Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
435/11.3TBVPA.G1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
INSCRIÇÃO MATRICIAL
FORÇA PROBATÓRIA
POSSE
USUCAPIÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O perfil da ação de reivindicação afere-se pela causa petendi que, em ações desta natureza, decorre do facto jurídico de que deriva o direito real, facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do demandante, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, e pelas pretensões jurídicas deduzidas, quais sejam, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa por outro.

II. Pese embora a teoria da substanciação consagrada no direito adjetivo civil, não sofre reservas que a causa de pedir nas ações de reivindicação pode confinar-se ao facto base da presunção legal, donde, ao titular do registo, porque beneficiário de uma presunção, apenas basta invocá-la, sendo desnecessária a prova do facto presumido.

III. O nosso ordenamento jurídico, no âmbito dos direitos reais de gozo, assenta, sobretudo, na posse e na usucapião, não no registo predial nem na matriz das finanças, embora se presuma a existência do direito real registado, como pertencente ao titular inscrito, não importando afirmar ali, a existência de um prédio se esse prédio não tiver uma existência real e concreta.

IV. Os elementos identificadores do prédio constantes do registo são da responsabilidade de quem os presta, não se encontrando abrangidos pela força da presunção legal de propriedade que dele emana, a favor do titular inscrito no registo definitivo, sendo que as inscrições matriciais têm uma finalidade fiscal, não tendo virtualidade para atribuir o direito de propriedade sobre os respetivos prédios, com as características enunciadas.

V. A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objetivos e subjetivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] (artºs. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e seguintes todos do Código Civil).

VI. Na prescrição aquisitiva, o possuidor atual pode juntar à sua, a posse do seu antecessor (art.º 1256º do Código Civil) e mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (art.º 1257º do Código Civil).

VII. O ónus da prova respeita aos factos da causa distribuindo-se entre as partes, cabendo ao autor a prova dos momentos constitutivos do facto jurídico (simples ou complexo) que representa a causa desse direito, sendo que o réu não carece de provar que tais factos não são verdadeiros, competindo-lhe, isso sim, a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do autor, traduzindo-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantagens de se ter líquido o facto contrário, quando não logrou realizar essa prova, ou sofrer as consequências, se os autos não tiverem prova bastante desse facto.

Decisão Texto Integral:

   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

1. A Herança de EE, representada pelo cabeça-de-casal, CC, intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo que os Réus sejam condenados: A) Na entrega à Autora da casa de habitação inscrita na matriz urbana da freguesia de ….., como artigo ……, do concelho de …., livre e devoluta de pessoas e bens; B) No pagamento à Autora do valor de €7.000 (sete mil euros), a título de ressarcimento pelo dano não patrimonial, e €2.000 (dois mil euros), a título de ressarcimento pelo dano patrimonial, valores acrescidos dos respetivos juros a contar da citação e até efetivo e integral pagamento; C) Reconhecer a Autora como única e exclusiva proprietária do imóvel; D) No pagamento de sanção pecuniária compulsória de €100 (cem euros) por cada dia de atraso na entrega da habitação.

Articulou, com utilidade, que a autora da herança deixou como únicos e universais herdeiros o viúvo, cabeça-de-casal, CC, e os filhos FF e DD.

Acrescentou que a autora da herança era dona e legítima possuidora do prédio identificado na petição inicial (composto de casa de habitação com a superfície coberta de 241,28 m2, e de quintal com 277,20 m2 de área, a confrontar de norte e nascente com caminho, sul e poente com proprietário), que adquiriu por sucessão e doação, além de ter exercido sobre o mesmo prédio todos os atos de posse, como proprietária, assim como o fizeram os seus ante possuidores.

Mais alegou que os Réus ocuparam a habitação no decurso do inventário que correu termos por morte de GG e HH, autorizados pelo então cabeça-de-casal, pai do Réu marido, facto que nunca foi aceite pelos demais herdeiros, sendo que o imóvel não acabou adjudicado ao pai do Réu marido.

Finalmente, alegaram existir vários episódios de insultos e ameaças, retirada de bens dos herdeiros dos locais onde os armazenam, computando danos não patrimoniais e patrimoniais.

2. Os Réus contestaram por exceção, invocando a ilegitimidade ativa por a ação não ter sido intentada por todos os herdeiros, impugnando os factos alegados, outrossim, deduziram reconvenção, na qual peticionam: A) - Serem os Reconvintes declarados donos e legítimos proprietários da casa de habitação, com a superfície coberta de cerca de 114 metros quadrados, adega contígua com cerca de 36 metros quadrados, e logradouro exterior, com cerca de cem metros quadrados, sendo a casa de habitação com altos e baixos, com duas divisões ou cortes na parte inferior, e na parte superior com cozinha, sala de jantar, três quartos, uma casa de banho e, ao fundo, a sul, mais dois compartimentos, sita em …., freguesia de …., concelho de …, a qual confronta a norte com caminho, a nascente com EE, a sul e a poente com II; B) - Serem os Reconvintes declarados donos e legítimos comproprietários, na proporção de metade indivisa, do quinteiro ou pátio interior comum, com cerca de cinquenta metros quadrados, que confronta a norte com caminho, a nascente e sul com EE e poente com BB, sito em …, freguesia de …., concelho de ….

3. Em réplica, a Autora respondeu à exceção de ilegitimidade e defendeu-se por impugnação relativamente à reconvenção.

4. Foi admitida a intervenção principal provocada de FF e DD.

5. Na sequência de incidente deduzido, considerou-se provada a cessão do direito de propriedade sobre o imóvel objeto do pedido deduzido na petição inicial “que deixou de pertencer aos primitivos autores/chamados na qualidade de herdeiros de EE para passar a pertencer a CC e DD, por direito próprio, na proporção de metade”, e decidiu-se declará-los “habilitados a substituir o chamado FF na qualidade de herdeiro da referida herança, e deixando eles próprios de intervir na qualidade de herdeiros, mas por si e por direito próprio”.

6. Foi proferido despacho-saneador onde foi selecionada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória.

7. Calendarizada e realizada a audiência final, foi proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou: “Face ao exposto, nos termos das disposições legais citadas, julgo a presente ação parcialmente procedente e totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência: a) declaro que os Autores CC E DD são proprietários, na proporção de metade, do prédio urbano id. em 5, e condeno os Réus AA E BB a reconhecer o aludido direito; b) absolvo os Réus do mais peticionado contra si e os Autores do pedido reconvencional”.

8. Inconformados com o decidido, os Autores/CC e DD interpuseram apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi enunciado: “Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando-se parcialmente a sentença, decide-se: a) Declarar que os Autores CC e DD são proprietários, cada um na proporção de metade, do prédio urbano identificado em 5, o qual integra também a parte ocupada pelos Réus identificada em 26 e 36 a 48, e condenar os Réus AA e BB a reconhecer o aludido direito; b) Condenar os Réus a entregar aos Autores a parte do prédio que ocupam, descrita em 26 e 36 a 48, livre e devoluta de pessoas e bens; c) Manter em tudo o mais a sentença.”

9. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação …., que os Réus/AA e BB se insurgem, formulando as seguintes conclusões:

“1 - O presente recurso é interposto do Acórdão do Tribunal da Relação …, de 12/11/2020, que decidiu alterar a decisão proferida pela 1ª Instância e “declarar que os Autores (…) são proprietários, cada um na proporção de metade, do prédio urbano identificado em 5, o qual integra também a parte ocupada pelos Réus”, condenando, igualmente, “os Réus a entregar a parte do prédio que ocupam (…) livre e devoluta de pessoas e bens”.

2 - Vêm os ora Recorrentes interpor recurso do acórdão, com fundamento na alínea a) do nº 1 do artigo 674º do CPC, porquanto entendem que existe uma clara violação da lei substantiva, nomeadamente no erro de interpretação e de aplicação das normas.

3 - No presente recurso suscitam-se diversas questões jurídicas, nomeadamente quanto ao objeto da reivindicação, à inexistência do direito de propriedade e ao animus possidendi e o corpus possidendi.

4 - O próprio acórdão, nomeadamente, por remissão à prova pericial, refere que o prédio, que outrora havia sido uno, era “susceptível de divisão (como já se encontra), permitindo a instituição de duas frações”, sendo certo que, na realidade, a fração onde os ora recorrentes habitam foi autonomizada e individualizada, relativamente ao prédio dos autores.

5 - Em conformidade com o disposto nos artigos 342º, 1311º e seguintes do CC, compete aos autores, que alegam o direito de propriedade sobre um bem, a prova do seu direito e que o mesmo está a ser esbulhado, estando sujeito a um regime próprio.

6 - Entendem os ora recorrentes que dos autos não resultou qualquer prova que sustentasse o direito de propriedade dos autores sobre a habitação onde residem os réus, sendo que nunca poderia o Tribunal da Relação ter feito valer o direito de reivindicação dos autores, existindo um erro na aplicação da lei substantiva, nomeadamente dos artigos 1311º e seguintes do CC.

7 - O mecanismo do artigo 1311º do CC não pode operar, por não se ter provado qualquer posse ou propriedade por parte dos autores há mais de 20, 30 ou mais anos, tendo os réus assumido a posse da referida habitação, que foi individualizada e autonomizada, pois é e sempre foi suscetível de divisão, como resulta inequívoco dos autos.

8 - Acresce que, mesmo que se provasse que as casas, que são autónomas entre si, partilhassem a mesma estrutura, tal não significaria que as mesmas fossem ambas da propriedade dos autores e que não pudessem ser autonomizadas e individualizadas, como ocorreu e se deu por provado, tendo os réus assumido a posse e propriedade da referida habitação, nos termos dos artigos 1251º e 1302º do CC.

9 - O que se provou foi que, efetivamente, os réus, ora recorrentes, ocuparam a casa em questão, e que o fazem já há mais de trinta anos, de forma contínua e pacífica, à vista de todos e sem oposição, tendo esta habitação constituído uma casa de habitação independente da dos autores.

10 - Não se provou que os autores tivessem a posse ou a propriedade da casa de habitação onde os réus residem, não podendo operar o mecanismo da ação de reivindicação por não preencherem os requisitos da mesma: não resulta dos autos que os autores possuam ou detenham sobre aquele prédio qualquer direito de propriedade ou outro direito real de gozo, violando assim o acórdão o artigo 1311º do CC.

11 - Não podia o Tribunal da Relação … reconhecer ou declarar a existência do direito de propriedade dos autores sobre aquela habitação onde residem os réus, pois, meramente, resulta dos autos que os prédios, outrora, foram unos, sendo passíveis de serem individualizados, como aconteceu e se provou.

12 - Nada resulta dos autos que provasse qualquer posse (não se verificou nem se demonstrou o corpus ou o animus por parte dos autores, outrossim, por parte dos réus), nem se aferiu da propriedade da referida casa, quer fosse por prova documental ou por prova testemunhal ou pericial.

13 - Apenas se provou que as casas com uma estrutura comum, como é o uma parede, podem ser divididas e autonomizadas, como ocorreu, sendo que para os autores, na sua opinião, bastaria a prova de que as habitações teriam estruturas comum para provar a propriedade de ambas as casas, o que não é verdade, nem o Tribunal da Relação poderia ter decidido nesse sentido.

14 - Para isso, basta verificar, por exemplo, a estrutura das casas geminadas, assim como das casas senhoriais ou casas de famílias mais abastadas, em que antigamente até se partilhavam portas de acesso entre as mesmas, mas que, ao longo dos anos, se autonomizaram e tornaram independentes, o mesmo ocorrendo com os edifícios constituídos em propriedade horizontal.

15 - Não se alcança como pode o Tribunal da Relação ter chegado à conclusão sobre a propriedade dos autores sobre a habitação dos réus, para que com essa conclusão fizesse operar o mecanismo da reivindicação.

16 - Não podem os ora recorrentes aceitar que, sem que se tivesse provado a propriedade ou posse dos autores sobre a sua habitação, o Tribunal da Relação condenasse os réus a entregar a sua casa aos autores livre e devoluta de pessoas e bens.

17 - A ocupação da casa de habitação por parte dos réus, ora recorrentes, já ocorreu há mais de quarenta anos, sendo certo que só em 2011, com esta ação judicial, é que os autores se insurgiram contra esse ato, quando já tinham passado mais de trinta anos, tendo os réus a posse da referida habitação, comprovando-se pelo animus e pelo corpus, sem que qualquer outra prova em contrário resultasse dos autos.

18 - Da prova pericial, documental e testemunhal não se extraem nenhuns factos que levem a concluir sobre o direito de propriedade dos autores, nos termos do artigo 1302º e seguintes do CC, ou de que aqueles detivessem a posse da referida habitação dos réus, nos termos do artigo 1251º e seguintes do CC, nomeadamente que as casas partilhem paredes ou fundações de uma só propriedade.

19 - Como refere o Tribunal de 1ª Instância, “não obstante a eficácia probatória plena da certidão de registo predial não abranger, como sabemos, as áreas, limites e confrontações dos prédios objeto de registo, o que permitiria ao Tribunal concluir que, apesar do que está descrito e inscrito, a casa de habitação dos Réus integra o prédio identificado em 5., nenhum elemento probatório permite ao Tribunal concluir que essa construção, ocupada pelos Réus, é parte integrante daquele prédio, sendo que, se assim fosse, e tal como resulta claro do relatório pericial e fotografia aérea de fls. 580, a área coberta do prédio seria muito superior à descrita e inscrita.”

