Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P1041
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DE 1929
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CASO JULGADO
ACÇÃO PENAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ200605240010413
Data do Acordão: 05/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I - No regime do CPP de 1929 (CPP/29) a admissibilidade de recurso para o Supremo
Tribunal (e, em consequência, a competência funcional em matéria de recursos em
processo penal) estava, em geral, definida, não por referência autónoma, mas por indicação
indirecta pelos casos em que não fosse admissível recurso de decisões dos tribunais da
Relação (art. 646.°, n.ºs 4 e 6): das decisões em matéria de facto tomadas pelas Relações,
pelo tribunal colectivo ou pelo do júri, e dos acórdãos das Relações proferidos sobre
recursos interpostos em processo correccional que não fossem condenatórios, em processo
de transgressão e em processo sumário.
II - A regra era, assim, a da admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal em processo
de querela, salvo do despacho de pronúncia ou de não pronúncia e das decisões em matéria
de facto.
III - No caso sub especie, e no que agora importa, não foi objecto do recurso para a Relação
despacho de pronúncia ou não pronúncia, nem foi impugnada decisão sobre a matéria de
facto.
IV - A decisão impugnada no recurso para o tribunal da Relação pronunciou-se sobre
fundamento invocado pelos assistentes para requererem a reabertura do processo ao abrigo
do disposto no art. 151.° do CPP/29.
V - Nesta perspectiva, o despacho recorrido para a Relação é autónomo, diverso e posterior ao
despacho de não pronúncia, não estando a decisão da Relação que decidiu o recurso de tal
despacho excluída da regra geral sobre a admissibilidade de recurso.
VI - O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais, quanto
à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do
processo, é o caso julgado material.
VII - Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se
torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por
objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
24
VIII - O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial,
dimensão substancial.
IX - O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que
serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em
inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo.
X - No caso julgado formal (art. 672.° do CPC), a decisão recai unicamente sobre a relação
jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se
antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão.
XI - Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por
meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida,
conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata
execução (actio judicati).
XII - O caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de
preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação
processual.
XIII - Por seu lado, a prescrição do procedimento criminal constitui um instituto que, exclusiva
ou ao menos predominantemente, se situa na dimensão material e não processual.
XIV - Procedimento criminal - o modo de afirmação instrumental do jus puniendi do Estado -
significa, em geral, tudo quanto cabe no próprio iniciar e desencadear da acção penal,
enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal.
XV - O Estado, porém, não guarda para si, ilimitadamente no tempo, a actuação do seu direito
de punir. Decorrido que seja certo lapso de tempo sobre o facto criminoso, maior ou menor
consoante as situações previamente definidas na lei, não poderá ser desencadeada ou
prosseguir a acção penal por esses factos passados porque o procedimento criminal
prescreve.
XVI - Assim, para além de certos limites temporais, haveria que considerar os efeitos negativos
sobre a produção das provas, especialmente tratando-se de prova testemunhal, não só no
esquecimento sobre os factos, mas principalmente pelo perigo de deturpação inconsciente
na transmissão do testemunho. Ainda, não haveria possibilidade de movimentar todos os
processos, por mais antigos que fossem.
XVII - O pequeno valor destas razões processuais leva a considerar os motivos de natureza
substancial como fundamentalmente justificadoras da ocorrência da prescrição do
procedimento criminal, nomeadamente os que se relacionam com os fins das penas: «a
acção do tempo torna impossível ou inútil a realização destes fins»; «o decurso do tempo
apaga a exigência de justiça, a necessidade da retribuição penal para a satisfazer»;
«passados anos o crime esqueceu, a reacção social, a inquietação, por ele provocada foramse
desvanecendo, até desaparecer; a pena perdeu o interesse e o significado».
XVIII - Também o decurso do tempo apaga a utilidade preventiva geral e preventiva especial
das penas.
XIX - E estes fundamentos da prescrição do procedimento criminal são comuns a todos os
ordenamentos que reconhecem o instituto.
XX - Entre nós, hoje, pode considerar-se como jurisprudencialmente aceite a teoria jurídicomaterial
da prescrição: «a lei sobre a prescrição é de natureza substantiva» e «traduz a
renúncia do Estado a um direito, ao jus puniendi, condicionada ao decurso de um certo
lapso de tempo».
