Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4910/08.9TDLSB-E.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÂO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ADVOGADO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DIREITO AO RECURSO
DIREITOS DE DEFESA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
SEGREDO PROFISSIONAL
QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 07/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADOS OS RECURSOS
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PROVA / MEIOS DE PROVA - RECURSOS.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “CRP", Anotada, Volume I, 4ª Edição, 461, 468.
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, 433.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição, 378.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 135.º, N.ºS 2 E 3, 379.º, 380.º, 399.º, 400.º, N.º1, AL. C), 410.º, N.º 3, 414.º, N.ºS 2 E 3, 420.º, N.º 1, ALÍNEA B), 425.º, N.º 4, 432.º, 433.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º, 24.º, 25.º, 26.º, 32.º, N.º1.
Referências Internacionais:

CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGO 2.º, N.º1, PROTOCOLO N.º7.
PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS (PIDCP): - ARTIGO 14.º, N.º 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 16.02.2005, P.º N.º 4551/04-3.ª SECÇÃO;
-DE 16.02.2005, Pº Nº 1997/04-3ª SECÇÃO, DE 04.05.2005, Pº Nº 3966/04-3ª SECÇÃO, DE 06.12.2007, Pº Nº 3215/07-5ª SECÇÃO E DE 02.06.2010, Pº 1987/09.3TAFAR-A.E1.S1- 3ª SECÇÃO;
-DE 21.04.2005, P.º N.º 1300/05-5.ª SECÇÃO;
-DE 12.07.2005, Pº Nº 1901, DA 7ª SECÇÃO;
-DE 09.02.2011, Pº Nº 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1 E DE 23-03.2011, Pº Nº 106/04.7TALMG, AMBOS DA 3ª SECÇÃO.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-Nº 86/88, DR., 2ª SÉRIE, DE 22.08.88; N.º 30/2001, N.º 390/2004, N.º107/2012, N.º 305/2013, N.º 848/2013.
Sumário :

I - Por não se enquadrar em qualquer das normas dos arts. 432.º e 433.º do CPP, não é susceptível de recurso para o STJ o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação que determinou a quebra do segredo profissional do advogado.
II - O direito ao recurso como garantia de defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP) não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo-se apenas que se assegure um segundo grau de jurisdição relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afectem direitos fundamentais do arguido.
III - Para além dos advogados estarem arrolados como testemunhas, pelo que não se pode falar em garantias de defesa, também a decisão do Tribunal da Relação não constitui sentença condenatória, nem tão-pouco tem como efeito a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais dos arguidos do processo, que continuam a dispor, sem quaisquer restrições acrescidas, de todos os meios processuais adequados a contraditar o depoimento que vier a ser prestado pelas testemunhas que viram quebrado o segredo profissional.


Decisão Texto Integral:           
  Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


            1. Relatório

          1.1. No processo em epígrafe, onde estão a ser julgados, entre outros, os arguidos AA, BB e CC pela prática dos crimes de abuso de confiança, de burla qualificada, de falsificação de documentos, de infidelidade, de branqueamento de capitais e de fraude fiscal qualificada, foram arrolados como testemunhas DD, EE, FF e GG, todos advogados, que, no decurso da audiência, quando o Tribunal procedia à sua inquirição, invocaram o sigilo profissional, nos termos do artº 87º do EOA, alegando que os factos de que têm conhecimento lhes advieram do exercício da sua profissão e, como tal, sujeitos àquele segredo (cfr. actas de fls. 38251 a 38253, 38365 a 38367 e 38368 a 38372, do processo principal).

       Tribunal a quo considerou legítimo, em termos processuais, a invocação do sigilo profissional e, por isso, suspendeu a sua inquirição, sem prejuízo de, posteriormente, «ser suscitado incidente de apreciação da legitimidade substancial junto do Tribunal da Relação». 

       Tendo as referidas testemunhas declarado que pretendiam prestar declarações em julgamento, se fossem dispensadas do segredo profissional, solicitaram à Ordem dos Advogados essa dispensa que, no entanto, foi indeferida, com a declaração de impedimento de prestarem depoimento nos autos, na qualidade de testemunhas (cfr. fls. 38914 a 38926, 38944 a 38949, 39343, 39344 a 39346, 41340 a 41342, 41365 a 41367, 41524 a 41526 e 41355 a 41357, do processo principal).

            Mas o Ministério Público, porque entendeu que a sua inquirição era fundamental para a descoberta da verdade material, requereu que, «incidentalmente, se procedesse, de imediato e em separado, em ordem a ser declarada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a justificação da quebra do segredo profissional de advogado relativamente às identificadas testemunhas" (cfr. fls. 44133 a 44149, do processo principal)[1], entendimento a que aderiu o Tribunal a quo que, por isso, suscitou a intervenção do Tribunal da Relação de Lisboa «no sentido de apurar se não obstante a legitimidade formal da escusa invocada pelos 4 Advogados, perante os interesses em causa no caso presente, se justifica ou não a prestação do depoimento com quebra do segredo profissional ao abrigo do permitido pelo artº 135º/3 do C.P.P».