20 - Como fundamenta o Tribunal de 1ª Instância, que “as duas referidas testemunhas dos Autores, assim como as testemunhas JJ e LL, descreveram circunstanciada e consistentemente o prédio referido em 5. e reportaram-se à ocupação pelos Réus, da zona onde hoje têm a sua casa de habitação, a partir de meados dos anos oitenta”, sendo que “resultou igualmente claro que os Réus passaram, em data que não logramos apurar, mas situada nos anos 80, a ocupar a casa de habitação onde ainda se encontram, contígua à habitação desde sempre utilizada pelos antecessores e sucessores de EE e pela própria.” Contudo, “o que não resultou apurado, com a certeza e segurança que se impunha, foi que esse espaço integrasse, como alegavam os Autores, o prédio identificado em 5., descrito a favor dos Autores, inscrito sob o artigo … na matriz”, sendo que o Tribunal da Relação … não poderia ter decidido no sentido da tese dos autores, pois tal prova não resultou dos autos, estando em clara violação da aplicação da lei substantiva.

21 - A partilha de estruturas não prova a unidade das casas, não trazendo prova efetiva da posse ou da propriedade dos autores sobre a casa de habitação onde residem os réus, pelo que nunca poderia o Tribunal da Relação ter ordenado a entrega da mesma pelos autores.

22 - Acresce que a teoria dos autores não tem suporte probatório, sendo de salientar a correta posição do Tribunal de 1ª Instância, que refere que “a utilização reportada pelas testemunhas dos Autores, como tendo sido feita pela referida EE, após tal prédio lhe ter sido adjudicado, e pelos respetivos sucessores, como proprietários, não abrange a área ocupada pelos Réus, relativamente à qual, apesar da comunicabilidade das “casas” não foi, objetivamente, descrita uma utilização conjunta e indistinta de todo o espaço, protraída no tempo”.

23 - Competia aos autores, ora recorridos, o ónus da prova dos factos que invocaram a seu favor, tendo contra si o risco de não serem adquiridos no processo os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, provassem a sua tese, tal como ocorreu.

24 - Ficaram, assim, os autores sujeitos à improcedência da sua pretensão por insuficiência da aquisição processual dos factos fundamentadores da situação jurídica invocada, ou seja, da propriedade ou posse da casa de habitação dos réus e da configuração do prédio da sua propriedade.

25 - Assim, eram os autores que necessariamente tinham de fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil.

26 - Os autores não possuem, nem provaram, a existência de factos materiais (corpus) que consubstanciassem o direito de propriedade que invocaram, assim como não demonstraram perante o Tribunal de 1ª Instância, local onde a prova se produz, o animus possidendi, ou seja, não manifestaram a intenção de exercer o seu alegado direito real como se fossem seus titulares, não detendo a posse da casa de habitação dos réus, naufragando a aquisição do direito de propriedade, não sendo subsumível o direito dos autores aos artigos 1251º e 1302º do CC.

27 - Assim, os recorridos não produziram qualquer prova que atestasse a sua propriedade e da configuração do prédio de cada uma das partes, tal como peticionaram, sendo que não resulta que da aquisição, que alegam possuir, por sucessão e doação, não possa, a posteriori, ter sido a parte habitada pelos réus sido autonomizada e o prédio dividido, tendo os mesmo perdido a posse e, em consequência, a propriedade da parte ora em discussão.

28 - Importa salientar que, academicamente, mesmo que a casa de habitação dos réus tivesse integrado um prédio de maior dimensão, onde estivesse inserido o prédio dos autores, o que não resultou provado dos autos, tal não significaria que a mesma não pudesse, com o passar dos anos, por vinte ou mais anos, com o uso e fruição, ter sido autonomizada e não se tivesse constituído em prédio autónomo, por divisão de facto e de direito do prédio original.

29 - Como enuncia o Tribunal de 1ª instância, “não se provou que os atos de posse protraídos no tempo, com as características objetivas e subjetivas assinaladas nos factos provados, e o registo predial da aquisição a favor dos Autores, incluíssem a parte habitada pelos Réus, que constitui, fundamentalmente, a sua casa de habitação, referida em 25., melhor descrita em 37. a 48.”

30 - Pelo exposto, e tendo em conta o supra vertido, o Tribunal da Relação …. violou a lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação ao caso concreto, nomeadamente dos artigos 342º, 1251º e seguintes, 1302º e seguintes, 1311º e seguintes, todos do Código Civil, pelo que deve manter-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, devendo ser alterada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação …..

Termos em que, e nos melhores de direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso apresentado ser julgado procedente, mantendo-se a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância,

Assim se fazendo Correta e Sã Justiça.”

10. Os Recorridos/Autores/CC e DD apresentaram contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“1 - O Douto Acórdão Recorrido encontra-se impecável e devidamente fundamentado, de facto, e de Direito.

2 - A Douta Sentença de primeira instância continha lapsos e contradições, que urgia corrigir – como bem fez o Venerando Tribunal da Relação …...

3 - A prova produzida impunha a alteração da resposta à matéria de facto Doutamente ordenada no Douto Acórdão Recorrido, e

4 - Face à mesma, e em coerência, tinha de ser alterada a Decisão final, nos termos ordenados.

5 - Na verdade, os Recorrentes mais não pretendem que obter uma reapreciação da matéria de facto, o que lhes está vedado, nos termos do disposto no artigo 674.º do C. P. C.

6 - É evidente que tratamos apenas de um imóvel, e não dois, como defendem os Réus.

7 - Os Autores, aqui Recorridos, documentam a aquisição derivada do direito de propriedade, de forma autêntica, bem como o tracto sucessivo, retroagindo há mais de setenta anos atrás, o que se encontra previsto, em pontos provados de 5 a 11, pelo que, Nada há a opor ao Douto Acórdão Recorrido, que deverá manter-se integralmente, além de que o mesmo constitui uma lúcida vitória sobre a ostensiva soberba dos Réus, E assim, se fazendo a tão desejada JUSTIÇA!”

11. Foram dispensados os vistos.

12. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pelos Réus/AA e BB, consiste em saber se:

(1) Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, importando que a questão seja diversamente sentenciada, na medida em que, contrariamente ao decidido, dos autos não resultou qualquer prova que sustentasse o direito de propriedade dos demandantes sobre a habitação onde residem os demandados, sendo que àqueles incumbia o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado, donde, nunca poderia ser reconhecido o arrogado direito de reivindicação dos Autores?


II. 2. Da Matéria de Facto

Factos Provados:

“1. EE faleceu em .., …, no estado civil de casada.

2. CC e EE contraíram casamento em 2 de outubro de 1982, em …..

3. São únicos herdeiros da referida EE, CC e os dois filhos, FF e DD.

4. CC era cabeça de casal da herança aberta por morte da mulher EE.

5. Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de …., freguesia de …., com o nº …., o prédio urbano sito em …., inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo …., composto de casa de habitação e descrito como confrontando a norte, sul e nascente com caminho público e poente com bens do casal.

6. Através da apresentação 92, 7.8.2012, mostra-se registada a aquisição de ½ a favor de CC, viúvo, e através da apresentação 1105, de 7.8.2012, mostra-se registada a aquisição de ½ a favor de DD, ambas as aquisições por sucessão hereditária e partilha, tendo como sujeito passivo EE.

7. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, concelho de …, o prédio referido em 5.

