Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
257/21.3T8PVL.G1.S
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: CONTRATO DE MEDIAÇÃO
REMUNERAÇÃO
COMISSÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
VENCIMENTO
INTERMEDIÁRIO
BOA FÉ
RENÚNCIA
INTEGRAÇÃO DO NEGÓCIO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- Tendo-se estabelecido, num contrato de intermediação, que o intermediário receberia a remuneração convencionada quando a ré recebesse o pagamento da totalidade da encomenda (fornecida a terceiro), que consistia na produção de máscaras de proteção individual, o art.610º, n.1 do CPC permitiria que a ré fosse, de imediato, condenada a satisfazer a prestação em momento próprio.


II- Não tendo o terceiro pago à ré a ultima fração do pagamento devido, correspondente à produção de 30.000 máscaras (de um total de 123.800 máscaras), e não reclamando a autora qualquer comissão relativamente ao valor dessas máscaras, não terá esta de esperar que o terceiro proceda ao pagamento da totalidade das encomendas para receber a comissão a que tem direito. Tal é a solução que decorre do princípio da boa-fé plasmado nos artigos 762º, n.2 e 239º do CC.

Decisão Texto Integral:

Processo n.257/21.3T8PVL.G1.S1


Recorrente: FAFITECA – Fábrica de Fiação, Tecidos e Acabamentos, Unipessoal, Ldª


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. A “FAFITECA – Fábrica de Fiação, Tecidos e Acabamentos, Unipessoal, Ldª” propôs ação declarativa comum contra “Vieira Pocargil, S.A,”, pedindo a condenação da ré no pagamento de €32.830,00 €, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa devida para os juros comerciais.


Alegou, em síntese, que fez uma prospeção de mercado no sentido de encontrar uma empresa que produzisse máscaras de proteção individual, para serem adquiridas pela empresa “T..., Ldª” e que, com esse propósito contactou a ré.


Afirmou que foi acordada com a ré a aquisição de máscaras, pelo preço de €1,45 cada uma, sendo faturado o preço de €1,80, consistindo a diferença de €0,35 na remuneração a pagar à autora pelo seu trabalhado de intermediação, dado ter sido por intermédio da autora que a ré negociou e recebeu diversas encomendas para a confeção das máscaras.


Acrescentou que todas as máscaras foram faturadas à sociedade “T..., Ldª”, tendo a ré emitido seis faturas. A autora procedeu à soma dos valores faturados pela ré e emitiu e endereçou-lhe uma fatura respeitante aos montantes devidos pelos serviços de intermediação, no valor de €32.830,00, que a ré não pagou, apesar de interpelada para o efeito no dia 14 de janeiro de 2021.


2. A ré – “Vieira Pocargil, S.A,” – contestou e apresentou reconvenção.


Alegou, em síntese, que a autora não tem no seu objeto social a atividade de intermediação; que foi ela quem solicitou a produção de todas as máscaras e que ficou acordado que o lucro da autora seria pago quando a ré tivesse recebido o valor da totalidade das encomendas pedidas.


Porém, o pagamento ainda não tinha sido realizado, estando por levantar e pagar a encomenda de 30.000 máscaras, pelo preço de €57.240, correspondente à fatura FT .../...21.


Sustentou ainda que o custo de produção das máscaras que suportou é de €1,27 por máscara, pelo que deveria a autora indemnizar a ré pelo interesse contratual negativo.


Pediu, a final, a condenação da autora no pagamento de €57.240,00, acrescido de juros a contar de 16 de junho de 2020, à taxa de 7%; subsidiariamente, a título de indemnização pelo dano contratual negativo, deveria a autora ser condenada a pagar o custo de €1,27, mais IVA, por cada uma das 30.000 máscaras, no total de 40.386,00 €, acrescida de juros à taxa de 7%, a contar de 16 de junho de 2020 até integral pagamento.


3. Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou a ré a pagar à autora a quantia de €32.830,00, acrescida de juros, à taxa devida para os juros comerciais, a contar de 14 de janeiro de 2021 e até integral pagamento. E julgou improcedente a reconvenção, absolvendo a autora do respetivo pedido.


