Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A2110
Nº Convencional: JSTJ00042069
Relator: TORRES PAULO
Descritores: ARRENDAMENTO
COMPROPRIETÁRIO
INVALIDADE
INEFICÁCIA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200107050021101
Data do Acordão: 07/05/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6655/00
Data: 01/30/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 334 ARTIGO 892 ARTIGO 1024 N1 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RE DE 1990/05/10 IN CJ ANOXV TIII PAG268.
ACÓRDÃO STJ DE 1991/03/14 IN CJ ANOXVI TII PAG327.
ACÓRDÃO STJ DE 1978/10/19 IN BMJ N280 PAG281.
ACÓRDÃO STJ DE 1994/11/22 IN BMJ N441 PAG305.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/02/07 IN CJSTJ ANOIII TI PAG67.
Sumário : I - O arrendamento feito por comproprietário sem ausência dos outros não é válido, mina-o o vício da ilegitimidade.
II - Trata-se de uma invalidade atípica, na medida em que é plenamente eficaz perante aquele que deu de arrendamento, aqui não lhe sendo aplicável o art. 1024 n. 2 CC e só pode ser invocada pelos outros.
III - O abuso de direito é conceito indeterminado que carece de um processo de concretização para melhor aplicar a justiça ao caso concreto.
IV - Age com abuso de direito, sob a figura do tu / quoque, o autor que afirma desconhecer a existência do contrato promessa de compra e venda celebrado pelo seu procurador, actuando como gestor, para concluir que este o não vincula nem é válido, e, logo a seguir, pretende beneficiar da sua existência jurídica para, com base nele, concluir pela resolução automática do arrendamento aos réus.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1- "A" e marido B, como proprietários do rés-do-chão, que identificam, inscrito a seu favor, em 16-11-98, accionaram C e mulher D, que o ocupam sem seu consentimento e autorização, atinente a obter a condenação destes a reconhecerem aquele direito de propriedade e a restituírem-lhes o prédio livre e desocupado.
Os RR. contestaram, com utilidade actual, por excepção, alegando serem arrendatários do rés-do-chão em apreço, desde 1993 e terem outorgado, em 1995, com os proprietários, contrato promessa de compra e venda do imóvel, com tradição de coisa.
No saneador julgou-se procedente a invocada excepção peremptória, consubstanciada na existência de um válido contrato de arrendamento.
Em apelação o douto Ac. da Relação de Lisboa - fls. 190 a 199 - confirmou o decidido.
Daí a presente revista.
2- Os AA. recorrentes, nas conclusões das suas alegações, afirmam, em resumo:
a) O invocado arrendamento é nulo - n. 2 art. 1024 CC - norma de carácter imperativo, por na altura da sua celebração o prédio estar indiviso e o procurador de um dos comproprietários não ter poderes para dar de arrendamento o rés-do-chão em causa.
b) Mesmo que aquele contrato vinculasse os AA. verificou-se, tacitamente, a revogação do acordado em face de posterior contrato promessa de compra e venda do andar e de cessação de pagamento de rendas.
c) Não tendo a A. qualquer intervenção em tal contrato promessa, nem se demonstrando qualquer comportamento ou conduta anterior da A., que houvesse criado nos RR. a confiança de que aquela jamais invocaria essa falta de intervenção ou a falta da sua ratificação, não se verifica a situação de abuso de direito - art. 334 CC - por venire contra factum proprium, como erradamente se decidiu.
Em contra alegação os RR. pugnaram pela bondade da decisão recorrida.
3- Colhidos os vistos, cumpre decidir.
4- Nos termos do nº5 artº 713, ex vi art 726, ambos do C.P.C. remete-se para o douto Ac. recorrido a matéria de facto nele inserta.