XXI - Por isso, o reconhecimento da natureza substantiva da prescrição do procedimento
criminal terá por efeito determinar a aplicação do princípio da lei penal mais favorável,
mesmo no caso de uma lei nova alongar os prazos de prescrição.
XXII - A prescrição do procedimento criminal, todavia, revertendo ao decurso do tempo, está
operativamente dependente da consideração e dos efeitos de momentos e actos processuais
determinantes. É nesta dimensão que a prescrição do procedimento criminal, não na
substância do decurso do tempo, mas nos tempos processuais relevantes, depende do
processo e dos seus actos.
XXIII - Aceita-se, assim, que a prescrição do procedimento criminal, quer seja de natureza
substantiva, quer se considere de natureza mista (substantiva e processual), sempre se há25
de considerar ligada ao facto penal - independentemente ao autor do facto ou da pessoa do
ofendido -, e à valoração da relação da vida que a norma incriminadora disciplina, isto é, à
dignidade punitiva o facto, de tal modo que se justifica inteiramente que valham para os
seus momentos decisivos de aplicação os mesmos princípios que valem para aplicação das
leis substancialmente tipificadoras penais.
XXIV - O princípio da aplicação do regime mais favorável significa, no tocante às normas
sobre prescrição, que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da
prática dos factos pode ser aplicada, e impõe que deva ser aplicado retroactivamente o
regime prescricional que eventualmente se mostrar mais favorável ao infractor.
XXV - O regime jurídico aplicável a uma qualquer infracção penal é constituído por um
complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se
referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do
procedimento, às causas de justificação, e à prescrição do procedimento.
XXVI - Deste modo, tendo-se sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar
até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final,
qual dos regimes que se sucederam no tempo é mais favorável ao agente.
XXVII - Estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime
mais favorável pressupõe um procedimento metodológico complexo, dependendo da
consideração de vários elementos, quer directamente materiais (o tempo da prescrição),
quer da conjugação do tempo com os actos processuais relevantes e de cujos efeitos
depende a contagem do tempo da prescrição.
XXVIII - Por isso, a apreciação é dinâmica e tem de ser efectuada em cada momento em que a
questão possa ser suscitada - está tributária da relevância dos factos determinantes em cada
momento em que processualmente seja possível e admitida uma decisão que tenha como
pressuposto precisamente a inexistência de prescrição do procedimento criminal.
XXIX - No regime do CP/86, a prescrição «não corre», isto é, suspende-se a contagem do
prazo, desde a acusação e «enquanto estiver pendente o processo».
XXX - A noção de pendência tem natureza eminentemente processual. Sendo instrumental e
visando finalidades determinadas, o processo estará pendente sempre e enquanto as
finalidades que realiza estiverem actuais, e até à consecução do objectivo a cuja realização
está pressuposto.
XXXI - A finalidade do processo é a declaração do direito do caso no respeito por prescrições
formais objectivas, e será obtida, no processo penal, sempre que seja proferida decisão que
determine a culpabilidade e a sanção, ou que declare que não há responsabilidade penal por
absolvição, ou ainda quando diga que, por motivos processualmente previstos e relevantes,
não pode haver lugar à determinação da culpabilidade.
XXXII - No caso sub judice, face aos elementos de prova existentes, a decisão de não
pronúncia definiu intraprocessualmente que não poderia haver lugar a sequência,
realizando, aí, a finalidade do processo.
XXXIII - Com efeito, no regime do CPP/29, o despacho de não pronúncia (art. 367.°), qualquer
que fosse o fundamento (por inexistência de prova da responsabilidade penal, ou por prova
da inexistência de responsabilidade), constituía, assim, a decisão judicial que nas
circunstâncias processuais existentes, fazia terminar o processo, na instrumentalidade e
finalidade que lhe são próprias: obter uma decisão sobre o exercício ou a sequência do
exercício da acção penal, ou obter uma decisão de condenação ou de absolvição.
XXXIV - O despacho de não pronúncia produz efeitos de caso julgado (art. 151.° do CPP/29),
estabilizando e definindo a situação processual em relação aos intervenientes,
especialmente em relação ao arguido.
XXXV - Estabilizada a situação processual, mesmo que seja rebus sic stantibus, o processo,
como tal, realizou a finalidade processual perante os elementos de que dispunha e que foi
possível obter; tendo realizado a sua finalidade instrumental, deixou de estar pendente, no
sentido processual, com o trânsito em julgado do despacho de não pronúncia.
XXXVI - De outro modo, contra a própria razão das coisas, reduzir-se-ia a limites insuportáveis
a regra do art. 125.°, § 4, 1.° do CP/86: em casos de não pronúncia nunca haveria limites
de tempo, tendo como consequência, inaceitável, a imprescritibilidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. No processo de instrução n.° 226/97.2 TBLRS do 3.° Juízo Criminal de Loures, foi proferido o despacho de fls. 20316 e ss., que indeferiu a reabertura do processo requerida ao abrigo do art.° 151° CPP 1929, pelos os assistentes AA, BB, CC, DD e EE, «dado que, por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado, [fora] decidido o arquivamento» do processo».
2. Não se conformando com o assim decidido, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação, que, todavia, «julgando verificada a excepção da prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do art.° 125°, 2° e § 2° do Código Penal de 1886», declarou extinto o procedimento criminal, com a consequente inutilidade da apreciação das questões suscitadas no recurso pelos assistentes.
3. Agora inconformados com a decisão do Tribunal da Relação, os assistentes interpõem recurso para o Supremo Tribunal, «nos termos dos arts. 645°, 647°, 649° e 651° do C.P.P. de 1929», com os fundamentos constantes das alegações, que terminam com a formulação das seguintes conclusões:
A) O despacho de 9/01/96, que considerou aplicável ao arguido FF o regime prescricional do Código Penal de 1995 e julgou suspenso o respectivo prazo prescricional em virtude da sua prisão no estrangeiro, transitou em julgado, constituindo caso julgado formal.
B) Esse despacho poderia ser modificado se entretanto tivesse passado a vigorar na ordem jurídica portuguesa um regime jurídico mais favorável ao arguido, o que não é o caso.
C) Por outro lado, esse despacho deve ser conjugado com outros factos posteriores que determinem a cessação (ou renovação) da suspensão do prazo prescricional – o que implica o apuramento das situações de prisão no estrangeiro de tal arguido – e bem assim que determinem a interrupção desse prazo prescricional.
D) No acórdão recorrido, considera-se que o despacho de 9/01/96 “não vincula a declaração que ora se impõe relativamente ao acusado FF, uma vez que o regime da prescrição deve ser individualmente considerado e apreciado, uma vez que esta é a causa de extinção pessoal da responsabilidade criminal”. Ressalvado o devido respeito, tal argumento não procede, uma vez que despacho de 9/01/96 apreciou a situação concreta e individual de FF.
E) Assim sendo, o acórdão recorrido violou o caso julgado formal consubstanciado no despacho de 9/01/96, que definiu o regime de prescrição aplicável ao arguido FF, sem que entretanto tenha ocorrido qualquer alteração legislativa que lhe seja mais favorável.
F) Mesmo que se aplicasse ao caso dos autos o regime do Código Penal de 1886., como veio a julgar o acórdão recorrido, a verdade é que, sob a sua égide, se tem de entender que está suspenso o respectivo prazo prescricíonal, desde que foi deduzida acusação a 17 de Novembro de 1995, tendo em conta que o respectivo processo crime nunca deixou de estar pendente, nos termos do seu artº 125°, § 4°, l°, ao contrário do que foi decidido pelo acórdão recorrido.
G) Na verdade, o acórdão da Relação de Lisboa de Junho de 2000, não concluindo no sentido de que não há infracção penal, nem que esteja extinta a acção penal em relação a todos os agentes, mas tão somente no sentido de que não foi feita prova suficiente sobre a infracção e os seus agentes – manteve o processo pendente, podendo prosseguir para a apreciação de nova e melhor prova, como está previsto no art. 345°-§ único do C.P.P. de 1929 (cfr., ainda, ac. do STJ de 24/06/53, BMJ 37,182) e foi requerido nestes autos.
H) Para os efeitos do art. 125°, § 4°, l° do Código Penal de 1886, a pendência contrapõe-se ao arquivamento, pelo que não ocorrendo, no caso dos autos, uma situação de arquivamento prevista no art. 343° do C.P.P. de 1929 – como fatalmente decorre da economia do acórdão da Relação de Junho de 2000, tem de se considerar o presente processo pendente e susceptível de prosseguir perante novos elementos de prova, como prevê o art. 345°, § único do C.P.P. de 1929.