4. Inconformada, com tal decisão, a ré-reconvinte interpôs recurso de apelação, no qual teve sucesso, dado que o TRG decidiu: «julgar parcialmente procedente a apelação da ré reconvinte e, em consequência, absolvê-la do pedido contra si efectuado pela autora, mantendo-se a sentença recorrida na parte em que julga improcedente o pedido reconvencional.»


5. Inconformada com esse acórdão, a FAFITECA interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:


«1. Salvo o sempre devido respeito, que é muito, a Recorrente não se pode conformar com o douto Acórdão recorrido.


2. Na decisão em análise procedeu-se à alteração da matéria de facto dando-se como provado que a T... encomendou à Ré uma quantidade total de 123.800 máscaras; das quais, mesmo após várias insistências por parte Ré, a T... nunca levantou 30.000 (trinta mil).


3. Assim, estas 30.000 máscaras ainda se encontram disponíveis para levantamento nas instalações da Ré, não tendo esta recebido o preço acordado com a T....


4. Todavia, ao contrário do afirmado pela Ré, quer na sua contestação quer em sede de motivação das suas alegações de recurso, não se provou que tais máscaras tivessem sido fabricadas a pedido da Autora e depois confirmadas pela T..., nem que a Autora e a T... tivessem acabado por encomendar-lhe a quantidade total de 123.800 máscaras ao preço de 1,80 €, cada unidade.


5. O que se considerou provado no Acórdão recorrido, foi algo de diverso como infra melhor se demonstrará.


6. Com efeito, não foi efectuada qualquer prova da intervenção ou mediação da Autora na encomenda das derradeiras 30.000 máscaras.


7. Como, aliás, decorre cristalinamente da matéria de facto aditada pelo Venerando Tribunal da Relação.


8. Onde, na verdade, não se alude, em momento algum, à intermediação da Autora, conforme a Ré sustentava.


9. Mais: na matéria de facto aditada, não é feita qualquer referência à Autora.


10. Por conseguinte, a Ré deveria ter sido condenada no pagamento das comissões peticionadas e já vencidas, como bem se decidiu na douta sentença recorrida.


11. E se demandou na petição inicial.


12. Por outro lado, na douta sentença recorrida considerou-se provado que o lucro – comissões – da Autora seria pago, quando a Ré tivesse recebido a totalidade do valor das encomendas pedidas.


13. Porém, no caso vertente, não estamos perante um único contrato de fornecimento de máscaras, mas sim, de mais do que um.


14. E, nos restantes contratos intermediados pela Autora, a Ré recebeu da T... a totalidade do preço ajustado.


15. Donde, a condição de pagamento pela T... do valor das mascaras encomendadas, aqui em referência, teria de ser aferida relativamente a cada um dos fornecimentos efectuados pela Ré.


16. E não, considerando o total das máscaras fabricadas pela Ré para a T....


17. Sendo que, a Autora peticionou somente que a Ré fosse condenada a pagar-lhe o valor das comissões que lhe são devidas, relativamente às encomendas que intermediou e que foram integralmente pagas pela T....


18. Na verdade, o que flui da petição inicial é que a Autora jamais peticionou o pagamento de qualquer quantia respeitante a comissões que lhe pudessem ser devidas pela encomenda das 30.000 máscaras cujo pagamento a Ré reclama da T....


19. Deste modo, a conduta da Autora encontra-se absolutamente conforme com aquilo que são os usos e as boas práticas comercias.


20. Assim sendo, salvo o devido respeito, a condição negocial em apreço nunca poderia ser interpretada no sentido propugnado pela Ré, pois, essa interpretação contenderia manifestamente com o princípio da boa-fé e dos bons costumes.


