da Conservatória do Registo Predial de … e descrito no artigo urbano 2146º desta freguesia, sito entre a Rua … e Rua … (fachada principal) e a Rua … (fachada traseira) da vila, freguesia e concelho de … .

10) Um dos imóveis prometidos vender, referido em 7), é:

a) um apartamento habitacional, com as seguintes características:

- Acede-se ao mesmo, a partir da via pública, por entrada situada no alçado lateral direito do edifício e escadas que servem apenas os três apartamentos construídos nos 1º, 2º (o prometido vender aos Reclamantes) e 3º andares do respetivo lado nascente – acesso a efetuar, a partir do arruamento e segundo pedido de constituição de propriedade horizontal apresentado pelos executados em … .04.2008 na Câmara Municipal de … (P-00…PH/08), através da zona comum identificada como ZC… no desenho técnico que acompanhou esse requerimento;

- Situa-se no … andar e no lado nascente da edificação construída no referido prédio;

- Encontra-se representado no desenho técnico, referido supra, do … andar e do Bloco 3 (nascente) do imóvel aqui em causa e aí identificado, bem como no dito requerimento, como Fração N;

- Representado também e designadamente nos 5 sucessivos desenhos técnicos de pormenorização, especialidade ou correção entrados entre Julho de 2001 e Abril de 2007 no, e ora extraídos do, Processo 2…3-LO/2001 da Câmara Municipal de …;

- Com uma área real e representada de 105,30 metros quadrados;

- Composto, na realidade (desde meados de 2003) e em projeto (desde 2001) por três quartos, sala, cozinha, duas casas de banho, corredor, varanda, despensa;

- Com um lugar de garagem no rés-do-chão;

- E um valor atribuído de 5% do valor global do prédio


b) O Outro imóvel prometido vender, referido em 7), é uma loja, com as seguintes características:

- Acede-se à mesma, a partir da via pública, por entrada autónoma existente para o efeito na fachada principal do imóvel (lado nascente);

- Situada no rés-do-chão e no lado nascente da edificação construída no referido prédio;

- Representada no desenho técnico referido supra, como Fração U;

- Representada também e designadamente nos mencionados 5 sucessivos desenhos técnicos;

- Com uma área real e representada de 49 metros quadrados;

- Composta, também na realidade (desde meados de 2003) e em projecto (desde 2001), de um compartimento principal para exposição ao público de artigos para venda e de (só em projeto) duas instalações sanitárias (previstas mas não construídas);

- Com um lugar de estacionamento previsto no logradouro do imóvel; - E um valor atribuído de 3,5% do valor global do prédio.

- Os reclamantes apenas tiveram conhecimento de que o imóvel supra melhor identificado tinham sido penhorado uns dias antes de …/08/2013, por o ouvir dizer e na sequência de consulta jurídica que solicitou ao seu Ilustre Mandatário.

- O imóvel referido em 7) foi edificado, com a configuração que atualmente tem, ao abrigo do alvará de licença de construção nº 2…0/02 de … .11.2002, com averbamento da descrição da Conservatória do Registo Predial de … .02.2004 e prorrogação de prazo até … .06.2005, concedida a … .12.2004.

11) (Este facto foi considerado não provado pela Relação) Na data da celebração dos contratos-promessa referidos (…/04/2002) em 7), os Reclamantes, promitentes-compradores, entregaram ao promitente-vendedor, que recebeu, como sinal e em pagamento parcial antecipado do preço combinado pela transmissão das duas referidas partes concretas (destinadas a constituir frações autónomas) do referido edifício e prédio (destinado a fracionamento em regime de propriedade horizontal), o valor de €117.218,00 (79.808,00€+37.410,00€).

12) Após o falecimento de JJ foi AA, que prosseguiu os trabalhos de construção do edifício aqui em causa.

13) Comprometeu-se o mencionado promitente-vendedor AA a celebrar o contrato prometido até ao dia … de Setembro de 2004 – obrigação que não foi cumprida por alegadas dificuldades de licenciamento, pela Câmara Municipal de …, da utilização do edifício, entretanto construído como dito.