8. No âmbito do processo de inventário nº 76/…., que correu termos no Tribunal de …., por óbito de GG e HH, foi adjudicada à falecida identificada em 1. a verba nº …., depois de retificada, como “três quartas partes indivisas, de uma casa de habitação e quintal, em …, que confronta a nascente, norte e sul com caminho e de poente com bens do casal, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz respetiva sob o artigo …18, com o valor matricial correspondente àquela fração de trinta e seis mil e sessenta e quatro escudos”.

9. Por escritura pública de partilha por óbito de EE, extraída do livro de notas para escrituras diversas nº …, do notário MM, do Cartório Notarial de ….., consta que no dia 11 de dezembro de 1964, HH e esposa GG adquiriram, relativamente à verba nº …, “uma quarta parte de uma casa de habitação em ….”, que confronta na sua totalidade do nascente, norte e sul com caminho público e poente com bens do casal de EE, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …. sob o artigo …..18

10. O acesso ao quinteiro é único e faz-se por uma porta carral, a partir do caminho que passa a norte.

11. Por escritura pública de “doação”, outorgada em 10.3.1989, NN declarou doar a EE, que aceitou, ¼ indiviso de um prédio urbano que se compõe de casa para habitação, com a área coberta de 241,28 m2 e descoberta de 277,20 m2, sito no lugar de ….., freguesia de …., concelho de ….., descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha …, de 27.2.1989, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ….18

12. O prédio referido em 5. tem, aproximadamente, superfície coberta de 241,28 m2 e quintal de 277,20 m2.

13. É composto por casa de habitação e quintal.

14. A casa de habitação referida em 13. tem cerca de vinte metros de comprimento, na sua parte frontal, ao correr do referido caminho a nascente, cerca de oito metros de largura, na parte lateral direita (estando-se de frente para ela, no caminho) e cerca de dezoito metros de largura, a sul, na parte lateral esquerda (do lado onde existe uma garagem, que faz parte do prédio referido em 5.), tudo numa superfície de cerca de 280 metros quadrados, excluindo o quinteiro e a zona ocupada pelos Réus referida em 26.

15. E o quintal situa-se na parte frontal e lateral esquerda da casa de habitação, para nascente e sul, acompanhando o caminho público, e tem cerca de 30 metros de comprimento, entre o tanque e uma oliveira colocada na esquina a sul, junto ao caminho, por cerca de 10 metros de largura média, com a área aproximada de 300 metros quadrados.

16. A Autora e ante possuidores, há mais de setenta anos, que no prédio referido em 5. cultivam e colhem frutos do quintal, como couves, feijão, batatas, laranjas e milho.

17. E limpava o dito quintal.

18. Habitava a casa e suas dependências.

19. Reparava e mantinha a habitação.

20. Limpava e reparava o telhado, paredes e portas.

21. O que fazia à vista e todos e sem interrupção.

22. Após a data referida em 8., foi a Autora quem passou a pagar a contribuição autárquica do prédio referido em 5..

23. Foi a Autora quem reparou o telhado.

24. É a Autora que utiliza os quinteiros interiores da casa, para passagem e depósito de lenhas, estrumes, produtos agrícolas, carros e utensílios agrícolas.

25. Utiliza as lojas na parte baixa da habitação para depósito de lenhas, estrumes, utensílios agrícolas e animais.

26. No decurso do processo de inventário referido em 8., o cabeça-de-casal, pai do Réu marido, autorizou a permanência dos Réus, a título temporário, numa zona da mesma casa adjacente à referida em 14., partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede-mestra, a sul.

27. O cabeça de casal ponderava a possibilidade de o prédio lhe vir a ser adjudicado e os demais herdeiros concordaram com a permanência dos Réus até ao termo do inventário.

28. Após o termo do inventário, os Réus, contra a vontade da Autora, não saíram da habitação.

29. Verifica-se uma descontinuidade do telhado na interseção da parte ocupada pelos Autores com a ocupada pelos Réus; o edifício referido em 5. partilha da mesma estrutura e fundações, paredes mestras, interiores e exteriores, e partilha  da mesma estrutura, designadamente a mesma parede mestra, a sul, da parte ocupada pelos Réus.

30. A casa referida em 14. e a parte contígua, referida em 26., eram suscetíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas, antes de os Réus procederem ao fecho de portas de ligação.

31. Existe entre as duas zonas (a casa de habitação referida em 14. e a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.), um só quinteiro ou pátio, que confronta a norte com caminho, sul e nascente com a parte ocupada pelos Autores e a poente com a parte ocupada pelos Réus.

32. Os Réus não permitem que a Autora utilize a zona referida em 26..

33. Os Réus, em data não concretamente apurada, mandaram fazer uma armação nova para o telhado da construção referida em 26., por si ocupada, consertaram a armação e o telhado da adega.

34. A partir de data não concretamente apurada, mas situada no decurso dos anos 80, os Réus passaram a habitar na construção referida em 26., onde foram criados os filhos dos Réus OO, PP e QQ, aí dormindo, guardando os pertences, recebendo os amigos, fazendo as refeições, cuidando dessa parte da casa e da adega.

35. Fazendo-o à vista de toda a gente e sem interrupção temporal.

36. Em data não concretamente apurada, os Réus fizeram obras nessa construção, colocando soalho novo, na sala e nos quartos, instalaram rede elétrica, de água e saneamento, construíram casa de banho completa, com fossa sética no exterior, rebocaram as paredes e efetuaram pinturas, e substituíram, mais recentemente, o piso da varanda virada a sul por laje aligeirada de vigotas, abobadilha e argamassa de cimento e areia.

37. Sobre a laje referida em 36. edificaram paredes exteriores com tijolos de 11cms, em que deixaram duas janelas para sul, e uma parede interior, com tijolo de 7cms, com porta, assim obtendo dois compartimentos.

38. A parte ocupada pelos Réus tem quartos de dormir, tem uma pequena cozinha, medindo a casa cerca de 18,5 metros de comprimento por cerca de 6 metros e vinte de largura, pelo que tem de superfície coberta cerca de 114 metros quadrados.

39. Tem uma entrada própria e independente, virada a norte, com escadas exteriores de pedra; e, ainda, um logradouro exterior, com cerca de 100 metros quadrados, onde os mesmos circulam a pé e depositam lenha e outros pertences.

40. E contiguamente uma adega com cerca de 36 metros quadrados, construída com pedra e blocos de cimento, encimada por uma armação de madeira e telhado, onde os Réus colocaram luz elétrica.

41. A parte ocupada pelos Réus tem janelas e portas autónomas viradas para a casa de habitação referida em 14., existindo entre as duas zonas uma abertura, atualmente tapada, no corredor sul da casa, ao nível do rés-do-chão.

42. Existem quatro divisões ou cortes na parte inferior.

43. Uma com acesso a sul, junto à casa do forno, perto do local onde os Réus possuem galinheiros.

44. Outra com acesso direto ao quinteiro ou pátio comum, através de porta de madeira.

45. E na sala tem um alçapão de acesso a essa corte.

46. Tem ao nível do primeiro andar uma pequena cozinha, cuja porta também dá para o quinteiro ou pátio, através de escadas em pedra.

47. Tem uma sala de jantar, três quartos, uma casa de banho e, ao fundo, a sul, onde outrora havia uma varanda, mais dois compartimentos ainda inacabados, com placa e paredes exteriores e interiores de tijolo.

48. Pelo lado exterior, tem a porta principal e as escadas de acesso à sala de jantar viradas a norte, três portas com varandim e uma janela, viradas a poente e, na parte virada a nascente, para o lado do quinteiro, tem a porta da cozinha, a porta dos baixos ou cortes, uma pequena varanda (que liga a sala de jantar à cozinha) e duas janelas, e tem uma porta da cozinha e uma da corte viradas para o quinteiro referido em 31.

49. Existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e aqueles não aceitam a permanência destes.

50. As obras efectuadas na habitação foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam.”.

Factos não provados:

“a. O prédio id. em 5. não é suscetível de divisão.

b. Para aceder ao interior da habitação referida em 14. e à zona ocupada pelos Réus são partilhadas as mesmas entradas.

c. Os Réus mexem nos pertences da Autora e retiram-nos das lojas situadas na parte inferior da habitação.

d. O que causa aos Autores nervosismo e ansiedade, impedindo-os de descansar e relaxar.

e. Causando-lhes receio de serem agredidos e injuriados.

f. Ao lado da casa de habitação referida em 14., para poente, os avós paternos do Réu construíram outra casa, designadamente a parte ocupada pelos Réus, referida em 26. com alicerces, paredes exteriores e interiores, armação e telhado autónomos e independentes face à casa de habitação referida em 14..

g. Sem aberturas internas que estabeleçam a ligação com a casa referida em 14..

h. O prédio referido em 5. confronta a nascente e sul com a proprietária do terreno adjacente ao quintal, que era de EE.

i. E a poente a confrontação é com o Réu BB.

j. Os Réus guardam milho, lenha, tonel e outros pertences na parte inferior referida em 42., por aí circulando livremente as galinhas, guardam na adega garrafões de vinho, ferramentas agrícolas.

k. Pelo referido em 32. os Réus pagaram seiscentos contos.

l. Para o quinteiro referido em 31. entravam outrora carros de bois para transportar estrumes para as cortes dos animais e por onde saíam com os estrumes já curtidos para os campos agrícolas.

m. Os Réus utilizavam a corte para guardar as talhas das azeitonas, os presuntos, lenhas e outros produtos.

n. A partir da rua ou caminho, os Réus entravam e saíam do quinteiro através da porta carral, que se encontrava franqueada, que se fechava apenas com um facho acessível aos Réus e seus filhos, fechando-o em qualquer ocasião, sem dificuldade.

o. Os Réus atuavam conforme descrito em 34. e 35. sem oposição de ninguém e na convicção de serem proprietários da casa de habitação referida em 5. e 14., adega e logradouro.”.


II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes/Réus/AA e BB, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.


II. 3.1. Considerada a facticidade adquirida processualmente, o Tribunal a quo fez errada subsunção jurídica da mesma, importando que a questão seja diversamente sentenciada, na medida em que, contrariamente ao decidido, dos autos não resultou qualquer prova que sustentasse o direito de propriedade dos demandantes sobre a habitação onde residem os demandados, sendo que àqueles incumbia o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado, donde, nunca poderia ser reconhecido o arrogado direito de reivindicação dos Autores? (1)

Da exegese seguida no acórdão recorrido colhemos, inequivocamente, estarmos perante uma ação de reivindicação, sendo esta pacificamente aceite enquanto corolário da faculdade ou direito de sequela dos direitos reais, maxime do direito de propriedade.

O perfil da ação de reivindicação afere-se, por um lado, pela causa petendi que, em ações desta natureza, decorre do facto jurídico de que deriva o direito real, facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do demandante, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, e, por outro lado, pelas pretensões jurídicas deduzidas, quais sejam, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa por outro, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, volume III, página 100.

Anota-se, todavia, que entre o pedido primário reclamado pelo (proprietário) demandante, ou seja, o reconhecimento - pronunciatio - do seu direito de propriedade e a consequência lógica que será a restituição - condemnatio - do que lhe pertence, poder-se-á verificar uma rutura a qual ocorrerá se o demandado ocupar o prédio com título que a legitime.

Em principio, a restituição da coisa, sendo consequência direta do reconhecimento do direito de propriedade, excetuar-se-á se o poder de gozo do proprietário estiver suspenso ou modificado pela constituição de um direito real ou obrigacional de outrem, caso em que se deve respeitar tal situação jurídica só devendo ordenar-se a restituição, se e enquanto não colidir com ela, consubstanciando a invocação dos respetivos factos uma verdadeira exceção perentória, nos termos da lei civil adjetiva, neste sentido, entre outros, Castro Mendes, in, Acção Executiva, página 407.

Sem prejuízo do funcionamento das regras próprias do registo predial, mais concretamente da presunção de propriedade a favor do beneficiário do direito registado, a prova da propriedade não se basta pela demonstração da aquisição derivada da coisa, devendo aquele que reivindica provar uma forma de aquisição originária, como sejam a ocupação, a acessão ou a usucapião.

Pese embora a teoria da substanciação consagrada no direito adjetivo civil, não sofre reservas que a causa de pedir nas ações de reivindicação pode confinar-se ao facto base da presunção legal, donde, ao titular do registo, porque beneficiário de uma presunção, apenas basta invocá-la, sendo desnecessária a prova do facto presumido.

Ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, o art.º 7º do Código do Registo Predial quer significar que se trata de uma presunção juris tantum, elidível por prova em contrário de que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância (a que o registo define).

No caso que somos chamar a dirimir, a propriedade do prédio identificado no item 5. Dos Factos Provados está pacificamente aceite entre os intervenientes processuais, e reconhecido nas Instâncias, como sendo dos Autores/CC e DD, na medida em que está demonstrada a forma como EE adquiriu (por sucessão mortis causa e doação) a propriedade do aludido prédio e como se integrou no património dos demandantes, por sucessão hereditária.

Todavia, há que observar, com interesse para a economia da demanda, que o nosso ordenamento jurídico, no âmbito dos direitos reais de gozo, assenta, sobretudo, na posse e na usucapião, não no registo predial nem na matriz das finanças, embora se presuma a existência do direito real registado, como pertencente ao titular inscrito, não importando afirmar ali, a existência de um prédio se esse prédio não tiver uma existência real e concreta.

Os elementos identificadores do prédio constantes do registo são da responsabilidade de quem os presta, não se encontrando abrangidos pela força da presunção legal de propriedade que dele emana, a favor do titular inscrito no registo definitivo, sendo que as inscrições matriciais têm uma finalidade fiscal, não tendo virtualidade para atribuir o direito de propriedade sobre os respetivos prédios com as características enunciadas.