21. E, se assim fosse, determinava a nulidade da estipulação de tal condição.


22. Sendo que o conhecimento da referida nulidade não carece de alegação das partes.


23. Antes sendo, matéria de conhecimento oficioso do Tribunal.


24. Nessa medida, o Tribunal deveria ter declarado desde logo a nulidade de tal condição contratual.


25. Além de que, a recusa pela Ré em pagar à Autora as comissões que bem sabe serem-lhe devidas, estribando-se no acordo referido (as comissões devidas à Autora só seriam pagas quando a Ré tivesse recebido a totalidade do valor das encomendas pedidas) constituiria, sempre, uma situação de patente abuso de direito e de enriquecimento sem causa.


26. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, a interpretação a fazer pelo Tribunal deveria ser a seguinte: as comissões devidas à Autora seriam pagas, quando a Ré tivesse recebido o valor da totalidade das encomendas pedidas, mas apenas daquelas que foram objecto da sua intermediação.


Subsidiariamente,


27. No douto Acórdão recorrido não se podia ter absolvido a Ré do pedido.


28. Dado que, tendo-se considerado que a obrigação da Ré ainda não se encontrava vencida, o Tribunal da Relação teria, quando muito, de absolver a Ré da instância.


29. Sendo, assim, inequívoca, a contradição entre a fundamentação contida no douto Acórdão e a decisão proferida.


30. Vício que, salvo melhor entendimento, determina a nulidade da sentença.


31. Acresce que, considerando a matéria de facto dada como provada, a Ré tinha sempre de ser condenada no pagamento das quantias peticionadas pela Autora na petição inicial, ainda que nos termos condicionais previstos no artigo 610º, do CPC.


32. Isto é, a Ré teria sempre de ser condenada a pagar as comissões devidas à Autora, embora essa condenação ficasse sujeita à verificação da condição suspensiva estipulada.


33. Por último, temos de dizer que o douto Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 270º, nº1, 334º e 286º, do CC e 576º, 577º, 610º e 615º, nº1, alínea c), do CPC.


Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., Egrégios Conselheiros, deve ao presente recurso ser dado total provimento, nos termos e pelas razões supra descritas em consequência revogar-se o douto Acórdão sub judice, nos termos peticionados e com os legais efeitos, assim se fazendo, a costumada, inteira, habitual e sã justiça


6. A “Vieira Pocargil S.A” apresentou contra-alegações nas quais defendeu, em síntese, a manutenção do acórdão recorrido. Por outro lado, afirma que demandou a T..., Ldª” para pagamento do valor correspondente às 30.000 máscaras, em questão também nos presentes autos.


Requer a junção aos autos do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27.10.2022, transitado em julgado, que confirmou a decisão de primeira instância que havia condenado a Ré T... no pagamento da quantia respeitante às referidas 30.000 máscaras.


7. Admite-se a junção desse acórdão, nos termos do artigo 651º, n. 1 e art.424º do CPC, porquanto tal acórdão tem data posterior ao encerramento da discussão no tribunal a quo.


*


II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso.


1.1. Tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, em sentido desfavorável à autora, e sendo o valor da causa bem como da sucumbência superior à alçada do tribunal recorrido, a revista é admissível nos termos do art.671º, n.1 do CPC.


1.2. Sendo o objeto do recurso traçado pelas conclusões das alegações da recorrente, nos termos do art.653º, n.4 do CPC, a questão central a decidir é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei quando absolveu a ré do pedido.


Subsidiariamente, a recorrente invoca a questão de saber se o acórdão devia ser considerado nulo por oposição entre os fundamentos e a decisão, na medida em que a inexigibilidade da obrigação conduziria à absolvição da instância e não do pedido.


2. A factualidade provada:


A primeira instância deu como assente a seguinte factualidade:


«A) A Autora dedica-se ao exercício da indústria e comércio de artigos têxteis.


B) A sociedade T..., Ldª, procurou a A. para adquirir máscaras sociais, pois tinha clientes interessados na aquisição de um número bastante significativo das mesmas.


C) Como a Autora não tinha capacidade para poder satisfazer os inúmeros pedidos de fornecimento de máscaras que lhe chegavam, teve de fazer uma prospecção do mercado no sentido de encontrar empresas capazes de produzir esse tipo produto.


D) Foi por essa razão que a Autora contactou a Ré, na pessoa de AA que, desde logo, mostrou interesse e disponibilidade em encetar essa produção.


E) Assim, no dia 23 de Abril de 2020, pelas 17h22m, a Autora enviou uma mensagem de correio electrónico à Ré, para formalizar o interesse na aquisição de 40.000 máscaras.


F) No dia seguinte, a Ré, através da sua funcionária da área comercial, BB, enviou à Autora a tabela de preço das máscaras que comercializa sob a marca Safe & Care.


G) No dia 27 de Abril de 2020, por exigência da sociedade ..., a Autora solicitou à Ré a remessa de uma amostra/fotografia das máscaras para a poder analisar.


H) No seguimento das negociações em curso, por sugestão de AA, no dia 28 de Abril de 2020, realizou-se uma primeira reunião onde se acertaram os preços e as condições dos negócios em perspectiva.


I) Acontece que, ainda no mesmo dia, pelas 17h 21m, a Sra. D. BB enviou à Autora um email a rectificar preços das máscaras.


J) Ora, para se dissiparem quaisquer dúvidas sobre as condições ajustadas realizou-se uma nova reunião entre a Autora e Ré, que teve lugar no dia 2 de Maio de 2020, onde se acordou que o preço líquido a pagar à Ré por cada máscara seria de 1,45 €, mas que estas seriam directamente facturadas à sociedade T..., Lda, pelo valor de 1,80 €,


K) Sendo que a diferença de 0,35 €, consistiria na remuneração a pagar à Autora pelo seu trabalho de intermediação.


L) Numa reunião ocorrida no dia 4 de Maio de 2020, entre a Autora, a Ré e a T..., representada por CC, as condições e os preços acordados foram transmitidos à T...,


M) tendo esta concordado com os mesmos, aceitando que no preço final estivesse incluído o valor da remuneração devida à Autora, porquanto, foi sempre por intermédio desta, que a Ré negociou e recebeu diversas encomendas para a confecção de máscaras faciais.


N) Depois de produzidas, todas as máscaras foram facturadas à sociedade T..., Lda.


O) Dando origem à emissão pela Ré das facturas nºs ...7.../2020, ...0.../2020, ..., ...7.../2020, ...4.../2020 e ...7.../2020.


P) Após terem ocorrido os fornecimentos das máscaras efectuados à T..., Lda, a Autora procedeu à soma do valor de todas as facturas emitidas pela Ré, e, posteriormente, emitiu e endereçou à Ré, uma factura respeitante aos montantes devidos pelos serviços de intermediação prestados.


Q) Pelo que, a Ré teria de pagar à Autora a soma de 32.830,00 € (93.800 x 0,35 = 32.830).


R) No dia 14 de Janeiro de 2021, a Ré foi expressamente interpelada pela Autora para proceder ao pagamento das quantias em débito.


S) Sucede que, até à presente data, a Ré ainda nada pagou.


T) A Ré é uma empresa comercial que se dedica, com intuito lucrativo, à indústria da confeção de vestuário, fabrico, comércio, importação e exportação de têxteis, malhas e similares.


U) Todos os levantamentos das máscaras ocorreriam nas instalações da Ré, sitas na sua sede, na Rua ..., freguesia de ..., concelho da ..., não correndo o transporte por sua conta.


V) No dia 11 de Maio de 2020 a Autora, através do seu representante legal, DD, remeteu um email à Ré, na pessoa de AA, com conhecimento a CC, representante da T..., com o seguinte teor:


Queira por favor mandar preparar a seguinte entrega: 8000 peças:


300 peças - Entrega dia 13/5/2020


Mais 30.000 para sexta-feira dia 15/05/2020


Na sexta-feira indicamos os dias da próxima semana para a entrega de


80.000. Ter em atenção embalagem individual.


Cordiais cumprimentos. T...


W) A que acrescem 2.000 (duas mil) máscaras que já haviam sido entregues anteriormente no dia 8 (oito) de maio de 2020.


X) No dia 5 de Maio de 2020, o representante da T..., CC, enviou um email à Ré, na pessoa de EE, com o seguinte teor:


Exma Sra Dra,


No seguimento da reunião desta manhã, vimos, por este meio, confirmar a encomenda, para entrega imediata, de 10.000 máscaras reutilizáveis, do modelo conversado, ao valor unitário de 1.80€.


Confirmamos, também, a compra de, pelo menos, mais 30.000 máscaras do mesmo modelo, cuja entrega gostaríamos que acontecesse na próxima semana.


Admitimos, tendo como quase certo, virmos a apresentar, ainda durante esta semana, mais uma encomenda de 120.000 máscaras do mesmo modelo.


Assim, queira, por favor, informar-nos sobre as condições de pagamento, nomeadamente, quaisquer adiantamentos que entenda por necessário para que possamos proceder à respetiva transferência.”


Y) A Ré, em 11 de Maio de 2020, dirigiu a DD, da Autora, com conhecimento à T..., email com o seguinte teor:


Confirmamos, assim, as 8.300 unidades para dia 13/05, pode ser?


Sei que tinha informado 12, mas tivemos um problema na maquina hoje, por favor vejam o que é possível.


Para as 30.000 mantem a data de 15/05.


E as restantes 80.000 a data fica confirmada 22/05. Obrigada


AA | S...


Z) No dia 15 de Maio de 2020, a Autora na pessoa de DD, remeteu à Ré um email do seguinte teor:


“…já em frente a receção, informei a D. AA que independentemente da confirmação destes negócios o encetado com a Fafiteca (sr. DD) e em colaboração com a T... com destino final ao dr. FF (Câmaras municipais), que a Fafiteca estava já em fase de conclusão de outros negócios que envolviam quantidades muito significativas.


Assim sendo, venho dar-vos conhecimento de que temos encomendas para mercado externo de 1 a 2 milhão de peças dependendo apenas da disponibilidade de entrega.


Além deste negócio temos outros em andamento, sendo que um já está em fase de conclusão que tem como cliente uma rede de Hiper Mercados ... que se mostrou disponível para compra quantidades muito Significativas de máscaras Reutilizáveis…”


AA) As 93.800 (noventa e três mil e oitocentas) máscaras encomendadas e entregues a 8, 13 de maio de 2020, 26 de maio de 2020, 4 e 15 de junho de 2020, foram pagas.


BB) Ficou ainda acordado que o valor devido à Autora seria pago quando a Ré tivesse recebido o valor da totalidade das encomendas pedidas.


CC) A Ré fabricou e embalou as referidas máscaras nas condições que a Autora e a T... indicaram, agindo sempre no desenvolvimento da sua atividade comercial.


DD) A Autora e a T... nunca reclamaram da qualidade ou quantidade das máscaras, prazos de entrega ou por qualquer outro motivo.


EE) No dia 5 de Junho de 2020 a Ré remeteu por email à T... duas faturas pró-forma, uma relativamente ao fornecimento das 20.000 (vinte mil) máscaras que veio a ocorrer em 15 de junho de 2020 – OR 356/2020.


FF) E outra fatura pró-forma correspondente ao fornecimento de 30.000 (trinta mil) mascaras.»


A segunda instância acrescentou a alínea GG), dando como provada a seguinte factualidade:


«A T... encomendou à Ré a quantidade total de 123.800 máscaras, das quais, mesmo após várias insistências por parte da apelante, nunca levantou 30.000 (trinta mil), que ainda na atualidade se encontram disponíveis para levantamento nas instalações da Ré e cujo preço a reconvinte ainda não recebeu.»


*


3. O direito aplicável:


3.1. A questão central em análise é a de saber quando é que a ré deverá efetuar o pagamento a que a autora tem direito.


As instâncias não divergiram quanto à conclusão de que a ré é devedora da quantia peticionada pela autora. A divergência respeitou ao tempo do cumprimento dessa obrigação, tendo o acórdão recorrido entendido que a obrigação da ré ainda não era exigível.


Entre a autora-recorrente e a ré-recorrida foi celebrado um contrato nos termos do qual a autora contactou a ré para que esta produzisse máscaras de proteção individual para a T..., intermediando a relação contratual que se estabeleceu entre a T... e a ré.


As instâncias qualificaram aquele contrato como um contrato de mediação, e as partes não discordaram de tal qualificação.


Efetivamente, entre a autora e a ré foi estabelecido um contrato de prestação de serviços, (previsto genericamente no art.1154º do CC), que, nos termos do art.405º do CC, as partes podem livremente celebrar e modelar o conteúdo dos respetivos direitos e deveres.


Como consta da factualidade provada, da relação contratual estabelecida entre a autora e a ré, emergiu para esta última a obrigação de pagar à autora o valor de € 0,35 (trinta e cinco cêntimos) por cada máscara produzida para a T....


Quanto ao tempo do pagamento – que é a questão central dos presentes autos – resulta da factualidade provada, no ponto BB), que:


«Ficou ainda acordado que o valor devido à Autora seria pago quando a Ré tivesse recebido o valor da totalidade das encomendas pedidas


Decorre também da factualidade provada, no ponto GG), que:


«A T... encomendou à Ré a quantidade total de 123.800 máscaras, das quais, mesmo após várias insistências por parte da apelante, nunca levantou 30.000 (trinta mil), que ainda na atualidade se encontram disponíveis para levantamento nas instalações da Ré e cujo preço a reconvinte ainda não recebeu


Mas provou-se, no ponto AA) que:


«As 93.800 (noventa e três mil e oitocentas) máscaras encomendadas e entregues a 8, 13 de maio de 2020, 26 de maio de 2020, 4 e 15 de junho de 2020, foram pagas


Constata-se, portanto, que a T... ainda não pagou à ré a totalidade das máscaras encomendadas.


Por esta razão, o acórdão recorrido entendeu que a obrigação de pagar a remuneração da autora ainda não era exigível. E, por isso, absolveu a ré do pedido.


Na decisão da segunda instância colhe-se a seguinte fundamentação:


«(…) a autora peticiona que a ré lhe pague o valor correspondente à sua comissão nas máscaras fornecidas, segundo ela €32.830,00 e respectivos juros.


A ré contrapõe dizendo que só está obrigada a pagar-lhe as comissões quando receber a totalidade do valor das encomendas.


Resulta provado sob a alínea BB) que, na verdade, ficou acordado que o valor devido à Autora seria pago quando a Ré tivesse recebido o valor da totalidade das encomendas pedidas.


E, por força da alteração à matéria de facto, está, agora, também provado que a T... encomendou à Ré a quantidade total de 123.800 máscaras, das quais, mesmo após várias insistências por parte da apelante, nunca levantou 30.000 (trinta mil), que ainda na atualidade se encontram disponíveis para levantamento nas instalações da Ré e cujo preço a reconvinte ainda não recebeu.


E acrescentou-se: «(…) os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei – artº 406º do CC – sendo que o credor só pode exigir a todo o tempo o cumprimento na falta de estipulação de prazo – artº 777º - só ocorrendo mora se a prestação não for efectuada no tempo devido – artº 804º.


Serve tudo isto para dizer que a prestação da ré ainda não se venceu, uma vez que ainda não lhe foi paga a totalidade da mercadoria encomendada e sobre cujo preço há lugar a uma parte a favor da autora.


Trata-se, por isso, de uma inexigibilidade temporária, que não impede a propositura de nova acção, em que a autora alegue e prove que o comprador das máscaras já pagou à ré o valor da totalidade das encomendas pedidas.


Mas, desta maneira, não pode, por ora, ser a ré condenada no seu pagamento, devendo revogar-se a decisão recorrida, neste segmento.»


3.2. A questão não é, porém, tão linear como se entendeu no acórdão recorrido, porque a autora não peticionou o pagamento da comissão quanto à totalidade das máscaras produzidas.


E ainda que tivesse pedido a totalidade desse pagamento, sempre a ré podia ter sido condenada nos termos do art.610º, n.1 do CPC.


Determina esta norma que:


«O facto de não ser exigível, no momento em que a acção foi proposta, não impede que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu conteste, nem que este seja condenado a satisfazer a prestação em momento próprio


Forçar a autora a ter de propor uma nova ação, como se entendeu no acórdão recorrido, além de contrariar o disposto no art.610º do CPC, não é, certamente, a melhor interpretação do princípio da economia processual.


Acresce que a ré-recorrida demonstrou que propôs ação contra a T... para receber o pagamento das referidas 30.000 máscaras, tendo tal ação sido procedente e confirmada pela segunda instância, já com trânsito em julgado (ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27.10.2022, que a recorrida juntou aos autos).


Todavia, a convocação do art.610º do CPC não é sequer necessária para solucionar o caso concreto, pois o montante da comissão peticionado pela autora reporta-se apenas a encomendas cujo pagamento a ré já recebeu da T....


Como resulta dos pontos P), Q) e R) da factualidade provada, a autora recorrente apenas reclama o pagamento da comissão de € 0,35 (trinta e cinco cêntimos) por cada máscara, relativamente às máscaras efetivamente pagas pela T... à ré, ou seja, 93.800 máscaras.


Todavia, a ré não pagou à autora o valor da comissão que lhe era devida pela sua prestação de serviços de intermediação, num total de € 32.800; valor que é o resultado da aplicação de € 0,35 às 93.800 máscaras fornecidas e pagas pela T... à ré.


3.3. Antes de propor a presente ação, a autora interpelou a ré para o pagamento de uma obrigação que ainda não se encontrava vencida e cujo vencimento estava dependente do pagamento pela T... da totalidade das máscaras encomendadas.


Por outro lado, ao não exigir o pagamento da comissão respeitante à totalidade das máscaras encomendadas pela T... (123.800 máscaras), mas apenas relativamente às 93.800 máscaras que a T... já havia pago à ré, a autora está a renunciar ao recebimento da comissão respeitante ao preço das últimas 30.000 máscaras.


Face a esta auto-redução do direito da autora, que, correspetivamente, beneficia a ré (na medida em que reduz o quantitativo a pagar à autora), a convenção a que o ponto BB) da factualidade provada (nos termos da qual a ré só pagaria a comissão da autora após receber o pagamento da totalidade das máscaras produzidas para a T...), tem de ser interpretada segundo as regras da boa-fé.


Estabelece o artigo 762º, n.2 do CC: «No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé».


Nestes termos, a renúncia da autora ao recebimento da comissão respeitante ao preço das últimas 30.000 máscaras deverá conduzir a uma interpretação teleológica da cláusula respeitante ao tempo do cumprimento da obrigação da ré.


Efetivamente, a ré já recebeu o pagamento respeitante a 93.800 máscaras, ou seja, cerca de 75% da totalidade do preço das máscaras encomendadas pela T..., numa relação negocial que se estabeleceu em resultado da prestação de serviços de intermediação desenvolvidos pela autora, a qual ainda não recebeu qualquer parte da remuneração desses serviços.


O princípio da boa-fé, enquanto critério normativo de valoração de condutas, impõe às partes um comportamento “honesto, correto e leal”1 , dotado da adequada flexibilidade para garantir o equilíbrio contratual face a circunstâncias que podem sofrer alterações.


Como afirmam Pires de Lima/Antunes Varela (em anotação ao art.762º do CC): «(…) o devedor não pode limitar-se a uma realização puramente literal ou farisaica da prestação a que se encontra adstrito (…)»2.


E acrescentam estes autores: «(…) a boa fé não constitui um requisito de conteúdo fixo, uniforme, predeterminado, invariável, mas, muito pelo contrário, uma exigência de conteúdo variável ou flexível, adequado às circunstâncias de cada tipo de situações»3.


Assim, tendo a autora cumprido a sua prestação de serviços de mediação, e tendo renunciado a uma parte da respetiva remuneração, não é razoável interpretar de forma puramente literal ou farisaica (para usar a expressão de Pires de Lima/Antunes Varela) o acordo que as partes firmaram quanto ao tempo do cumprimento da obrigação da ré, fazendo a autora esperar indefinidamente até ao pagamento do último cêntimo devido pela T... à ré.


Da factualidade provada não decorre que as partes tivessem previsto a hipótese de incumprimento parcial da T..., pelo que são convocáveis as regras de integração das declarações de vontade, previstas no art.239º do CC, integrando as respetivas declarações de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso ou de acordo com os ditames da boa-fé.


Este critério normativo de valoração de condutas autoriza o julgador a concluir que, muito provavelmente, as partes teriam convencionado a redução da prestação da ré para com a autora em termos proporcionais ao incumprimento da T..., ou que teria sido essa a solução decorrente do princípio da boa-fé por ser aquela que conduz ao maior equilíbrio contratual. Acresce que a autora já tomou a iniciativa nesse sentido, reclamando na presente ação apenas a comissão respeitante ao pagamento que foi efetivamente feito pela T... à ré, e renunciando à comissão respeitante à parte que a T... ainda não cumpriu (apesar de ter sido condenada a fazê-lo, como supra referido).


Encontra-se, assim, justificada a interpretação corretiva da clausula a que se refere o ponto BB) da factualidade provada, reconhecendo à autora o direito de receber, de imediato, o montante peticionado que lhe é devido pela ré.


Acresce que, da factualidade assente não consta qualquer facto que revelasse ter a autora assumido, para com a ré, alguma função de garante do pagamento devido pela T... à ré, que não permitisse extrair a conclusão a que conduz a aplicação do princípio da boa-fé ao caso concreto.


3.4. Nas conclusões do recurso de revista vem a autora recorrente afirmar que não intermediou a última encomenda das 30.000 máscaras que se encontra por pagar pela T.... Todavia, da factualidade provada não resulta prova de ter ou não ter intermediado essa encomenda.


A recorrida diz tratar-se de uma questão nova.


Em rigor, não é uma questão nova, mas apenas uma eventual justificação para não ter peticionado o valor da comissão respeitante a essa encomenda. De todo o modo, trata-se de uma argumentação absolutamente irrelevante para a decisão do caso concreto, porquanto o que releva é o facto objetivo de esse valor não ter sido peticionado pela autora, independentemente das razões pelas quais não o fez.


3.5. Subsidiariamente, a recorrente invoca a questão de saber se o acórdão devia ser considerado nulo por oposição entre os fundamentos e a decisão, na medida em que a inexigibilidade da obrigação conduziria à absolvição da instância e não do pedido.


No despacho que admitiu a subida do recurso, a desembargadora relatora pronunciou-se sobre a invocada nulidade, concluindo não existir qualquer nulidade, e que a alegação da recorrente corresponderá a uma hipótese de errada aplicação da lei, mas não de nulidade da decisão.


Face à resposta dada à primeira questão, fica prejudicado o conhecimento desta segunda.


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3.6. Em resumo, o recurso tem de ser procedente, reconhecendo-se à autora o direito ao imediato recebimento do valor peticionado, acrescido de juros, à taxa devida para os juros comerciais, a contar de 14 de janeiro de 2021 e até integral pagamento, como decidido pela primeira instância.


A parte do acórdão respeitante à improcedência do pedido reconvencional não foi alvo de revista, pelo que, nessa parte, se encontra transitado em julgado.


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Decisão: Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido, reconhecendo-se à autora o direito ao imediato recebimento do valor peticionado, acrescido de juros, à taxa devida para os juros comerciais, a contar de 14 de janeiro de 2021 e até integral pagamento, como decidido pela primeira instância.


Custas: pela recorrida


Lisboa, 15.03.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


Ricardo Costa


António Barateiro Martins


Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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1. Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (1983), página 110.↩︎

2. Código Civil Anotado, Volume II, 4ª edição revista e atualizada (1997), página 3.↩︎

3. Op. cit., página 5.↩︎