         Pelo acórdão de 26.02.2014 (fls. 941 e segs., destes autos), o Tribunal da Relação determinou «que os Advogados DD, EE, FF e GG prestem depoimento como testemunhas, no âmbito do processo n.º 4910/08.9tdlsb-E.L1, que corre termos na 4ª Vara Criminal de Lisboa, com quebra do segredo profissional – artº 135º/3 do C.P.P».

         1.2. Deste acórdão[2] interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a testemunha GG (fls. 1463 e segs.) e, com motivação conjunta, os arguidos AA, BB e CC (fls. 1558 e segs.).

         1.2.1. O recorrente GG, depois de (a) suscitar como questão prévia, a recorribilidade da decisão em causa (conclusões A a G), (b) concluiu pela sua revogação, por não estarem verificados os pressupostos legais da quebra de segredo profissional;

         1.2.2. Por sua vez, os arguidos AA, BB e CC, embora tivessem consagrado o capítulo II do corpo da sua motivação à questão prévia da ”RECORRIBILIDADE DA DECISÃO RECORRIDA” (fls. 1561 a 1571) e o capítulo seguinte a uma outra questão prévia com a epígrafe “DO PEDIDO DE SUSPENSÃO DA APRECIAÇÃO DO PRESENTE RECURSO ATÉ AO TRÂNSITO EM JULGADO DA DECISÂO QUE ORDENOU/SUSCITOU O PRESENTE INCIDENTE DE QUEBRA DE SEGREDO” (fls. 1571 a 1580), nem uma nem outra destas questões foram levadas às conclusões que, como se sabe, definem o objecto do recurso, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 412º, nº 1 e 4º, do CPP e 635º, nº 4, do CPC.

         O objecto do seu recurso visa, pois, em função das referidas conclusões, (a) a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que ordene a baixa dos autos para que o incidente seja instruído nos termos e pelas razões que refere; se assim não se entender, (b) a sua substituição por outro que indefira a requerida quebra do sigilo profissional; e, ainda se assim não se entender, (c) a sua substituição por outro «que circunscreva a requerida quebra, e a possibilidade de prestação de depoimentos pelas testemunhas sempre em referência, aos crimes considerados graves à luz dos artigos 135.º, n.º 3 e 187.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP…».

            É certo que, do conjunto das conclusões 19 a 21 e 48 a 55, os Recorrentes retiram que o Tribunal da Relação não cumpriu o dever «de aferir da correcta instrução do presente incidente e de determinar que o mesmo fosse instruído com todas as peças processuais e provas necessárias ao respectivo julgamento». Trata-se, porém, de uma crítica, de uma censura, dirigida directamente à decisão recorrida que, por isso, pressupõe o seu julgamento, enquanto que a segunda das questões prévias suscitadas no corpo da motivação reclama que se suspenda esse julgamento. Queremos com isto dizer que essa questão prévia não foi de facto levada às conclusões da motivação e que, por isso, não constitui objecto do recurso dos Arguidos.

        1.3. Os recursos foram recebidos, embora com dúvidas, pela Senhora Desembargadora-relatora para subirem imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo (cfr. despachos de fls. 1494 e 1641, respectivamente)

       1.4. O Senhor Procurador-geral Adjunto do Tribunal a quo respondeu a fls. 1684 e segs., e concluiu que (a) os recursos devem ser rejeitados por não serem admissíveis, nos termos dos artºs 417°, nº 6, al. b), e 420°, nº 1, al. b), do CPP; (b) a não serem rejeitados, deve o efeito ser alterado, nos termos do artigo 417°, nº 7, do CPP, atribuindo-se-lhe efeito meramente devolutivo; (c) de qualquer forma, a decisão recorrida deve ser mantida e confirmada nos seus precisos termos, negando-se provimento aos recursos.

       1.5. Em 18.03.2014, antes, portanto, de formalmente terem sido notificados do acórdão de 26.02.2014, (cfr.1.1., supra), os arguidos AA, BB e CC arguiram, no Tribunal da Relação, (a) a irregularidade processual por omissão da notificação desse acórdão; (b) a irregularidade processual decorrente do não cumprimento do «dever de fiscalização da boa instrução do incidente para quebra do sigilo profissional», alegando, como fundamento desta, «que o mesmo não foi instruído com nenhuma da prova documental constante dos autos principais, nem com cópia da gravação da prova testemunhal já produzida», o que, em sua opinião, «impede o bom julgamento do incidente à luz do critério legal expresso no artº 135º/3 do C.P.P para aferir da imprescindibilidade da quebra do segredo profissional» (fls. 1045 e 1103).

        A primeira destas irregularidades ficou sanada com a notificação do acórdão, ordenada pelo despacho de fls. 1026 e concretizada com a expedição, nesse mesmo dia, dos correspondentes avisos postais (fls. 1027).

         Quanto à segunda, a Senhora Desembargadora-relatora decidiu, por despacho de 21.03.2014 (fls. 1157), «não apreciar a referida irregularidade por a mesma já ter sido suscitada e conhecida junto do Tribunal da primeira instância e ainda por ser extemporânea, uma vez que estava a ser suscitada junto do Tribunal da Relação, ainda antes da notificação dos arguidos do Acórdão…».

       Os mesmos Arguidos, dando conhecimento de que já tinham sido notificados do acórdão de 26.02.2014 e do despacho de 21.03.2014, reiteraram a arguição da segunda daquelas irregularidades e requereram que o incidente fosse instruído nos termos que referiram (fls. 1168 e 1206).

        E em 08.04.2014, fls. 1219, reclamaram para a conferência do despacho de fls. 1157.

      Pelo acórdão de 10.04.2014, fls. 1445 e segs. o Tribunal da Relação julgou improcedente a irregularidade arguida.

       1.6. Notificados, os arguidos AA, BB e CC interpuseram recurso desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1727 e segs), pugnando pela sua revogação e substituição por outro que conheça e julgue verificada a irregularidade processual arguida, com a consequente baixa do processo para que, junta certidão integral do processo principal, ou, no mínimo, de toda a prova documental que especificam, o Tribunal da Relação «aprecie o requisito da imprescindibilidade da quebra do sigilo profissional à luz da prova já existente nos autos».

       1.7. O Recurso foi recebido com dúvidas, para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo (despacho de fls. 1759.

       1.8. Também agora o Senhor Procurador-geral Adjunto respondeu, fls. 1770 e segs., que (a) o recurso não era admissível, nos termos dos arts. 417º, nº 6, al. b) e 420º, nº 1, al. b), com referência ao artº 414º, nº 2, do CPP, mas que, de qualquer forma (b) a decisão recorrida deve ser confirmada, com o consequente não provimento do recurso.

     1.9. No Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-geral Adjunto teve vista no processo.


       2. Tudo visto, cumpre decidir.

      2.1. Questão Prévia: Da admissibilidade dos recursos

      2.1.2. Quanto ao recuso do acórdão “principal”, de 26.02.2014

       2.1.2.1.Vimos que o recorrente GG configurou como questão prévia a recorribilidade do acórdão em epígrafe.

        E que o Senhor Procurador-geral Adjunto do Tribunal da Relação se pronunciou pela sua irrecorribilidade.

          A questão é efectivamente controversa, como se vê pelo sentido contraditório da jurisprudência que ambos invocam nas suas alegações.

         É, pois, pela apreciação desta questão que iremos iniciar o nosso julgamento.  

            Vejamos, então.

         O Recorrente alegou, em síntese, para justificar a admissibilidade do recurso,  

            que a decisão do Tribunal da Relação é uma decisão tomada em primeira instância e, como tal, susceptível de recurso, nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 432º do CPP;

           que, não havendo norma que prescreva a irrecorribilidade dessa decisão, terá de se aplicar o princípio geral de recorribilidade estabelecido no artº 399º do CPP;

             que não se aplica ao caso a regra da alínea c) do nº 1 do artº 400º do CPP;

         que, tratando-se de uma decisão que atinge direitos fundamentais (arts. 26º e 35º da CRP), sempre se imporia o recurso, como garantia da tutela efectiva de direitos fundamentais.

            [Como atrás concluímos, os arguidos/recorrentes AA, BB e CC, embora tivessem suscitado idêntica questão no corpo da motivação, não a incluíram nas respectivas conclusões – razão por que ficou excluída do objecto do seu recurso, nos termos do ali citado artº 635º, nº 4 do CPC. Lendo, porém, esse trecho da motivação (fls. 1561 a 1571), constatamos que a argumentação que aduziram em favor da tese da recorribilidade não difere substancialmente da usada pelo anterior Recorrente].

            Por sua vez, o Senhor Procurador-geral Adjunto contrapôs

      que a decisão recorrida não pode ser concebida como uma decisão do Tribunal da Relação proferida em 1ª instância (aliena a) do nº 1 do artº 432º do CPP), porquanto intervém «como tribunal imediatamente superior a este», não para julgar recursos de decisões suas, mas por via «de um mecanismo de garantia judiciária reforçada, justificado pela relevância dos interesses em causa»; a decisão que lhe é solicitada é, assim, «uma decisão enquanto tribunal superior»;

       que a decisão recorrida não pode ser incluída na previsão das restantes alíneas do referido preceito.

            2.1.2.2. Apreciação/decisão

            2.1.2.2.1. Comecemos pelo último dos argumentos aduzidos – o de que, atingindo a decisão que determina a quebra de segredo direitos fundamentais, «a noção de recurso como garantia constitucional da tutela efectiva de direitos fundamentais, reclama a exigência de reponderação por órgão distinto e superior no sentido de assegurar a plena imparcialidade e objectividade na decisão de uma questão que afecte os direitos fundamentais» (cfr. conclusão G. da motivação do recurso da testemunha GG, fls.1483; no mesmo sentido, os §§ 36 e 37 da motivação dos Arguidos, fls. 1570).

            Pois bem.

      No Capítulo I do Título II da Parte I, a Constituição da República Portuguesa trata dos “Direitos liberdades e garantias pessoais» como espécie dos “Direitos e Deveres Fundamentais” onde, depois do direito à vida (artº 24º) e à integridade pessoal (artº 25º), consagra «outros direitos pessoais» (artº 26º), portanto direitos da mesma categoria dos anteriores, entre os quais o «direito à reserva da intimidade da vida privada» (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “CRP …, Anotada”, Volume I, 4ª Edição, 461).

       Por outro lado, o artº 20º, também da CRP, assegura a todos, ainda como direito fundamental de garantia imprescindível de protecção de direitos fundamentais, o «direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva», com o sentido de que ninguém pode ser privado de levar a sua causa, relacionada com a defesa de um interesse legítimo e não apenas de direitos fundamentais, à apreciação de um tribunal.

    A este propósito, diz Gomes Canotilho, no seu “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, 433, que, em termos gerais – e como vem reiteradamente afirmando o Tribunal Constitucional, de que cita o Acórdão nº 86/88, DR., 2ª Série, de 22.08.88, na senda do ensinamento de Manuel de Andrade – o direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório.

     Mas ensinam os mesmos Autores (ob. cit., 408, 418) que o direito de acesso aos tribunais e à tutela judicial efectiva não fundamenta um direito subjectivo ao duplo grau de jurisdição. Todavia, acrescentam, embora não exista um preceito constitucional a consagrar a «dupla instância» em termos gerais, em matéria penal a «dupla instância» é expressamente exigida pelo artº 14º, nº 5, do PIDCP e resulta igualmente do artº 32º, nº 1, ainda da CRP, em ambos os casos, no entanto, também não em termos gerais, absolutos.

   De facto, o primeiro dos preceitos indicados só impõe o direito ao duplo grau de jurisdição no caso de pessoa declarada culpada de um delito. Como, de resto, o artº 2º, nº 1, do Protocolo nº 7 à CEDH, nos termos do qual o condenado em processo penal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação, embora, mesmo aqui, com as excepções estabelecidas no número seguinte.

      Por sua vez, o artº 32º, nº 1, da CRP consagra, é certo, o direito ao recurso como garantia de defesa. Mas, «conforme o Tribunal Constitucional tem afirmado de forma consistente, o direito ao recurso expressamente referido no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, entre as garantias de defesa do arguido, não exige a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo, impondo apenas que necessariamente se assegure um segundo grau de jurisdição relativamente às decisões condenatórias e àquelas que afetem direitos fundamentais do arguido, designadamente a sua liberdade» (cfr. o Acórdão nº 848/2013, de 10.12.2013, invocado pelo Senhor Procurador-geral Adjunto; os sublinhados são da nossa autoria). Ou, como considerou o Acórdão nº 305/2013, também do Tribunal Constitucional, citando o Acórdão nº 107/2012, igualmente invocados pelo Senhor Procurador-geral Adjunto, «…a razão da conformidade ou desconformidade constitucional das opções normativas… assentava fundamentalmente na onerosidade dos efeitos dele decorrentes, na concreta dinâmica processual em que foram praticados, apenas se admitindo como constitucionalmente legítimas soluções de irrecorribilidade que não afetassem o núcleo essencial do direito de defesa do arguido (designadamente, por estarem em causa meras questões incidentais ou interlocutórias cuja decisão por uma única instância não comprometia a possibilidade de reagir, a final, pela via do recurso, contra a decisão de mérito) e postergando, por ilegítimas, todas aquelas que, por inviabilizarem a reapreciação de decisões de expressiva intensidade lesiva, atingiam a essência de um tal direito fundamental de defesa» (voltamos a sublinhar). Ainda no mesmo sentido, os Acórdãos nºs 30/2001, de 30.01.2001[3] e 390/2004, de 02.06.2004[4] que referem jurisprudência anterior.

    No caso sub judice, as pessoas visadas pelo acórdão do Tribunal da Relação não são os Arguidos do processo. São pessoas arroladas como testemunhas. Como assim, não pode sequer insinuar-se que possam estar em causa garantias de defesa. A decisão do Trinbunal da Relação, não constituindo «sentença condenatória» nem tendo como efeito a restrição ou privação da liberdade ou de outros direitos fundamentais dos Arguidos, não atinge decididamente «o conteúdo essencial» do seu direito de defesa, pois que, naturalmente, continuam a dispor, sem quisquer restrições acrescidas, de todos os meios processuais adequados a controlar e a contraditar o depoimento que vier a ser prestado pelas Testemunhas que viram quebrado o segredo profissional. Está, de facto, em causa tão só uma questão meramente incidental ou interlocutória, cuja decisão por uma única instância não compromete a possibilidade de os Arguidos reagirem, a final, pela via do recurso, contra a decisão de mérito, se desfavorável.

  É verdade que Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit.,468), referem que o sigilo profissional constitui instrumento jurídico de garantia do direito à “reserva da intimidade da vida privada”. Mas não da intimidade da vida privada das próprias pessoas a quem foi ordenado que prestassem depoimento com quebra do segredo profissional. A vida privada que pode vir a ser revelada é, mais uma vez, a dos Arguidos cuja defesa volta a ser assegurada, nos termos antes referidos, no âmbito do processo principal.

      É justamente por causa daquela natureza de garantia de um direito fundamental e, por isso, por causa da relevância dos interesses em causa, que o legislador, reforçando a garantia de acesso ao tribunal, entendeu dever fazer intervir na decisão de quebra do segredo profissional o tribunal hierarquicamente superior àquele onde corre o processo.  

      Como assim, concluimos que a imposição constitucional do duplo grau de jurisdição não abrange o acórdão recorrido.

     2.1.2.2.2. Resta verificar se, segundo a lei ordinária, designadamente o Código de Processo Penal, o recurso é admissível.

    Como vimos, o Recorrente, invocou a favor da tese da recorribilidade do acórdão da Relação, (a) o princípio geral consagrado no artº 399º do CPP; (b) afirmou que esse acórdão, por constituir uma decisão tomada em primeira instância pela Relação, admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 432º do CPP e (c) alegou que não é aplicável ao caso a previsão da alínea c) do nº 1 do artº 400º, também do CPP (a motivação dos Arguidos assenta essencialmente na mesma argumentação).

        Tomando posição na controvérsia, começaremos por relembrar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.02.05, Pº nº 4551/04-3ª Secção que, a propósito do “sistema de recursos erguido pela reforma do processo introduzida pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto”, não alterado, no que para aqui interessa, pela Reforma de 2007, considerou o seguinte:

       «… Da conjugação das normas dos artigos 400°, 427º e 432° do Código de Processo Penal resulta que decisões de natureza processual ou que não ponham termo ao processo não são recorríveis para o Supremo Tribunal. Pressuposto do recurso para o Supremo Tribunal (salvo casos específicos que a lei especialmente preveja –  artigo 433° do Código de Processo Penal) é, pois, a natureza da decisão de que se recorre: decisões finais e não decisões sobre questões processuais avulsas (salvo, por razões de racionalidade intraprocessual, quando o recurso de decisões interlocutórias suba com recurso que deva ser do conhecimento do Supremo Tribunal –  artigo 432°, alínea e) do CPP).

         É a razão e o sentido da norma do artigo 400°, nº1, alínea c), do Código de Processo Penal. Como pode haver recurso de todas as decisões que não sejam de expediente ou que não dependam da livre discricionariedade do juiz, e, por regra, o recurso é interposto para as relações, as decisões proferidas por estas, em recurso, que não ponham termo à causa, não são recorríveis, pois o processo não termina, podendo ter, na sequência, outras decisões, designadamente a decisão final, submetida, então, às regras gerais dos recursos. Em tais casos, a garantia do recurso não exige e a racionalidade do modelo não seria compatível com a previsão de recurso até ao Supremo Tribunal para decisão de questões processuais intermédias que não definem o direito do caso, mas apenas determinam um certo modo de ordenação e sequência processual.

        Mas se é assim, a mesma razão valerá para os casos em que a relação intervenha, não como instância formal de recurso, mas como instância de decisão no processo, em outro grau, para questão incidental cujo conhecimento a lei lhe defira. Na coerência e racionalidade do sistema, não há razão para distinguir entre uns e outros casos.

      Deste modo, a decisão que concretamente está em causa [decisão de não tomar conhecimento do incidente previsto no artº 182º] não se integra em qualquer das hipóteses previstas de recurso para o Supremo Tribunal (artigo 432° do CPP).

      Não se trata, de decisão proferida pela relação em primeira instância (artigo 432°, nº 1, alínea a), do CPP), isto é, em que a competência em razão da matéria e da hierarquia para a decisão do caso e do objecto do processo caiba, em primeiro grau de conhecimento, e segundo as leis de organização e competências dos tribunais, aos tribunais da relação,

       Não constitui também, é manifesto, situação que se enquadre nas alíneas c), d) e e) do artigo 432° do CPP.

        Resta a alínea b) desta disposição. Mas, a conjugação das normas da alínea b) do artigo 432° e do artigo 400°, nº 1, alínea c) do CPP tem de ser interpretada em equilíbrio sistémico do regime dos recursos. Nesta perspectiva, a norma da alínea c) do nº 1 do artigo 400°, quando se refere a decisões proferidas, em recurso, pelas relações, que não tenham posto termo à causa, quer significar, salvo contradição interna do sistema, que a competência em razão da hierarquia para proferir decisões que não ponham termo à causa cabe às relações, que decidem, em matérias interlocutórias, em última instância - quer seja decisão proferida em recurso, quer seja por ocasião de um recurso ou por intervenção incidental directamente deferida pela lei.

                …

       O artigo 400°, nº 1, alínea c), do CPP abrange, assim, todas as decisões interlocutórias, subtraindo-as à competência do Supremo Tribunal (salvo, como se referiu e por razões de eficácia e racionalidade processual, quando o recurso de decisões interlocutórias tenha de subir com o recurso para cujo conhecimento seja competente o Supremo Tribunal).

           Só assim, não será, por razões de conformidade constitucional com a garantia de defesa que o recurso também constitui, quando seja caso de decisões que afectem directa, imediata e substancialmente, direitos fundamentais do arguido, como sejam as decisões relativas à aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional de 30 de Novembro de 2004, DR, II série, de 18 de Janeiro de 2005)».

         Em nosso entender esta doutrina continua actual e constitui uma interpretação do sistema de recursos que abraçamos e que temos seguido noutras ocasiões. Como no caso presente, também ali estava em causa o recurso de uma decisão da Relação que havia ordenado a quebra de segredo profissional, igualmente regulado, como aqui, pelo artº 135º, nºs 2 e 3, do CPP.

       Posto isto, avancemos para a apreciação das concretas razões aduzidas pelo Recorrente: 

            – O princípio geral da recorribilidade e os arts. 432º e 433º do CPP

       Não pomos em dúvida que o artº 399º do CPP estabelece o princípio geral de que é permitido recurso das decisões cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.

        Mas esse princípio terá naturalmente de ceder perante outras normas de hierarquia idêntica que eventualmente estabeleçam, de forma taxativa, os pressupostos da recorribilidade de certas decisões ou da admissibilidade de recurso para determinada categoria de tribunais.

       É justamente esse o caso dos arts. 432º e 433º, do mesmo Código que, de forma inequivocamente taxativa, especificam quais as decisões que podem ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

        Ora, em relação às possibilidades de recurso abertas pelo artº 432º, estando inquestionavelmente afastadas, pela própria natureza das coisas, as das suas alíneas c) e, d), resta ponderar as das alíneas a) e b).

            – a previsão da alínea a) do nº 1 do artº 432º

        Na opinião do Recorrente, o recurso que interpôs é admitido pela alínea a) do nº 1 do artº 432º porque a decisão da Relação foi proferida em 1ª instância.

         Invoca, em abono da sua tese, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.04.2005, Pº nº 1300/05-5ª Secção e a lição de Paulo Pinto de Albuquerque no seu “Comentário do Código de Processo Penal…”, 4ª edição, 378.

         No mesmo sentido, isto é, de que, em casos como o sub judiceo tribunal da relação «não funciona, …, como instância residual, …, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, …, [pelo que], estando-se perante uma decisão proferida em 1ª instância, ela é susceptível de recurso nos termos do artº 432º, nº 1, al. a), do CPP», podem ainda citar-se os Acórdãos de 09.02.2011, Pº nº 12153/09.8TDPRT-A.P1.S1 e de 23-03.2011, Pº nº 106/04.7TALMG, ambos da 3ª Secção.

         Ora, como salientou o Senhor Procurador-geral Adjunto na sua resposta, «o tribunal criminal decide em 1ª Instância quando profere decisões em processos que se iniciam e desenvolvem perante ele e julga esses processos de acordo com as regras de competência»; o Tribunal da Relação «ao ser chamado a decidir o incidente de quebra do segredo profissional … não intervém como tribunal de 1ª instância, mas como tribunal imediatamente superior a este, isto é, como tribunal de 2ª instância que, por regra, só intervém para julgar os recursos das decisões daquele, mas que, no caso, é chamado a intervir através de um mecanismo de garantia judiciária reforçada, justificada pela relevância dos interesses em causa…».

        E em sentido substancialmente idêntico já o Supremo Tribunal de Justiça se havia pronunciado nos Acórdãos de 16.02.2005, Pº nº 1997/04-3ª Secção, de 04.05.2005, Pº nº 3966/04-3ª Secção, de 06.12.2007, Pº nº 3215/07-5ª Secção e de 02.06.2010, Pº 1987/09.3TAFAR-A.E1.S1- 3ª Secção.

        De facto, se o segundo destes Acórdãos acentuou que «a Relação funciona aqui como uma 2ª instância, naturalmente residual…», os dois últimos esclarecem, de modo para nós inteiramente pertinente e convincente que, decisões das relações proferidas em 1ª instância, são as aí proferidas em processos que, por lei, devam ser nelas instaurados desde o seu início para aí obterem decisão final, isto é, decisões em que a competência em razão da matéria caiba, em primeiro grau de conhecimento e segundo as leis de organização e competência dos tribunais, aos tribunais da relação.

      Não se tratando, pois, de decisão proferida em processo que, pelo seu objecto, seja da competência, em 1ª instância, do Tribunal da Relação, está, assim, igualmente afastada a possibilidade de recurso por via daquela alínea a).

           – a previsão da alínea b) do nº 1 do artº 432º do CPP

    Nos termos deste preceito, admitem recurso para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões proferidas pela relação, em recurso, que não sejam irrecorríveis segundo o artº 400º.

        Também agora a única das alíneas do nº 1 deste artº 400º que interessa à nossa discussão é a alínea c). As restantes não podem ser consideradas por não estar aqui em causa nem um despacho de mero expediente nem um acto dependente da livre resolução do Tribunal da Relação nem um acórdão que tenha incidido sobre o objecto do processo. A hipótese da alínea g) fica naturalmente prejudicada pelo sentido que viermos a dar à alínea c).

            Pois bem.

        É para nós evidente que o acórdão recorrido não constitui uma decisão proferida, em recurso, porquanto o Tribunal da Relação não interveio como instância formal de recurso.

        Todavia, acolhendo a doutrina daquele Acórdão de 16.02.05, Pº nº 4551/04, aliás reiterada no também já citado Acórdão de 02.06.2010, temos de concluir, como se conclui neste, que, «como este Supremo Tribunal vem defendendo, as normas da alínea c) do nº 1 do artigo 400º e da alínea b) do nº 1 do artigo 432º têm de ser interpretadas tendo em atenção o regime geral de recursos e a harmonia do respectivo sistema. Nesta perspectiva, a norma da alínea c) do nº 1 do artigo 400º,quando alude a decisões proferidas, em recurso, pelos Tribunais da Relação, que não conheçam, a final, do objecto do processo, quer significar, salvo contradição interna do sistema, que a competência em razão da hierarquia para proferir decisões que não conheçam, a final, do objecto do processo cabe aos Tribunais da Relação que decidem, em matérias interlocutórias, em última instância – quer seja a decisão proferida em recurso, quer seja por ocasião de um recurso ou por intervenção incidental directamente deferida pela lei. A alínea c) do nº 1 do artigo 400º abrange, assim, todas as decisões interlocutórias, subtraindo-as à competência do Supremo Tribunal, com excepção das situações em que o recurso dessas decisões tenha de subir com o recurso para cujo conhecimento seja competente o Supremo Tribunal – alínea d) do nº 1 do artº 432º» (sublinhamos).

            Assim, tratando-se, no caso, de uma decisão interlocutória sobre questão processual avulsa que não conheceu, a final, do objecto do processo – e sobre este ponto parece não serem aceitáveis objecções – e, por essa razão, abrangida, de acordo com aquela interpretação, pela alínea c) do nº 1 do artº 400º do CPP, também por esta via não é a mesma decisão susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

           Finalmente, teremos de dizer que norma especial que autorize o recurso deste tipo de decisões da relação ao abrigo do artº 433º não a encontramos, designadamente no local mais apropriado, no capítulo do CPP que regula a matéria da prova testemunhal, em que se insere o incidente do «segredo profissional».

        2.1.2.3. Objectar-se-á que, neste modo de ver as coisas, teremos perante nós uma decisão judicial não controlável por via de recurso, o que traduzirá uma solução conflituante com o direito ao recurso, instituído como uma das garantias de defesa que o processo penal tem de assegurar, nos termos do nº 1 do artº 32º da CRP, ou até que postergará o direito de acesso aos tribunais, igualmente consagrado na Constituição, no seu artº 20º.

        Sobre esta questão já antes nos pronunciámos no sentido de que essas normas constitucionais não impõem, no caso, o duplo grau de jurisdição. Aliás, Paulo Pinto de Albuquerque, na obra e local citados, embora afirme, como vimos, que uma decisão como a que está aqui em causa é uma decisão do tribunal da relação tomada em 1ª instância e, como tal, susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não deixa de anotar que a doutrina por nós aqui seguida subverte a expressão «em recurso» – e não é esse decididamente o entendimento que deixamos expresso em que afastamos a ideia de estarmos perante uma decisão proferida em recurso –, mas que «o TC já decidiu, …, que esta interpretação não viola a CRP».

       Aliás, a garantia constitucional de acesso aos Tribunais postula apenas que o grau de jurisdição único previsto para determinada situação se possa pronunciar de modo formalmente válido sobre a questão. E sendo o incidente, como no caso, da competência do tribunal imediatamente superior àquele em que foi suscitado, isso constitui, sem dúvida, garantia processual satisfatória, dado o seu distanciamento relativamente ao caso concreto.

            Como diz o Acórdão de 12.07.2005, Pº nº 1901, da 7ª Secção, «… estamos perante um incidente de estrutura especial, que não segue as regras normais de competência jurisdicional, certo que atribui competência para a sua decisão ao tribunal que seria, segundo a regra geral, competente para a apreciação do recurso sobre ela.

            Num quadro de conflito de interesses que se suscita em sede de oferecimento e de produção de prova, cuja resolução de modo célere se impõe em termos instrumentais à decisão da causa, a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respectiva decisão não houvesse recurso.

       Para tanto, em postura de salvaguarda do interesse das partes numa melhor apreciação do objecto do incidente, atribuiu a lei a competência para a respectiva decisão ao tribunal que seria competente para conhecer da matéria em via de recurso se o objecto do incidente tivesse sido decidido na instância em que foi suscitado ou implementado.

     Assim, neste peculiar incidente, sob a necessidade da celeridade da decisão e da natureza meramente instrumental dos interesses em conflito, consignou-se pela referida via implícita, a proibição da instância de recurso, contrabalançada pela atribuição da competência decisória ao tribunal hierarquicamente superior àquele onde o incidente foi suscitado».

        2.1.2.4. Concluímos, pois, que o acórdão proferido em 26.02.2014 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, constante de fls. 941 e segs. não é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por não se enquadrar em qualquer das normas dos arts. 432º e 433º do CPP.

         A decisão que admitiu os recursos não vincula este Tribunal (artº 414º, nº 3, do CPP).

       Não sendo admissíveis, os recursos dele interpostos pela testemunha GG e pelos arguidos AA, BB e CC têm de ser rejeitados, nos termos dos arts. 432º e 433º, 414º, nº 2 e 420º, nº 1, alínea b), do CPP.

       2.1.2.5. Sendo rejeitados os recursos, fica prejudicado o julgamento das demais questões prévias suscitadas pelo Senhor Procurador-geral Adjunto – sobre a legitimidade e o interesse em agir dos Recorrentes – bem como, obviamente, a questão de fundo.

      2.1.3. Recurso interposto pelos Arguidos do acórdão de 10.04.2014

          Na abertura da motivação, os Arguidos delimitam o objecto do recurso nos seguintes termos:

          «A decisão de que se recorre é o douto Acórdão da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10.04.14, que indeferiu a irregularidade processual arguida pelos Arguidos, decorrente da violação do dever oficioso do Tribunal Superior verificar e assegurar a boa instrução do presente incidente de quebra de segredo profissional, no sentido de assegurar a sua boa decisão face às diferentes soluções plausíveis de direito, atentos os critérios normativos expressos no artigo 135.º, n.º 3, do CPP, a qual, por ter influência na boa decisão da causa, implica a anulação do douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26.02.2014, no qual foi determinada a referida quebra».

        E foi esse, de facto, o objecto sobre que incidiu o referido acórdão.

            Como diz no seu relatório, fls. 1451, «vieram,…, os arguidos … arguir a irregularidade processual neste processo de quebra de sigilo profissional, nos termos e para os efeitos do artº 123º/1 do C.P.P, alegando que o mesmo não se encontra suficientemente instruído por forma a permitir uma boa decisão da causa.

           E que nessa medida, …, foi cometida uma irregularidade por este Tribunal da Relação de Lisboa, quando proferiu decisão no mesmo em 26.2.2014, determinando a quebra do sigilo profissional relativamente às quatro testemunhas todas Advogados (…), violando o dever oficioso de assegurar a boa instrução do mesmo.

       Requerem por isso que seja declarada a referida irregularidade e que o presente incidente seja instruído com …».

        De referir que já na motivação do recurso que interpuseram do acórdão de 26.02.2014, a questão foi suscita, embora em termos não totalmente coincidentes.

         Como quer que seja, o acórdão agora em apreciação é um acórdão que indeferiu uma irregularidade assacada ao acórdão principal que, como acima concluímos, não é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. E se o acórdão principal não admite esse recurso, também aquele o não admite. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 425º, nº 4, 379º, 380º, 410º, nº 3, do CPP as nulidades e irregularidades dos actos decisórios só podem ser arguidas perante o tribunal hierarquicamente superior se aqueles admitirem recurso.

       Nesta conformidade, também o recurso interposto pelos Arguidos do acórdão de fls. 1445 e segs., de 10.04.2014, é rejeitado, nos termos das disposições dos arts. 425º, nº 4, 379º, 380º, 410º, nº 3, 414º, nº 2 e 420º, nº 1, alínea b), todos do CPP.

            3. Dispositivo

       Em conformidade com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

           3.3.1. Rejeitar, por não serem legalmente admissíveis, nos termos dos arts. 432º e 433º, 414º, nº 2 e 420º, nº 1, alínea b), do CPP, os recursos interpostos pela testemunha GG e pelos arguidos AA, BB e CC do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.02.2014, fls. 941 dos presentes autos;

         3.3.2. Rejeitar, por também não ser admissível, nos termos das mesmas disposições legais, o recurso interposto pelos mesmos Arguidos do acórdão proferido pelo mesmo Tribunal em 10.04.2014, fls.1445 dos presentes autos.

          Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de Justiça em 6 (seis) UC’s, a cargo de cada um deles, por cada um dos recursos que interpuseram.

          Cada um dos Recorrentes pagará ainda, por cada um dos recursos que interpuseram, a soma de 6 (seis) UC’s, nos termos do nº 3 do artº 420º do CPP.


Lisboa, 25 de Julho de 2014

(Processado e revisto pelo Relator)                

Sousa Fonte (Relator)

Oliveira Mendes

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[1] As referências que foram feitas a páginas do processo principal resultam das indicações contidas no relatório do  acórdão de fls. 941 e segs.   
[2] O processo foi remetido à 1ª Instância logo depois de ter sido proferido o acórdão, sem notificação aos interessados – o que só veio a suceder depois de a 1ª Instância ter devolvido o processo ao Tribunal da Relação para esse efeito (cfr. fls. 961, 1009 e 1026 e segs.

[3] «sempre se entendeu, …, na jurisprudência do Tribunal Constitucional que a faculdade de recorrer em processo penal constitui uma tradução da expressão do direito de defesa, correspondendo mesmo a uma imposição constitucional a consagração do recurso de sentenças condenatórias ou de actos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais, mas sempre se recusou que a Constituição impusesse a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal.

Não o impunha antes, nem o impõe depois da revisão de 1997, onde o segmento aditado ao artigo 32º, n.º 1, apenas explicita o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia compreendido nas "garantias de defesa em processo penal".

Em suma, o "direito de recurso", como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das "garantias de defesa" – só e quando estas garantias o exijam…».
[4] O direito ao recurso não é absoluto; «a verdade é que se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do proces­so e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido». Assim é que, se a salva­guarda desse direito de defesa impõe … «que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória» ou que «a lei preveja o recurso dos actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos a fundamentais do arguido», já a mesma não impõe «que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz»;
No processo penal, o direito de recurso constitui, seguramente, uma das garantias de defesa, genericamente tuteladas pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição. Porém, uma jurisprudência constante do Tribunal Constitucional tem sustentado que o direito de recurso não constitui um direito absoluto, que deva ser exercido relativamente a qualquer decisão judicial (…).  O direito de recurso pode ser restringido em certas fases do processo e é mesmo concebível que ele não exista relativamente a determinados actos judiciais, desde que não se atinja o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido».