Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3811
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
EMBRIAGUEZ
ALCOOLÉMIA
MORTE
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200406240038112
Data do Acordão: 06/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3955/02
Data: 05/06/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - O Tribunal da Relação tem competência para extrair dos factos provados outros factos desconhecidos mediante presunção judicial (artigo 349º do Código Civil), estando esse julgamento de facto isento de censura pelo Supremo, salvo nas hipóteses previstas no nº. 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil;
II - O Supremo Tribunal de Justiça pode, todavia, sindicar a inobservância de regras legais, maxime do artigo 349º, que regem esse meio de prova;
III - A taxa de álcool no sangue de 3,09 gr/l - elevada ao sêxtuplo do limite legal vigente de 0,5 gr/l - de que o condutor do veículo sinistrado era portador no momento do acidente, à luz de regras da experiência e técnico-científicas segundo as quais uma tal extraordinária concentração de álcool no sangue importa necessariamente acentuada quebra da capacidade para a condução, permite à Relação induzir, como puros factos despidos de coloração jurídica, que o condutor se encontrava em estado de profunda embriaguez, determinando uma agravação dos riscos de acidente, e que a eclosão deste se devera à acção do álcool;
IV - No tocante, porém, a este aspecto da causalidade, a presunção, como operação de factos sobre factos, concerne unicamente à causalidade naturalística da condução concretamente desenvolvida com alto grau de alcoolemia e embriaguez na produção do acidente e da morte, ou seja, como conditio (necessária, no caso concreto) de efectivação destes resultados, posto que a questão de saber se a embriaguez do condutor foi do mesmo passo causa adequada dos aludidos eventos situa-se já no plano jurídico da causalidade e não pode ser resolvida pela via de presunção judicial;
V - Contudo, na acepção mais criteriosa da causalidade adequada, a denominada «formulação negativa», o facto que actuou como condição do dano só deixa de ser considerado causa adequada deste se, dada a sua natureza geral, for de todo indiferente para a sua verificação, tendo-o causado só por virtude de circunstâncias excepcionais, extraordinárias ou anómalas que intervieram no caso concreto;
VI - Não sendo este, todavia, o caso, pode a Relação, julgando de direito em face da presunção extraída quanto à causalidade naturalística, concluir inclusivamente que a profunda embriaguez do condutor foi causa adequada do despiste e colisão com uma árvore do automóvel por ele tripulado que o vitimou mortalmente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- "A" (1), menor, representada por sua mãe D. B, com esta residente na freguesia da Cumeada, concelho da Sertã, agindo na qualidade de filha e herdeira única de C, falecido a 15 de Outubro de 1999 em consequência de despiste e embate numa árvore do automóvel que tripulava, instaurou no Tribunal Judicial daquela localidade a 19 de Setembro de 2001, contra "D, S.A.", com sede em Lisboa, acção ordinária tendente a obter a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 6.222.190.000$00 acrescida dos juros legais vencidos desde a morte de C, liquidados em 835.308$00 à data de 15 de Setembro de 2001, e vincendos até integral pagamento, bem como de sanção pecuniária compulsória nos termos do artigo 829º-A do Código Civil, ao critério do julgador.
A quantia pedida constitui o remanescente do capital de seguro de vida celebrado por C com a ré no valor de 10.000 contos, em conexão com o mútuo do mesmo valor que aquele contraiu junto do "E, S.A."/"F" (2), para a construção de um imóvel destinado a habitação, remanescente que no caso de morte do mutuário revertia para os herdeiros, e que a ré se recusa a solver.
Adianta ademais a autora que embora o falecido acusasse uma taxa de álcool de 3,09 gr/l no sangue, não foi essa a causa que determinou a eclosão do acidente. Tanto mais que ele «não conduzia sob a influência do álcool, pois, por lei, era-lhe permitido conduzir com 0,5 g/l de TAE o que equivaleria, no sangue a 5 x 2,3 = 11,5 g/l - nº. 3 do artigo 81º do Código da Estrada». Conduzia, por conseguinte, «com uma TAE inferior a 0,2 g/l quando a taxa permitida era de 0,5 g/l».
Contestou a ré alegando fundamentalmente que o sinistro fora ao invés provocado pelo álcool que a vítima ingerira, estando a morte nessas circunstâncias excluída das coberturas conferidas pelo contrato de seguro, consoante a previsão da cláusula ou condição 3ª, nº. 1, alíneas c), 3), das «condições gerais».
Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferido saneador/sentença, em 15 de Maio de 2002, que, conhecendo do mérito, julgou a acção improcedente.
Apelou a autora sem sucesso, negando a Relação de Coimbra provimento ao recurso, com um voto de vencido (3).
Do acórdão neste sentido proferido, em 6 de Maio de 2003, traz a autora a presente revista, cujo objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste nuclearmente, como adiante se precisará, na questão de saber se o acidente mortal em que perdeu a vida o desafortunado C se pode considerar verificado nas condições previstas na citada cláusula, com a consequente exclusão da obrigação da ré frente à autora pelo pagamento da quantia remanescente do seguro.