I) Pelo exposto, o acórdão recorrido aplicou erroneamente o artº 125° do Código Penal de 1886, aplicando o 2° e § 2º desse preceito legal, quando deveria ter aplicado o § 4°, l° da mesma regra, considerando suspenso o prazo prescricional.
Terminam, pedindo o provimento do recurso «com as legais consequências, julgando, designadamente, que não se encontra prescrito o crime dos auto; relativamente ao Recorrido».
O magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo contra-alegou no recurso, concluindo pelo modo seguinte:
1ª Com o acórdão recorrido não houve ofensa de caso julgado do despacho proferido a 9/1/96, uma vez que o mesmo parte do pressuposto do arguido FF se encontrar preso, situação que não há notícia que ocorria à data em que foi proferido o acórdão recorrido;
2ª Datando os factos de 4/12/1980, o prazo de prescrição do procedimento criminal sempre seria de 15 anos, quer nos termos do art. 125.°, § 2.° do C. Penal de 1886; quer face ao art. 117°, alínea a), do C. Penal de 1982;
3ª Colocando-se em causa a existência de uma causa de suspensão decorrente do cumprimento pelo arguido de uma pena de prisão no estrangeiro, há que aplicar o C. Penal de 1886, uma vez que do mesmo tal não consta como causa de suspensão da prescrição, havendo que o aplicar por ser a lei mais favorável, por força do disposto no art. 2.° do C. Penal de 1982;
4ª Mesmo tendo em atenção que o dito arguido cumpriu no estrangeiro pena de prisão – e há, de facto, notícia nos autos daquele ter-se encontrado em cumprimento de uma pena de prisão de 5 anos no Brasil -, verdade é que à data em que requereu a reabertura ( 6/12/2001) o dito prazo de prescrição sempre teria sido já sido atingido;
5ª Não é de interpretar o art. 125°, § 4”, l do Código Penal de 1886 de modo a admitir que o prazo de prescrição não corre por pendência originada em despacho que deferiu que se conservasse a prova, à cautela, por não tal não se poder considerar acto de instrução, e mantendo-se o processo com despacho de não pronúncia que transitou em julgado a 21/6/2000.
Defende, assim, a improcedência do recurso.
4.Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu desenvolvido parecer, no qual suscita a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, manifestando opinião, para o caso de não proceder a questão prévia, no sentido da improcedência do recurso.
Notificados, os assistentes, defendem a recorribilidade da decisão, e, no mais, mantêm a posição assumida nas alegações.
5. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência, cumprindo decidir.
A Exmª Procuradora-Geral suscita, como se referiu, a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, invocando, no essencial, o disposto no artigo 21º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro (diploma que integra o complexo normativo de processo penal aplicável no presente processo – artigo 7º, nº 1 do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro), quando determina que dos despachos de pronúncia e de não pronúncia cabe apenas recurso para o tribunal da Relação.
No regime do Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29) a regra era, como actualmente, a da admissibilidade de recurso de todas as decisões que não fossem expressamente exceptuadas por lei – artigo 645º
As decisões que não admitiam recurso estavam especificadas no artigo 646º e em várias disposições avulsas que consagravam casos especiais de inadmissibilidade de recurso.
A admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal (e, em consequência, a competência funcional em matéria de recursos em processo penal) estava, em geral, definida, não por referência autónoma, mas por indicação indirecta pelos casos em que não fosse admissível recurso de decisões dos tribunais da Relação – artigo 646º, nºs 4 e 6: das decisões em matéria de facto tomadas pelas relações, pelo tribunal colectivo ou pelo júri; e dos acórdãos das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional que não fossem condenatórios, em processo de transgressão e em processo sumário.
A regra era, assim, a da admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal em processo de querela, salvo do despacho de pronúncia ou de não pronúncia e das decisões em matéria de facto.
No caso sub specie, e no que agora importa, não foi objecto do recurso para Relação despacho de pronúncia ou não pronúncia, nem foi impugnada decisão sobre a matéria de facto.
A decisão impugnada no recurso para o tribunal da Relação pronunciou-se sobre fundamento invocado pelos assistentes para requererem a reabertura do processo ao abrigo do disposto no artigo 151º do CPP/29.
