Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3294/11.2TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: HIPOTECA
CONTRATO DE MÚTUO
DISPOSIÇÃO DE BENS ALHEIOS
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
INEFICÁCIA
NULIDADE
EFEITOS DO CASAMENTO
EFEITOS PATRIMONIAIS
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
EX-CÔNJUGE
PROPRIETÁRIO
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / REPRESENTAÇÃO / REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA / OBJECTO NEGOCIAL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / HIPOTECA / HIPOTECAS VOLUNTÁRIAS / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / VENDA DE BENS ALHEIOS – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO ÀS PESSOAS E AOS BENS DOS CÔNJUGES / DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS / DIVÓRCIO / EFEITOS DO DIVÓRCIO.
Doutrina:
- Cristina M. Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões, Coimbra Editora;
- Esperança Pereira Mealha, Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns, Almedina 2005, p. 74;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, p. 411;
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 4ª edição, p. 615 a 617.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 268.º, N.º 1, 280.º, 712.º, 715.º, 892.º, 1682.º-A, 1687.º, 1788.º E 1789.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-05-2008, PROCESSO N.º 08A1056;
- DE 29-03-2012, PROCESSO N.º 2441/05.8TBVIS.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Se, à data da celebração do contrato de mútuo com hipoteca, a pessoa que assume a posição de garante não tiver legitimidade para alienar o bem dado em garantia, esta é ineficaz em relação ao titular do respectivo direito sobre esse bem.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório


1. AA propôs a presente ação declarativa com processo comum contra BB, CC, DD - Corretores de Seguros, S.A., Banco EE, S.A., Banco FF, S.A., Banco GG, S.A. (GG) e Caixa HH, pedindo que:

a) - Seja declarada a falsidade das procurações juntas com a petição inicial como documentos nºs 5 e 7 e, consequentemente, que sejam considerados falsos, nulos e anuláveis os seguintes contratos:

a.1. - crédito ao consumo contraído junto da ré Banco FF, S.A., no valor de € 8.0116,00;

a.2. - contrato de crédito ao consumo contraído junto da ré Réu GG, S.A., no valor de € 2.805,00€;

a.3. - dois contratos de crédito à habitação, contraídos junto da ré Banco EE, S.A., no valor de € 145.582,00;

a.4. - contrato de crédito leasing mobiliário, contraído junto da ré Caixa Central - Caixa HH, CRL, no valor de € 4.874,00;

a.5. - contrato de crédito comercial, com o número 56041037459, contraído na Caixa HH de …, ..., no valor de € 9.717,28€;

a.6.- contrato de crédito comercial, com o número 56…03, contraído na Caixa HH de …, … no valor de € 8.997,98;

a.7. - contrato de crédito comercial, com o número 57…64, contraído na Caixa HH de …, …, no valor de € 9.000,00;

b) - Seja ordenado o cancelamento de todos os actos e registos efetuados com base nas escrituras públicas de mútuo com hipoteca identificadas na alínea a), ordenando-se o cancelamento das inscrições hipotecárias efetuadas sobre o prédio urbano inscrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 2…7/19…29/…, nomeadamente as AP 33 de 18/11/2008 e AP 35 de 18/11/2008;


c) – Seja condenada a 1ª ré a pagar às 4ª, 5ª, 6ª e 7ª rés todas as quantias mutuadas junto dos mesmos e identificadas supra nos pontos a.l a a.7, bem como juros e demais despesas associados aos respectivos contratos de crédito;


d) – Seja condenada a 1ª ré a pagar todos os prejuízos patrimoniais que advirão ao autor na sequência da sua vinculação a mútuos, mútuos com hipoteca, fiança e aval celebrados pela Io Ré em nome do Autor, tendo por base o uso das referidas procurações falsas;


e) – Sejam solidariamente condenados os 1º e 2º réus no pagamento todos os prejuízos patrimoniais que advirão ao autor na sequência da sua vinculação a mútuos, mútuos com hipoteca, fiança e aval celebrados pela 1ª ré em nome do autor, tendo por base a procuração falsa e respectivo termo de autenticação elaborado pelo 2º réu, relegando-se para liquidação posterior o seu apuramento;


f) – Seja condenada a 1ª ré a liquidar a quantia de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios desde citação até efetivo e integral pagamento;


g) - Sejam solidariamente condenados os 1º e 2º réus no pagamento de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios desde citação até efetivo e integral pagamento;


Subsidiariamente:


h) - Sejam condenadas as 4ª, 5ª, 6ª e 7ª rés a entregar ao autor os valores respeitantes a cada um dos contratos que a si digam respeito, caso se considere que os contratos devem prevalecer, não obstante a falsidade das procurações;


i) – Seja condenada a 1ª ré a liquidar ao Autor a quantia de € 50.000,00€, correspondente a levantamentos efetuados da conta bancária com o número 00…24 através das procurações falsificadas e adulteradas, sem prejuízo da concretização do montante concreto levantado a apurar em liquidação de sentença, acrescidos juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.


Para tanto, alegou, em síntese, que:

Foi casado com a 1ª ré, da qual, entretanto, se divorciou e que esta falsificando a sua assinatura, utilizou duas procurações, pretensamente outorgadas pelo autor, em benefício próprio, as quais, acompanhadas de termo de autenticação elaborado pelo 2º réu, igualmente forjado, e que serviram para celebrar diversos contratos bancários e levantar os montantes existentes em determinada conta bancária.

Invocou ainda que a atuação dos 1º e 2º réus lhe provocou danos de natureza não patrimonial para cuja compensação considerada adequadas as quantias de € 20.000,00 por parte da 1ª ré e de € 20.000,00 por banda do 2º réu.

Mais alegou que a Ordem dos Advogados celebrou com a 3ª ré um contrato de seguro, através do qual transferiu para aquela a responsabilidade civil resultante do exercício da profissão de advogado, pelo que aquela seguradora deve ser condenada nos termos peticionados.

E, finalmente, que as 4ª, 5ª, 6ª e 7ª rés agiram negligentemente, ao celebrar contratos bancários com a mera exibição de uma procuração cuja veracidade não cuidaram de averiguar.

2. A ação foi contestada.

2.1. A 1ª ré alegou, em síntese, que, muito embora se tenha divorciado do autor em Fevereiro de 2003, reataram a relação pouco depois e a partir de Agosto de 2003 passaram a viver novamente como marido e mulher, pelo que todas as dívidas contraídas se destinaram à economia comum e as importâncias que se encontravam depositadas na conta bancária identificada na petição inicial (que é uma conta conjunta de ambos e não apenas do autor) pertenciam ao património comum.

Quanto às procurações, defendeu que as mesmas são verdadeiras e que foi o próprio autor quem teve a iniciativa de as passar a fim de contrair os débitos supra mencionados em benefício do casal.

2.2. Tendo falecido, entretanto, o 2º réu, foram habilitados como seus sucessores II, JJ, KK e LL, MM e NN, os quais não apresentaram contestação.

2.3. A 3ª ré excecionou a sua ilegitimidade, alegando ser apenas mediadora na celebração de contratos de seguro e não seguradora, não tendo intervindo como outorgante no contrato em causa nos autos, onde figura como seguradora a "OO (Europe), Lda.". Pugnou, assim, pela sua absolvição da instância.

2.4. A 4ª ré impugnou parte da factualidade descrita na petição inicial e defendeu a validade dos negócios jurídicos consigo celebrados pela 1ª ré e pelo autor, este representado por aquela através de procuração que entende não ser falsa.

Refutou também qualquer conduta negligente de sua parte e acrescentou que as quantias mutuadas foram entregues a ambos e não apenas à 1ª ré; arguiu ainda a inoponibilidade da eventual declaração de nulidade do registo das hipotecas, por se considerar terceiro de boa fé.

2.5. A 5ª ré excecionou igualmente a sua ilegitimidade, já que o contrato por si celebrado foi outorgado apenas com a 1ª ré como única mutuária, intervindo o autor apenas na qualidade de cônjuge. Acrescentou, porém, que nenhum deles é devedor de qualquer quantia à contestante, pelo que o contrato já não se encontra em vigor.

De igual forma, impugnou parte da factualidade alegada pelo autor, uma vez que para a outorga do contrato não foi exibida qualquer procuração em seu nome, o qual se limitou a intervir como cônjuge.

2.6. A 6ª ré excecionou a sua ilegitimidade, alegando que no contrato de crédito invocado pelo autor intervieram diretamente o autor e a 1ª ré e que o contrato se encontra totalmente cumprido desde 29-09-2010, pelo que o crédito não existe, o que determina a inutilidade superveniente da lide, com a consequente extinção da instância nesta parte. Impugnou, ainda, parte da factualidade alegada pelo autor, refutando qualquer atuação menos diligente da sua parte.

3. O autor replicou, impugnando os factos alegados pelas contestantes e requerendo, para a eventualidade de vir a ter provimento a exceção de ilegitimidade invocada pela 5ª ré, a intervenção provocada de "OO (Europe) Limitada".

4. Admitida a intervenção de "OO (Europe) Limitada", a mesma veio apresentar a sua contestação, invocando a falta de cobertura temporal das apólices de seguro, dado que o sinistro lhe foi participado numa altura em que a apólice já não se encontrava em vigor.

Arguiu ainda a prescrição do direito alegado pelo autor pelo decurso do prazo previsto no art. 498º n.º 1 do C.C. e defendeu a inverificação dos pressupostos de indemnizar previstos no art. 483º n.º 1 do C.C..

Por fim, quanto aos factos em litígio, impugnou-os por desconhecimento e, a serem verdadeiros, alegou que consubstanciam uma atuação livre e intencional do 2º réu e não um erro e/ou omissão profissional, pelo que a sua conduta e eventuais danos daí decorrentes não se encontram cobertos pela apólice.

5. O autor veio responder à contestação da interveniente e, por sua vez, requerer a intervenção da "Companhia de Seguros PP, S.A.”.

6. Admitida também a intervenção, a título principal, da "Companhia de Seguros PP, S.A.", a mesma apresentou a sua contestação, invocando a exclusão da cobertura da apólice, dado que se está perante actos fraudulentos e criminalmente imputáveis ao segurado. Defendeu ainda a existência de culpa do lesado, a inexistência de responsabilidade civil e a inexigibilidade e ilegalidade dos juros peticionados.

7. O autor veio desistir do pedido quanto às 3ª e 7ª rés, desistência que foi homologada por sentença.

8. No despacho saneador, foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade deduzidas. Foi também proferida decisão que absolveu as rés “Banco FF, S.A.” e “Banco GG, S.A., SA” do pedido.

9. A final, realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente:

- Declarou a falsidade das procurações identificadas nos pontos 4º e 8º dos factos provados;

- Declarou a ineficácia, relativamente ao autor, do aval prestado sobre a livrança subscrita por “QQ - Confecções, Unipessoal, Ldª.” a favor da “Caixa HH, CRL”, referido em 11º;


- Declarou a ineficácia, relativamente ao autor, dos contratos de mútuo celebrados com a ré “EE”, identificados em 11º;


- Declarou a ineficácia, relativamente ao património comum de autor e 1ª. ré, como ex-cônjuges (onde se inclui o prédio urbano identificado em 2º), das hipotecas constituídas sobre o mesmo prédio, mencionadas no ponto 13º.


- Condenou a 1ª. ré a pagar ao autor a quantia de € 71.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento;


- Absolveu os réus do demais peticionado.


10. Inconformados com esta decisão, quer o autor, quer a 1ª ré interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão a julgar parcialmente procedente ambos os recursos e, em consequência, a:

- Declarar a nulidade das hipotecas constituídas sobre o prédio urbano inscrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o número 2…7/19…29, sito no lugar de …, …, …, para garantia de créditos concedidos pela 4ª ré (Banco EE, S.A.), ordenando o cancelamento dos registos respectivos, isto é, Ap. 33 de 2008/11/18 e Ap. 35 de 2008/11/18;

- Condenar o 2º réu, solidariamente com a 1ª ré, no pagamento ao autor da quantia de € 5.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, por ele sofridos, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4% ao ano, ou de outra que legalmente venha a estar em vigor, contados desde a citação até integral pagamento;

- Confirmar quanto ao mais a sentença recorrida.

11. Irresignada com o assim decidido, veio a ré “Banco EE, SA” interpor a presente revista, dizendo, em conclusão:

1. Em sede da sentença proferida em primeira instância, os actos de constituição de hipoteca praticados pela 1ªa ré através de contratos ou negócios jurídicos de mútuos com hipoteca, nos quais a 1ª ré agiu em nome próprio, mas igualmente em nome do autor, seu ex-marido, mas sem poderes para a respectiva representação por ser falsa a procuração usada, não foram considerados nulos, mas apenas ineficazes em relação ao património comum resultante da dissolução conjugal, tudo por aplicação do n° 1 do artigo 268° do Código Civil.

2. No douto acórdão recorrido, porém, assim não se entendeu, antes se tendo decidido que as hipotecas constituídas pela 1ª ré eram efetivamente nulas, porque, estipulando o artigo 715° do Código Civil que só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens, e não podendo a aqui 1ª ré dispor, sozinha, do bem imóvel dado de hipoteca, integrado no património comum do dissolvido casai, atuando a mesma, como acuou, sem os necessários poderes do demais titular desse património autónomo, a hipoteca ou hipotecas resultavam nulas por recaírem sobre objeto legalmente impossível, e, assim, feridas ab initio de nulidade por aplicação do disposto no n°1 do artigo 280° do Código Civil.

3. Porém, no entender do aqui recorrente a situação em apreço não cai na alçada do disposto no artigo 280° do Código Civil, e é, com todo o devido respeito, errado entender-se que as referidas hipotecas são nulas por recaírem sobre objeto legalmente impossível.

4. Com efeito, tal como resulta da lei, a constituição de hipoteca (voluntária) é um negócio jurídico em que, por acordo das partes, alguém declara constituir a hipoteca e o beneficiário desta declara aceitar tal constituição de hipoteca (quando não se trata da - também possível - hipoteca unilateral), pelo que o negócio ou negócios, no caso concreto, não são, de per se, de objeto legalmente impossível.

5. Tratando-se de um negócio jurídico previsto na lei, a constituição das hipotecas em causa jamais poderá ser considerada, em si mesmo, concretamente de objeto física ou legalmente impossível, contrário à lei ou de objeto indeterminável: basta para isto atender que se autor interviesse em tais negócios por si ou através de outrem devidamente munido dos poderes de representação necessários, o negócio era, quanto ao seu objeto, o mesmo, e plenamente válido.

6. Os casos de nulidade previstos no n° 1 (e também no n° 2) do artigo 280° do Código Civil destinam-se aos contratos ou negócios jurídicos cuja celebração e conteúdo resultem da autonomia da vontade e da liberdade contratual, sendo o principal corolário da restrição prevista no artigo 405° do Código Civil: "Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrara contratos diferentes dos previstos neste código e incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver".

7. Há que distinguir os casos em que os negócios livremente celebrados entre as partes, definindo o seu conteúdo e inserindo neles as cláusulas que entenderem, venham a ser nulos nos termos do artigo 280° do Código Civil, por ser o respectivo objeto física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável (ou também contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes), daqueles outros casos em que uma ou mais partes que celebrem tais contratos careçam apenas de legitimidade para os celebrar.

8. Neste último caso - ou seja, o de falta de legitimidade das partes para a celebração do negócio jurídico - a consequência não é, necessariamente, a da nulidade, só o sendo se tal falta de legitimidade se enquadrar em norma imperativa, e em sua violação, resultando, assim, o negócio nulo, não por aplicação do disposto no n° 1 do artigo 280° do Código Civil, mas antes por força do disposto na 1ª parte do artigo 294° do mesmo Código: Os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos (...).

9. No caso presente, sendo a norma do artigo 715° do Código Civil indubitavelmente uma norma de carácter imperativo, os actos de constituição das hipotecas por parte da 1ª ré seriam, em princípio, nulos por força da aplicação da primeira parte daquele artigo 294° do Código Civil.

10. Porém, há que atender à segunda parte do referido artigo 294°, ou seja, a ressalva relativamente à respectiva consequência de nulidade, se outra solução não resultar da lei.

11. Ora, no caso, deve-se entender- como consta da sentença da 1ª instância - que existe uma outra solução prevista na lei para a falta de legitimidade por parte da 1ª ré para constituir as hipotecas em causa, solução esta que assenta no regime estatuído no artigo 268° do Código Civil.

12. E, de acordo com o regime previsto no n° 1 do artigo 268° do Código Civil, é a de que um negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem, tem como consequência, não a nulidade, mas a ineficácia em relação ao que não interveio, nem concedeu os necessários poderes de representação.

13. Assim, não se encontra correta a interpretação constante do douto acórdão recorrido no sentido da nulidade dos actos de constituição de hipoteca por parte da 1ª ré, e, consequentemente, não deveria tal acórdão conclui por tal solução para o caso em apreço nem, consequentemente, ordenar o cancelamento dos respectivos de hipoteca.

14. Os actos em causa igualmente não podem considerar-se nulos ao abrigo do disposto na 1ª parte do artigo 892° do Código Civil, relativa à nulidade de venda de bens alheios - se entendido como aplicável ao caso dos autos, em que os respectivos actos se traduziram na constituição de encargos sobre bens, e por força do que dispõe o artigo 939° do mesmo Código - uma vez que a 1ª ré não interveio nos actos de constituição de hipoteca invocando ser única titular do respectivo direito sobre o imóvel hipotecado, mas sim em seu nome, enquanto uma das titulares, e em também representação do autor, e, por isso em nome de outrem, sendo que, por isso e por aplicação do artigo 904° do Código Civil, afastada está a aplicabilidade daquele artigo 892°.

Contudo e sem prescindir,

15. O douto acórdão recorrido declarou a nulidade das hipotecas constituídas com intervenção da 1ª ré, determinando o cancelamento dos respectivos registos, mas nada decretou, ou declarou relativamente às consequências dessa declaração de nulidade, à exceção do cancelamento dos respectivos registos.

16. Certo é que a declaração de nulidade tem, nos termos do disposto no artigo 289°, n° 1 do Código Civil, efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado", complementando o artigo 290°, também do Código Civil, que as obrigações recíprocas de restituição que incumbem às partes por força da nulidade devem ser cumpridas simultaneamente.

17. Porém, e na prática, a manter-se, como está, o que ficou decidido no douto acórdão recorrido, é que o autor ficará munido do instrumento para cancelar os registos de hipoteca, sem que o Banco aqui autor tenha a correspondente vantagem de restituição daquilo que prestou, ou seja, as quantias respeitantes aos mútuos, o que cria, segundo se entende, uma inaceitável iniquidade e injustiça para com o aqui recorrente, tanto mais que ficou claramente demonstrado que o mesmo sempre acuou de boa fé, não tendo qualquer intervenção, principal ou acessória, no vício corporizado na falta de poderes de representação da aqui 1ª ré.

18. Deve assim, e caso se mantenha o constante do acórdão recorrido, determinar-se, se não em relação às duas hipotecas constituídas, pelo menos em relação àquela que tem subjacente o empréstimo concedido pelo aqui recorrente para pagamento e liquidação de anterior empréstimo hipotecário contraído pela 1ª ré, mas também pelo autor, junto do Banco Internacional de Crédito, S.A., que o cancelamento do registo das hipotecas fica dependente da restituição do que se mostrar em dívida relativamente aos empréstimos em causa.

Finalmente, e mais uma vez sem prescindir:

19. Deve ser negado o pedido de declaração de nulidade e cancelamento de registo relativamente, pelo menos, ao empréstimo e hipoteca de transferência do anterior empréstimo contraído junto do Banco Internacional de Crédito, S.A., com base em abuso de direito do autor pois tal pedido tem como consequência que o autor ver-se-á desobrigado do empréstimo que contraiu junto do Banco Internacional de Crédito, S.A., à custa do Banco aqui recorrente e sem qualquer justificação para tal, e ao mesmo tempo também desobrigado de pagar o empréstimo em causa ao aqui recorrente, só assim se obstaculizará a uma situação de nítida injustiça que contende, gravemente, com o sentimento jurídico normal e prevalecente na comunidade, sancionando-se, pela aplicação rígida e crua da lei, uma situação de claro desfavor ao aqui recorrente e, simultaneamente, de injusta vantagem e enriquecimento por parte do autor.

12. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.


***


13. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, as questões de que cumpre conhecer consistem em saber se, relativamente ao autor, deve ser declarada a ineficácia das hipotecas ou se, padecendo de nulidade, o cancelamento do respectivo registo deve ficar dependente da restituição do que se mostrar em dívida relativamente aos mútuos em causa. Por fim, cabe apurar se a atuação do autor configura abuso de direito.


***


II – Fundamentação de facto


14. Está provado que:

1 - AA (aqui Autor) e BB (aqui 1ª Ré) contraíram casamento católico entre si, sem convenção antenupcial, em 08 de Janeiro de 1995; e divorciaram-se, na sequência de conversão do divórcio litigioso em mútuo consentimento, em 03 de Fevereiro de 2003.

2 - O património, não partilhado, do dissolvido casal era constituído por:

Activo - a) prédio urbano inscrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 2…7/19…29 sito no lugar de …, …, …; b) recheio da casa; uma carrinha Opel Astra; e c) uma motoquatro Yamaha;

Passivo: dívida ao Banco FF, S.A., no valor de € 58.859,00.

3 - Após o divórcio, o Autor (AA) emigrou para …, de onde regressou a Portugal a título definitivo, no dia 4 de Abril de 2009.

4 - Existe um documento - o qual termina com uma assinatura manuscrita seguida do nome do Autor, AA -, com o seguinte teor:

«(…)

Procuração

 Eu, AA, natural da freguesia de …, …, nascido a … de Maio de 1969, portador do Bilhete de identidade nº 10…64, emitido em 17/09/2003, pelo arquivo de identificação de …, e válido até 17/05/2009, residente em …, …, … … Estados Unidos da América, declaro que autorizo BB, natural da freguesia de …, …, nascida a … de Março de 1972, portadora do B.I. nº 11…92, emitido em 27/06/2003, pelo arquivo de identificação de …, válido até 27/03/2009, residente em …, …, a contrair quaisquer empréstimos, letras livranças, deles o confessando devedor, junto da Caixa HH de …, CRL, pelos prazos e demais condições e cláusulas que entender convenientes; movimentar as quantias mutuadas; hipotecar quaisquer imóveis que lhe pertençam ou venham a pertencer, dar o seu aval, fiança, para segurança desses empréstimos, incluindo os empréstimos que forem contraídos pela firma QQ – Confecções, Unipessoal Lda..

(…)»

5 - Juntamente com este documento «Procuração», encontra-se um outro denominado de «Reconhecimento de assinatura» onde consta um cabeçalho com a referência «Secção Consular de Portugal em …» e os dizeres

«(…)

RECONHEÇO A ASSINATURA, AA, titular do B.I. número 10…64 8, emitido em 17-09-2003 – DGRN-SIC de … . Certifico que foi feita pelo signatário na minha presença, RR, Chaceler. Pagou USD 14,55, segundo o artigo nº 42.1, lançado sob o nº 1417. Aos 19-07-07. O/A Chanceler.

(…)»

6 - A assinatura referida em 4º não foi feita pelo punho do Autor (AA).

7 - O reconhecimento referido em 5º foi alterado.

8 - Existe um documento - o qual termina com uma assinatura manuscrita com o nome do Autor, AA -, com o seguinte teor:

«(…)

Procuração

No dia doze de Novembro de dois mil e oito, no meu escritório, compareceu como outorgante:

AA, NIF 1…06, casado com BB, natural da freguesia de …, concelho de …, freguesia onde reside no lugar de … nº …, titular do bilhete de identidade número 10…64, emitido em 17/09/2003 pelos SIC, em … .

 Verifiquei a identidade do outorgante por exibição do mencionado bilhete de identidade.

DECLAROU O OUTROGANTE:

Que constitui procuradora sua mulher, BB, natural da freguesia de …, concelho de … e com ele, outorgante, residente, a quem confere poderes para:

Prometer comprar e comprar, pelos preços e nas condições que entender convenientes, quaisquer bens imóveis, assinar contratos promessa e outorgar as respectivas escrituras;

Juntamente com a procuradora contrair um empréstimo junto de qualquer banco, dele o confessando devedor, pelos prazos, juros e demais condições e clausulas que entender convenientes;

Movimentar as quantias mutuadas;

Hipotecar, para segurança deste empréstimo, o bem imóvel, sito na freguesia de …, concelho de … a cuja aquisição tal empréstimo se destina;

Proceder à transferência de quaisquer empréstimos para quaisquer bancos;

Outorgar as respectivas escrituras e/ou assinar outros documentos relativos a tais fins;

O representar em quaisquer repartições públicas ou organismos do Estado, designadamente conservatórias do Registo Predial, ai requerendo quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, averbamentos e cancelamentos, e prestando declarações complementares;

Junto do Serviço de finanças, requerer a liquidação de impostos e contribuições, isenção ou redução dos mesmos, requerer certidões, alterações, fazer participações;

Junto das Câmaras Municipais tratar de quaisquer assuntos que a ele, outorgante, digam respeito, nomeadamente apresentar projetos e suas alterações, requerer licenças, alvarás e certidões, ligações de rede pública de águas e saneamento, averbamento e cancelamentos.

(…)»

9 - Juntamente com este documento «Procuração», encontra-se um outro - que termina com uma assinatura manuscrita com o nome do Autor, AA -, elaborado por CC (aqui 2º Réu), datada de 13-11-2008, o qual na qualidade de Advogado aí declarou o seguinte:

«(…)

TERMO DE AUTENTICAÇÃO

No dia 13 de Novembro, perante mim Advogado CC, portador da Cédula com o nº …, com escritório na Rua …, …/… em …, compareceu como outorgante:

AA, Nif. 1…06, casado, natural da freguesia de …, concelho de …, residente no lugar das …, …, freguesia de …, concelho de … .

Verifiquei a identidade do outorgante por exibição do Bilhete de Identidade nº 10…64 emitido em 17.09.2003 pelo SIC de … pertencente a AA.

Declara o outorgante:

Que, para fins de autenticação, me apresentou a presente procuração que disse haver lido e assinado e que o mesmo exprime a vontade dele.

Li ao signatário o conteúdo do presente termo.

O Advogado

CC.

(…)»


10 - As assinaturas referidas em 8º e 9º não foram feitas pelo punho do Autor (AA), que não esteve presente no escritório do 2º Réu (CC) e não declarou a sua vontade conferir à 1ª Ré (BB) os poderes identificados no documento referido em 8º.

11 - A 1ª Ré (BB), fazendo uso da procuração referida em 4º, prestou em nome do Autor (AA) aval relativamente a uma livrança em branco subscrita por QQ - Confecções, Unipessoal, Ldª, a favor de Caixa Central - Caixa HH, C.R.L., como garantia de cumprimento de um contrato de locação financeira mobiliária, no valor de € 9.504,13, acrescido de I.V.A. no valor de € 1.995,87.

12 - Este contrato foi resolvido pela Caixa Central - Caixa HH, C.R.L., sem que tenha sido entregue à referida Sociedade qualquer quantia.

13 - A 1ª Ré (BB), fazendo uso da procuração referida em 8º, celebrou através de escrituras públicas datadas de 13 de Novembro de 2008, outorgando por si e como procuradora do Autor (AA), os seguintes contratos:

. Com o Banco EE, S.A. (aqui 4ª Ré) um contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual esta última declarou emprestar a ambos o montante de € 51.572,96 (para efeitos de transferência do empréstimo que lhes havia sido concedido pelo Banco Internacional de Crédito, S.A.), confessando-se ambos devedores da referida quantia; e dando de hipoteca, para garantia do pagamento, o prédio urbano identificado em 2º, hipoteca essa que se encontra inscrita na Conservatória do Registo Predial de … sob a Ap. 33 de 2008/11/18;

. com o Banco EE, S.A. (aqui 4ª Ré) um contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual esta última declarou emprestar a ambos o montante de € 56.075,00, confessando-se ambos solidariamente devedores da referida quantia; e dando de hipoteca, para garantia do pagamento, o prédio urbano identificado em 2º, hipoteca essa que se encontra inscrita na Conservatória do Registo Predial de … sob a Ap. 35 de 2008/11/18.

14 - A 1ª Ré (BB) fez suas as quantias recebidas com a celebração dos contratos supra identificados.

15 - Com o objetivo de impedir a celebração posterior, por parte da 1ª Ré (BB), de negócios jurídicos em seu nome, no dia 5 de Agosto de 2009 o Autor (AA) procedeu à revogação da procuração aludida em 8º.

16 - A 1ª Ré (BB) procedeu ao levantamento da conta bancária a que corresponde o NIB 00…24, aberta na Caixa HH de …, C.R.L., balcão de …, concelho de …, da quantia de € 66.000,00 pertencente exclusivamente ao Autor (AA), fazendo-a sua.

17 - A referida situação tem causado enorme incómodo ao Autor (AA), grande nervosismo, ansiedade, mau humor, irritação e desconfiança.

18 - Entre a OO (Europe), Ltd. (aqui 1ª Interveniente Principal) e a Ordem dos Advogados - Portugal foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, titulado pelas apólices DP/01…8/11/C e DP/02…6/11/C, em vigor até 31-12-2011, mediante o qual aquela assumiu, perante o Tomador de Seguro (Ordem dos Advogados), a cobertura dos riscos inerentes ao exercício da atividade profissional desenvolvida pelos seus segurados (advogados com inscrição em vigor).

19 - Este contrato garantia, até ao limite de capital seguro e com a dedução do montante correspondente à franquia contratual expressamente prevista nas Condições Particulares, o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos seus segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais incorridas no exercício da sua atividade.

20 - Nos termos expressamente previstos na cláusula 4.ª das Condições Especiais das apólices DP/01…8/11/C e DP/02…6/11/C, serão as mesmas exclusivamente competentes «para as reclamações que sejam pela primeira vez apresentadas i) contra o segurado e notificadas à seguradora, ou ii) contra a seguradora em exercício da ação direta, durante o período de seguro, ou durante o período de ocaso (…)»

21 - Entre a então Companhia de Seguros PP, S.A. (aqui 2ª Interveniente Principal) e a Ordem dos Advogados foi celebrado em Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, titulado pela Apólice n.º 000…9.

22 - Este contrato garantia, até ao limite de capital seguro e com a dedução do montante correspondente à franquia contratual, o risco decorrente de ação ou omissão, dos actos e omissões praticados pelos Advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados, no exercício da sua profissão.

23 - Nos termos do Ponto 10 das Condições Particulares da apólice em causa, sob a epígrafe «Período de Cobertura», a apólice em causa vigora pelo período de «24 meses, com data de início de 01 de Janeiro de 2012 às 00:00h e vencimento às 00:00 de 01 de Janeiro de 2014».

24 - De acordo com o Ponto 7 das Condições Particulares da apólice ora em análise, «A seguradora assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o Segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e, ainda, que tenham sido cometidos pelo Segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente Apólice».

25 - Nos termos do Ponto 12 do Artigo 1º das Condições Especiais da Apólice em causa, considera-se como Reclamação: «Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer SEGURADO, ou contra a SEGURADORA (…) Toda a comunicação de qualquer facto ou circunstância concreta conhecida por primeira vez pelo Segurado e notificada oficiosamente por este à Seguradora (…)».

26 - Até à citação para os presentes autos, não havia sido apresentada qualquer reclamação à 2ª Interveniente Principal (hoje, Seguradoras Unidas, S.A.) respeitante aos factos supra identificados.


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15. Por sua vez, foi considerado não provado que:

a) A 1ª Ré (BB), fazendo uso da procuração referida em 4º ou 8º, celebrou com a Caixa HH de …, C.R.L. os seguintes contratos:

. um contrato de crédito comercial nº 56…03, no valor de € 8.997,98, no qual o Autor (AA) figura como fiador;

. um contrato de crédito comercial com o nº 57…64, no valor de € 9.000,00, no qual o Autor (AA) figura como avalista;

. um contrato de crédito comercial nº 56…59, no valor de € 9.717,28, no qual o Autor (AA) figura como avalista.

b) A 1ª Ré (BB), fazendo uso da procuração referida em 4º ou 8º, celebrou com o Banco FF, S.A. um contrato de crédito ao consumo no valor de € 8.016,00, quantia que se encontra em dívida.

c) A 1ª Ré (BB), fazendo uso da procuração referida em 4º ou 8º, celebrou com o Banco GG, S.A., outorgando por si e como procuradora do Autor (AA), um contrato de crédito pessoal, mediante o qual este último pessoal declarou emprestar a ambos o montante de € 8.777,95, encontrando-se em dívida a quantia de € 2.805,00.

d) O Autor (AA) foi constituído avalista ou fiador num crédito de € 70.000,00.

e) A 1ª Ré (BB) efetuou o levantamento referido em 14º fazendo uso da procuração referida em 8º ou da referida em 4º.

f) A respectiva conta era co titulada pelos filhos do Autor (AA).

g) A 4ª Ré (Banco EE, S.A.), o Banco FF, S.A. e o Banco GG, S.A. permitiram que a 1ª Ré (BB) assinasse, em nome do Autor (AA), documentos de apólices de seguro vida e outros que só ao Autor competia assinar e para cuja validade não era suficiente a procuração. 

h) Os funcionários dos 4ª Ré (Banco EE, S.A.), Banco FF, S.A. e Banco GG, S.A. não foram prudentes, zelosos e cautos para verificar que as assinaturas não eram do Autor (AA), o que teriam constatado se o tivessem sido.

i) Os 4ª Ré (Banco EE, S.A.), Banco FF, S.A. e Banco GG, S.A. obrigaram-se a proceder à entrega dos valores a que se reportam os contratos diretamente ao Autor (AA).

j) O Autor (AA) encontra-se impossibilitado de contrair qualquer empréstimo para o que possa vir a necessitar.

k) O Autor (AA) não consegue dormir sem efeito de medicação.

l) Antes de tomar conhecimento do sucedido, o Autor (AA) era uma pessoa alegre, sociável e bem-disposta.

m) Até à citação para os presentes autos, não havia sido apresentada qualquer reclamação à 1ª Interveniente Principal (OO (Europe), LTD.) respeitante aos factos supra identificados.


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III – Fundamentação de direito

16. Na presente ação, o autor pediu, no que releva para a decisão desta revista, que se declare a falsidade/nulidade/anulação de dois contratos de mútuo, com hipoteca, que a 1ª ré, em nome próprio e em representação do autor, celebrou com o Banco EE, SA. E que, em consequência, se ordene o cancelamento das inscrições hipotecárias efetuadas com base naqueles títulos.

Na 1ª instância, foi declarada a ineficácia dos aludidos contratos em relação ao autor, por terem sido celebrados pela 1ª ré com base em procuração que se provou ser falsa. No tocante às hipotecas foi igualmente declarada a sua ineficácia, em relação ao património comum do ex-casal, constituído pelo autor e pela 1ª ré, tudo por aplicação do n° 1 do art. 268° do Código Civil.

A Relação, porém, julgando nesta parte procedente o recurso de apelação interposto pelo autor, declarou a nulidade das hipotecas e ordenou o cancelamento dos respectivos registos, ao abrigo do disposto no art. 280º, do CC, por entender que recaíam sobre objeto legalmente impossível.

Nesta revista, o Banco EE não questiona a verificação de uma situação de representação sem poderes relativamente ao autor, mas apenas, no que toca às hipotecas constituídas, a consequência jurídica a extrair por quem não tinha legitimidade substantiva para onerar o bem dado em garantia. Pretende, assim, a revogação do acórdão recorrido, nessa parte, repristinando-se o decidido na 1ª instância.

Afigura-se-nos que a razão está do lado da recorrente.

Com efeito:

Decorre da factualidade provada que o autor e a 1ª ré casaram entre si em 8.1.1995, no regime de comunhão de adquiridos, divorciando-se em 3.2.2003 (cf. ponto 1, dos factos provados).

Provou-se também que, em 13.11.2008, a 1ª ré, por si e como procuradora do autor, celebrou os contratos de mútuo com hipoteca com o Banco EE, S.A., confessando-se ambos devedores da quantia neles referida e dando de hipoteca, para garantia do pagamento, o prédio urbano identificado nos autos (cf. ponto 13, dos factos provados).

Ficou ainda provado que o património comum do ex-casal, não partilhado à data da celebração dos aludidos contratos de mútuo, era constituído pelo prédio urbano sobre o qual incidiram as hipotecas (cf. pontos 1 e 2, dos factos provados).

Ora, a alienação e oneração de bens imóveis comuns dos cônjuges carece da intervenção de ambos (por si ou representados por procurador, munido de poderes de representação) ou de um só deles, desde que obtido o consentimento do outro (art. 1682º-A, do CC).

Por sua vez, a sanção para a infração ao disposto no art. 1682º-A do CC, está prevista no art. 1687º, do mesmo Código, ao prescrever que os actos praticados são anuláveis, nos termos ali mencionados.

Este mesmo regime se deve aplicar após o divórcio e enquanto os bens se mantiverem numa situação de indivisão, pois, não obstante a extinção do vínculo conjugal implicar o fim das relações patrimoniais entre os cônjuges (arts. 1788º e 1789, nº1, do CC), os bens comuns mantêm essa qualidade até à liquidação e partilha, pois só ela põe termo à comunhão.[1] [2]

Por seu turno, relativamente à hipoteca voluntária (art. 712º, CC), estabelece-se no art. 715º, do CC que “só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens”.

É, portanto, de concluir que a 1ª ré, sem a intervenção ou o consentimento do ora autor, seu ex-marido, e sem dispor de poderes de representação, como se provou ter acontecido no caso dos autos, não podia ter constituído as hipotecas sobre o imóvel que integrava o património comum do ex-casal.

Assim, em conformidade com o disposto no  art. 268º, do CC, e independentemente da boa fé do beneficiário do direito real de garantía, o negócio jurídico da hipoteca é, face ao detentor da legitimidade substantiva  para alienar/onerar, «res inter alios acta», ou seja, insusceptível de produzir quaisquer efeitos sobre o património em causa. Em suma: ineficaz.[3]

É que, enquanto a nulidade é uma forma de ineficácia, em sentido amplo, pressupondo uma falta ou irregularidade, quanto aos elementos internos ou essenciais do negócio (falta de capacidade, falta ou defeito da declaração de vontade, impossibilidade física ou legal do objeto), a ineficácia, em sentido estrito, baseia-se na falta ou irregularidade de outra natureza[4], não já de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas antes de alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação de facto produtiva de efeitos jurídicos (falta de titularidade do direito de que se dispôs ou onerou, falta de registo relativamente a terceiros, etc.)[5].


Diga-se, por fim, que muito embora a hipoteca de coisa alheia se reja, essencialmente, pelo regime da venda de coisa alheia, a celebração do negócio constitutivo da hipoteca sobre o prédio urbano nestes autos, não se encontra sujeita à aplicação do estipulado no artigo 892º, do CC (ex vi do art. 939º, do mesmo Código), desde logo porque a 1ª ré não é a única titular do respectivo direito sobre o imóvel hipotecado, nem interveio nos actos de constituição de hipoteca nessa qualidade.


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IV – Decisão

17. Nestes termos, concedendo a revista, acorda-se em declarar a ineficácia, relativamente ao património comum do ex-casal, constituído pelo autor e pela 1ª ré, das hipotecas incidentes sobre o imóvel identificado nos autos, para garantia do cumprimento dos contratos referidos no ponto 13, dos factos provados.

Custas pelo recorrido.


Lisboa, 17 de dezembro de 2019


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relator)

Oliveira Abreu

Ilídio Sacarrão Martins

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[1] Neste sentido, Cristina M. Araújo Dias, “Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Problemas, Críticas e Sugestões”, Coimbra Editora.
[2] Note-se, porém, que após a dissolução do casamento cada ex-cônjuge pode dispor da sua meação, podendo a mesma ser alienada ou ser objeto de penhora – cf., neste sentido, Esperança Pereira Mealha, “Acordos Conjugais para Partilha dos Bens Comuns”, Almedina 2005, pág. 74.
[3] Sobre esta problemática, cf., entre outros, os acs do STJ de 6.5.2008, proc. nº 08A1056 (Alves Velho), in www.jusnet.com e de 29.3.2012, proc.2441/05 (Hélder Roque), in ECLI:PT:STJ:2012:2441.05.8TBVIS.C1.S1.3E.
[4] Cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, pág. 411.
[5] Cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, 4ª edição, págs. 615 a 617.