II- 1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1ª instância, cujo elenco se reproduz na parte com interesse, sem prejuízo de factos extraídos no acórdão sub iudicio por presunção judicial a que adiante se aludirá:
1.1. «C, faleceu no dia 19 de Outubro de 1999, no estado de solteiro, na sequência de um acidente de viação ocorrido na E.N. nº. 2, ao Km 361,169, em Fundada, no concelho de Vila de Rei;
1.2. (...)
1.3. «A é filha de B e de C, residente com a mãe;
1.4. «C e o "E, S.A." celebraram o acordo consubstanciado na escritura pública junta aos autos a fls. 18 e segs., datada de 14 de Maio [de 1998], outorgada no Cartório Notarial de Proença-a-Nova, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, de acordo com qual o "E, S.A." concedeu a C um empréstimo de 10.000.000$00 para construção de casa própria, obrigando-se este a contratar um seguro de vida no montante de 10.000.000$000;
1.5. «Desse empréstimo, C havia utilizado 3.777.810$00, que a ré pagou ao Banco;
1.6. «Em 27 de Julho de 1998, C celebrou com a ré um acordo, consubstanciado na apólice nº. 00023302 junta, pela qual a ré assumiu o pagamento de uma indemnização por morte daquele (4) até ao montante de 10.000.000$00 e em que o tomador era o "F" e o beneficiário, em caso de morte, o "E, S.A.", e, pelo capital remanescente, os herdeiros legais;
1.7. «No momento do acidente, C acusava uma taxa de álcool no sangue de 3,09 g/l;
1.8. «Da cláusula 3ª das condições gerais do acordo referido em 6. consta que 'Não se considera coberto por este contrato o risco de morte (...) resultante de doença pré-existente, doença ou lesão provocada por: c) factos que sejam consequência de 3) embriaguez e abuso de álcool, ou de estupefacientes fora da prescrição médica'.»

2. A partir dessa factualidade, considerando o direito aplicável, a sentença julgou a acção improcedente, desenvolvendo em síntese o raciocínio seguinte.
Em face do teor da condição 3ª do contrato de seguro que vem de se transcrever, e na perspectiva da sua verificação no caso concreto, considerou que a condução em estado de embriaguez existirá quando tenha lugar «com um teor de álcool superior ao legalmente permitido, pois é a partir de tal limite que o legislador entendeu estarem as faculdades do condutor enubladas e, por isso, não dever o mesmo conduzir». E, assim, se alguém conduz com uma taxa (igual ou) superior à de 0,5 g/l legalmente estabelecida e tem um acidente, «presume-se que foi por causa do álcool, porquanto tal é o normal em acidentes de viação em que intervém tal alcoolemia».
E isto devido às alterações fisiopsíquicas que o álcool produz no organismo - afectação das funções sensorial e perceptiva, descoordenação motora e do equilíbrio, perturbação da memória e do estado psicológico; criação de estados de excessiva confiança, diminuição dos reflexos e da capacidade visual -, tanto mais acentuadas quanto maior a quantidade ingerida.
A «causalidade do álcool é assim inerente à própria influência do álcool», observa a sentença. Se o acidente não ocorreu devido a ele, essa «é a excepção, que como tal deverá ser alegada e provada pelo condutor».
Provando-se, pois, que o falecido era portador de um taxa de 3,09 gr/l, manifestamente superior ao limite legal, não se suscitaram «dúvidas quanto ao estado de embriaguez em que o condutor do veículo acidentado seguia». E não se revelando outra causa explicativa do evento, cuja prova na presente acção competia à autora, ficara por ilidir a presunção legal de que o C não estava em condições de conduzir, concluindo-se que o sinistro foi causado pelo álcool.