Nesta perspectiva, o despacho recorrido para a Relação é autónomo, diverso e posterior ao despacho de não pronúncia, não estando a decisão da Relação que decidiu o recurso de tal despacho excluída da regra geral sobre a admissibilidade de recurso.
Não procede, pois, a questão prévia suscitada.
6. Os recorrentes identificam duas questões que constituem os fundamentos do recurso:
1ª. O despacho de 9 de Janeiro de 1996, que decidiu sobre a prescrição do procedimento criminal aplicando o regime do Código Penal de 1982, na redacção de 1995, formou caso julgado formal, não podendo, subsequentemente haver decisão diversa sobre o regime aplicável á prescrição;
2ª. Mesmo considerando aplicável o regime da prescrição do Código Penal de 1886, admitindo-se, em certas circunstâncias, a reabertura do processo com base em novas provas, este tem de se considerar pendente apesar do despacho de não pronúncia de 16 de Junho de 2000, em contrário da interpretação do disposto no artigo 125º, § 4 do referido Código acolhida no acórdão recorrido.
7. O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto á definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material – fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.
Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.
O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo (cfr., Castro Mendes, “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, p. 16).
No caso julgado formal (artigo 672º do Código de Processo Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão (cfr. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 156).
Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati) – cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, proc.3924/01, e de 3 de Março de 2004, proc. 215/04.
O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus dos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.
Por seu lado, a prescrição do procedimento criminal constitui um instituto que, exclusiva ou ao menos predominantemente, se situa na dimensão material e não processual.
Procedimento criminal – o modo de afirmação instrumental do jus puniendi do Estado – significa, em geral, tudo quanto cabe no próprio iniciar e desencadear da acção penal, enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal.
O Estado, porém, não guarda para si, ilimitadamente no tempo, a actuação do seu direito de punir. Decorrido que seja certo lapso de tempo sobre o facto criminoso, maior ou menor consoante as situações previamente definidas na lei, não poderá ser desencadeada ou prosseguir a acção penal por esses factos passados porque o procedimento criminal prescreve.
A prescrição do procedimento criminal, regulada anteriormente no artigo 125° do Código Penal de 1886, vem agora disciplinada nos artigos 117° e segs. do Código Penal.
Este instituto (prescrição do procedimento criminal) tem vindo a ser historicamente justificado, nos sistemas onde é acolhido por razões, umas processuais, outras de natureza substancial e material e ainda outras – sem grande relevância – de carácter empírico.
Assim, para além de certos limites temporais, haveria que considerar os efeitos negativos sobre a produção das provas, especialmente tratando-se de prova testemunhal, não só no esquecimento sobre os factos, mas principalmente pelo perigo de deturpação inconsciente na transmissão do testemunho. Ainda, não haveria possibilidade de movimentar todos os processos, por mais antigos que fossem; por isso, a certeza imporia um limite para o passado que não fosse o acaso a determinar quais os casos antigos que poderiam vir a ser movimentados.
O pequeno valor destas razões processuais leva a considerar as razões de natureza substancial como fundamentalmente justificadoras da ocorrência da prescrição do procedimento criminal, nomeadamente as que se relacionam com os fins das penas: «a acção do tempo torna impossível ou inútil a realização destes fins», «o decurso do tempo apaga a exigência de justiça, a necessidade da retribuição penal para a satisfazer»; «passados anos o crime esqueceu, a reacção social, a inquietação, por ele provocada foram-se desvanecendo, até desaparecer; a pena perdeu o interesse e o significado» - cfr. Prof. BELEZA DOS SANTOS, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 77°, p. 321 e segs.
Também o decurso do tempo apaga a utilidade preventiva geral e preventiva especial das penas.
Estes fundamentos da prescrição do procedimento criminal são comuns a todos os ordenamentos que reconhecem o instituto (v.g. JESCHECK, “Tratado de Derecho Penal”, p. 1238 e segs.; CUELLO CALÓN, Derecho Penal, vol. II, pp. 758 e segs.; ROGER MERLE e ANDRÉ VITU, Traité de Droit Criminel, II vol., pp. 50 e segs.; PIERRE BOUZAT e JEAN PINATEL, Traité de Droit Pénal et de Criminologie, tomo II, pp. 1008 e segs.).
