Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2503
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: CLÁUSULA PENAL
JUROS DE MORA
REDUÇÃO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: SJ200310090025037
Data do Acordão: 10/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1609/02
Data: 01/23/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
Razão da revista
1. "A", com sede na Estrada Nacional nº ..., Gabinete nº.., em Alverca, veio instaurar acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra "B - Sociedade Internacional de Produtos Alimentares, Lda.", com sede em Ponte Nova, Tarouca - alegando, em síntese, que é uma sociedade comercial que se dedica à fabricação e comercialização de produtos alimentares, gelados e afins e, no âmbito da sua actividade, celebrou com a Ré, em 1 de Janeiro de 1992, um contrato de concessão comercial em regime de distribuição exclusiva - contrato que a ré não cumpriu.
Daí que, conclui, esteja obrigada a indemnizar a Autora pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Termina, pedindo que a acção seja julgada procedente e provada, condenando-se a Ré no pagamento da quantia de 28.477.520$00, correspondente ao valor da indemnização por lucros cessantes e danos emergentes, quer patrimoniais, quer morais, e, ainda nos juros vincendos, até efectivo pagamento, devendo a taxa ser acrescida de 5%, desde o trânsito em julgado da sentença condenatória, por força do art.º 829º-A. do Código Civil.
2. A Ré, contestou, impugnando os factos alegados pela Autora e sustentando ter celebrado com a Autora um contrato, mas verbal, sendo de qualquer modo excessivo o montante pedido.
Em primeira instância, a acção foi julgada improcedente, por não provada, e absolvida a ré do pedido (fls. 476/477).
3. A Relação de Évora deu parcial provimento à apelação (fls.569 verso) e, em consequência, condenou a Ré, "B-Sociedade Internacional de Produtos Alimentares, Lda", a pagar à Autora, "A, Lda." (ora assim designada), a quantia de 49.879,79 € (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde 7.10.1993, e até efectivo pagamento, taxas, que vêm assim discriminadas:
- de 15% ao ano até 30.9.1995 ;
- de 10% ao ano desde então e até 17.4.1999;
- de 7% ao ano, a partir de então.
Nos termos do n° 4 do art.º 829°-A do CC, acrescem a tal quantia e aos juros de mora acima fixados, juros à taxa de 5% ao ano, sobre a referida quantia (de 49.879,79 €), desde a data do trânsito em julgado da decisão.
4. É a ré, naturalmente, que, agora, pede revista.
II
Objecto da revista
As vinte e três conclusões da recorrente pelos quais se traçam os limites de conhecimento do recurso, reconduzem-se a três aspectos essenciais:
- que não assinou o contrato ( fls.8 a 13) cujo incumprimento foi assinalado, tratando-se apenas de um contrato verbal, não tendo o autor feito a prova da autenticidade da assinatura inserta. (Conclusões: 1ª a 16ª).
- que, a aceitar-se a validade do contrato, então a clausula penal é excessiva, em comparação com o valor de mercadoria adquirida em 1992 (N da especificação e prova do quesito 13º, correspondendo ao valor mínimo do valor das compras estabelecido - conclusão 17ª), sendo incompatível com o pagamento de juros de mora e da clausula penal, pelo que esta deve ser reduzida equitativamente. (Conclusões: 17ª a 23ª).
- que excessiva é também, a cláusula compulsória prevista pelo artigo 829º-A, do Código Civil, que a decisão recorrida aplicou. (Idem conclusões: 17ª a 23ª).
III
Factos provados
Relevam de utilidade para conhecer do objecto da revista, como ficou enunciado, os seguintes factos definitivamente fixados.
1. A Autora é uma sociedade devidamente matriculada que se dedica ao fabrico e comercialização de produtos alimentares, gelados e afins .
2. No âmbito da sua actividade, a autora celebrou com a ré, em 1 de Janeiro de 1992, um contrato de concessão exclusiva, em que a ré se obrigava a comprar e a revender, em nome e por conta própria, todos os produtos da marca "Menorquina", fabricados e comercializados pela autora, em toda a zona da Régua e de Lamego, conforme contrato que está junto a fls. 8 a 13 dos autos.
3. Entre ambas ficou clausulado, no que releva para conhecer do objecto da revista e decorre da leitura do contrato de fls.8/13, o seguinte:
- que a Ré não podia vender produtos similares de outras marcas concorrentes e devia granjear clientes.
- que a Autora cedia as arcas frigoríficas para serem instaladas no local do estabelecimento aos clientes da Ré .