Ora, no caso trazido a Juízo, em razão da contestação apresentada, está em causa saber se o prédio reivindicado tem determinadas características, isto é, se a habitação que faz parte do mesmo - item 5. Dos Factos Provados - integra a zona ocupada pelos Réus/AA e BB.

Importa recentrar a nossa atenção no caso sub iudice onde distinguimos que os Autores/CC e DD alegaram e demonstraram factos que, em concreto, têm força suficiente para criar, a seu favor, e neles radicar, o domínio do prédio reivindicado, enquanto condição primeira que lhe permite exigir judicialmente dos Réus/AA e BB, uma zona da casa referida em 14. e 26 Dos Factos Provados, uma vez demonstrado o registo definitivo de propriedade sobre o prédio articulado, questionando-se, porém, se, não obstante a eficácia probatória plena da certidão de registo predial não abranger as áreas, limites e confrontações do prédio objeto de registo, é legitimo o reconhecimento de que a demonstrada zona da casa referida em 14. e 26 Dos Factos Provados, ocupada pelos Réus/AA e BB, não integra o prédio reivindicado, identificado em 5. Dos Factos Provados, e que, por isso, possa legitimar a respetiva ocupação, recusando-se, nessa medida, a respetiva restituição, uma vez que o poder de gozo dos demandantes, proprietários, poderá estar suspenso pela constituição de um direito dos Réus/AA e BB, caso em que se deve respeitar tal situação jurídica, não se ordenando a pedida restituição.

Tenhamos, desde já, em atenção que nos termos do art.º 342º do Código Civil cabe ao autor a prova dos factos constitutivos do seu direito, isto é, dos momentos constitutivos do facto jurídico (simples ou complexo) que representa o título ou causa desse direito. O réu não carece de provar que tais factos não são verdadeiros, o que lhe compete é a prova dos factos impeditivos ou extintivos do direito do autor, dos momentos constitutivos dos correspondentes títulos ou causas impeditivas ou extintivas, neste sentido, Manuel de Andrade, in, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 201.

O ónus da prova respeita aos factos da causa distribuindo-se entre as partes segundo aqueles critérios. Traduz-se para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantagens de se ter líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova, ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não tiverem prova bastante desse facto.

Aos Autores, caberá, não só alegar, mas também demonstrar - art.º 342º n.º 1 do Código Civil - os factos integradores de que são proprietários do prédio ajuizado e de que este tem determinadas características, concretamente, que a habitação que faz parte do mesmo integra a zona ocupada pelos Réus/AA e BB, uma vez que, como já adiantamos, os elementos identificadores do prédio constantes do registo são da exclusiva responsabilidade de quem os presta, no caso os Autores, não se encontrando abrangidos pela força da presunção legal de propriedade que dele emana, a favor do titular inscrito no registo definitivo.

No que ao caso sub iudice interessa, atendendo à formulada pretensão jurídica, anotamos que o direito substantivo civil estatui sobre o conteúdo do direito de propriedade - art.º 1305º do Código Civil - “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”, sobressaindo deste direito, a sua tendente plenitude, uma vez que a propriedade abrange todos os direitos sobre a coisa; e a sua elasticidade, já que o direito à partida vai alargar-se ao máximo de faculdades possíveis, consoante haja ou não outros direitos reais sobre determinada coisa.

Relembremos, a propósito, os factos adquiridos processualmente:

 “5. Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de …., freguesia de ….., com o nº ….., o prédio urbano sito em …., inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo ….18, composto de casa de habitação e descrito como confrontando a norte, sul e nascente com caminho público e poente com bens do casal.

6. Através da apresentação 92, 7.8.2012, mostra-se registada a aquisição de ½ a favor de CC, viúvo, e através da apresentação 1105, de 7.8.2012, mostra-se registada a aquisição de ½ a favor de DD, ambas as aquisições por sucessão hereditária e partilha, tendo como sujeito passivo EE.

7. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …., concelho de …., o prédio referido em 5.

8. No âmbito do processo de inventário nº 76/…., que correu termos no Tribunal de …., por óbito de GG e HH, foi adjudicada à falecida identificada em 1. a verba nº …, depois de retificada, como “três quartas partes indivisas, de uma casa de habitação e quintal, em …, que confronta a nascente, norte e sul com caminho e de poente com bens do casal, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz respetiva sob o artigo …., com o valor matricial correspondente àquela fração de trinta e seis mil e sessenta e quatro escudos”.

9. Por escritura pública de partilha por óbito de EE, extraída do livro de notas para escrituras diversas nº …., do notário MM, do Cartório Notarial de …, consta que no dia 11 de dezembro de 1964, HH e esposa GG adquiriram, relativamente à verba nº …., “uma quarta parte de uma casa de habitação em ….”, que confronta na sua totalidade do nascente, norte e sul com caminho público e poente com bens do casal de EE, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ….. sob o artigo …..18

10. O acesso ao quinteiro é único e faz-se por uma porta carral, a partir do caminho que passa a norte.

11. Por escritura pública de “doação”, outorgada em 10.3.1989, NN declarou doar a EE, que aceitou, ¼ indiviso de um prédio urbano que se compõe de casa para habitação, com a área coberta de 241,28 m2 e descoberta de 277,20 m2, sito no lugar de …., freguesia de ……, concelho de …., descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob a ficha …., de 27.2.1989, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …..18

12. O prédio referido em 5. tem, aproximadamente, superfície coberta de 241,28 m2 e quintal de 277,20 m2.

13. É composto por casa de habitação e quintal.

14. A casa de habitação referida em 13. tem cerca de vinte metros de comprimento, na sua parte frontal, ao correr do referido caminho a nascente, cerca de oito metros de largura, na parte lateral direita (estando-se de frente para ela, no caminho) e cerca de dezoito metros de largura, a sul, na parte lateral esquerda (do lado onde existe uma garagem, que faz parte do prédio referido em 5.), tudo numa superfície de cerca de 280 metros quadrados, excluindo o quinteiro e a zona ocupada pelos Réus referida em 26.

15. E o quintal situa-se na parte frontal e lateral esquerda da casa de habitação, para nascente e sul, acompanhando o caminho público, e tem cerca de 30 metros de comprimento, entre o tanque e uma oliveira colocada na esquina a sul, junto ao caminho, por cerca de 10 metros de largura média, com a área aproximada de 300 metros quadrados.

16. A Autora e ante possuidores, há mais de setenta anos, que no prédio referido em 5. cultivam e colhem frutos do quintal, como couves, feijão, batatas, laranjas e milho.

17. E limpava o dito quintal.

18. Habitava a casa e suas dependências.

19. Reparava e mantinha a habitação.

20. Limpava e reparava o telhado, paredes e portas.

21. O que fazia à vista e todos e sem interrupção.

22. Após a data referida em 8., foi a Autora quem passou a pagar a contribuição autárquica do prédio referido em 5..

23. Foi a Autora quem reparou o telhado.

24. É a Autora que utiliza os quinteiros interiores da casa, para passagem e depósito de lenhas, estrumes, produtos agrícolas, carros e utensílios agrícolas.