Entre nós, hoje, pode considerar-se como jurisprudencialmente aceite a teoria jurídico-material da prescrição. O Assento Supremo Tribunal, de 19 de Novembro de 1975, no Boletim do Ministério da Justiça, N° 251, pp. 75 e segs., se considerava que «a lei sobre a prescrição é de natureza substantiva (…)» e «que se traduz na renúncia do Estado a um direito, ao jus puniendi, condicionada ao decurso de um certo lapso de tempo».
Por isso, o reconhecimento da natureza substantiva da prescrição do procedimento criminal terá por efeito determinar a aplicação do princípio da lei penal mais favorável, mesmo no caso de uma lei nova alongar os prazos de prescrição. cfr. EDUARDO CORREIA, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 108°, pp. 361 e segs
Aceita-se, assim, que a prescrição do procedimento criminal, quer seja de natureza substantiva, quer se considere eu natureza mista (substantiva e processual), sempre se há-de considerar ligada ao facto penal – independentemente ao autor do facto ou da pessoa do ofendido -, e á valoração da relação da vida que a norma incriminadora disciplina, isto é, à dignidade punitiva do facto, de tal modo que se justifica inteiramente que valham para os seus momentos decisivos de aplicação os mesmos princípios que valem para aplicação das leis substancialmente tipificadoras penais.
Nomeadamente, quando se sucedam normas, aplicar aquela (ou aquele regime) que concretamente se revelar mais favorável ao arguido.
A prescrição do procedimento criminal, todavia, revertendo ao decurso do tempo, está operativamente dependente da consideração e dos efeitos de momentos e actos processuais determinantes. É nesta dimensão que a prescrição do procedimento criminal, não na substância do decurso do tempo, mas nos tempos processuais relevantes, depende do processo e dos seus actos.
Nesta medida, embora na substância não seja mutável, a conexão intrínseca processo-conteúdo material é, por natureza, contingente, dependendo da dinâmica dos actos do processo e dos efeitos induzidos que cada acto (dies a quo; dies ad quem; tempos de suspensão) produza em determinada situação concreta.
Na correlação processo-tempo, a prescrição, com tempo material definido e fixado na lei, depende de pressupostos processualmente dinâmicos.
E, acrescidamente, quando na complexa apreciação de pressupostos vários e respectivos efeitos se intrometam diversos regimes quanto à aplicação no tempo da lei penal.
Sobre a aplicação da lei penal no tempo dispõe o n.° 4, parte final, do artigo 29.° da Constituição que se aplicam retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido, o que foi retomado no n.° 4 do artigo 2.° do Código Penal, que prescreve: «quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado, por sentença transitada em julgado».
Traduzindo-se a prescrição do procedimento criminal na renúncia do Estado ao direito de punir, condicionada pelo decurso de um determinado lapso temporal, tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça, como se referiu, que as normas sobre prescrição do procedimento criminal têm natureza substantiva.
Tal natureza determina, no domínio da aplicação da lei no tempo, a sujeição do regime da prescrição ao princípio da aplicação retroactiva do regime jurídico mais favorável ao agente de uma infracção.
O princípio da aplicação do regime mais favorável significa, no tocante às normas sobre prescrição, que nenhuma lei sobre prescrição mais gravosa do que a vigente à data da prática dos factos pode ser aplicada, bem como impõe que deva ser aplicado retroactivamente o regime prescricional que eventualmente se mostrar mais favorável ao infractor.
O regime jurídico aplicável a uma qualquer infracção penal é constituído por um complexo de normas jurídicas em que se inscrevem, entre outras, normas legais que se referem à qualificação jurídica, à determinação da sanção e seus efeitos, à extinção do procedimento, às causas de justificação, e à prescrição do procedimento.
Deste modo, tendo-se sucedido regimes penais diversos, haverá sempre que ponderar até à decisão que, segundo as possibilidades processuais, possa constituir a decisão final, qual dos regimes que se sucederam no tempo é mais favorável ao agente.
Mas, estando em causa a prescrição do procedimento criminal, a determinação do regime mais favorável pressupõe um procedimento metodológico complexo, dependendo da consideração de vários elementos, quer directamente materiais (o tempo da prescrição), como da conjugação do tempo com os actos processuais relevantes e de cujos efeitos depende a contagem do tempo da prescrição.
