Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
140/11.0TBCVD-A.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO DE SENTENÇA
PRESSUPOSTOS
TÍTULO EXECUTIVO
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
RECONHECIMENTO DO DIREITO
CONDENAÇÃO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
DIREITO REAL
AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Só a “sentença condenatória”, como é referido no art. 703.º, n.º 1, al. c), do CPC, pode servir de base a uma execução.
II - Expressão esta em que não se incluem as ações de simples apreciação, ou seja, as ações em que unicamente se obtém a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (cfr. art. 10.º, n.º 3, al. a), do CPC), em que o réu não é condenado no cumprimento duma obrigação pré-existente ou condenado/constituído em nova obrigação a cumprir.
III - É o caso da sentença que se limite a reconhecer/declarar um direito real (seja de propriedade, seja de servidão), sentença que só passará (e nessa estrita medida) a servir de base a uma execução se (e a partir do momento), na mesma sentença, para além do reconhecimento/declaração do direito real, se condene, por ex., na restituição do prédio (como acontece na reivindicação, na hipótese do prédio não estar em poder daquele que foi declarado seu proprietário) ou a proceder à desobstrução da servidão de passagem (como acontece quando o dono do prédio serviente coloca obstáculos que impedem a passagem).
IV - Tendo-se numa mesma sentença – após se declarar/reconhecer que sobre o prédio do autor e a favor do prédio do réu se acha constituída, por usucapião, uma servidão de passagem (de pé e carro e trânsito de animais) – feito constar, no segmento seguinte, que se condena a R. a reconhecer esse direito e a respeitá-lo, tal “condenação” não é efetiva e rigorosamente uma condenação, mas uma mera redundância/repetição do direito (de servidão) já antes declarado.
V - À expressão reconhecimento do seu direito, constante do art. 1311.º do CC (ao caso aplicável ex vi art. 1315.º do CC), corresponde, em termos processuais, a declaração do direito, pelo que, quando numa ação se declara a constituição dum direito de servidão (por usucapião), fica o réu obrigado a reconhecer tal direito e a abster-se de praticar atos que o prejudiquem, sendo redundante/repetitivo acrescentar-se, a seguir, que se “condena” o réu a reconhecer e respeitar o direito (de servidão) já antes declarado.
VI - Para além disso – e no sentido de não poder servir de base a uma execução – não se traduz tal “condenação” (redundante) na imposição duma concreta obrigação pré-existente e/ou na condenação/constituição duma nova obrigação; e muito menos numa obrigação certa, determinada em relação à sua qualidade e cujo objeto da prestação se encontre perfeitamente delimitado ou individualizado, isto é, que se saiba precisamente o que se deve.
Decisão Texto Integral:

Processo: 140/11.0TBCVD-A.E1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Anfriso – Agricultura e Comércio, Lda., executada nos autos à margem identificados, veio deduzir embargos à execução intentada pelos exequentes CC e esposa, DD, alegando, em síntese, o seguinte:

- A execução intentada pelos exequentes extravasa por completo o título executivo ao abrigo da qual foi instaurada, tratando-se de uma tentativa de ver realizada pela presente via processual de nova e diferente versão do caminho cuja existência e localização foi sentenciada no procedimento declarativo;

- A executada, após a prolação da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, jamais impediu ou condicionou a passagem dos exequentes pelo caminho nos termos determinados pela própria sentença, tendo mantido em permanência aberto, ou em condições de ser aberto o portão referido pelos exequentes;

- Após a prolação da sentença declarativa, a executada, para contenção dos animais que pastoreiam na Herdade ..., vedou esta sua propriedade ao redor da ... deixando uma faixa de terreno, entre esta sua propriedade e o pequeno muro que delimita a ..., para o caminho de servidão com largura sempre superior a 3 a 4 metros de largura em toda a sua extensão;

- Os exequentes pretendem através da presente execução, lograr que se lhes reconheça um direito de passagem, novo e diferente;

- Os exequentes voltam a invocar os mesmos factos invocados na ação declarativa, visando obter indemnização com base neles, à custa da executada, pedido que é completamente infundado tal como resultou provado, após discussão, na ação declarativa;

-À executada não deverão ser aplicadas quaisquer penalizações ou sanção pecuniária, sendo que as diligências solicitadas pelos exequentes para “restauro do caminho” não fazem qualquer sentido;

- E conclui pedindo que se julguem procedentes os embargos e se declare extinta a execução.

Os Embargados deduziram contestação, pugnando pela improcedência dos embargos.

Suscitaram ainda, incidentalmente, a litigância de má fé da embargante, por entenderem que a mesma deduz oposição cuja falta de fundamento não deveria ignorar, pelo que pede que os mesmos sejam condenados no pagamento de uma indemnização de valor não inferior a € 10.000,00.

Foi realizada audiência prévia, proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizada audiência final, foi proferida sentença que culminou com o seguinte “dispositivo”:

“Nesta conformidade, tudo visto e ponderado, decido:

Julgar os Embargos de Executado totalmente improcedentes e, consequentemente, determinar o prosseguimento da execução.

Julgar totalmente improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé formulado pelos Exequentes e, consequentemente, dele absolver a Embargante.”.

Inconformada com tal decisão, interpôs a executada recurso de apelação, o qual, por acórdão da Relação ... de 23/09/2021, foi julgado procedente, tendo-se julgado procedentes os embargos deduzidos e, consequentemente, extinta a execução.

Agora inconformados os exequentes, interpõem o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o decidido na sentença da 1.ª Instância.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

Tal como disseram os embargados, aqui recorrentes, no limiar destas alegações, forçoso é lembrar que este litígio só surge, pelo menos na feição e objecto que apresenta, porque a embargante destruiu o leito da servidão que lhes foi reconhecida, lavrando-o, com intenção de esconder da justiça a sua existência (está escrito, por mão de julgadora, como se disse e se repetirá por nunca ser de mais lembrá-lo).

Sendo a autora dos embargos a mesma que mandou destruir o leito, como não estranhar não haver, no discurso do douto acórdão, uma única palavra que revele ter-se tido presente essa circunstância, e ao invés, se sinta, atrás de algumas expressões ou sinais de pontuação, alguma desconsideração dos embargados.

Para procurar demonstrar que o douto acórdão deve ser revogado, em três momentos se desenvolve a alegação:

Expondo os factos;

Questionando o motivo de acórdão e sentença se terem colocado em posições tão opostas;

Procurando demonstrar que a razão está do lado dos embargados e concluindo pela inevitabilidade (pensa-se) da procedência do presente recurso.

Exposição dos factos:

Está em causa, no processo - de embargos a uma execução para cumprimento de uma sentença que reconheceu uma servidão de passagem – saber se a executada já cumpriu, pois que, pretendendo os exequentes que não, a executada diz que sim.

A sentença declarou constituída sobre prédio rústico, Herdade ..., propriedade da executada (aqui embargante), a favor de prédios dos exequentes (aqui embargados), uma servidão de passagem, para pessoas, veículos e animais, formada por usucapião, exercida por um caminho de 3 a 4 metros de largura, encostada a uma ... (a ...), confinante com o prédio serviente; e condenou a executada a reconhecer esse direito e a respeitá-lo, abrindo e mantendo aberto em permanência o portão que ela executada colocara no leito para acesso à herdade (e ao exercício da servidão).

O leito já só por alguns indícios, no início e no final, é reconhecido no terreno, tudo indicando que foi a embargante que o destruiu. Em inspecção judicial, efectuada numa providência cautelar preliminar da acção declarativa, a Senhora Juiz desse processo detectou a existência de um corredor de terra lavrada de fresco e teve-o como sendo o local por onde corria o leito.

A entrada para o leito da servidão, comum também à da própria Herdade ..., fazia-se através de um portão que a embargada tinha colocado no terreno, que é o que se vê nas fotografias juntas com o requerimento executivo como does. n° 2, 3 e 4.

A embargante, obrigada pela sentença exequenda a facultar passagem para o exercício da servidão, colocou, no seu prédio, depois de condenada, uma vedação de rede de arame, para contenção dos animais que pastoreiam na Herdade ..., com a qual vedou parte dessa propriedade, porém deixando entre a vedação e o muro que delimita a ..., uma faixa de terreno, que ela embargante pretende que tem 3 a 4 metros de largura (facto D); e deixou o portão de acesso à Herdade ... em condições de poder ser aberto por quem desejasse passar, colocando nele um letreiro com os dizeres "Atenção, este portão está aberto" (facto C).

Ao instalar a vedação, como esta cortasse o acesso à parte interior da Herdade ..., colocou nela um portão, que, esse, se encontra fechado (facto J).

E neste quadro de factos e de comportamento da embargante que se coloca a questão de saber qual das decisões deve prevalecer, no confronto com a decisão exequenda - se a do douto acórdão, que entendeu que a embargante cumpriu o que naquela sentença se ordenou e, em razão disso, declarou extinta a execução, ou a da sentença da Ia instância, que concluiu que ela não cumpriu, havendo que, em conformidade, fazer prosseguir a execução.

Questionamento dos motivos de acórdão e sentença se terem colocado em posições tão opostas;

Sendo o mesmo o quadro de facto em que ambas as instâncias se moveram e decidiram, é motivo de surpresa que tão diferente tenha sido a solução, não porque, em princípio, seja de surpreender que haja, na aplicação do direito, soluções diferentes, mas porque não é natural que, no plano factual, tenham uma e outra, visto os factos de forma tão diferente:

o douto acórdão a dizer que a embargada abriu o portão de acesso à Herdade ... e com isso cumpriu a ordem contida na sentença executiva; a sentença a dizer que é verdade que abriu o portão mas que isso não significa que cumpriu;

o douto acórdão a dar como natural e legal que a embargante queira confinar a passagem dos embargados a uma faixa, diferente do leito primitivo, que ela escolheu, e a considerar cumprida, também nessa parte, a decisão exequenda; a sentença a dizer que a abertura de tal faixa não constitui cumprimento;

a sentença a considerar relevantes, como factores de desadequação da faixa a servir como leito da servidão, os acidentes que deu como existentes no seu percurso; o acórdão a desvalorizar esses acidentes.

A razão da divergência está em que o douto acórdão omite, no seu raciocínio, factos que, considerados, levaria a decisão contrária (os acidentes na faixa); invoca normas e jurisprudência que não se aplicam ao caso (art° 1356° do C. Civil e Ac. do STJ de 7-7-1994) ou não têm o alcance que lhes quer atribuir (art°s 1565° e 1566° do C. Civil). Daí que conclua por uma decisão que, apesar da sua aparência lógica, está, com o devido respeito, errada.

De facto, se, em dados momentos, tem ela uma aparência lógica é porque se auto-amputou do que podia contrariar o seu raciocínio. A conclusão a que chegou só estaria certa se os factos que desconsiderou ou omitiu - os acidentes e o segundo portão - não tivessem de facto relevância e fosse justificada a citação das normas jurídicas e jurisprudência invocadas.

A douta sentença, que teve presente a verdade física do local, não sofre dessa desadequação, precisamente porque pôde a Meritíssima Juiz ter a realidade à sua frente. Bem se crê que outra seria a decisão do douto acórdão se as Senhoras Desembargadoras suas subscritoras tivessem participado fisicamente na inspecção ao local, visto os dois portões e a função de cada um, visto o mato, as azinheiras, o desnível, a linha de água, o torção em cotovelo referido no Capitulo IV c m que a embargante quis acomodar a sua faixa à entrada para o azinhal e, como podiam, tivessem tirado alguma consequência de se saber que quem quis impor  uma faixa assim é quem escondeu, lavrando-o, o leito real da servidão.

A análise jurídica do litígio.

Numa coisa estão (pensam os recorrentes) de acordo a douta sentença e o douto acórdão e também (parece) a embargante: em que a faixa de terreno entre o muro da ...... e a vedação que a embargante colocou não é concretamente aquele leito por onde se exercia a servidão que a sentença exequenda reconheceu ter sido criado pela usucapião.

Em favor desse entendimento, pede-se que V. Exas considerem os argumentos, de primeiro a sexto, que se indicaram na resposta que se quis dar a essa questão, que são:

resultar do facto da alínea D) que se nela se diz que a faixa foi colocada após a prolação da sentença é porque ela não existia antes com a função de servir de leito de passagem;

ter a Meritíssima Juiz da sentença, a fls. 8, parágrafos 3o e 4o, apresentado como não coincidentes a faixa e o leito referido na sentença exequenda;

ter-se o douto acórdão referido à faixa como deixada "incólume entre a vedação e o muro", a fls. 14, parágrafo 4o e referido também aí que "a faixa de terreno corresponde à configuração da servidão determinada na sentença, ou seja, que é exercida por caminho com 3 a 4 metros de largura''';

nunca a embargante ter dito que o leito passava por aí, antes referindo, na conclusão 4 da sua alegação, na apelação, que a faixa "corresponde à localização sentenciada para o caminho da servidão";

tornarem os factos das alíneas E), F), H) e I) e as fotografias tiradas pela Meritíssima Juiz claro que a faixa não pode ser tida como leito de servidão, por completa desadequação - os acidentes impedem a passagem (por isso, no local do desnível, nem vedação pôde ser colocada) e nem em toda a extensão se respeita a medida mínima dos 3 metros;

estar à vista, nas fotografias tiradas no âmbito da providência cautelar que precedeu a sentença exequenda, o terreno que a embargante lavrou e a Senhora Juiz do processo teve como sendo a do leito de passagem, circunstância que não deixa margem a dúvida, quanto à situação do local, pois que situa a margem mais afastado do lavrado a 6,80 metros do muro da ....

Se nisso estão de acordo a sentença, o douto acórdão e a própria embargante, já quanto ao mais estão a sentença e o douto acórdão, que é o que aqui interessa, em divergência.

Quanto à sentença, não precisa ela de outra argumentação além da que contem. Ela faz o correcto enquadramento do portão referido na alínea J) para concluir que, abrindo a embargante o da alínea C), ainda assim não cumpriu a sentença exequenda. Fá-lo em termos que não deixam dúvidas. Por outro lado, viu e teve a certeza de que a faixa que a embargante abriu não pode constituir sucedâneo do leito real da servidão que ela embargante destruiu.

Quanto ao douto acórdão, entendem os embargados que ele não tem, com o devido respeito, sustentação possível.

Não tem quando legitima a conduta da embargante a querer impor, em alternativa ao leito real da servidão, a passagem pela faixa que ela criou, e invoca, para tanto, o artigo 1356° do C. Civil e o Ac. do STJ de 7-7-1994. É que não está aqui em causa o direito de vedação, mas sim o da possibilidade da mudança do seu exercício.

A norma a aplicar é a do artigo 1568° do C. Civil, em cujo número 1 se dispõe: "O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode a todo o tempo exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado". E este direito que a lei confere ao proprietário do prédio serviente não pode, obviamente, ser exercido de forma arbitrária. Tem de ser autorizado pelo dono do prédio dominante ou pelo tribunal.

Também não tem fundamento quando pretende que não está provado nem alegado que a vedação impeça ou dificulte o uso da servidão. Não faz sentido tal afirmação porque o que está em causa não é propriamente a transitabilidade, antes a existência desta, em si, como caminho alternativo. Se se põe em causa a transitabilidade é para demonstrar que a própria intransitabilidade constitui uma prova de que a servidão não podia passar por aí, nem para aí podia a embargante ter mudado o seu exercício.

De facto, e com isso se responde à questão da intransitabilidade da faixa como factor autónomo de incumprimento, são os acidentes do percurso que resultam da matéria de facto assente, os das alíneas E) a I) e o mais registado no auto de inspecção, que por si revelam que a faixa criada pela embargante não pode, nunca poderia servir de local de exercício de servidão de pessoas, veículos e animais.