Ou seja, nuclear e resumidamente:
a) O rés-do-chão em questão está inscrito a favor da A. desde 16-11-98.
b) Por contrato escrito, de 15-11-93, estando o rés-do-chão indiviso, ele foi dado de arrendamento aos RR.
c) Na qualidade de senhorios apareceram quatro procuradores que actuaram em nome dos vários comproprietários.
d) O procurador dos consortes E e mulher só tinha poderes, datados de 7-12-93, para vender e não para arrendar o rés-do-chão.
e) E aqueles não deram o seu assentimento à celebração do contrato de arrendamento.
f) A A. deu poderes, em 14-2-92, ao seu procurador para celebrar contrato de arrendamento em análise, bem como vender suas propriedades.
g) Em 19-9-95, três pessoas, invocando a qualidade de gestores de negócios dos comproprietários, que identificaram, declararam prometer vender ao R. o rés-do-chão, tendo recebido sinal, clausulando-se que o promitente comprador poderia entrar imediatamente na posse do prédio.
h) A A. não deu poderes ao seu procurador para a celebração por este daquele contrato promessa de compra e venda.
i) A A. não ratificou a gestão.
5- Os problemas a resolver são dois:
a) Qual o vício, o valor negativo, que afecta o invocado contrato de arrendamento.
b) Se o comportamento da A. encerra em si um abuso de direito, sob o tipo de venire contra factum proprium.
6- Quanto ao primeiro problema há que surpreender o quadro dogmático, onde ele se espelha.
Assim diremos, em resumo, que dentro do quadro dos valores negativos do negócio temos a ineficácia em sentido amplo e a irregularidade.
A irregularidade acarreta a aplicação de uma sanção ao negócio pleno de eficácia de efeitos, mas que está viciado por alguma desconformidade.
Se o vício - desconformidade entre o negócio em concreto e a norma - afecta a produção de plenitude dos efeitos, que lhe deviam corresponder, surpreendida fica a ineficácia em sentido amplo.
Esta abarca duas espécies: invalidade e ineficácia do sentido restrito.
Ela compreende, assim, todas as hipóteses em que, por causas intrínsecas ou extrínsecas, o negócio não deve produzir os efeitos que deveria, sendo a invalidade apenas a ineficácia que provém de uma falta ou irregularidade dos elementos internos - essenciais, formativos - do negócio.
A mera ineficácia autonomiza-se por a inviabilidade de produção dos efeitos não ter na sua origem factos que determinem a imperfeita génese do negócio, mas eventos supervenientes: a impossibilidade absoluta da prestação, a alteração das circunstâncias que constituem a base do negócio, a não verificação de condição suspensiva, a verificação da condição resolutiva.
Por sua vez a invalidade abrange, no que agora nos interessa, a nulidade e a anulabilidade.
Ensina-se desde Coviello - Doutrina Geral Direito Civil - Pag. 368 - que o contrato nulo é um nado-morto, enquanto que o contrato anulável é um nado-vivo diminuído na sua vitalidade e ameaçado de morte.
A nulidade é assim característica do negócio que, ab initio, não produz, por força do vício, os efeitos que lhe corresponderiam - quod nullum est, nullum perderecit effectum.
É a consequência ou a sanção que o ordenamento jurídico liga às operações contratuais contrárias aos valores ou objectivos de interesse público - art. 294 CC - por ele prosseguidos, ou àqueles que o Direito não considera justo e oportuno, no interesse público, prestar reconhecimento e tutela.
Nulidade emergente da aplicação da teoria da responsabilidade e imposta pelos princípios da boa fé e equidade.
Não a equidade espécie - art. 4 CC - que visa corrigir a generalidade abstracta da lei por meio de apreciação das particularidades da espécie.
Mas a geral, visando aproximar-se do ideal de justiça e, como tal, recebida pelo sistema.
Como projecção da "Jurisprudência do presente", filtrada pela incorporação no sistema de princípios assumidos com base numa casuística.
Ou, como dizia Esser, como Topoi, "uma necessária perspectiva social dentro do sistema".
Por outro lado a anulabilidade é a característica do negócio que, apesar do vício, produz efeitos correspondentes, os quais, no entanto, são rectroactivamente destituídos pelo exercício - anulação - de um direito potestativo de anular, que em virtude do vício uma das partes possa ter.
Funda-se, assim, na infracção de requisitos dirigidos à tutela de interesses privados.
O CC - art. 285 a 291 - traça um quadro que leva a doutrina dominante a autonomizá-las, em regimes completamente diferentes: reputa de nulidade a invalidade absoluta, insanável e de eficácia automática e de anulabilidade a invalidade relativa, sanável e de eficácia não automática.
Só que a própria lei, casuisticamente, opera desvios a tal regime.
A doutrina e jurisprudência normalmente apelidam tais casos de invalidades mistas ou híbridas.