14) Autorizada a sua construção ainda em 2002, não chegou a ser submetido ao regime da propriedade horizontal e jamais foi licenciada a sua utilização.

15) Comprometeu-se também o referido promitente-vendedor a entregar, no mesmo prazo (até … de Setembro de 2004), aos ora Reclamantes, as partes concretas do imóvel referido, objetos mediatos dos contratos-prometidos.

16) Em abril de 2004 o Executado AA, solicitado para o efeito, entregou aos Reclamantes:

a) As chaves das mencionadas partes concretas e fisicamente autonomizada do imóvel referido em 7), e bem assim de acesso à referida zona comum ZC…;

b) E, com as chaves, as respetivas partes concretas a que as mesmas permitiram aceder ao prédio referido em 7).

17) A partir dessa data só os Reclamantes ficaram com tais chaves das referidas partes concretas (mas sem o exclusivo das de acesso à dita zona comum ZC…), deixando os mencionados e exclusivos sucessores do dito promitente-vendedor de à mesma poder aceder – passando a ser possuída, até à atualidade, pelos ora Reclamantes.

18) Vêm os ora Reclamantes, desde então, usando as referidas partes concretas como bem entendem, designadamente:

- Para nela pernoitarem ocasionalmente por curtos períodos ou para nela facultarem pernoita a familiares e amigos que foram recebendo em …, sobretudo em Agosto, mas também noutros momentos festivos;

- Castiçais com velas, bidões e garrafões de água, um lavatório móvel e bacios, permitiram tornear as dificuldades decorrentes da falta de água e de luz;

- A loja, porque sem condições ainda para ser explorada comercialmente, passaram a usá-la como espaço de arrumação de bens que não careciam de utilizar diariamente mas de que não se queriam desfazer – alguns destinados ao apartamento habitacional mas que para lá ainda não foram transportados;

- Mobilaram também, logo a partir de Abril de 2004, o mencionado espaço destinado a habitação, designadamente – embora só em parte – o corredor, a cozinha, a sala, dois quartos e uma casa de banho;

- Comparecendo em reuniões, na Câmara Municipal de … com autarcas e técnicos camarários e outros promitentes-compradores em situação similar, em algumas das quais pelo menos participaram também representantes da exequente CGD, destinadas (sem sucesso pelos vistos) à regularização do processo de licenciamento do imóvel, a cujos supostos vícios ou alegadas omissões (pelos vistos impeditivos, temporária ou definitivamente, da celebração das escrituras prometidas) os Reclamantes são completamente alheios.

- Deslocando-se, praticamente todas as semanas, a tais espaços:

i) Para os arejar, abrindo portas e janelas, para os limpar, para os arrumar, conservar e acautelar de humidades e degradações;

ii) Para estabelecer e consolidar o seu domínio exclusivo sobre o mesmo e impedir devassas, ou utilizações abusivas por parte de quem quer que fosse – o que nunca, aliás, sucedeu.

19) O que (tudo) vêm fazendo:

- À vista dos executados, de outros possuidores de outras partes concretas do mesmo imóvel, de vizinhos e de toda a gente;

- Sem oposição de quem quer que seja;

- Sem interrupções – e de forma contínua portanto;

- Com exclusividade, como seus donos e legítimos proprietários, nessa convicção, atuando em conformidade e certos de não estarem a lesar os direitos de ninguém.

20) Apesar de diversas interpelações feitas pelos Reclamantes ao 1º executado AA, a escritura definitiva de compra-e-venda nunca foi nem pode ser marcada.

IV – O Direito


  O art.º 662º, nº 2, als. a) e b), do CPC estabelece um poder/dever, e não uma faculdade, de proceder à renovação da prova ou à produção de prova suplementar quando sobre a credibilidade do depoente ou o sentido do seu depoimento houver dúvida séria ou haja dúvida fundada sobre a prova realizada.