Por isso, a apreciação é dinâmica e tem de ser efectuada em cada momento em que a questão possa ser suscitada – e está tributária da relevância dos factos determinantes em cada momento em que processualmente seja possível e admitida uma decisão que tenha com pressuposto precisamente a inexistência de prescrição do procedimento criminal.
Só nessa medida será dado cumprimento à determinação constitucional de aplicação do regime concretamente mais favorável, e, por isso, a dinâmica da prescrição não pode, na dimensão substancial, estar coberta por qualquer caso julgado formal quanto á aplicação de determinado regime legal dos vários que se sucederem no tempo.
Não há, nesta matéria que depende de uma apreciação essencialmente dinâmica, uma estabilidade da relação jurídica processual que impeça a decisão sobre questão substancial, e a prescrição, por natureza dinâmica, releva da substância e não da relação processual.
Não procede, assim, o primeiro dos motivos invocados como fundamento do recurso.
8. A 2ª questão invocada como fundamento do recurso reporta-se à interpretação do § 4, 1º do artigo 125º do Código Penal de 1886 (CP/86), entendendo os requerentes que, ao contrário do decidido, o processo não deixou de estar pendente (conclusões F a H).
Dispõe o artigo 125º, § 4º, 1º do CP/86 (na redacção do Decreto-Lei nº 187/72, de 31 de Maio) que a prescrição do procedimento criminal se conta desde o dia em que foi cometido o crime, mas não corre «a partir da acusação em juízo e enquanto estiver pendente o processo pelo respectivo crime».
Deste modo, no regime do CP/86, a prescrição «não corre», isto é, suspendia-se a contagem do prazo desde a acusação e «enquanto estiver pendente o processo»; a interpretação da disposição pressupõe, pois, a integração da noção de “pendência” relevante no contexto.
A noção de pendência tem natureza eminentemente processual. Sendo instrumental e visando finalidades determinadas, o processo estará pendente sempre e enquanto as finalidades que realiza estiverem actuais, e até à consecução do objectivo a cuja realização está pressuposto.
A finalidade do processo é a declaração do direito do caso no respeito por prescrições formais objectivas, e será obtida, no processo penal, sempre que seja proferida decisão que determine a culpabilidade e a sanção, ou que declare que não há responsabilidade penal por absolvição, ou ainda quando diga que, por motivos processualmente previstos e relevantes, não pode haver lugar à determinação da culpabilidade – no caso de não pronúncia pela inexistência de elementos que permitam sustentar e confirmar uma acusação.
No caso sub judice, face aos elementos de prova existentes, a decisão de não pronúncia definiu intraprocesualmente que não poderia haver lugar a sequência, realizando, aí, a finalidade do processo.
Com efeito, no regime do CPP/29, tendo sido deduzida acusação pelo Ministério Público ou pelo assistente (artigo 358º), haveria lugar, finda a instrução contraditória, a despacho de pronúncia ou de não pronúncia (artigos 365º e segs.).
O despacho de não pronúncia (artigo 367º), qualquer que fosse o fundamento (por inexistência de prova da responsabilidade penal, ou por prova da inexistência de responsabilidade), constituía, assim, a decisão judicial que nas circunstâncias processuais existentes, fazia terminar o processo, na instrumentalidade e finalidade que lhe são próprias: obter uma decisão sobre o exercício ou a sequência do exercício da acção penal, ou obter uma decisão de condenação ou de absolvição.
O despacho de não pronúncia produz efeitos de caso julgado (artigo 151º do CPP/29), estabilizando e definindo a situação processual em relação aos intervenientes, especialmente em relação ao arguido.
Estabilizada a situação processual, mesmo que seja rebus sic stantibus, o processo, como tal, realizou a finalidade processual perante os elementos de que dispunha e que foi possível obter; tendo realizado a sua finalidade instrumental, deixou de estar pendente, no sentido processual, com o trânsito em julgado do despacho de não pronúncia.
De ouro modo, contra a própria razão das coisas, reduzir-se-ia a limites insuportáveis a regra do artigo 125º, § 4, 1º do CP/86: em casos de não pronúncia nunca haveria limites de tempo, tendo como consequência, inaceitável, a imprescritibilidade.
Consequência que, por si mesma, revela a justeza da interpretação acolhida no acórdão recorrido.
9. Nestes termos, julga-se improcedente o recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Lisboa, 24 de Maio de 2006

Henriques Gaspar
Silva Flores
Soreto de Barros