3. A decisão de improcedência foi confirmada pela Relação, como sabemos, embora com diferenças de fundamentação não despiciendas.
Desde logo, procura o acórdão sub iudicio elucidar a questão da taxa de álcool da vítima do acidente, que a autora sustenta na petição ser inferior ao limite legal, reiterando o mesmo ponto de vista na alegação da apelação, fruto em suma de confusão entre os conceitos de TAE (teor de álcool no ar expirado) e TAS (teor de álcool no sangue).
Com efeito, salienta nuclearmente que o Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei nº. 114/94, de 3 de Maio, em vigor à data da morte, estipulava no nº. 1 do artigo 87º, a que na evolução legislativa subsequente veio a corresponder o artigo 81º: «É proibido conduzir sob a influência do álcool, considerando-se como tal a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l.».
Ora, tendo-se provado que C conduzia com uma taxa de 3,09 g/l no sangue (TAS), e sendo o limite legal expresso também em TAS, carece de todo o sentido a conversão que a autora ensaiou com base no nº. 3 do artigo 81º, para afirmar que a taxa do condutor era inferior ao limite legal, conclusão assim manifestamente viciada.
Posto isto, a Relação de Coimbra, em presença dos referidos dados, ponderando, nomeadamente, que C se fazia portador de uma «taxa de álcool no sangue inusitadamente elevada ao sêxtuplo do respectivo limite máximo à altura vigente», extraiu por «presunção judicial» (artigos 349º e 351º do Código Civil), as seguintes ilações de facto.
Por um lado, inferiu que o condutor se encontrava «aquando do sinistro, em profundo estado de ebriedade».
Por outro lado, perspectivando as «circunstâncias determinantes do despiste» no caso concreto, concluiu que «a condução com TAS extraordinariamente elevada importa, necessariamente, diminuição acentuada da aptidão para bem conduzir e, consequentemente, agravamento de risco de acidente», vindo, pois, a «decidir, definitivamente, como se fez na sentença, sob apelo à notada falta de ilisão daquela presunção» - ou seja, assim se interpreta, que o sinistro foi causado pelo álcool.

4. Da decisão dissente a autora inconformada mediante a presente revista, formulando na alegação as conclusões seguintes:
4.1. «A excepção invocada pela ré está em absoluta e frontal oposição com o articulado deduzido pela autora na petição inicial, mormente, nos artigos 10º a 14º, 21º e 22º;
4.2. «A morte do C ficou a dever-se às lesões graves sofridas em consequência do acidente de viação;
4.3.«O embate do veículo no eucalipto foi de tal forma violento que, sem mais interferências, produziu no condutor os resultados descritos no relatório da autópsia do infeliz C;
4.4. «Da força do embate e dos resultados, teremos necessariamente de concluir que o condutor conduzia o veículo, naquela hora, naquele local, com excesso de velocidade - artigo 24º do Código da Estrada;
4.5. «Se o âmbito da presente acção fosse a responsabilidade pelo acidente de viação, teríamos de concluir que do mesmo se deve culpar exclusivamente o condutor, salvo avaria mecânica desconhecida, que conduzia com excesso de velocidade sob o efeito do álcool;
4.6. «Nos termos da jurisprudência nº. 6/2000, de 18 de Julho, cabia à ré, como seguradora do veículo, com a apólice nº. 33184542 - cfr. doc. 7, fls. l (5) - [a prova] de que o álcool seria causa necessária e suficiente para provocar o acidente;
4.7. «Como parte no seguro de vida não tem qualquer legitimidade para invocar o acidente, a menos que demonstre que o álcool ingerido tenha sido a causa da morte;
4.8. «O C faleceu no dia 19 de Outubro de 1999, tinha garantido o pagamento do empréstimo, no caso de decesso, através de um seguro de vida;
4.9. «Os beneficiários eram os herdeiros legais;
4.10. «A ré não pagou o capital e respectivos juros e recusa-se a fazê-lo;
4.11. «Estamos perante um seguro de vida, a favor de terceiro, cujo capital se vence no momento da morte;
4.12. «As causas do acidente não cabem nas excepções invocadas na alínea 3ª do contrato, especificamente na alínea c), 3);
4.13. «Em parte alguma vem referido ou provado que o acidente foi devido à ingestão de álcool ou que a conduta do condutor teria sido diferente se não apresentasse álcool no sangue;
4.14. «Vem expressamente referido e provado por acordo que o acidente se ficou a dever a excesso de velocidade;
4.15. «Em parte alguma vem referido que foi a ingestão de álcool a causa suficiente e necessária da morte;
4.16. «Como não se consegue saber qual a medida de influência que a ingestão teria contribuído, se é que contribuiu, para o excesso de velocidade;
4.17. «O douto acórdão recorrido violou além de outros os artigos 490º, nº. 2, do Código de Processo Civil, 227º, nº. 1, 344º, 563º e 762º do Código Civil.»