   Não se trata de um direito das partes a renovar a prova ou a produzir prova suplementar com vista o obter ou a obviar a alteração da matéria de facto pela Relação. O que está em causa é se, na reapreciação pela Relação do material probatório adrede produzido na 1ª instância surge, segundo critérios de objectividade, uma dúvida séria/fundada acerca da valoração desse material probatório.

   Dúvida séria ou fundada é aquela que, por um lado, surge da incerteza quanto ao preenchimento do adequado estalão probatório, e que, por outro lado, se apresenta como susceptível de, segundo padrões de praticabilidade, ser resolvida. Não há dúvida séria/fundada se se tem por adquirido o preenchimento ou não preenchimento do adequado estalão probatório, nem se, apesar da incerteza, não se descortina modo útil e efectivo de a afastar.

   Como critério orientador da aferição da existência de dúvida séria/fundada ABRANTES GERALDES (Recursos em Processo Civil, 6ª ed., 2020, pg. 342) indica «a apreciação crítica da atuação que o juiz de 1ª instância teve ou deveria ter tido aquando da realização da audiência final, ponderando casuisticamente a amplitude dos poderes de averiguação que a lei lhe confere», devendo a questão «ser avaliada pela Relação em termos semelhantes aos que deveriam sê-lo pelo juiz de 1ª instância».


  No caso dos autos a Relação adoptou um estalão probatório bem mais exigente do que o adoptado na 1ª instância: em face do elevado montante em causa entendeu que, não só regra geral, a prova por declarações não era idónea à demonstração da entrega desse montante como a prova por declarações efectivamente produzida carecia de credibilidade porquanto desprovida de razão de ciência bastante ou produzida por quem beneficiava do facto probando.

    Não há aqui qualquer dúvida quanto à credibilidade ou conteúdo das declarações; pelo contrário, a Relação não tem dúvidas em considerar a insuficiência da prova por declarações.

    Examinando a prova documental produzida – clausula contratual afirmando que o valor da fracção “será integralmente pago nesta data” e caderneta bancária donde consta levantamento do montante em causa da conta dos Recorrentes – a Relação conclui pela insuficiência probatória desses documentos porquanto dos mesmos não resulta, com grau de certeza bastante, que o montante em causa tenha ingressado no património do promitente vendedor. Acabando a referir que não foi explicada a razão porque não foi apresentado documento que tal demonstrasse, ou invocada a sua perda ou impossibilidade; e a esse propósito sentiu necessidade de transcrever no acórdão uma parte da alegação do Apelante em que se afirma que tal prova era possível através da solicitação a instituições bancárias (o Apelante incluído) ou aos Executados dos extractos da conta bancária do promitente vendedor.

   Da posição expressa pela Relação decorre que a mesma não deixou de considerar que a incerteza decorrente dos documentos apresentados era susceptível de ser suprida com a apresentação de outros documentos cuja obtenção estava ao alcance dos Reclamantes.

   Por outro lado, na fundamentação da decisão de facto da 1ª instância faz-se apelo à afirmação do Executado AA de que seu pai tinha deixado um documento escrito no sentido de que o preço global se encontrava pago; mas não se vislumbra nos autos que o tribunal tivesse tido qualquer iniciativa de fazer juntar tal documento aos autos.

   Nesse circunstancialismo consideramos, de acordo com os parâmetros acima enunciados, que se verificava uma situação de dúvida fundada sobre a prova realizada, a justificar a produção de prova suplementar, sendo de censurar o não uso pela Relação dos poderes conferidos na al. b) do nº 2, do art.º 662º do CPC.

V – Decisão


   Termos em que se concede a revista e, consequentemente, se anula o acórdão recorrido, ordenando a baixa do processo à Relação para que esta, pelos mesmo juízes se possível, ordene a produção de prova suplementar tendente a solucionar as dúvidas que a prova já produzida deixou em aberto, designadamente a apresentação do documento escrito referido no depoimento do Executado AA e do extracto bancário do promitente vendedor.

     Custa da revista pelo Recorrido.


Lisboa, 16DEZ2020


Rijo Ferreira

[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,

conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com

a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]


Cura Mariano

Abrantes Geraldes