- que, sobre o valor das compras à Autora, a Ré beneficiava de um desconto de 20%, a que acrescia um desconto de 0,75%, em cada ano para publicidade e compensação das despesas de conservação do equipamento.
- que, como garantia para integral pagamento, a Ré prestaria uma caução bancária de dois milhões de escudos.
- Que, no primeiro ano de vigência do contrato, a ré se obrigaria a adquirir à autora produtos "Menorquina", no valor de mínimo de 10.000.000$00 ilíquidos.
- que as partes fixavam um valor mínimo em cada ano, e seguintes, e que, em caso algum, poderia ser inferior ao do ano seguinte.
- que, no caso de a ré não respeitar o regime de exclusividade estabelecido no contrato de concessão, ou o rescindir antes do prazo estipulado, incorreria na obrigação de pagar à autora uma indemnização de 10.000.000$00, independentemente de todos os outros danos emergentes.
4. Foi neste entendimento, e com esta base negocial, que durante o ano de 1992, se processaram as relações comerciais entre Autora e Ré .
5. A autora nunca contratou com terceiros concorrentes da Ré, respeitou a zona de comercialização exclusiva de comercialização da R. respeitante aos produtos de marca "Menorquina" por esta comercializados.
6. Ao longo do primeiro ano de execução do contrato celebrado, a Ré adquiriu para revenda os produtos da Autora, não tendo havido desrespeito pelo acordado.
7. Não se verificaram indícios de quaisquer problemas nas relações estabelecidas entre a Autora e Ré, por via do contrato de concessão comercial, já referido, durante esse ano.
8. A Autora sempre pontualizou pela entrega à Ré, nas condições acordadas, dos produtos por esta encomendados .
9. Sempre disponibilizou e entregou os equipamentos pactuados para conservação e armazenagem dos produtos por si vendidos à Ré .
10. A Ré encomendou, entre Maio e Agosto de 1992, à Autora, produtos no valor de quatro milhões quinhentos e vinte e dois mil quatrocentos e oitenta escudos, acrescidos de IVA, que pagou pontualmente.
11. Mas, desde o início do ano de 1993, a Ré não encomendou à Autora qualquer montante de produtos pactuados e, assim, sequer, revendeu a terceiros, quaisquer dos referidos produtos.
12. A Autora verificou que a Ré contratou com terceiros concorrentes da Autora na zona estabelecida, a compra e venda de produtos, entre outros da marca "Avidesa", concorrentes daqueles fabricados e comercializados pela Autora .
13. A Ré utilizava os equipamentos frigoríficos facultados pela Autora para neles armazenar produtos similares, mas de marcas distintas e concorrentes dos fabricados e comercializados pela Autora, sem que, para o efeito, existisse qualquer consentimento da autora.
14. A Autora enviou à Ré o documento de folhas 33, avisando de que a ré estava a violar a cláusulas nºs 2 e 4 do contrato, ao promover a venda de produtos similares, concorrentes dos fabricados e comercializados pela autora, nomeadamente da marca "Avidesa", que armazenava nas câmaras frigoríficas, propriedade da autora, ao lado dos próprios produtos desta.
IV
Questões a resolver e direito aplicável
1. Face ao objecto da revista que ficou enunciado em II, as questões a resolver são, essencialmente, duas:
- Uma relativa à matéria de facto;
- outra respeitante ao montante da clausula penal convencionada: se pode cumular-se com juros de mora e clausula compulsória; se pode ser equitativamente reduzida, como se pretende.

2. A matéria de facto ficou definitivamente fixada pelas instâncias, em especial no aspecto questionado pela revista, quanto à assinatura do gerente, vinculativa da ré.
A Relação, particularmente a fls. 565/566, foi exaustiva na explicação, em termos que, mostram, por factos, a autenticidade posta em causa.
Não vale a pena retomá-los, remetendo, por simplicidade, para essa passagem do acórdão recorrido, pois não existem elementos que possibilitem sindicância diferente sobre a matéria assim julgada.
Sublinhe-se, de resto, que o contrato concedendo um direito exclusivo a favor da ré, só seria válido, se fosse escrito, e como tal, por si assinado, como impõe o artigo 4º do Decreto-lei n.º 178/86, na redacção que lhe introduziu o Decreto- Lei n.º 118/93, de 13 de Abril. (1)
3. Também não se antevê difícil o problema da clausula penal estabelecida pelas partes.
Antecipemos o quadro legal mais significativo que tem repercussões na matéria em exame jurídico.