A colocação de uma rede com a altura de 1,40 metros e a existência de ramos de árvores à altura de 2,30 metros, impedem a circulação de veículos pesados; o tronco de uma árvore adulta, uma azinheira inclinada sobre a faixa, estrangula a própria faixa; o declive e a linha de água impedem de todo a passagem; o torção da passagem, em cotovelo, impede em absoluto a manobra de qualquer veiculo; e até a existência de mato é invocável, sendo que, ocorrendo a mudança de exercício da servidão, os encargos com essa mudança são da responsabilidade do dono do prédio serviente (artigo 1568° do C. Civil).

Quanto ao portão, e essa é a quarta questão acima posta, o vicio do douto acórdão está em que não deu relevo ao facto da alínea J), do qual resulta que ele foi posto em local que era também o local de exercício da servidão e que, por isso, para que se pudesse considerar cumprida a ordem de abertura do portão, também ele devia estar aberto.

Leitura correcta da conjugação dos dois portões é a que foi feita, a fls. 8 do texto da sentença, no parágrafo que se inicia em "é certo" e termina em "decisão judicial exequenda", que só não se transcreve atenta a sua extensão.

Como se explicou no texto da alegação, a propósito da quarta questão, o que as alíneas C) e J) mostram é que a embargante abriu o portão, mas não para dar acesso ao leito da servidão reconhecida pelo tribunal, antes para encaminhar quem entra para a faixa que ela abriu, que nada tem a ver com o leito.

É como se - e permita-se que aqui se transcreva o que acima se disse sobre a abertura do portão e o letreiro a dizer que o portão está aberto - querendo os embargados entrar, lhes fosse dito: entrai, se quiserdes, mas tendes de virar à esquerda e tendes de entrar na "gaiola" que se vos apresenta; em frente; para o leito antigo, é que não podeis passar.

Muitos são pois os fundamentos que permitem aos embargados sustentar a sua discordância com o douto acórdão: desvalorização de factos com seriedade alegados para serem vistos como factor de intransitabilidade da faixa aberta pela embargante; omissão da consideração de factos essenciais, como o da alínea J), no que se refere ao portão; citação de normas que nada têm a ver com o caso como são as dos artigos 1565° e 1566° e do artigo 1356°, todos do Código Civil; omissão de citação da norma que verdadeiramente devia ter sido citada para ter como ilegítima a mudança do leito - artigo 1568° também do Código Civil.

Mas há ainda que referir outro factor que torna ilegítima e inválida a decisão do douto acórdão de dar como cumprimento da sentença exequenda a mudança de leito da servidão operada pela embargante: o ter-se, com isso, criado uma situação que verdadeiramente redunda em negação da justiça, com o que se violou o artigo 20°, n° 1 da CRP, e ter-se legitimado o desrespeito por decisão transitada em julgado, com o que se violou o artigo 205°, n° 2 da CRP.

Na verdade, o douto acórdão legitima a mudança do leito da servidão, sem invocação de nenhum argumento que considere dispensável a sua autorização, com o que acaba por proferir decisão "ajuridica", nisso violando o artigo 20°, n° 1 da CRP que não permite que se julgue sem o apoio do direito.

Por outro lado, assume o teor da sentença exequenda como impondo à embargada o dever de respeitar a concreta servidão que reconheceu a favor dos embargados; e todavia legitima comportamento da mesma embargante que não respeita essa decisão. O que quer dizer que o douto acórdão faz do artigo 205°, n° 1 da CRP uma interpretação que vai no sentido de legitimar aquele desrespeito. (…)”

A executada respondeu, sustentando, em síntese, que o acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pelos recorrentes, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II- Fundamentação de Facto

II – A – Factos Provados

A) Por sentença judicial transitada em julgado proferida na ação declarativa sob a forma de processo ordinário que correu termos sob o n.º 140/11...., ficou decidido declarar que sobre o prédio da Ré, prédio rústico denominado Herdade ..., ... e ..., sito na mesma freguesia, com a área de 169,4500 hectares, se acha constituída, por usucapião, a favor de cada um dos prédios dos Autores descritos no artigo 1º da petição inicial, servidão de passagem de pé e carro e trânsito de animais, exercida por caminho com 3 a 4 metros de largura que parte do ... (público), corre dentro do prédio serviente, encostado à ... (também denominado ...) e vai ter ao portão que, para receber o fluxo de pessoas, veículos e animais que por ele circulam, com destino aos prédios dominantes, se abre no termo dele na vedação que cerca a ..., conforme decorre de fls. 275/298, do processo principal que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

B) Nessa mesma sentença judicial foi ainda a Ré condenada a reconhecer esse direito e a respeitá-lo, abrindo desde já e mantendo em permanência aberto o portão que a Ré colocou no leito da servidão.

C) A Executada mantém o portão que dá acesso à Herdade ..., a partir do ..., aberto ou em condições de poder ser aberto e usado por aqueles que desejem passar, ali colocando um letreiro com os dizeres “Atenção este portão está aberto”.

D) Após a prolação da sentença declarativa proferida no processo principal, a executada, para contenção dos animais que pastoreiam na Herdade ..., vedou parte da sua propriedade, deixando uma faixa de terreno, entre a vedação e o muro que delimita a ....

E) A referida faixa de terreno encontra-se repleta de pasto e silvado e em algumas zonas está parcialmente coberta por copas de azinheiras.

F) Na referida faixa de terreno existe pelo menos uma azinheira inclinada sobre a dita faixa, sendo que desde o tronco dessa árvore à vedação dista 2,47 metros e desde o seu ramo mais baixo até ao solo dista 2,30m.

G) Nos locais em que a faixa de terreno se encontra vedada, a mesma tem entre 3 a 4 metros de largura.

H) A vedação da Herdade ... que delimita a referida faixa de terreno encontra-se interrompida no local onde se situa um declive, por onde passa uma linha de água.

I) No local onde se situa o dito declive, vulgarmente denominado por “barroca”, a circulação de pessoas, veículos e animais não é possível, sendo que nesse ponto a largura da faixa de terreno mede seguramente menos de 3 metros.

J) Na vedação da Herdade ... encontra-se colocado um portão, que dá acesso ao interior da propriedade vedada, o qual se encontra fechado.

K) Os Exequentes não fizeram trabalhos de manutenção e preservação do caminho.

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II – B – Factos Não Provados:

Não se provou que:

1. O Exequente no dia 15 de setembro de 2018 passou pelo portão referido na alínea C).

2. A Executada vedou toda a sua propriedade ao redor da ....

3. Ao ficarem privados de usar o dito caminho, a Exequente gastou, em cada passagem de carro ou trator pelo caminho alternativo, em combustível e desgaste dos veículos, pelo menos €4,00 por dia, no total, na roda do ano, de €1.876,00.

4. Os três trabalhadores que têm de acompanhar o gado perdem agora pelo menos meio dia, com isso ficando os Autores prejudicados em não menos de €300,00 por ano.

5. Os Exequentes tiveram o incomodo de ter de andar por maus e distantes caminhos, a preocupação com acidentes de animais e pessoas no percurso por caminhos públicos e sentiram-se afrontados ao serem impedidos do direito de passagem mesmo depois de imposta pelo tribunal.

*

III – Fundamentação de Direito

Ocorre a presente revista nos embargos que, por apenso, foram deduzidos a uma execução.

Toda a execução, é sabido, tem por base um título (pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva, assim se dispõe no artigo 10.º/5 do CPC) que, no caso, é uma sentença – hipótese expressamente prevista, como título executivo, para as sentenças condenatórias, nos art. 703.º/1/c) e 704.º/1 do CPC) – proferida em 1.ª Instância em 31/01/2017, confirmada pelo T. R... em 12/10/2017 e em que a revista, proferida em 24/04/2018, foi negada.

E o objeto dos embargos (e da presente revista) gira todo ele à volta do cumprimento (ou não) pela executada do determinado na sentença “dada” à execução.

E a primeira (e decisiva) questão que se coloca – uma vez que antes de se poder apreciar se a executada cumpriu ou não a sentença é preciso saber o que é que ela estava obrigada a cumprir pelo título/sentença “dado” à execução – tem, no caso, a ver com a expressão “sentença condenatória”, constante do referido art. 703.º/1/c) do CPC, uma vez que só a sentença condenatória pode servir de base a uma execução.

Expressão essa em que, é pacífico[1], não se incluem as ações de simples apreciação[2], ou seja, as ações em que unicamente se obtém a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (cfr. art. 10.º/3/a) do CPC), em que o R. não é condenado no cumprimento duma obrigação pré-existente ou condenado/constituído em nova obrigação a cumprir.

Ora – é o ponto decisivo – a sentença “dada” à execução “limita-se”, na sua maior parte, a tão só declarar a existência dum direito (de servidão de passagem), sendo só numa pequena parte/segmento uma “sentença condenatória”, pelo que só nessa pequena parte – respeitante à abertura do portão – é um título executivo, o mesmo é dizer, um título que possa servir de base a uma execução.

Expliquemo-nos:

Na ação declarativa que correu termos sob o n.º 140/11.... (ação de que a presente execução, a que os presentes embargos foram opostos, constitui um apenso) a decisão final é/foi a seguinte (e passa a transcrever-se integralmente o que consta de todo a parte decisória da sentença proferida, em 31/01/2107, na 1.ª Instância, sentença totalmente confirmada na Relação e cuja revista foi negada):

“ (…) I Julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência:

a) Declaro que sobre o prédio da Ré, prédio rústico denominado Herdade ..., ... e ..., sito na mesma freguesia, com a área de 169,4500 hectares, se acha constituída, por usucapião, a favor de cada um dos prédios dos Autores descritos no artigo 1º da petição inicial, servidão de passagem de pé e carro e trânsito de animais, exercida por caminho com 3 a 4 metros de largura que parte do ... (público), corre dentro do prédio serviente, encostado à ... (também denominado ...) e vai ter ao portão que, para receber o fluxo de pessoas, veículos e animais que por ele circulam, com destino aos prédios dominantes, se abre no termo dele na vedação que cerca a ....

b) Condeno a Ré a reconhecer esse direito e a respeitá-lo, abrindo desde já e mantendo em permanência aberto o portão que a Ré colocou no leito da servidão.

II Julgo parcialmente improcedente a ação e, em consequência, absolvo a Ré do pedido formulado pelos Autores de pagamento (vinte e um mil e quatrocentos euros), acrescida de juros à taxa legal. (…)”

A partir de tal sentença – da sua decisão final – os exequentes, no requerimento executivo, efetuaram, inter alia, as seguintes alegações e raciocínios:

“5- A executada, notificada das decisões, não cumpriu. Não abriu o portão, que mantém fechado, a cadeado; e, não respeitou o direito reconhecido na sentença, pois que, tendo destruído este, o não repôs.

