Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A051
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
FACTOS
VALOR PROBATÓRIO
Nº do Documento: SJ200303310000516
Data do Acordão: 03/31/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3155/03
Data: 07/03/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1) Para além dos dois casos específicos expressamente mencionados nos art.ºs 27º, nº 5, e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta), o art.º 22º da Constituição abrange na sua previsão a responsabilidade civil extra-contratual do Estado decorrente da actividade jurisdicional.
2) Independentemente da existência de lei ordinária que o concretize, o direito reconhecido pelo art.º 22º da Constituição beneficia do regime estabelecido no seu art.º 18º para os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, designadamente quanto à sua aplicação directa.
3) A autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes.
4) Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis
5) O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional referida no ponto 4), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Alegando ter proposto uma acção de despejo decidida na 1ª instância e na Relação contra lei expressa, o que lhe causou prejuízos de vária ordem, A demandou o Estado Português, pedindo a sua condenação no pagamento de 99.759,50 € e juros legais desde a citação.
O réu contestou, dizendo em resumo que as duas decisões postas em causa não foram ditadas contra lei expressa, já que "interpretaram e aplicaram criteriosamente o direito, optando pela decisão mais justa e adequada aos interesses em presença, ponderando e sopesando as posições doutrinais e as correntes jurisprudenciais mais qualificadas", e que não há qualquer nexo causal entre os prejuízos alegada-mente sofridos e os actos jurisdicionais questionados.
Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou a acção improcedente e condenou a autora na multa de 20 UCCs como litigante de má fé.
Sob apelação da autora a Relação confirmou a sentença, excepto no tocante à condenação a título de má fé, que foi revogada.
Mantendo-se inconformada a autora pede revista, sustentando que, ao não condenar o réu na indemnização pedida, o acórdão recorrido violou o artº 22º da Constituição, o disposto no DL 48.051, de 21.10.67, e o artº 115º do RAU, devendo, por isso, ser revogado.
O réu contra alegou, defendendo a manutenção do julgado.
II. Os factos definitivamente assentes nas instâncias são estes:
1) Encontra-se registada a favor da autora na respectiva CRP o prédio situado na R. do Heroísmo, ...., no Porto, inscrito na matriz urbana do Bonfim sob o art.º 8703 e descrito naquela CRP sob o n.° 55027.
2) Há pelo menos 10 anos Supermercados B, tomou de arrendamento o rés do chão do prédio referido em 1) para o exercício do comércio de mercearia.
3) Por sentença de 17.10.97 foi decretada a falência da arrendatária em acção que correu termos pela 1ª secção do 4.° Juízo Cível da comarca do Porto (actual 4ª Vara Cível) com o nº 1258/95.
4) Em Junho de 1998 foi encerrado o estabelecimento.
5) Tendo a autora tido conhecimento que o Mº Juiz do processo referido em 3) autorizara a negociação do direito ao respectivo trespasse e arrendamento, comunicou-lhe que se opunha a tal negócio.
6) Apesar disso, avançou a projectada negociação, para o que a autora foi notificada para exercer a preferência.
7) A essa notificação respondeu a autora em conformidade com o documento nº 4.
8) O referido trespasse foi celebrado por escritura pública de 4.5.99.
9) Com fundamento na inexistência de trespasse, por entender que aquele negócio não passava de uma cessão do direito ao arrendamento, e no encerramento do estabelecimento por mais de um ano, a autora intentou acção de despejo que veio a correr termos pela 2ª secção do 1º Juízo Cível da Comarca do Porto, com o nº 6/00.
10) A acção referida em 9) foi julgada improcedente no despacho saneador, com dois fundamentos:
1º - O encerramento do estabelecimento ficou a dever-se à falência da arrendatária, o que constitui caso de força maior impeditivo do direito à resolução do contrato previsto no art.º 64º, nº1, h), do RAU;
2º - Para que exista um estabelecimento não se torna necessário que a respectiva organização económica esteja em funcionamento, bastando que seja um local apto ao exercício do comércio, ainda que fechado e sem mercadoria ou qualquer outro tipo de bens.
