Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4872/07.0TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
REGISTO
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
POSSE
CONFLITO DE DIREITOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1) - Presume-se que quem está na posse de uma coisa, é titular do direito correspondente aos actos que pratica sobre ela.
2) - Mas pode haver conflito desta presunção com outras, nomeadamente a proveniente do registo.
3) - Aqui, a lei estabelece uma prevalência da presunção derivada da posse.
4) - Entende-se que alguém exerce a posse sobre um veículo automóvel se o vem usando e fruindo como seu dono, ininterruptamente, durante certo lapso de tempo, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
5) - Goza, assim, da presunção de que é titular do direito de propriedade sobre o mesmo veículo.
6) - Mas pode acontecer que outrem goze também de outra presunção: a derivada do registo de propriedade sobre o veículo.
7) - Esta presunção tem, no entanto, que ceder perante a presunção derivada da posse do autor, conforme se determina no nº1 do artigo 1268º.
8) - Nada mais tendo sido alegado para além da presunção do registo e movendo-se a questão no plano dos factos a que a posse nos conduz, temos que considerar apenas o regime estabelecido no citado artigo 1268º do Código Civil e já não o regime invocado pelos réus da aquisição por usucapião, estabelecido para os móveis sujeitos a registo.
9) - Ou seja, porque para além do registo – cujo caso está expressamente previsto no transcrito artigo 1268º – não existem quaisquer elementos que nos permitam atribuir a titularidade do direito de propriedade sobre o veículo em causa ao titular do registo, temos que concluir que não foi elidida a presunção que o possuidor gozava em virtude da posse, de que era titular do direito de propriedade sobre o mesmo.
10) - Assim prevalecendo a presunção derivada da posse.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 07.06.22, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, AA intentou a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária contra BB e CC

pedindo
que se declarasse que o Autor era o único e exclusivo proprietário do veículo automóvel marca Nissan, modelo Cabstar 110.35 SE C/C/1, de matrícula 00-00-00, do ano de 2001 e se ordenasse o cancelamento do registo a favor da sociedade por quotas “P....... – Comércio & Indústria Automóvel, Lda.”

alegando
em resumo, que
- é dono de um veículo automóvel, que comprou em 01.07.10, à sociedade “P.......”, da qual os Réus foram sócios e que, entretanto, cessou actividade e foi extinta;
- o negócio foi feito com a empresa “L.....” que era representante daquela “P.......”;
- nunca lhe foram entregues os documentos relativos ao mesmo veículo, apesar de pago o preço e de o Autor insistentemente os ter solicitado;
- a “P.......” registou a seu favor a propriedade do veículo já depois da venda ao Autor, invocando que a sua representante não lhe entregou o preço correspondente à venda;
- o Autor está impedido de circular com o veículo desde 01.10.18, dado que até essa data tinha autorização emitida pela “P.......”.

Contestando
os réus alegaram, também em resumo, que o veículo não foi vendido pela “P.......” ao Autor, mas antes o negócio de compra e venda envolveu as duas empresas “P.......” e “L.....”, sendo condicionado ao pagamento integral do preço, o que não sucedeu.

Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Em 08.10.28, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, declarou que o Autor é exclusivo proprietário do veículo automóvel marca Nissan, modelo Cabstar 110.35 SE C/C/1, de matrícula 00-00-00 e ordenou o cancelamento do registo de propriedade do veículo a favor da sociedade “P.......- Comércio & Indústria Automóvel, Lda.”.

Os réus apelaram, sem êxito, pois a Relação de Guimarães, por acórdão de 10.05.27, confirmou a decisão recorrida.