Seriam vistas como um regime assimétrico "pouco harmonioso e elegante, sob o aspecto lógico ou formal, mas útil e acomodado às exigências de justiça".
Não é necessário criar este tertio genus entre nulidade e anulabilidade - Rui Alarcão, "Sobre Invalidade" , Pag. 13 a 15, 21 e 22 e Carvalho Fernandes, "A Conversão", Pag. 230 a 234, em nota e Teoria Geral, 2ª ed., Vol. II, pág. 388.
Igualmente tem sido a orientação sempre seguida pelo relator desde o Ac. do S.T.J. proferido no Proc. 86099, em 1995.
Com efeito nada impõe que aquele regime diferencial atrás traçado para a nulidade e a anulabilidade, seja considerado, face aos casuísticos desvios legais, essencial ou estrutural ao respectivo conceito.
Essencial a ambas é a natureza genética da sua causa.
Assim se a nulidade e a anulabilidade apresentam aqueles traços atrás expostos serão típicas; caso contrário serão atípicas.
7- Concretizando e em resumo: se houver disposição legal a corrigir o valor negativo correspondente ao vício, há que aplicá--la; se não houver - art. 294 - há que "indagar a natureza da norma que prevê o requisito de validade em causa: sendo ele de carácter imperativo, o negócio é nulo; se não o for, é apenas anulado". - Carvalho Fernandes, Teoria, Pag. 389.

8- O nº2 do art. 1024 do CC estatui:
... "o arrendamento de prédio indiviso feito pelo consorte ou consortes administradores só se considera válido quando os restantes comproprietários manifestem, antes ou depois do contrato, o seu assentimento ..."
Não é novo este preceito.
Na sua origem temos o art. 1598 do CC de 1867, ao preceituar:
"Não pode, todavia, locar o comproprietário de coisa indivisa, sem o consentimento dos outros comproprietários ou de quem os represente ..."
Foi introduzido por influência da doutrina francesa mencionada por Cunha Gonçalves, Tratado, 1934, Vol. VIII, Pag. 674, que sustentava maioritariamente a nulidade da locação feita por um comproprietário sem a anuência dos outros, ou minoritariamente, através do regime da venda de coisa alheia. Entre nós seguia esta posição - Dias Ferreira, CC. Anotado, 2ª ed., 1898, Vol. III, Pag. 191.
Aquele preceito foi depois recebido pelo art. 5 DL 5411, de 17 de Abril de 1919 e de muito perto pelo art. 40 da Lei 2030, de 22/06/48.
A locação assim celebrada era considerada nula - Pinto Loureiro, Tratado, 1946, Vol. I, Pag. 28.
E Galvão Telles - Arrendamento, 1944-45, Pag. 127 - justificava tal solução por cada um dos comproprietários não ter, por si, legitimidade para dar de arrendamento, sendo preciso, com efeito, o consentimento de todos.
Do mencionado nº2 do artº 1024, resulta, a contrario, que o negócio desrespeitador da orientação constitutiva legal é: não válido.
Para caracterizar este "não válido, vejamos agora sumariamente como a presente questão tem sido resolvida:
a) Trata-se pura e simplesmente de nulidade - Isidro de Matos - Constituição da Relação de Arrendamento Urbano, Pag. 284, agarrando-se à interpretação literal.
E Ac. Rel. Évora, 10.05.90, C.J., 1990, Ano XV, Tomo III, Pag. 268 e 269.
O seu raciocínio é: a razão de ser do nº2 do art. 1024 reside no interesse particular dos consortes, o que levaria para a tese da ineficácia - art. 268 nº1 - , veículada por uma acção de reivindicação, a todo o tempo, e no interesse social da colectividade, protegido pela Constituição - artº 99 nº1 - projectado em interesse público, que iria ferir de nulidade tal contrato, nulidade invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, e que pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
O art. 1024 teria, assim, carácter imperativo.
É a tese defendida pelos AA. recorrentes.
b) Trata-se de uma anulabilidade - Vieira Miller, Arrendamento Urbano, Pag. 24.
c) Trata-se de uma nulidade sujeita a regime especial, incluindo a possibilidade de confirmação e a arguição restrita dos consortes não participantes no acto - P. Lima e A.Varela, CC Anotado, 3ª ed. Pag. 368.