11) A decisão referida em 10) foi confirmada pelo acórdão da Relação do Porto de 3/12/01 pelas seguintes razões:
1ª - O liquidatário da massa falida podia prover à conservação do direito correspondente ao estabelecimento do falido ou tomar outra medida tida por conveniente, nos termos dos art.ºs 143º e sgs do CPEREF, apenas com sujeição ao limite de tempo do art.º 64º, nº1, h), do RAU;
2ª - A circunstância de o art.º 115º, n.° 2, do RAU exigir a transferência dos elementos corpóreos e incorpóreos do estabelecimento para que haja trespasse não impõe que estes, na altura do contrato, existam, sendo necessário que o conjunto que se transmite seja adequado ao exercício do comércio anterior, como resulta da alínea b) do referido preceito;
3ª - No caso vertente, o conjunto que vem referido, depois de obras de reparação realizadas pela adquirente, manteve-se adequado ao exercício do comércio anterior.
III. A questão posta no recurso tem a ver com a responsabilidade civil extra-contratual do Estado e está na ordem do dia, quer nos restantes países europeus, quer entre nós.
Na situação ajuizada, concretamente, o facto ilícito gerador da responsabilidade do Estado foi, segundo a recorrente, o erro de direito cometido nas duas sucessivas decisões proferidas na acção de despejo mencionada no facto nº 9. Na sua tese, ambas as sentenças - a da 1ª instância e a da Relação que a confirmou - foram pronunciadas contra legem: violaram ostensiva e grosseiramente a lei (art.º 115º, nº 2, a), do RAU) ao considerar "ter havido trespasse de estabelecimento comercial quando se operou tão somente uma cedência ilícita do direito ao arrendamento"; assim, conclui ainda, "parece irrefutável estarmos em presença de um erro grosseiro do juiz, que agiu com culpa grave ao qualificar o negócio realizado como trespasse, não podendo dizer-se, para sua defesa, que a matéria sobre que incidiu a sua decisão é controvertida ou que cai no âmbito da livre apreciação do julgador. Porque efectivamente não cai. Face a um dado objectivo, a transmissão do espaço apenas, sem mais valores, o tribunal entendeu haver trespasse. E errou"; "deste modo, - afirma a finalizar - "não pode-remos senão considerar que se preenchem os pressupostos da responsabilidade do Estado por actos da administração da justiça, uma vez que as decisões proferidas (facto), enfermando de um erro grosseiro (culpa), redundaram numa violação de lei (ilicitude) que causou (nexo) avultados danos (dano) na esfera jurídica da recorrente, que têm que ser reparados".
Como se vê, está em causa a chamada responsabilidade do Estado-Juiz, por facto do poder jurisdicional.
A actualidade e premência do problema resulta do enorme desenvolvimento do poder judicial nas últimas décadas. Este fenómeno encontra-se associado a múltiplos factores, de que destacaríamos a título meramente ilustrativo apenas três, todos intimamente relacionados entre si:
Em primeiro lugar a projecção, o aprofundamento e a sofisticação do Estado Social, que, levando-o a intervir em sectores da vida social de que estava ausente há poucas décadas, aumentou exponencialmente o papel de controle que cabe ao poder judicial, designadamente à jurisdição administrativa e constitucional;
Em segundo lugar a proliferação de leis que, visando justamente assegurar os novos direitos e as novas garantias reclamados com veemência crescente por todos os sectores da sociedade, apelam a cada passo para a utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais como instrumento de realização da justiça por parte dos tribunais, assim atribuindo aos juízes um papel cada vez mais significativo no aperfeiçoamento do Estado de Direito (adequação das leis às necessidades da vida prática, sempre em acelerada mutação);
Em terceiro lugar, a acentuação da tendência para cada qual afirmar os seus direitos por via judicial (1), o que tem aumentado de forma impressionante a litigiosidade e o grau de exigência a que os juízes ficam submetidos, por terem de resolver toda a sorte de questões, mesmo aquelas que até há bem pouco tempo se decidiam no âmbito da acção cívica, da actividade política, ou de sectores específicos da administração.
Está claro que neste ambiente de verdadeira transformação da natureza do poder judicial o juiz vai dispondo progressivamente, mesmo sem o querer, de novos poderes (ou, se se quiser, de novas e diversificadas competências), o que lhe confere um papel mais activo, mais próximo e mais determinante na evolução da sociedade.
Só que isto, logicamente, tem reflexos a dois níveis.
Por um lado, a mais poder - e, no sentido exposto, a maior liberdade decisória - corresponde uma maior responsabilização; por isso é que, como escreveu Mauro Cappelletti (2), existe hoje em todo o mundo uma tendência para submeter os juízes a controle, tendo em vista melhorar o seu desempenho e eficácia e reconhecer a sua responsabilidade, sem diminuir todavia de modo excessivo o seu isolamento em relação ao poder político, que garante a respectiva independência. Em sentido idêntico, Pedro Bacelar de Vasconcelos ponderou o seguinte: "Só por inaceitável atavismo ou reverência corporativa se pode explicar, numa época em que o judicial acabou por partilhar o destino interventor dos restantes poderes públicos e se revela capaz de produzir os mais duros e imprevisíveis estragos na esfera pessoal e patrimonial dos particulares, que a responsabilidade do Estado por exercício da função jurisdicional permaneça circunscrita, no essencial, às hipóteses de privação de liberdade. Em matéria de responsabilidade nada justifica que quaisquer lesões devidas a erro judiciário - seja por dolo, negligência, erro grosseiro - ou resultantes, em geral, do funcionamento anormal da administração da justiça, não constituam o lesado no direito a uma compensação, fundado na lesão simultânea do interesse particular e do próprio interesse público, a patentear aqui a inviabilidade de uma bipartição radical entre actos lícitos e ilícitos" (3).
Por outro lado, a mais e mais variadas competências, e a maior pressão social no sentido de resolver os litígios em tempo razoável e com justiça, corresponde um risco acrescido de errar.
Era a este ponto, justamente - o do erro judiciário - que, feito o breve enquadramento geral que antecede, pretendíamos chegar, pois é nele, como já vimos, que se situa o âmago do presente litígio.
Segundo o artº 22º da Constituição o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
De acordo com a generalidade da doutrina nacional, este preceito constitucional abrange na sua previsão a responsabilidade civil decorrente da actividade jurisdicional, para além dos dois casos específicos expressa-mente mencionados nos seus artºs 27º, nº 5 e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta). Isto porque, sem qualquer dúvida, o poder judicial é um poder do Estado, sendo certo que o vocábulo funções utilizado nesta norma da Constituição abrange todas as funções estaduais, incluindo, naturalmente, a jurisdicional. Além disso, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de 8.7.97 (CJSTJ, V, II, 153), embora este preceito não se inclua no Título II - Direitos, Liberdades e Garantias - o direito nele reconhecido deve ser visto em paralelo com as obrigações de indemnizar que podem derivar para o Estado do que se dispõe nos artºs 52º, nº 3, e 62º, nº 2, da Constituição, estendendo-se-lhe, por isso, o regime ditado pelo artº 18º, nº 3, em particular a sua aplicação directa, independentemente da existência de lei ordinária que o concretize (4).
Em qualquer caso, seria sempre defensável o entendimento de que, não tendo o legislador ordinário, na sequência desta norma constitucional, regulado a efectivação do direito de indemnização - delimitação do seu âmbito, caracterização do dano indemnizável, pressupostos e condições da acção respectiva, fixação do tribunal competente, etc - subsistiria em vigor o diploma que anteriormente regulava a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública (o DL 48.051, de 21.11.67), na medida em que não contrarie os princípios constitucionais.
Certo é que, estando em causa conceber e caracterizar a responsabilidade civil do Estado numa situação como a presente - sentença proferida no âmbito da jurisdição cível alegadamente eivada de erro de direito - é imperioso ter em conta as normas e princípios constitucionais, todos eles concretizados na lei ordinária, que definem a estrutura do poder judicial, a organização dos tribunais e o estatuto dos juízes.
Assim, com interesse para o caso, é de referir que:
Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art.º 202º, nº 1, CRP).
Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art.º 202º, nº2, CRP).
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art.º 203º CRP).
Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei (art.º 216º, nº 2, CRP).
Os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado (art.º 3º, nº 2, do EMJ - Lei 21/85);
Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores (art.º 4º, nº 1, do EMJ);
O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não especialmente previstas (art.º 4º, nº 2, do EMJ);
Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões (art.º 5º, nº 1, do EMJ);
Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar (art.º 5º, nº 2, do EMJ);
Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado, com fundamento em dolo ou culpa grave (art.º 5º, nº 3, do EMJ).
Perante as normas transcritas, já se vê como se torna difícil e delicado concretizar o comando do art.º 22º da Constituição, criando a tal "norma de decisão" a que os autores citados na nota 4) aludem, quando se trate de avaliar acerca da existência de um erro de direito cometido em acto jurisdicional e da sua relevância enquanto facto gerador de responsabilidade civil.
Com efeito, e desde logo, manifestação essencial do princípio da independência é a autonomia na interpretação do direito (5), ou, como refere o Prof. Gomes Canotilho, no exercício da jurisdição. Segundo este autor, "qualquer relação hierárquica no plano da organização judicial não poderá ter incidência sobre o exercício da função jurisdicional. A existência de tribunais de hierarquia diferente e a consagração de órgãos de disciplina (Conselhos Superiores) também não perturba o princípio da independência do juiz no exercício da jurisdictio (Cfr. Ac. TC 257/98)". Corolário de igual modo essencial do mesmo princípio é a independência funcional do juiz, que não significa outra coisa senão que no exercício da sua função jurisdicional ele apenas está sujeito às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas. Por outro lado, o princípio da irresponsabilidade (cit. Art.º 216º, nº 2, CRP) tem por finalidade assegurar a independência: como observa o autor acima citado, tal princípio transporta a ideia de que o juiz não pode ser condicionado na sua função pelo medo de uma punição ou pela esperança de um prémio.
A isto acresce que a ciência do Direito não é exacta: faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação. Por outro lado, como alguém já lembrou, o número de casos excederá sempre o número de leis; e como não vivemos num mundo ideal, perfeito, nem o legislador é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tribunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Enfim, a verdade absoluta é inatingível: tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto, quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos, e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade; todos estão sujeitos a errar e a induzir em erro.
Por tudo isto, subscrevemos por inteiro as considerações que se seguem, inseridas no acórdão deste tribunal a que atrás fizemos referência e cuja pertinência ao caso sub judice é patente:
"Sabido, como é, que as suas características de generalidade e abstracção distanciam cada vez mais a lei dos casos da vida, e considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o juiz toma - atentemos, desde logo, na variedade de critérios, por vezes de sentido divergente, que o próprio art. 9º do CC nos dá sobre a interpretação da lei -, bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar larga adesão, e com isso se formando correntes jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar em qual está errada.
Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.
Dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o "iter" decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido.
A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina.
Por isso as legislações estrangeiras e as posições doutrinárias vêm exigindo uma culpa grave para permitir a formulação do necessário juízo de crítica sobre o decidido. E, designadamente, a Lei italiana n° 117/88 qualifica como culpa grave a grave violação da lei e a afirmação ou a negação de um facto que esteja, respectivamente, excluído ou assente de modo incontestável em face dos autos, quando isso se deva a negligência indesculpável do juiz - cfr. Álvaro de Sousa Reis Figueira, Estatuto do Juiz/Garantias do Cidadão, Col. Jur. 1991-11-56.
Com interesse para acentuar esta vertente do problema é de referir que já em 1979 Nótula sobre o Artigo 208° da Constituição Independência dos Juízes, in Estudos sobre a Constituição, 3° Volume, pg. 657 - Castro Mendes escrevia: "Merecem, além disso, neste momento uma referência particular dois elementos especialmente nocivos - e em Portugal a epidemia é grave e geral - ao processo decisório: a sobrecarga de trabalho e a pressa. Estamos aqui de novo, perante factores impeditivos de uma decisão boa (ou largamente impeditivos, transformando a decisão justa em produto muitas vezes da sorte), embora não constitutivos de uma decisão má.
E é notório o agravamento dramático que desde então se tem sentido neste campo".
Fique, pois, claro que para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no julgamento que vier questionado.
Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis".
A isto permitimo-nos acrescentar tão somente o seguinte:
Os juízes não podem abster-se de julgar, invocando a falta ou a obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio. Mais: o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de que é injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo (art.º 8º do CC). Pode suceder, deste modo, que o juiz se veja na contingência de aplicar um preceito legal a determinados factos em consequência duma interpretação da lei que não é, na sua perspectiva pessoal, a mais adequada, ou cujo sentido não lhe surge como unívoco. Em tais casos, que decerto não serão tão poucos quanto isso, com que propriedade poderá falar-se em erros de direito imputáveis ao juiz? Como discernir claramente, nessas e noutras hipóteses, onde começa e onde acaba a valoração dos factos e a interpretação das leis que constitui o cerne da função de julgar, constitucionalmente protegida de qualquer interferência?
Tudo quanto se disse até ao momento demonstra a dificuldade a que nos referimos de início - a dificuldade, no fundo, de conciliar o princípio da independência dos tribunais, necessária ao desempenho imparcial da sua função soberana, com o princípio da responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes, hoje aceite nos ordenamentos jurídicos mais avançados (6).
Talvez por isso, encontramos uma assinalável convergência de pontos de vista quando o facto ilícito em causa é aquele que nos interessa no caso sub judice - erro de direito praticado num acto jurisdicional.
Podemos resumi-la nas seguintes proposições essenciais:
a) - Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis;
b) - Por tal motivo, o erro de direito - que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à interpretação (sentido da lei aplicada), ou à qualificação (dos factos) - é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei, que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis (art.ºs 676º a 761º do CPC);
c) - Na jurisdição cível, estão ainda previstos os recursos extraordinários de revisão e de oposição de terceiro, que contemplam vários fundamentos de impugnação de decisões transitadas em julgado (art.ºs 771º a 782º do CPC);
d) - O erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função judicial referida em a), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.
Na última edição da sua monumental obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7ª edição, pág. 509) o Prof. Gomes Canotilho resumiu o estado da questão no nosso país, escrevendo o seguinte:
"Não obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns países vai no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados (de tribunais singulares ou colectivos) quando a sua actividade dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares. Sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova. Por outro lado, é duvidoso que, fora dos casos de responsabilidade penal e disciplinar do juiz, se possa admitir a responsabilidade civil do juiz com a consequente possibilidade de direito de regresso por parte do Estado.
No entanto, podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando: (1) houver grave violação da lei resultante de negligência grosseira; (2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos, cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade for a dos casos previstos na lei; (5) denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais" (o sublinhado é nosso).
Na situação ajuizada, porém, está de todo em todo excluída a possibilidade de formular tais juízos de valor.
Vejamos porquê.
Sucedeu que numa acção de despejo intentada pela autora contra a massa falida de Supermercados "B, Ldª", quer o tribunal da 1ª instância, quer Relação, aplicando aos factos da causa a norma do art.º 115º, nº 2, al. a), do RAU, decidiram:
A 1ª instância: "O que releva para se concluir que determinada organização constitui um estabelecimento comercial é a prova das condições para que possa entrar em funcionamento, a fim de ali serem desenvolvidas as actividades que preencham os seus fins.
Para que exista um estabelecimento comercial não se torna necessário "que a respectiva organização económica que serve de suporte ao ente jurídico esteja a funcionar e em movimento; basta que esteja apto para entrar em movimento" - sentença citada no Ac. Da Relação de Lisboa de 8.3.04, na CJ XIX, II, 73.
Como se viu, após a realização das obras que o trespassário entendeu levar a cabo, o estabelecimento estava apto para abrir as portas e recomeçar a funcionar, que foi o que aconteceu, o que mostra que o facto de ter estado fechado e sem mercadorias ou outro tipo de bens não levou ao desaparecimento do estabelecimento comercial como realidade económica, nem como realidade jurídica, susceptível de ser trespassado" (fls 87).
A Relação: "No que concerne à segunda questão, a da inexistência de trespasse por inexistência de elementos mínimos para caracterizarem o estabelecimento comercial, a autora alegou, para além do encerramento do estabelecimento em questão, que o mesmo estava vazio de mercadorias.
Esta alegação foi entendida como insuficiente para integração de um quadro de impossibilidade de trespasse por inexistência de estabelecimento na decisão recorrida, e bem.
Com efeito, o que se exige no art.º 115º, nºs 1 e 2, b), do RAU, é que se transmita o que integre, no caso, o estabelecimento, não tendo a alusão a mercadorias o significado de ser imprescindível a transmissão desse elemento se, na circunstância, não existir.
Relevante, sim, é que o conjunto que se transmita seja adequado a funcionar como determinado estabelecimento comercial, nomeadamente tendo em conta o ramo, como resulta do disposto no art.º 115º, nº 2, b), do RAU.
A essa luz é acertado o entendimento expresso na sentença recorrida, no sentido de que saber-se que realizadas obras pela 2ª ré, concretamente reparação de canaliza-ções, substituição de vidros, substituição do pavimento e pintura das paredes, o conjunto transmitido pôde reiniciar o seu giro. É que não se tratando sequer de obras que revelem reestruturação do local, nem implicando reequipamento ou semelhante, há que se concluir que o conjunto que se vem referindo se manteve adequado a prosseguir os fins próprios do estabelecimento comercial primitivamente ali instalado.
Improcedem, assim, as correspondentes conclusões da apelante".
Convém notar que no processo em que estas decisões foram tomadas ficou provado, além dos factos atrás relatados (secção II) que logo após o trespasse a ré "B, Ldª", iniciou obras no arrendado e abriu-o ao público no dia 6.12.99.
Ora, a simples leitura dos passos transcritos mostra à evidência, cremos nós, que os tribunais proferiram as decisões questionadas no puro e simples cumprimento do seu dever legal de julgar, a que não poderiam eximir-se, e movendo-se, no caso, dentro do círculo, verdadeiramente inexpugnável, em que podem actuar com inteira independência: enquadramento jurídico dos factos, sua valoração à luz do direito tido por aplicável e selecção e interpretação da norma jurídica isolada para resolver o litígio.
E como resulta de tudo quanto se expôs, isto, por si só, é já determinante para a improcedência do recurso.
Mas pode ir-se mais longe.
Na realidade, analisando as coisas com o necessário distanciamento, logo se constata que representa uma afirmação no mínimo temerária dizer, como diz a recorrente, que os tribunais decidiram manifestamente contra legem ao aplicar o art.º 115º, nº 2, a), do RAU do modo como o fizeram.
Na verdade, semelhante aplicação da lei nada tem de extraordinário, assentando numa interpretação daquele preceito que não é original nem sequer isolada. Considerar que um estabelecimento comercial sem mercadorias continua a sê-lo, e, por isso, é susceptível de trespasse, não pode de forma alguma reputar-se como uma aberração, uma decisão completa-mente absurda e irrazoável, reveladora de grosseira e indesculpável ignorância do direito vigente. Face à multiplicidade de elementos, corpóreos e incorpóreos, que compõem um estabelecimento comercial, e tendo em conta que o trespasse, conforme é entendimento unânime, implica uma sua transferência global, unitária, alguns conceituados autores defendem que as hipóteses tipificadas no nº 2 do art.º 115º do RAU são meras presunções de inexistência de trespasse (cfr. Manuel Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, pág. 171), ou índices semióticos da não transmissão do estabelecimento (Orlando de Carvalho, RLJ 110º, pág. 111). Por isso, o arrendatário poderá demonstrar que se realizou de facto um trespasse (Pereira Coelho, Arrendamento, 1988, pág. 215). O Conselheiro Pinto Furtado não perfilha este entendimento do texto legal em análise (cfr. Manual do Arrendamento Urbano, pág. 496 e seguintes). Em todo o caso, não deixa de reconhecer, referindo-se à construção dos autores citados, que é "brilhante, de indesmentível apuro técnico" (pág. 497); e mais adiante acaba por afirmar o seguinte (pág. 502): "Acentuemos aqui, uma vez mais, que a transmissão tem de ser global e em conjunto, sem impor que tenha de ser total. A distracção à unidade global de certos bens, de certas relações contratuais, certas unidades globais menores, que não roubem a identidade do estabelecimento, são legítimas e não descaracterizam o trespasse" (o sublinhado é nosso). Pela nossa parte, diríamos até que a própria letra do preceito, em especial a utilização da adversativa "ou ", reforça de algum modo o acerto, ou, pelo menos, a razoabilidade da interpretação censurada pela recorrente: afigura-se que, segundo o legislador, não é essencial à existência de trespasse a transferência de todos os elementos que integram o estabelecimento, mas apenas a daqueles que formam, digamos assim, o seu núcleo irredutível. Ora, na situação apreciada na acção de despejo posta pela autora tudo indica que foi precisamente isto que sucedeu: a ausência de mercadorias (e é preciso não esquecer que o locatário era um supermercado declarado falido) não impediu que, sete meses decorridos sobre o trespasse, e concluídas obras que não foram de reestruturação do local, a trespassária abrisse ao público o estabelecimento instalado no arrendado.
Somos assim levados a concluir que no caso presente não se verifica nenhum dos pressupostos legais da responsabilidade civil do réu, designadamente, e em especial, a prática de facto ilícito, o que deita por terra a pretensão da autora.
IV - Nestes termos, nega-se a revista e condena-se a autora nas custas.

Lisboa, 31 de Março de 2003
Nuno Cameira
Sousa Leite
Afonso de Melo
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(1) E, note-se, já não apenas direitos subjectivos em sentido estricto, senão também interesses difusos e interesses individuais, homogéneos ou não (cfr. a Lei 83/95, de 20 de Agosto - Lei de Acção Popular).
(2) Autor citado pelo Cons. Rui Pinheiro em "Democracia, Poder Judicial e Responsabilidade dos Juízes", trabalho incluído na obra Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado - Trabalhos preparatórios da Reforma, edição da Coimbra Editora (pág. 68 e sgs, maxime pág. 77)
(3) Em "A crise da justiça em Portugal", pág. 37, edição Gradiva.
(4) Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3ª edição, pág. 170: segundo estes autores cabe aos tribunais, na falta de lei concretizadora, criar uma "norma de decisão" tendente a reparação de danos resultantes de actos lesivos de direitos, liberdades e garantias ou dos interesses juridicamente protegidos dos cidadãos.
(5) Neste exacto sentido, cfr. obra cit. na nota anterior, pág. 795.
(6) Note-se que o Supremo já decidiu, em acordão relatado pelo 1º adjunto deste (acórdão de 3.12.98, Processo 98A644) que é admissível acção de indemnização contra o Estado por negligência grosseira no exercício da função judicial.