Novamente inconformados, os réus deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
O recorrido contra alegou, impugnando a decisão sobre a matéria da facto – invocado o disposto no artigo 684-A do Código de Processo Civil – e pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) – Alteração da matéria de facto
B) – Titularidade do direito
C) – Abuso de direito

Os factos

São os seguintes os factos que foram fixados na Relação:
1. encontra-se registada, desde 01.10.26 a favor de “P....... - Comércio e Indústria Automóvel Lda.” a propriedade do veículo automóvel de marca Nissan e de matrícula 00-00-00;
2. a sociedade “P....... - Comércio e Indústria Automóvel Lda.” foi dissolvida por escritura pública de 21/09/2004, na qual foi declarado pelo sócio-gerente que não existia qualquer activo ou passivo;
3. nessa data, os Réus eram os únicos sócios da “P....... - Comércio e Indústria Automóvel Lda.”;
4. o veículo foi previamente equipado com um contentor isotérmico comercial de produtos alimentares;
5. o Autor pagou na íntegra à “L.....” o preço da viatura e aplicação do contentor isotérmico, discriminados na factura de folhas 9;
8. o veículo foi-lhe entregue em 10/07/2001;
9. a sociedade “P....... - Comércio e Indústria Automóvel Lda.” emitiu e subscreveu uma declaração de venda ao Autor do veículo de matrícula 00-00-00, com data de 10/07/2001, conforme consta do documento de folhas 8;
10. a sociedade “P....... - Comércio e Indústria Automóvel Lda.” emitiu e subscreveu uma autorização para o Autor poder circular com o veículo de matrícula 00-00-00 e exibir perante as autoridades, enquanto aguardava o livrete e título de registo de propriedade, com data de 10/07/2001 e pelo período de 90 dias, conforme consta do documento de folhas 10;
11. decorrido o período de 90 dias, a mesma sociedade emitiu e subscreveu nova autorização pelo período de 8 dias;
12. o Autor solicitou à “P.......”, através dos Réus, a entrega dos documentos relativos ao veículo 00-00-00;
13. o Autor vem usando e fruindo o veículo;
14. como seu dono;
15. ininterruptamente;
16. desde Julho de 2001 até ao presente;
17. à vista e com conhecimento de toda a gente;
18. sem oposição de ninguém.

Os factos, o direito e o recurso

A) – Alteração da matéria de facto

Pretende o autor recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 684º-A do Código de Processo Civil, que se altere a matéria de facto fixada na Relação no que concerne à reposta ao ponto 1º da base instrutória, onde se perguntava se “no dia 01.07.10, o autor comprou o veículo 00-00-00 à “P....... – Comércio e Industria Automóvel Limitada”, e que teve resposta negativa.
Vejamos.

Antes de mais, há que assinalar que o Supremo, sendo um tribunal de revista, conhecendo apenas da matéria de direito, pode, no entanto, conhecer da matéria de facto “havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” – cfr. artigo 722º, nº2, do Código de Processo Civil.

Com a petição inicial, o autor juntou, além do mais, dois documentos, sob os nºs 1 e 3, a folhas 8 e 10.
Nesses documentos, intitulados, respectivamente de “declaração de venda de viatura nova” e de “autorização”, a “Praiuto” declara que em 10 de Junho de 2001 vendeu ao autor o veículo em causa nos autos.

Trata-se de documentos particulares – cfr. artigo 363º do Código Civil.
Os réus não alegaram que esses documentos não foram emitidos pela referida sociedade, de que eram sócios e o BB gerente.
Assim, provada está a sua autenticidade – cfr. artigo 374º, nº1, do mesmo o diploma.

Determinada a força formal dos documentos, resta saber a sua força probatória material.
A resposta encontrámo-la no nº2 do artigo 376º do mesmo Código Civil, em que se determina que “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (…)”.
Ou seja, esta declaração tem força probatória plena quanto aos factos nela contidas.

Ora, sendo assim, tem necessariamente que se dar como provada a matéria constante do ponto 1º da base instrutória, acima transcrita.
Na verdade, sustentando os réus que a referida sociedade não celebrou com o autor qualquer contrato de compra e venda relativo ao veículo em causa, é evidente que o constante das declarações contidas nos documentos em causa é contrário aos seus interesses.
E, nesta medida, deve ser considerado provado.

Concluindo e ao abrigo do disposto nos citados artigos 722º, nº2 e 684-A, nº2, ambos do Código de Processo Civil, altera-se a resposta dada ao ponto 1º da base instrutória pela Relação no sentido de a mesma ser considerada como provada.

B) – Titularidade do direito

No acórdão recorrido entendeu-se que era de reconhecer ao autor a titularidade do direito de propriedade sobre o veículo em causa porque, considerando que aquele tinha a posse do mesmo, a presunção dessa titularidade daí derivada e estabelecida no nº1 do artigo 1268º do Código Civil prevalecia sobre a presunção derivada do registo de que beneficiavam os réus recorrentes, uma vez que este foi posterior ao início da posse do autor.

Os recorrentes entendem que este não demonstrou ser proprietário de veículo, quer por via originária, por o ter possuído pelo prazo de dez anos estabelecido na alínea a) do artigo 1298º do Código Civil para a aquisição por usucapião de bens móveis sujeitos registo não havendo este, que por via derivada, por não se ter demonstrado o negócio de compra e venda.
Cremos que não têm razão e se decidiu bem.

Nos termos do artigo 1251º do Código Civil "posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
E nos termos do disposto no nº1 do artigo 1268º do Código Civil “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.

Significa isto presumir-se que, quem está na posse de uma coisa, é titular do direito correspondente aos actos que pratica sobre ela.
Trata-se de uma presunção que assenta nas regras da experiência.
Na verdade e como refere Menezes Cordeiro “in” A Posse, 1ª edição, página 115, “a posse implica o controlo material de coisas corpóreas. Como tal, o seu exercício é perceptível, no espaço jurídico, pelos diversos membros da comunidade. A posse vê-se. O Direito associa, assim, determinados efeitos à demonstração exterior da sua existência.

Mas pode haver conflito desta presunção com outras, nomeadamente a proveniente do registo.
Aqui, a lei estabelece uma prevalência da presunção derivada da posse.
Na verdade e como referem Pires de Lima e Antunes Varela "in" Código Civil Anotado, em anotação ao referido artigo, estabelece-se na segunda parte deste nº1 que “havendo colisão entre a presunção resultante da posse e a presunção fundada no registo dum direito anterior ao início da posse, prevalece esta última”.

No caso concreto em apreço, não há dúvida que o autor exerce a posse sobre o veículo automóvel em causa, uma vez que o vem usando e fruindo como seu dono, ininterruptamente, desde Julho de 2001 até ao presente, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
Goza, assim, da presunção de que é titular do direito de propriedade sobre o mesmo veículo.

Mas os réus gozam também de outra presunção: a derivada do registo de propriedade sobre o veículo que efectuaram em 26 de Outubro de 2001.
Esta presunção tem, no entanto, que ceder perante a presunção derivada da posse do autor, conforme se determina no transcrito nº1 do artigo 1268º.

Para além da presunção do registo, os réus nada mais alegaram sobre como adquiriram o veículo.
Assim, movendo-se a questão no plano dos factos a que a posse nos conduz, temos que considerar apenas o regime estabelecido no citado artigo 1268º do Código Civil e já não o regime invocado pelos réus da aquisição por usucapião, estabelecido para os móveis sujeitos a registo.

Ou seja, porque para além do registo – cujo caso está expressamente previsto no transcrito artigo 1268º - não existem quaisquer elementos que nos permitam atribuir a titularidade do direito de propriedade sobre o veículo em causa aos réus, temos que concluir que não foi elidida a presunção que o autor gozava em virtude da posse de que era o titular do direito de propriedade sobre o mesmo.
Assim prevalecendo a presunção derivada da posse.

Sobre a questão e neste sentido, ver Durval Ferreira “in” Posse e Usucapião”, 2ª edição, páginas 292 e seguintes, Carvalho Fernandes “in” Lições de Direitos Reais, 6ª edição, página 95 e Mota Pinto “in” Direitos Reais, páginas 204 e 205.

Assim, não merece censura o acórdão recorrido.

C) – Abuso de direito

Face ao decidido na questão anterior, perdeu o sentido a apreciação da questão do abuso de direito levantada pelo requerido e de conhecimento oficioso.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2010

Oliveira Vasconcelos (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues

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