Para por termo à situação fáctica criada pelo arrendamento, há que socorrer-se da acção de nulidade, que, assim, funciona como pressuposto ou antecedente da acção de despejo.
Situação que encontraria um caso paralelo o nº3 do art. 1407, referente também a actos de administração dos comproprietários - Ac. Rel. de Évora 14.03.91, C.J., 1991, Ano XVI, Tomo II, Pag. 327 e segs.
d) Trata-se de uma nulidade de regime misto com traços do regime próprio da nulidade e características especiais da anulabilidade, invocável só pelos outros comproprietários e sanável mediante confirmação não sujeita a prazo - P. Coelho - Arrendamento, 1977, 2ª ed., Pag. 911 e segs. e Pais de Sousa - Extinção do Arrendamento Urbano, pag. 83.
E Ac. STJ de 19.10.78, Bol. 280, pag. 281 e de 30.05.89, Bol. 387, Pag. 538.
e) Trata-se de uma ineficácia stricto sensu relativamente aos comproprietários que não intervieram no acto, que, relativamente a eles é res inter alia - V. Serra, Rev. Leg. Jup. Anos 100, Pag. 202; 103 Pag. 56; e 112, Pag. 146 e 147; Rui Alarcão - Confirmação, pag. 199; Januário Gomes - Arrendamento Urbano, pag. 287 e Pinto Furtado - Arrendamentos Vinculísticos, Pag. 266 e segs. e Manual de Arrendamento Urbano, 1996, Pag. 350 e segs.
Tudo por analogia (P. Furtado) ou por analogia ou interpretação extensiva do estatuído no nº2 art. 1408 (V.Serra), levando a tratar-se de arrendamento de coisa alheia. A acção a propor seria de ineficácia para V.Serra e de reivindicação para Januário Gomes.
Ac. do STJ de 22.11.94, Bol. 441, Pag. 305; e de 7.2.95, CJ - STJ, 1995, Tomo I, Pag. 67.
9- Que dizer?
Embora o art. 1024 esteja inserido na rúbrica - a locação com o acto de administração - é sabido que na estrutura do contrato de arrendamento tem peso altamente marcante a característica de acto de disposição.
Já vai longe a ideia de evitar que diminua o valor da esfera patrimonial ou fazê-la frutificar seria poder próprio do acto de administração, como defendia Galvão Telles - Arrendamento, 1944-45, Pag. 128.
Hoje dir-se-á que "o negócio de administração implica modificações secundárias ou periféricas no seu conteúdo, enquanto que o negócio de disposição poria em causa a própria subsistência da situação" - M. Cordeiro, Teoria Geral, 2ª ed., 1988, Vol. I, Pag. 540.
A distinção ficará mais clara se se atender nos seus efeitos - M. Pinto, Teoria Geral, Pag. 406.
Daí que se procure surpreender a teleologia da norma: em face da gravidade do caso será de disposição o acto que apenas possa ser praticado pelo próprio, pelo que impõem-se especiais cautelas quando realizado por outrem.
Há que olhar globalmente para a esfera jurídica atingida.
Por isso no art. 1024 só se considera válido o arrendamento de prédio indiviso quando todos os comproprietários derem o seu assentimento.
Perante a falta de alguém ele é não válido.
O vício que está a miná-lo é o da ilegitimidade: o arrendamento é acordado por quem não tem poderes para tanto.
E qual é a consequência de tal vício?
Não há um princípio geral que legalmente o paute.
Há casos em que a falta de legitimidade implica nulidade (venda de coisa alheia - art. 892; actos proibidos ao tutor - art. 1937 e 1939); outras vezes anulabilidade - art. 1893 e 1940; outros ainda ineficácia - art. 268 e 269.
Mas tem sido a venda de coisa alheia que tem estruturado a ilegitimidade, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
Só que a nulidade do art. 892 afasta-se do regime geral traçado no art. 286: ela apenas respeita às relações entre contraentes, pois quanto ao verdadeiro titular do direito de propriedade sobre a coisa vendida, o negócio é ineficaz - V.Serra, Rev. Leg. Jup., anos 103, Pag. 55 e 106, Pag. 26; P.Lima e A.Varela, Anotado, 4ª ed., 1997, Vol. II, pag. 184 e Paulo Olavo Cunha , ROA, 1987, Ano 47, Pag. 464.
Se voltarmos um pouco atrás no tempo vemos que pelo art. 1555 do CC de 1867 a venda era válida até que fosse posta em causa - anulabilidade - embora Cunha Gonçalves - Compra e Venda, 1924, Pag. 229 defendesse que seria válida mas resolúvel por inexecução da obrigação do vendedor.
A nulidade do art 892 já vinha transposta do art 484 do C.Comercial, Ferreira Borges, de 1883, inspirado ainda e sempre no direito francês.
É que até então - Ordenações Filipinas - reconhecia--se a validade da renda de coisa alheia, pois bebendo no direito romano o vendedor apenas se obrigava a entregá-la ao comprador, garantindo-lhe a posse e o gozo, sendo depois nulo o negócio de transmissão, quando incidisse sobre coisa alheia.
No direito alemão o vendedor não aliena, mas para além do previsto no direito romano, obriga-se a tornar proprietário o comprador - § 434 B.G.B: daí a validade da venda de coisa alheia, havendo responsabilidade civil pelo incumprimento de tornar proprietário o comprador - Larenz, Direito das Obrigações, 1959, Tomo II, Pag. 19 e segs.
O código italiano de 1942 - art 1470 - suprimiu o princípio da nulidade da venda de coisa alheia estabelecida pelo anterior código de 1865, este na esteira do legislador napoleónico - Bianca, La Vendita e La Permuta, Tratado, 1972, Tomo I, Vol. VII, Pag. 606
10- Ou seja, em resumo, a consagração da nulidade no art 892 deveu-se à conveniência em se evitar aparências enganadoras, justificando-se a preferência da lei em face da gravidade da infracção e à importância dos interesses em jogo - Galvão Telles, Contratos Civis, Pag. 18 e 19.
É nulidade resolúvel, pois o negócio pode validar-se.
Por outro lado, analisando o sistema, constata-se que os actos dispositivos sobre o património alheio são, regra geral, ineficazes em relação ao seu titular - venda de bens penhorados pelo executado (art 919 CC), actos praticados pelo falido (art 1190 nº1 do C.P.C., hoje art 155 nº1 do C.P.E.R.E.F), doação de bens alheios (art 956 nº1 CC) e disposição especificada de coisa comum (art 1408 nº2 CC).
Assim temos:
a) Nas relações entre os comproprietários não participantes ou não concordantes e o arrendatário:
1- A lei protege única e exclusivamente aqueles.
2- Daí que atenta a carga dispositiva do arrendamento no art 1024 não está em causa o interesse público.
3- Pelo que não é uma disposição imperativa.
4- Para aquele comproprietário enquanto não aderir ao acordado, o contrato é ineficaz.
5- Quanto a ele não está especialmente regulada na lei qualquer invalidade
b) Nas relações entre os comproprietários participantes e o arrendatário:
1- Quanto ao comproprietário que tenha dado o prédio de arrendamento o contrato é eficaz, visto a ineficácia não ser, como vimos, estabelecida no seu interesse.
2- Não lhe sendo, pois, aplicável o estatuído no nº2 art 1024.
3- O contrato é, pois, válido em relação ao arrendatário mas não produz efeitos quanto aos demais comproprietários ou consortes - Januário Gomes, Ob. cit. Pag. 287
4- A A., dando, como deu, de arrendamento um indiviso, sem autorização de outro comproprietário, não pode invocar o facto contra o locatário de boa fé, os RR.: 2ª parte art 892, o aplicável à solução do caso em apreço.
5- A nulidade não pode ser oposta pelo vendedor ou comprador de boa fé, em fuga ao regime geral do art 286, dada a natureza dos interesses em presença, em recepção compreensiva de "razões de moralidade e de justiça" - Galvão Telles, Contratos Civis, 1984, Pag. 20.
6- E daí não poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal

11- Quanto ao abuso de direito.
No abuso de direito estamos perante posições jurídicas contrárias aos valores estruturantes do sistema jurídico, o que na linguagem alemã se designa por "exercício inadmissível de posições jurídicas".
É um limite indeterminado ao comportamento jurídico, que passa pelos conceitos de função, de bons costumes e de boa fé.
Conceito indeterminado, que carece de um processo de concretização para melhor aplicar a justiça ao caso concreto, conceito que não permite comunicação clara quanto ao seu conteúdo.
Há, assim, necessidade de surpreender grupos típicos de comportamentos abusivos frente a "um universo informe de comportamentos inadmissíveis" - M. Cordeiro, Boa Fé, 1997, Pag.719.
Têm sido considerados típicos: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegalidades formais, a suppressio e a surrectio, o tu quoque e finalmente o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
Ou seja, "a concretização do sentido dos conceitos normativos exige o recurso a considerações políticas, sociológicas e históricas, por um lado, e a dados culturais, por outro. Isto é, exigem que a descoberta das soluções jurídicas se efectue no contexto sociológico e espiritual e no momento em que as normas são aplicadas" - Vieira de Andrade, os Direitos Fundamentais, Coimbra, 1987, Pag. 121-122.
Estamos perante conceito indeterminado normativo, carecido de um preenchimento normativo, pelo que "o volume normativo deste conceito tem de ser preenchido caso a caso, através de actos de valoração" -
-- Engish, Introdução, Pag. 213.
12 - Voltemos aos factos para apreciar se houve inadmissibilidade do comportamento da A.
São eles:
- A A. não deu poderes ao seu procurador para a celebração por este do contrato promessa de compra e venda do andar em questão.
- A A. não ratificou a gestão, posição assumida pelo procurador, que é, desta forma, abusiva.
- Na resposta à contestação veio arguir a ineficácia do contrato promessa de compra e venda por se sentir prejudicada com o mesmo.
É certo que tal contrato é ineficaz em relação a ela - art. 268 e 269.
- Mas agora pretende agarrar-se a tal contrato para concluir que ele leva à revogação tácita do arrendamento.
As instâncias qualificaram este comportamento de abusivo, sob a forma típica do venire contar factum próprium.

13 - Será?
O venire, de origem canónica, traduz, nuclearmente, o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos intervenientes.
É a doutrina da protecção da confiança, que o fundamenta, radicando numa veracidade determinante da Justiça concreta.
Ou seja, a primeira atitude face a outrem, facto próprio, não pode ser contrariada, supervenientemente, através da modificação do comportamento do mesmo.
Mas tal só tem efectiva relevância jurídica, quando atinja proporções juridicamente intoleráveis, isto é, contrárias à boa fé.
Para surpreender tal é sabido que tem de haver pressupostos dessa protecção.
Ora no caso em apreço começa por não haver nem sequer facto próprio.
A A. limitou-se a afirmar que desconhecia a existência do invocado contrato promessa de compra e venda, nunca o tendo aprovado ou ratificado para, através da conduta abusiva do procurador, actuando como gestor, concluir que tal contrato não a vincula, nem sequer é válido.
Mas logo a seguir pretende beneficiar da existência jurídica desse contrato promessa, através do qual os RR. entraram imediatamente na posse do rés-do-chão, enquanto promitentes compradores, para concluir que, com base neste facto, o contrato de arrendamento ficou automaticamente resolvido, por alteração das circunstâncias.
Para nós o acto abusivo concretiza-se antes na figura do tu quoque.
14- Aqui temos a seguinte realidade: aquele que viole uma norma jurídica não pode exigir, a outrem, o acatamento do mesmo preceito em causa: turpitudinem suam allegans non auditur.
Radica na necessidade de atentar na materialidade subjacente às situações a resolver.
Poderia parecer que a A. desrespeitando o invocado contrato promessa de compra e venda e exigindo-o depois estaria a incorrer em contradição.
Só que no tu quoque a contradição "não está no comportamento do titular exercente em si, mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e julgar-se" - M. Cordeiro, Boa Fé, Vol. II., Pag. 843.
A A., está, assim, a agir com manifesto abuso de direito, sob a forma do tu quoque - art. 334.
15- O pagamento ou não das rendas por parte dos RR. é irrelevante para esta acção de reivindicação.
16- Termos em que se nega a revista, confirmando-se o douto Ac. recorrido, embora por fundamentação diversa.
Custas pelos AA. recorrentes.

Lisboa, 05 d julho de 2001
Torres Paulo,
Lopes Pinto,
Ribeiro Coelho.