«As partes podem fixar, por acordo, o montante de indemnização exigível» (para os casos de não cumprimento ou mora do devedor): «é o que se chama clausula penal». (Artigos 809º e 810º-1, do Código Civil).
«O credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, cumprimento da obrigação principal e o pagamento da clausula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso na prestação; é nula qualquer estipulação em contrário.
O estabelecimento da clausula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes.
O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal». ( Artigo 811º).
«A clausula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário:
É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida». (Artigo 812º).
4. A clausula penal é uma clausula de responsabilidade civil. E, por aí, gera uma autónoma obrigação de indemnizar, caso o devedor, por facto que lhe seja imputável, não cumpra, ou retarde o cumprimento da prestação a que se vinculou.
Trata-se, como salientam a doutrina e a jurisprudência que versam este aspecto da matéria, de uma convenção prévia de incumprimento com determinação da prestação, normalmente em dinheiro, que o devedor deverá satisfazer ao credor, em caso de não cumprimento pontual da obrigação a que está adstrito para com ele.
Numa palavra, a figura legal em estudo reduz-se a uma liquidação antecipada do dano ou pré-avaliação do montante de indemnização, visando obviar às dificuldades e aos custos do apuramento judicial da indemnização pelo incumprimento contratual, prefixando o calculo e o montante do prejuízo. (2)
Dito o mesmo por outra palavras, previnem-se dúvidas futuras e litígios entre as partes, quanto à determinação do montante de indemnização. (3)
5. Exposto o quadro legal e vista, em síntese, a natureza e o objectivo da clausula penal contemplada pelos artigos transcritos, ponderemos a questão da sua cumulação com juros moratórios legais ou convencionais.
A resposta é simples: são devidos juros, desde a altura em que a ré/devedora ficou a saber, formalmente, que estava em divida.
Ou seja, com a citação, como determinou o acórdão recorrido (fls. 570 verso).
E pergunta-se, (?) mas então, a indemnização correspondente à clausula penal, cumula-se com os juros moratórios?
A resposta é também afirmativa!
Uma coisa é a obrigação de indemnização (trata-se de uma clausula de responsabilidade civil, como vimos no ponto 4, anterior), ou seja, uma obrigação de capital; outra coisa é a obrigação de juros de mora, emergente daquela, por não ser cumprida em tempo (artigo 559º do Código Civil).
São fontes de diferentes responsabilidades e, como tal, exigidas, por títulos diferentes.
6. Observemos, por fim a questão da redução equitativa da indemnização clausulada de 10.000.000$00. (Ponto 3, in fine, Parte III - factos provados).
É porventura o problema mais difícil de ponderar.
A lei diz, como se lê pela transcrição do artigo 812º que a clausula pode ser reduzida, com base na equidade, quando for manifestamente excessiva.
Não é de recusar, para aqui, o auxílio dos critério de que o Código Civil se socorre no artigo 494º, como parâmetros possíveis reveladores de equidade.
Ora, reunidos estes pressupostos essenciais de análise, ponderemos:
A) - Por um lado, desencorajando a redução:
- que a autora cumpriu pontualmente as suas obrigações perante a ré;
- que é inquestionável a culpa da ré pelo incumprimento do contrato de concessão de que tinha a distribuição exclusiva.
- que não existem referências, sequer alegadas, quanto à situação económica da autora (credora) e da ré (devedora).
B) - Por outro lado, aconselhando (aconselhando equitativamente -lembre-se) a redução:
- Que o valor da clausula penal (em 1992) era de 10.000.000$00;
- Que são devidos juros, desde a citação ( Outubro de 1993) às taxas indicadas (ponto 3, Parte I); ou seja: até Setembro de 1995, a taxa legal é de 15%; de Setembro de 1995, até Abril de 1999, a taxa é 10%; daí para frente é de 7%, até atingir a taxa, actualmente vigente, de 4% ( Portaria n.º291/03, de 8 de Abril) - o que, por certo, não deixa de representar uma "onerosidade adicional", a reencontrar-se na avaliação pela equidade, ao humanizar a indemnização pelo dano resultante do incumprimento, através de parâmetros estabelecidos no artigo 494º do Código Civil, a usar, entre o mais, " quando... as demais circunstâncias do caso o justifiquem".
- Que o contrato teve praticamente apenas um ano de vigência efectiva;
- Que o volume de negócios, entre autora e ré, foi 10.000.000$00 ilíquidos, durante tal período (representando assim um valor inferior ao valor da clausula penal estabelecida).
- Que a ré beneficiava apenas de um desconto de 20% do valor das compras que efectuasse à autora, acrescida de 0,75%, para publicidade;
- Que a ré prestou à autora uma caução bancária de 2.000.000$00, como garantia integral de pagamento;
- Que a clausula penal (10.000.000$00), foi estabelecida independentemente de todos outros danos que pudessem resultar do incumprimento - a tudo a ré se sujeitava, para ficar como agente exclusivo da autora na distribuição dos produtos respectivos e para a área geográfica indicada;
- Que, assim, a posição contratual da ré era susceptível de compressão unilateral sobre a sua própria liberdade e autonomia negocial, face à posição contratual da autora;
- Que não foram considerados efectivamente provados e quantificados quaisquer danos indemnizáveis à autora; (pontos 5,11,12,13 e 14, da Parte III; e acórdão recorrido, fls.569).
- Que, enfim, como parece curial, o juízo sobre a excessividade da pena deve fazer-se, não relativamente ao momento em que ela foi estipulada, mas antes, em relação ao momento em que tem de cumprir-se. (4)
6.1. Embora aceitando a dificuldade da opção, no balanço das duas ponderações, inclinamo-nos para a possibilidade da redução equitativa do montante da clausula penal acordada pelas partes.
Com efeito, não se oculta a sensibilidade à realidade que atravessa este segmento do julgar conducente à solução. Não se esconde a carga subjectiva que o caminho e o resultado eleitos, podem comportar, face à ausência de elementos técnico/formais de analise da legalidade versus equidade, ou seja, da justiça material do caso concreto.
Mas também se reconhece, suavizando o perigo metodológico da subjectividade, que, esta, surge, objectivamente limitada pela próprio grau de racionalidade, que representam os elementos de ponderação indicados em B), e que afastam uma suposta "perigosa discricionaridade", devolvendo ao juiz a sua verdadeira dimensão criativa como aplicador da lei (e não como agente subsuntivo automático do silogismo em que habitualmente se movimenta, em discurso formatado), precisamente, num espaço próprio e excepcionado por lei, em que a equidade é, ela sozinha, fonte de direito e de justiça material do caso concreto. (Artigos: 4º a), 494º e 812º, do Código Civil).
6.2. Parece-nos, em conclusão, e com a reserva que acaba de fazer-se através de um exercício judicativo que também pretende ser, por razões de objectividade, de transparência discursiva, que a justeza da solução, recomenda o recurso à solução equitativa preconizada pelo artigo 812º, indicado.
O que, tudo ponderado, nos leva a dizer que, no quadro integrado e valorado (em especial, pontos 6 e 6.1), consideramos manifestamente excessivo, o montante da clausula penal acordada pelas partes, afigurando-se ser equilibrado, por mais justo, reduzir-se o seu valor a metade, ou seja, fixando-o na quantia de 5.000.000$0 (convertidos em euros).
6.3. Mas aqui chegados no trajecto discursivo, cruza-se outra questão, no caminho do percurso:
É a de saber se a redução equitativa da pena - que acabamos de reputar manifestamente excessiva - pode ser realizada oficiosamente pelo tribunal, em consonância com o disposto no artigo 812º -1, transcrito já, do Código Civil. (5)
Consideremos, então, este aspecto:
O artigo 812º emerge como uma concretização específica do dever de agir de boa-fé, previsto, quer para a contratação, quer para a pré - contratação (artigos 762º-2 e 227º-1, respectivamente), numa área de direito obrigacional, que supõe inevitavelmente o seu fundamento ético.
Trata-se de um princípio de alcance geral destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes da liberdade negocial, quando se cuida de avaliar, reportando-nos ao incumprimento, as consequências do não cumprimento do acordado, ao abrigo dessa liberdade.
A lei pretende aqui, evitar o exercício abusivo do direito à cobrança da pena, ainda que ela haja sido acordada em termos razoáveis. Oferece, para tal, ao devedor, para sua protecção, um meio próprio e específico, face à proibição geral do abuso do direito, prescrita pelo artigo 334º. (6)
Não se estranharia assim, a possibilidade do conhecimento oficioso da excessividade da pena, se se considerar haver excessividade, como acaba de concluir-se.
Sem um compromisso definitivo com a solução deste aspecto do problema, salientaremos contudo que estamos no limite do exercício de um direito subjectivo, para além do qual o juiz não deve consentir a efectivação da qualquer tutela - se reconhecer a ultrapassagem; ou, num âmbito mais vasto de projecção justificativa, confrontamo-nos com uma razão de ordem pública imperativa, que recomenda a salutar defesa do próprio ordenamento jurídico, através de modelos, sempre excepcionais, da sua auto-tutela.
É aqui que releva de intensidade, a valia, anunciada atrás, de um sistema jurídico, eticamente fundado. Pergunta-se, (?) então, será ético que o exercício normal do direito subjectivo vá manifestamente para além do fim social e económico para que foi atribuído - e o tribunal reconhecer o excesso abusivo - e ainda assim ser cúmplice da legitimação formal do reconhecido excesso?
Não nos repugnaria responder negativamente, reconhecendo embora o peso doutrinal da resposta contrária. (7)
É que, a nosso ver, pode representar uma grave distorção do sistema, reconhecer-se que é oficioso o conhecimento do abuso do direito, nos termos gerais do artigo 334º - como é jurisprudência e doutrina pacíficas - e afastá-lo, quando se trate de uma forma de manifestação especifica de abuso, contemplado pelo artigo 812º-1.
Aliás, afigura-se juridicamente correcto dizer-se até, na linha do pensamento exposto, que, na ausência do artigo 812º-1, não deixaria de funcionar para o exercício abusivo de um direito, a norma, de alcance geral, contida no artigo 334º.
6.4. Mas ainda que, em geral, e no estado actual de evolução do nosso direito, possa não se aceitar ou duvidar-se desta tese (8) - que, repetimos, não enjeitamos, sem prejuízo de maior reflexão - a benefício da necessidade de invocação pelo devedor do manifesto excesso, a verdade é que, não é preciso forçar a análise por esse caminho. (9)
No caso em espécie, na contestação (na apelação e na revista), a recorrente sempre pôs em causa, insurgindo-se, contra a onerosidade da clausula penal no contexto geral do equilíbrio de prestações do seu lado e do lado da recorrida (conferir os elementos de ponderação nos pontos 6 e 6.1), queixando-se da inclinação da balança, sobre o prato que mais lhe pesa, em desequilíbrio contra si. (Vejam-se os artigos 39 a 42 da contestação, fls.43 verso; e ponto 2.1, anterior).
Donde, não haverá aqui nenhuma surpresa da queixa que desconforte as regras processuais relativas ao princípio do dispositivo, da prevenção da surpresa decisória (artigos 3º e 264º, do Código de Processo Civil) ou da concentração da defesa, (artigos 483º, 484º, 486º, e, em especial, 489º, todos também do Código de Processo Civil), a favor de qualquer ideia de defesa retardada ou superveniente e, como tal, inadmissível , porque "de última hora".
É, pelo menos este o nosso entendimento, face ao quadro negocial que suporta a acção e a defesa, com projecção em factos definitivamente fixados e a que este Tribunal pode aceder.
Neste entendimento também se revê o acórdão do Supremo, de 14 de Fevereiro de 1975, nos termos do qual "é justificado o uso da faculdade prevista pelo do n.º1, do artigo 812º, quando o réu embora não tendo pedido a redução da pena convencional, tenha impugnado o dever de satisfazer na totalidade". (10)
Ou, como diz, a certa altura, o autor que dedicou a sua tese de doutoramento a esta área do direito civil das obrigações, "basta que o devedor deixe perceber, ainda que de modo implícito, um desacordo seu relativamente ao montante exigido, em razão do excesso do mesmo, ainda que não formulando no pedido formal de redução da pena". (11)
7. Falta, por último, segundo o método enunciado (ponto 1. IV) falar da possibilidade ou não, de cumulação de juros moratórios legais com a sanção pecuniária compulsória aplicada pela decisão recorrida ( fls.569 verso e ponto 3, Parte I).
A resposta é afirmativa. Nada impede a cumulação.
Com efeito, a sanção decorre automaticamente da lei, caso o devedor acabe por preencher os pressupostos da previsão legal, revelando contumácia no cumprimento do definitivamente decidido, como se torna claro, a partir de uma simples leitura do n.º4, do artigo 829º-A, do Código Civil.
O fim desta sanção, independentemente da sua cumulação com qualquer outra, legal ou contratual, é fazer respeitar a condenação judicial, dando realização operativa ao direito accionado. (12)
É o próprio Estado que está interessado nessa efectivação, destinando-se-lhe o montante igualitário com o credor, da expressão pecuniária da sanção coercitiva, (astreinte - que se deve ao labor e ao engenho da jurisprudência francesa) que assegura, a um tempo, o cumprimento da obrigação accionada pelo credor (qual espécie de pena privada) e, evidentemente, o prestigio da Justiça Pública ( n.º 3, do artigo 829º-A).
Nem tem que se queixar a recorrente, neste particular aspecto, da onerosidade da solução assim encontrada. Basta que cumpra agora, em tempo; e escapa-se ao agravamento da sua posição devedora perante a autora, afastando a aplicação da sanção compulsória.
É este exactamente o interesse que se visa satisfazer, "compelindo" o devedor a pagar. Então que o faça! E não terá sanção!
V
Decisão
Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em conceder provimento parcial à revista, revogando a decisão recorrida, na parte em que fixou o montante da clausula penal em 10.000.000$00 (em euros),
que fica reduzida equitativamente ao valor de metade, ou seja, à quantia de 5.000.000$00 (em euros), sobre a qual incidirão juros moratórios legais, desde a data da citação para a acção, donde emerge esta revista, às taxas legais, sucessivamente em vigor, até integral e efectivo pagamento, e sobre a qual ainda, poderá incidir uma sanção pecuniária compulsória, se for caso, em conformidade com o disposto no artigo 829º-A- 4º, do Código Civil.
Custas na proporção do vencido, tanto as deste recurso, como as das instâncias.
Lisboa, 9 de Outubro de 2003.
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) Sobre as dificuldades decorrentes da exigência desta forma negocial, quando existe o direito de exclusivo a favor do agente e dependente do principal (como é o caso tratado no acórdão), ver "Contrato de Agência", do Professor Pinto Monteiro, páginas 53 a 57. ( 3ª edição).
Temos presente que o contrato foi celebrado em Janeiro de 1992 , sendo que o artigo 4º, em vigor ao tempo ( versão do Decreto-Lei nº 178/86, de 3 de Julho), também exigia forma escrita para a concessão ao agente exclusivo.
(2) Professor Pinto Monteiro, Clausula Penal e Indemnização ( Tese de doutoramento), em especial páginas 31, 418, 457 , 578 ( particularmente o resumo da nota 1368) e 579 a 582.
(3) Professores, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado - artigo 810º.
(4) Assim também defendido pelo Professor Pinto Monteiro, Clausula Penal e Indemnização, páginas 732, citando ainda em seu abono GORLA , notas 1645 e 1663.
(5) A redução da clausula penal pode ser exercida oficiosamente pelo tribunal, segundo o acórdão da Relação de Coimbra, de 2/11/88, publicado na C.J. , 1988,V, páginas 62.
(6) Neste sentido, Professor Pinto Monteiro, obra citada páginas 733, bem como a indicação de fontes em idêntico sentido, na nota número 1648 ( mesma página).
(7) « Embora não se diga expressamente neste preceito, a redução terá de ser pedida pelo devedor, visto que para os negócios usurários, em geral, se prescreve o regime da anulabilidade e não o da nulidade». Professores Pires de Lima e Antunes Varela, notas ao artigo 812º no Código Civil, Anotado.
Idem Professor Pinto Monteiro, ao retomar esta tese a páginas 734 da obra que se vem citando.
(8) O Professor Pinto Monteiro inclina-se para a necessidade de o devedor solicitar a redução, embora de forma indirecta ou mediata, contestando, por exemplo, o seu elevado valor. (Cláusula..., páginas 734 - ponto 65. 2 - pressupostos da redução da pena).
(9) Claro que o conhecimento oficioso salvaguardaria sempre o convite prévio às partes para se pronunciarem, prevenindo-as de uma decisão surpresa. ( artigo 3º-3, do Código de Processo Civil) Assim também defende o Professor Lebre de Freitas, citando ainda o direito processual civil francês - Estudos sobre Direito Civil e de Processo Civil, página 19, Coimbra Editora, ano de 2002.
(10) Publicado no B.M.J. n.º 244, páginas 261.
(11) Professor Pinto Monteiro, nota 1654, Clausula ... páginas 736.
(12) Neste sentido, Professor Calvão da Silva Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, páginas 395/396. E ainda o Professor Pinto Monteiro, Clausulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade, páginas 203/207; na ROA n.º 46º, páginas 763; e também a páginas 39, 109 e seguintes, da já citada obra Cláusula Penal e Indemnização, para além das extensíssimas fontes citadas por estes autores, relativamente a doutrina nacional e estrangeira.