25. Utiliza as lojas na parte baixa da habitação para depósito de lenhas, estrumes, utensílios agrícolas e animais.

26. No decurso do processo de inventário referido em 8., o cabeça-de-casal, pai do Réu marido, autorizou a permanência dos Réus, a título temporário, numa zona da mesma casa adjacente à referida em 14., partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede-mestra, a sul.

27. O cabeça de casal ponderava a possibilidade de o prédio lhe vir a ser adjudicado e os demais herdeiros concordaram com a permanência dos Réus até ao termo do inventário.

28. Após o termo do inventário, os Réus, contra a vontade da Autora, não saíram da habitação.

29. Verifica-se uma descontinuidade do telhado na interseção da parte ocupada pelos Autores com a ocupada pelos Réus; o edifício referido em 5. partilha da mesma estrutura e fundações, paredes mestras, interiores e exteriores, e partilha da mesma estrutura, designadamente a mesma parede mestra, a sul, da parte ocupada pelos Réus.

30. A casa referida em 14. e a parte contígua, referida em 26., eram suscetíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas, antes de os Réus procederem ao fecho de portas de ligação.

31. Existe entre as duas zonas (a casa de habitação referida em 14. e a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.), um só quinteiro ou pátio, que confronta a norte com caminho, sul e nascente com a parte ocupada pelos Autores e a poente com a parte ocupada pelos Réus.

49. Existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e aqueles não aceitam a permanência destes.

50. As obras efectuadas na habitação foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam.”.

Daqui decorre que os Autores/CC e DD lograram demonstrar as características do prédio reivindicado, nomeadamente, que a habitação que do mesmo faz parte integra a zona ocupada pelos Réus/AA e BB, respigando-se, neste particular a argumentação esgrimida no aresto recorrido, que aqui sufragamos, “ Na sentença, em sede de fundamentação de direito, entendeu-se que “não se provou que os atos de posse protraídos no tempo, com as características objetivas e subjetivas assinaladas nos factos provados, e o registo predial da aquisição a favor dos Autores, incluíssem a parte habitada pelos Réus, que constitui, fundamentalmente, a sua casa de habitação, referida em 25., melhor descrita em 37. a 48.”.

O pressuposto do assim decidido alicerça-se na tese de que estão em confronto dois prédios, ou seja, que o espaço ocupado pelos Réus constitui um prédio autónomo e independente daquele cuja propriedade foi reconhecida aos Autores na sentença.

Salvo o devido e merecido respeito, discordamos totalmente da aludida tese.

Comecemos por analisar a questão ao contrário: em vez de começar por demonstrar que se trata de um único prédio, vejamos se está demonstrado que são dois prédios, ou seja, duas coisas autónomas, desconsiderando, obviamente, toda e qualquer obra introduzida pelos Réus no sentido de tornar autónoma a parte que ocupam.

Dito de outro modo, existe nos autos algum elemento, por menor que ele seja, que demonstre que o espaço ou zona habitacional ocupada pelos Réus constitui um prédio autónomo?

A resposta é negativa.

O pretenso “prédio” autónomo, enquanto tal, não está inscrito na matriz predial, não está descrito no registo predial e não consta de qualquer documento, designadamente no inventário daqueles que foram donos de três quartas partes do mesmo (também sempre se soube a quem pertencia a outra quarta parte), ou de quaisquer partilhas dos seus antecessores, tudo pessoas de uma única família (ascendentes do Réu marido e de EE, falecida mulher do Autor e mãe da Autora). Não existe qualquer rasto de tal autonomização e nem sequer se pode dizer que existem terceiros envolvidos, a quem pudesse ser “atribuída” a propriedade do “prédio”; é medianamente pacífico que ao longo demais de 70  anos apenas uma família se relacionou com aquele espaço, o qual é anterior a esse período de tempo, e que ninguém exterior a essa família se arroga de qualquer direito sobre o dito espaço.

Se a tese contrária não tem qualquer base de sustentação factual, para não ficarmos no limbo confortável da retórica da “não decisão”, enfrentemos agora a questão de saber se os factos provados evidenciam que se trata de um único prédio.

Em primeiro lugar, as duas partes - aquela cuja propriedade já foi reconhecida aos Autores e a que se mostra ocupada pelos Réus - partilham da mesma estrutura e fundações, paredes-mestras, interiores e exteriores, designadamente a mesma parede mestra, a sul, da parte ocupada pelos Réus.

Portanto, se existe uma partilha das mesmas estruturas, fundações e paredes-mestras, esse é um elemento objecto favorável à qualificação como uma unidade predial, um único prédio. Sublinha-se que não estamos perante um facto de interpretação subjectiva, mas antes de uma realidade objectiva.

Em segundo lugar, existe entre as duas zonas (a parte dos Autores e a parte ocupada pelos Réus), um só quinteiro ou pátio, que confronta a norte com caminho, sul e nascente com a parte ocupada pelos Autores e a poente com a parte ocupada pelos Réus. O acesso a esse quinteiro é único e faz-se por uma porta carral, a partir do caminho que passa a norte.

Também o facto de existir um pátio, com acesso único por porta carral, depõe a favor da tese de que se trata de um único prédio, sobretudo se atendermos à função desse quinteiro e ao que se acede a partir dele.

Em terceiro lugar, as duas partes, antes de os Réus procederem ao fecho de portas de ligação, eram susceptíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas.

Este elemento objectivo é muito importante, pois ensina a experiência comum que não é vulgar prédios independentes terem ligações entre eles como se fossem apenas um prédio. O normal é as diferentes divisões ou zonas de um mesmo prédio estarem ligadas entre si, permitindo a passagem de umas para as outras.

Em quarto lugar, está demonstrado que existiu um inventário, com o nº 76/…, que correu termos no Tribunal de …, por óbito de GG e HH (avós paternos do Réu marido e pais de EE, falecida mulher do Autor e mãe da Autora), e que foi o respectivo cabeça-de-casal (precisamente o pai do Réu marido), no âmbito do inventário, que autorizou os Réus a ocuparem a zona que actualmente habitam e a aí permanecerem.

Se o gozo (por mera tolerância dos respectivos interessados) daquela parte foi proporcionado aos Réus no âmbito do inventário e do exercício das funções de cabeça-de-casal, então isso significa que o “bem” em causa, ou algum direito sobre o mesmo, integrava o conjunto dos bens objecto do inventário. De outro modo, a autorização dos herdeiros não seria necessária, nem fazia sentido o cabeça-de-casal, no exercício das suas funções, estar a ceder o gozo de algo que não era objecto do inventário.

Verifica-se que a referida parte objecto de cedência aos Réus não foi autonomizada como verba. Por isso, só se pode concluir que integrava a verba nº …, aí descrita como “três quartas partes indivisas, de uma casa de habitação e quintal, em …., que confronta a nascente, norte e sul com caminho e de poente com bens do casal, não descrito na Conservatória e inscrito na matriz respetiva sob o artigo ….18, com o valor matricial correspondente àquela fracção de trinta e seis mil e sessenta e quatro escudos”.