6- Do leito da servidão, de terra batida, reconhecido na sentença, hoje, já só no início, para quem sai do ..., e no seu termo, junto à ..., é reconhecível parte, no terreno. Deixou de o ser, na parte intermédia, por, em 2010, a executada o ter mandado lavrar, destruindo-o como caminho e nunca mais o repondo.”.

(…)

“12- Por outro lado, como era de terra batida, nunca lavrado ou mudado, desde que a memória dos homens alcança, estava bem consolidado; deve agora, para ficar igualmente consistente, ser refeito com aplicação de tout-venant compactado por cilindro.

13- E, como não tinha, lateralmente, nenhuma vedação ou obstáculo que impedisse que qualquer carga que se transportasse pudesse, eventualmente, invadir o espaço aéreo que ia para além da largura do leito, assim se deve manter uma margem de segurança, à imagem do que a lei prevê para os caminhos vicinais.”

E, reportando-se à sentença “dada” à execução, referiram ainda no requerimento executivo:

“18- Ela é, repete-se, de facto positivo no que se refere à abertura do portão.

 19- É, na parte em que obriga ao respeito da servidão, de facto negativo, enquanto impõe um non facere, um dever de não destruir nem perturbar o uso do leito; o que não impede que, por ser repristinável à custa da executada (artº 829º do C. Civil), seja a obrigação, uma vez verificado o incumprimento, convolada em facto positivo - restabelecimento do leito. A natureza deste dever de restauro, de atuação positiva embora, não retira à execução, segundo a doutrina, a natureza de prestação de facto negativo. “.

Pois bem:

Concorda-se que, na decisão final da sentença “dada” à execução, foi a executada condenada a cumprir uma obrigação – a abrir e manter em permanência aberto o portão que a R./executada colocou no leito da servidão – e que o incumprimento de tal obrigação pode dar lugar a uma execução para prestação de facto positivo.

Mas esta foi/é a única obrigação/condenação imposta na sentença dada à execução.

Não se ignora que, na decisão final da sentença “dada” à execução – após se declarar/reconhecer que sobre o prédio da executada e a favor do prédio dos exequentes se acha constituída, por usucapião, uma servidão de passagem (de pé e carro e trânsito de animais) – se fez constar, no segmento seguinte, que se “condena a R. a reconhecer esse direito e a respeitá-lo”.

Só que esta “condenação” não é efetiva e rigorosamente uma condenação, mas uma mera redundância/repetição do direito (de servidão) já antes declarado.

À expressão “reconhecimento do seu direito”, constante do art. 1311.º do C. C. (ao caso aplicável ex vi 1315.º do CC), corresponde, em termos processuais, a declaração do direito; e quando numa ação se declara um direito, o respetivo réu, contra quem a decisão passa a fazer caso julgado material, passa a estar, sem mais, obrigado a reconhecer o direito e a abster-se de praticar atos que o prejudiquem.

Ou seja, dizer-se/pedir-se que se declara/reconhece uma concreta servidão de passagem (entre um concreto prédio dominante e um concreto prédio serviente) e a seguir dizer-se/pedir-se que se condena o R. a reconhecer esse direito é dizer/pedir duas vezes a mesma coisa.

E, para além disto, não se traduz tal “condenação” da R. (e aqui executada) “a reconhecer esse direito e a respeitá-lo” na imposição duma concreta obrigação pré-existente e/ou na condenação/constituição duma nova obrigação; e muito menos na imposição duma obrigação certa, determinada em relação à sua qualidade (que implica – para a obrigação ser certa – que o objeto da prestação se encontre perfeitamente delimitado ou individualizado, isto é, que se saiba precisamente o que se deve).

Aliás, a longa alegação dos exequentes no requerimento executivo – com toda a construção, factual e argumentativa, que fazem para chegar ao incumprimento da executada – é bem reveladora disto mesmo.

Repare-se:

Alegam os exequentes que, em data anterior à propositura da ação (isto é, em 2010), a executada destrui o caminho da servidão e ainda não o repôs, pelo que incumpriu, segundo os exequentes, na obrigação de reposição.

Mas – é a questão – da decisão final da sentença “dada” à execução não consta ou é extraível a condenação na obrigação de repor o caminho; condenação em tal obrigação de reposição que – chama-se muito especialmente a atenção dos exequentes – não constava sequer do pedido formulado na ação declarativa[3]; e que – chama-se também a atenção – caso tal pedido condenatório constasse e houvesse, por hipótese de raciocínio, fundamento substantivo para julgá-lo procedente, impunha que os aqui exequentes tivessem oportunamente suscitado a nulidade da sentença (por não se ter pronunciado sobre questão que devia apreciar/conhecer), não podendo agora “ultrapassar” tal nulidade e a sua omissão (dos aqui exequentes, na respetiva invocação) com a alegação, como fazem no requerimento executivo, dos factos constantes da sentença declarativa e com a argumentação jurídica que fazem a partir de tais factos para concluir que têm direito à reposição do caminho, que a executada está pela sentença obrigada à reposição e que incumpriu em tal obrigação.

Face à postura argumentativa desenvolvida pelos exequentes nesta revista – censurando com veemência o acórdão recorrido e reputando de “estranho” que o acórdão, tendo o litígio surgido por a R. ter destruído o leito da servidão, “não tenha tido presente tal circunstância” – não pode deixar de observar-se que a “estranheza” estará no facto dos AA. dum tal litígio (cuja génese, segundo dizem, foi a destruição do leito da servidão) não haverem formulado, na ação declarativa, o inevitável e devido pedido de reposição do leito da servidão no estado anterior à sua destruição (concretizando, naturalmente, no pedido, qual era o seu exato estado anterior).

Duma forma muito clara e direta: para a executada ter incumprido a obrigação de reposição, tinha a decisão final que a condenar a repor o caminho no estado anterior (reposição que, evidentemente, a decisão final tinha que determinar com um mínimo de certeza) e a decisão final não só não o diz, como tal não foi pedido pelos exequentes (enquanto autores da ação declarativa), como o tema (da reposição do caminho) não fez parte da discussão jurídica quer da sentença da 1.ª Instância, quer dos acórdãos da Relação e do Supremo[4].

Mais, o que os exequentes alegaram nos artigos 12.º e 13.º (supra transcritos) do seu requerimento executivo – sobre o caminho ser de terra batida e estar bem consolidado, sobre “dever agora, para ficar igualmente consistente, ser refeito com aplicação de tout-venant compactado por cilindro” e sobre dever “manter uma margem de segurança, à imagem do que a lei prevê para os caminhos vicinais.” – é bem revelador de todo o equívoco, com todo o respeito, em que os exequentes vêm incorrendo, não se limitando a “pegar” nos factos da sentença declarativa para extrair direitos e obrigações (para a executada) que oportunamente não pediram (e que, por isso, não constam da decisão final, ou seja, do “título dado à execução”) e indo até um pouco mais longe, na medida em que alegam novos factos que, em termos jurídico-substantivos, relevam e têm a ver com a extensão da servidão (art. 1564.º), matéria que, como é evidente, tem que estar previamente definida/solucionada a montante, na sentença da ação declarativa e “dada” à execução (sentença que, é suposto, ter já incorporado tudo o que podia/devia ser invocado, refletido, discutido e decidido em termos de extensão e exercício da servidão, não sendo na execução, que pressupõe certeza na definição do direito que se executa e a consequente certeza de incumprimento por parte do executado, que se vai decidir que se aplica “tout-venant compactado por cilindro” ou que se deve “manter uma margem de segurança, à imagem do que a lei prevê para os caminhos vicinais.”).

E tudo que se vem de dizer sobre o “pretenso” incumprimento da obrigação de reposição do caminho/servidão, vale, mutatis mutandis, para o “pretenso” desrespeito da servidão por parte da executada.

Chama-se de novo especialmente a atenção dos exequentes para o facto de o que consta da decisão final (“dada” à execução), sobre o conteúdo e extensão da servidão de passagem, ser exatamente (nem mais nem menos) o que os aqui exequentes (enquanto AA. da ação declarativa) pediram.

E, claro – perdoe-se-nos o obiter dictum, com que apenas se visa explicar aos exequentes que as coisas não vêm bem desde início – olhando-se para o que se pediu (e que ficou a constar da decisão final) de imediato se constata que o direito de servidão declarado/reconhecido não está definido com toda a certeza e clareza exigíveis, uma vez que, como é evidente, pedir-se/dizer-se que a servidão é “ (…) exercida por caminho com 3 a 4 metros de largura (…) encostado à ... (…)” poderá não ser totalmente inequívoco e certo sobre o exato local por onde passa o caminho/servidão[5].

Sendo tal “equivocidade” que gera o “pretenso” desrespeito da servidão por parte da executada.

O que é dito/alegado nos autos é muito sintomático do que estamos a procurar explicar:

No requerimento executivo, os exequentes dizem, em síntese, que a executada definiu um caminho/servidão que não corresponde ao que era (e deve ser) o leito da servidão (constituída por usucapião) reconhecida na sentença.

Ao que a executada opõe que colocou uma vedação em parte da sua propriedade para contenção dos animais (que pastoreiam na Herdade ...), deixando incólume uma faixa de terreno, entre a vedação e o muro que delimita a ..., com 3 a 4 metros de largura.

Vindo os exequentes, na contestação aos embargos, dizer o seguinte:

“1.º

Resulta do confronto do requerimento executivo com a petição de embargos que a divergência das partes, quanto à localização do caminho da servidão que foi reconhecida por sentença está em que:

a) Os exequentes pretendem que o leito do caminho corria, acompanhando a ..., separada dela cerca de 7 a 8 metros (…)

b) Pretendem os embargantes situá-lo a confinar com a ..., colado a esta.

2.º

Dizem estes que a localização que apontam é a que decorre do texto da sentença, quando nela se refere que o leito corre encostado à .... Não têm razão, mesmo face à mera semântica da palavra.

3.º

A expressão “encostado” não é o mesmo que “encostadinho”. Ela não foi, na ação, nem na sentença, usada no sentido de “colado à ...”, mas sim acompanhando de perto a ... (…)

Como é despiciendo explicar, não é numa execução – em que os exequentes imputam ao executado estarem a desrespeitar o leito duma servidão de passagem – que se vai apurar por onde passa o caminho de servidão, se “encostadinho” ou se “encostado a cerca de 7 a 8 metros de distância”.

O direito que se executa, a obrigação cujo incumprimento se imputa, têm que estar certos, têm que estar clara e inequivocamente definidos no título executivo[6].

Seja como for, nem é o que acabamos de referir o mais relevante.

O mais relevante é que, quando um direito de servidão de passagem está clara e inequivocamente definido e o dono do prédio serviente o viola, tem o dono do prédio dominante que começar pela ação declarativa, justamente porque, como acima já se referiu, uma sentença que se limite a declarar/reconhecer uma servidão legal de passagem (ainda que clara e inequivocamente definida) não constitui sentença condenatória e título executivo em relação a todas e quaisquer violações futuras do direito real de servidão de passagem (reconhecido na sentença).

Em jeito de síntese conclusiva, pode dizer-se que uma sentença que se limita a reconhecer/declarar um direito real (seja de propriedade, seja de servidão), não é uma sentença que sirva de base a uma execução, só o passando a ser (e nessa estrita medida) a partir do momento em que na mesma sentença, para além do reconhecimento/declaração do direito real, se condene, por ex., na restituição do prédio (como acontece na reivindicação, na hipótese do prédio não estar em poder daquele que foi declarado seu proprietário) ou a proceder à desobstrução da servidão de passagem (como acontece quando o dono do prédio serviente coloca obstáculos que impedem a passagem).

Daí que, voltando ao que no início afirmámos, a sentença – a decisão final – da ação declarativa não sirva de base (não é título executivo) à execução, quer da “pretensa” obrigação de reposição do caminho, quer do “pretenso” desrespeito do caminho/traçado da servidão.

Resta/va pois, suscetível de servir de base à execução, o segmento da decisão final que condenou os executados a abrir e manter em permanência aberto o portão que a R./executada colocou no leito da servidão.

Só que não se provou o incumprimento de tal obrigação por parte da executada.

Bem pelo contrário, provou-se que cumpriu a obrigação de prestação de facto positivo em que foi condenada, uma vez que, como consta do ponto C) dos factos, “a executada mantém o portão que dá acesso à Herdade ..., a partir do ..., aberto ou em condições de poder ser aberto e usado por aqueles que desejem passar, ali colocando um letreiro com os dizeres: “Atenção este portão está aberto”.

Podendo acrescentar-se – embora não seja sequer contestado pelos exequentes – que “abrir” e manter “aberto” um portão não significa manter “escancarado” o portão, uma vez que, se assim fosse, o que se devia ter determinado (na sentença) era que o portão devia ser retirado, o que não foi feito (e que por certo violaria o direito de tapagem do proprietário constante do art. 1356.º do C. Civil), ou seja, “abrir” e manter “aberto” um portão é não o ter fechado à chave e/ou com um cadeado e foi/é exatamente isto que a executada fez, assim cumprindo a única “condenação” (com o sentido que lhe é conferido pelo art. 703.º/1/a) do CPC) que a sentença “dada” à execução lhe impôs.

Em conclusão final:

Concorda-se com o acórdão recorrido.

Quanto a ter sido cumprida a obrigação de abrir e manter aberto o portão, totalmente, quer no desfecho, quer na fundamentação seguida no acórdão recorrido.

Quanto ao restante – incumprimento da obrigação de reposição do caminho/servidão e desrespeito (mudança) do leito da servidão por parte da executada – totalmente quanto ao desfecho e parcialmente quanto à fundamentação, uma vez que, ao contrário do referido no acórdão recorrido, não está sequer sob apreciação saber se a vedação colocada pela executada respeita o traçado da servidão e/ou saber se tal vedação impede ou dificulta o uso da servidão[7], uma vez que, como se explicou, os exequentes não têm título executivo para exigir o cumprimento das obrigações em que seriam firmáveis tais “pretensas” violações[8].

*

IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista.

Custas pelos exequentes/recorrentes.

*

Lisboa, 22/02/2022

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Paula Boularot

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Cfr., v. g., Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, pág. 53 a 57, principalmente, pág. 55 e nota 132, a propósito da doutrina e jurisprudência em tal sentido.

[2] Assim como não inclui as sentenças proferidas em ações constitutivas, sem prejuízo de tais sentenças poderem encerrar segmentos condenatórios, hipótese em que estes concretos segmentos serão suscetíveis de execução (como é o caso da sentença condenar num efeito restitutório decorrente da anulação ou resolução de um contrato).
[3] O que faz – não tendo havido pedido – com que a sentença declarativa proferida não haja formado qualquer caso julgado material sobre o tema em questão.

[4] E, já agora, a obrigação de repor o caminho também não seria, ao contrário do que os exequentes raciocinam, uma obrigação/prestação de facto negativo.

[5] Não raras vezes vê-se, em casos semelhantes, uma planta, junta aos autos, que desenha o caminho/servidão, planta para onde remetem os factos da sentença e a própria decisão, tendo em vista afastar dúvidas sobre o que fica decidido quanto ao exato local por onde passa o caminho/servidão.

[6] É justamente por isto – para evitar que o dono do prédio serviente tenha a veleidade de se pôr a tergiversar sobre o modo de cumprir a sua obrigação e para evitar que opere, unilateral e encapotadamente, mudanças de servidão – que, nas ações confessórias de servidão (como é o caso da ação cuja sentença é “dada” à execução), há que ter todo o cuidado na definição/concretização do caminho de servidão ou, doutro modo, o mais certo é as partes terem que voltar à discussão declarativa para definir o que não ficou bem definido e “certo”.
[7] Não dizemos o mesmo em relação ao “pretenso” incumprimento da obrigação de reposição do caminho, uma vez que aqui o acórdão recorrido concluiu, claramente, que “o título executivo não impõe tal obrigação”.

[8] Não estamos a dizer que não tenham razão – nem que não tenham razão – mas sim e apenas que não podem vir diretamente para a execução.