5. A ré recorrida contra-alega, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio.

III- Coligidos em conformidade com o exposto os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. A causa de pedir da presente acção apresenta-se fundamentalmente estruturada no contrato de seguro de vida celebrado entre a ré "D, S.A.", e o pai da autora, C, em conexão com o financiamento da construção de um imóvel para habitação através de mútuo do "E, S.A." ao segurado, cuja restituição se destinava a garantir na eventualidade da morte deste (cfr. supra, II, 1.4. e a respectiva apólice a fls. 58 e segs.).
Em caso de morte, o beneficiário do capital seguro era por isso o mutuante "E, S.A.", revertendo o remanescente, se o houvesse, para os herdeiros legais de C (supra, II, 1.6., e fls. 58), ou seja, sua filha A, autora na presente acção.
C veio a falecer em consequência do despiste e colisão com um eucalipto do automóvel que ele próprio conduzia. E tendo então utilizado 3.777.810$00 dos 10.000.000$00 mutuados (supra, II, 1.5.) (6) solvidos ao "E, S.A.", a autora viu recusado pela ré o pagamento do quantitativo de 6.222.190$00 remanescente, pedido na presente acção, com o fundamento de que o sinistro - e a morte - ocorrera em consequência do álcool ingerido pelo condutor, o qual acusava no momento do acidente uma TAS de 3,09 gr/l, singularidade não coberta pelo seguro atenta a condição 3ª, alíneas c), 3), (supra, II, 1.8.), que de novo se recorda do original (fls. 62):
«Não se considera coberto por este contrato o risco de morte (...) resultante de doença pré-existente, doença ou lesão provocada por: c) Factos que sejam consequência de: (...); 3) Embriaguez e abuso de álcool ou de estupefacientes fora da prescrição médica.»

2. Pois bem. Consistindo o objecto da revista, com se adiantou introdutoriamente, na questão de saber se os factos assentes permitem considerar verificada a hipótese delineada nesta cláusula, com a consequente exclusão da responsabilidade contratual da ré, julgamos, tudo ponderado, que a interrogação merece resposta afirmativa.
2.1. Provou-se, na verdade, que o malogrado C era portador, no momento do acidente, de uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 3,09 gr/l, mais de seis vezes superior ao máximo estabelecido na lei vigente.
E a Relação de Coimbra, a partir desse facto, à luz de regras da experiência e técnico-científicas, segundo as quais a condução com tal concentração extraordinariamente elevada de álcool no sangue importa, necessariamente, uma diminuição acentuada da aptidão para conduzir, concluiu mediante presunção, por um lado, que o condutor no momento do acidente se encontraria em estado de profunda embriaguez, determinando, por outro lado, uma agravação dos riscos de acidente, e, mais ainda, que a eclosão deste se devera à acção do álcool.
Ora, em primeiro lugar, constitui entendimento uniforme que o Tribunal da Relação dispõe de poderes para, mercê de presunção, extrair dos factos provados outros factos desconhecidos, estando os eventuais erros desse julgamento de facto ao abrigo de censura do Supremo, salvo nas hipóteses previstas no nº. 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, que aqui não se verificam.
Pode evidentemente o Supremo sindicar outrossim a formulação de presunções, com fundamento em violação de regras legais, maxime do artigo 349º do Código Civil, que regulam este meio de prova (7).
Não se afigura, contudo, que a Relação tenha incorrido em similar infracção.
Desde logo, ao induzir da taxa de álcool anormalmente elevada no sangue de C a profunda embriaguez deste e a consequente agravação de riscos de acidente imputável à condução em tal estado, como puros factos despidos de coloração jurídica.
No tocante, por sua vez à ilação no sentido de que o acidente se deveu à incidência dessa extraordinária concentração de álcool, torna-se mister distinguir.
É óbvio que nesta vertente a presunção, como operação de factos sobre factos, só podia respeitar à causalidade naturalística daquela condução, concretamente desenvolvida com alto grau de alcoolemia e de embriaguez, na produção do acidente e da morte, isto é, como conditio (necessária, no caso concreto), de efectivação destes resultados. A questão, por seu turno, de saber se a etilização do condutor foi do mesmo passo causa adequada desses eventos situa-se já no plano jurídico da causalidade e não pode ser resolvida pela via de presunção judicial.
Entendendo-se, pois, a presunção extraída pela Relação em observância daquele condicionalismo, não deixará em todo o caso de se observar o seguinte.
Na formulação mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada - a denominada «formulação negativa» de Enneccerus/lehmann -, «o facto que actuou como condição do dano, só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostra de todo indiferente (gleichgültig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto» (8), o que realmente não acontece.
Isto significa que a Relação, julgando de direito em face da presunção extraída quanto à causalidade naturalística, podia inclusive concluir que a profunda embriaguez do desditoso condutor fora causa adequada do acidente que o vitimou mortalmente.

2.2. Flui, por consequência, do exposto que a morte de C resultou de lesões - descritas no relatório da autópsia a fls. 37/38 - provocadas pelo despiste e colisão com uma árvore do automóvel que tripulava, em consequência do estado de profunda embriaguez pelo álcool em que no momento se encontrava.
E reconheça-se que a constatação prejudica por si só, necessariamente, salvo o devido respeito, a aplicação da doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência nº. 6/2002, de 28 de Maio de 2002 (9), advogada na alegação da recorrente (cfr. a conclusão 5ª, supra, II, 1.5.).
Verifica-se, por consequência, a hipótese de exclusão de responsabilidade da ré desenhada na condição 3ª, alíneas c), 3), do contrato de seguro de vida, não tendo a autora direito, em contraponto, ao valor do remanescente do capital seguro pedido na presente acção.

3. Na improcedência, por todo o exposto, das conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento à revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela autora recorrente (artigo 446º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido (supra, nota 1).

Lisboa, 24 de Junho de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
___________
(1) Litigando com apoio judiciário oportunamente concedido (fls. 39).
(2) Trata-se de mútuo garantido por hipoteca e fiança, constando ainda da cláusula 8ª das «condições gerais» a obrigação, precisamente, de o mutuário contratar «um seguro de vida cujas condições, constantes da respectiva apólice, serão as indicadas pelo Banco».
(3) Do seguinte teor: «Votei vencido, por entender que a responsabilidade da seguradora só estaria excluída se esta provasse o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.»
(4) Onde se escreveu «daquele» lê-se, nos originais das instâncias, por lapso manifesto, «do R.».
(5) Pretendem os recorrentes certamente referir-se ao acórdão de uniformização de jurisprudência nº. 6/2002. Por outro lado, a apólice citada encontra-se referenciada na participação do acidente elaborada pela GNR (fls. 33), donde se conclui que a ré era igualmente a seguradora do veículo, não sendo, porém, esta, evidentemente, a qualidade em que se encontra demandada na presente acção.
(6) Com efeito, segundo o contrato, após uma prestação inicial, a quantia mutuada era entregue faseadamente, à medida da concretização do investimento (fls. 22, cláusula 1ª das «condições particulares»), e a restituição, em prestações mensais durante 30 anos, apenas se iniciava após a última disponibilização de capital pelo mutuante (fls. 23, cláusula 4ª).
(7) Um espécimen deste género foi objecto do recente acórdão, de 25 de Março de 2004, na revista nº. 4354/03, 2ª Secção.
(8) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, págs. 893/894, 899/900, 890/891.
(9) «Diário da República», I Série - A, nº. 164, de 18 de Julho, págs. 5395 e seguintes.