Essa conclusão é a única que está de harmonia com os elementos objectivos que se acabaram de descrever.

Tal verba foi adjudicada, no âmbito do dito inventário, a EE, da qual os Autores são sucessores. E a restante quarta parte indivisa do prédio foi adquirida pela mesma EE, mediante doação de NN (irmã do inventariado HH), por escritura pública outorgada em 10.03.1989. Ficou assim titular da totalidade das quatro partes até aí indivisas.

Por isso, EE era a proprietária plena do prédio que integra a zona ocupada pelos Réus.

Em quinto lugar, a apontada conclusão ainda mais sai reforçada da constatação de que a zona ocupada pelos Réus não está autonomamente inscrita na matriz predial ou descrita no registo predial e não consta como prédio autónomo em qualquer documento”.

Ademais, diga-se, mesmo que assim não estivesse evidenciado, e que está, sempre funcionaria o instituto da usucapião.

Na verdade, a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, depende da verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público, sempre na convicção de agir como dono, conceitos estes, constitutivos dos requisitos objetivos e subjetivos necessários à prova da aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, a ser preenchidos por elementos de facto (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei [posse pública, contínua e pacífica] (artºs. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e seguintes todos do Código Civil).

Assim, a posse, por certo lapso de tempo e com certas características, conduz ao direito real que indica.

É o fenómeno da usucapião, definido no art.º 1287º do Código Civil.

A usucapião opera para o beneficiário que a invoca com êxito, a transformação de um estado de facto em situação jurídica consolidada.

Na prescrição aquisitiva, o possuidor atual pode juntar à sua, a posse do seu antecessor (art.º 1256º do Código Civil) e mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (art.º 1257º do Código Civil).

Ora, no caso dos autos, para além da demonstração do registo definitivo a favor dos Autores/CC e DD - item 6. Dos Factos Provados - que constitui, sublinhamos, presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, conforme definido no art.º 7º do Código do Registo Predial, enquanto presunção juris tantum, isto é, elidível por prova em contrário de que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância (a que o registo define), também está demonstrada a aquisição originária do direito de propriedade sobre o prédio identificado no item 5. Dos Factos provados, por usucapião, uma vez demonstrados factos que preenchem os condicionalismos mínimos de posse (a prova do corpus e do animus da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei), como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o imóvel, com as características demonstradas, o reconhecimento de que os atos de posse incidem sobre um prédio que integra uma única habitação, ao longo de um determinado período de tempo, de forma ininterrupta, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, e sempre na convicção de agirem como donos - item 16. a item 26. Dos Factos provados - sendo que os Autores/CC e DD juntam à sua, a posse dos seus antecessores, mantendo-se, por isso, as práticas daqueles factos enunciados e a convicção de agirem como donos do aludido prédio, e com as características apuradas, nomeadamente, enquanto habitação única que integra a zona ocupada pelos Réus/AA e BB, há mais de 70 (setenta) anos, sendo certo que os Réus/AA e BB não lograram provar quaisquer factos impeditivos à entrega ou restituição do espaço ou zona habitacional que ocupam, bem pelo contrário, conforme decorre da facticidade apurada que aqui também rememoramos e consignamos:

“26. No decurso do processo de inventário referido em 8., o cabeça-de-casal, pai do Réu marido, autorizou a permanência dos Réus, a título temporário, numa zona da mesma casa adjacente à referida em 14., partilhando as construções a mesma estrutura, designadamente a parede-mestra, a sul.

27. O cabeça de casal ponderava a possibilidade de o prédio lhe vir a ser adjudicado e os demais herdeiros concordaram com a permanência dos Réus até ao termo do inventário.

28. Após o termo do inventário, os Réus, contra a vontade da Autora, não saíram da habitação.

29. Verifica-se uma descontinuidade do telhado na interseção da parte ocupada pelos Autores com a ocupada pelos Réus; o edifício referido em 5. partilha da mesma estrutura e fundações, paredes mestras, interiores e exteriores, e partilha da mesma estrutura, designadamente a mesma parede mestra, a sul, da parte ocupada pelos Réus.

30. A casa referida em 14. e a parte contígua, referida em 26., eram suscetíveis de serem percorridas através de ligações e aberturas internas, antes de os Réus procederem ao fecho de portas de ligação.

31. Existe entre as duas zonas (a casa de habitação referida em 14. e a parte ocupada pelos Réus, referida em 26.), um só quinteiro ou pátio, que confronta a norte com caminho, sul e nascente com a parte ocupada pelos Autores e a poente com a parte ocupada pelos Réus.

32. Os Réus não permitem que a Autora utilize a zona referida em 26..

49. Existiram conflitos entre Autores e Réus, incluindo no foro criminal relativos à ocupação da habitação pelos Réus, e aqueles não aceitam a permanência destes.

50. As obras efectuadas na habitação [pelos Réus] foram feitas sem o consentimento dos Autores, que não as aceitam.”.

Daqui decorre não fazer sentido, salvo o devido respeito por opinião contrária, a argumentação esgrimida pelos Réus/AA e BB de que assumiram a posse e propriedade da habitação, que ocupam há mais de trinta anos, de forma contínua e pacífica, à vista de todos e sem oposição, tendo esta habitação constituído uma casa de habitação independente da dos autores, comprovando-se o animus e o corpus da respetiva posse, e nesta medida, constitutivos dos requisitos objetivos e subjetivos necessários à aquisição originária do direito de propriedade por usucapião.

Na verdade, como decorre da facticidade demonstrada e acabada de enunciar, não só se admite e reconhece que os Réus/AA e BB ocupam um espaço ou zona habitacional que integra a habitação descrita no item 5. Dos Factos Provados que integrava a verba …. da relação de bens do inventário que correu termos no Tribunal de ….., com o nº …., por óbito de GG e HH, como também que tal ocupação ocorreu, num primeiro momento, por tolerância, do cabeça-de-casal, pai do Réu, com a concordância dos herdeiros, e a título temporário, até ao termo do inventário, o que demonstra, desde logo, a ausência de qualquer convicção de que os Réus/AA e BB agiam como donos do espaço ou zona habitacional que integra a habitação descrita no item 5. Dos Factos Provados, afastando-se, assim, o animus possidendi, enquanto elemento constitutivo do requisito subjetivo, necessário à prova da aquisição originária, a par de que, numa fase posterior, após o termo do inventário, a aludida ocupação foi contra a vontade da Autora, recusando-se os Réus/AA e BB a sair daquele espaço ou zona habitacional que integra a habitação descrita no item 5. Dos Factos Provados.

Apreciadas as conclusões retiradas das alegações trazidas à discussão pelos Recorrentes/Réus/AA e BB, não reconhecemos às mesmas virtualidades no sentido de alterarem o destino da presente demanda, traçado no Tribunal recorrido.


III. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes/Réus/AA e BB.

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 18 de março de 2021


Oliveira Abreu (relator)

Ilídio Sacarrão Martins

Nuno Pinto Oliveira


Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respetivo voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos, Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira.