Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4488/20.5T8ALM-A.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
FUTEBOLISTA PROFISSIONAL
DIREITO AO NOME
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
FACTO ILÍCITO
CAUSA DE PEDIR
DANO
RESIDÊNCIA HABITUAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.
Decisão Texto Integral:

Autor: AA

Ré: Eletronic Arts Inc


*


I - Relatório

O Autor propôs a presente ação declarativa, com processo comum, contra a Ré, no Tribunal Central Cível de Almada, pedindo a condenação desta a pagar-lhe:

- a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 144.000,00, de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 51.877,48, tudo no total de € 195.877,48 e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal;

- montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 2.935,34 (dois mil, novecentos e trinta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos), tudo no total de € 7.935,34 (sete mil, novecentos e trinta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.

Para tanto, invocou, em síntese, que a Ré, sociedade norte-americana, no exercício da sua actividade comercial de desenvolvimento e fornecimento de jogos, utiliza a imagem e o nome do autor, cidadão português, jogador de futebol, para desenvolver e fornecer os jogos Fifa, Fifa Manager, Fifa Ultimate Team-Fut, contando a Ré com várias subsidiárias, entre as quais a EA Swiss Sarl, com sede em Genebra, Suíça, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, sem ter solicitado autorização para o efeito.

Citada a Ré contestou a ação, tendo, além do mais, invocado a exceção da incompetência dos tribunais portugueses para decidirem esta ação, alegando não se verificarem nenhum dos fatores de atribuição de competência, nos termos dos artigos 59º, 62º e 63º do Código de Processo Civil, concluindo pela sua absolvição da instância.

O Autor apresentou resposta, defendendo a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da ação, alegando, em síntese, que é cidadão português, reside e tem toda a sua vida organizada em Portugal, os jogos podem ser adquiridos em todo o mundo, e que, não se admitindo o exercício do direito perante os tribunais portugueses está ameaçada a possibilidade de exercício do seu direito.

Foi proferida decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência internacional, declarando o Tribunal Central Cível de Almada competente para decidir a presente ação.

A Ré interpôs recurso desta decisão, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso e confirmado a decisão recorrida.

A Ré interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, daquele acórdão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

a) O presente recurso de revista impugna o acórdão do TRL de 07.12.2023, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível de ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

– princípio da causalidade, princípio da coincidência, princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes e o princípio do primado do direito europeu;

– art.º 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 62.º do CPC;

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ; – art.º 8.º, 9.º e 351.º do CC.

c) A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.

d) A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, por força dos atos de produção e comercialização dos jogos FIFA, onde foi utilizada a sua imagem.

e) De acordo com o art.º 2.º da PI, o autor afirma que a ré não tem atividade na Europa, mas apenas nos EUA, Canadá e Japão, assim reconhecendo que a ré não praticou atos de produção e comercialização dos jogos em Portugal.

f) E é perante este quadro factual que se deverão aplicar os critérios de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC, única fonte normativa admissível para dirimir o thema decidendum (ou seja, não sendo aplicáveis regulamentos europeus, como se afirma no acórdão em análise, também não o é a jurisprudência do TJUE que interpreta esses diplomas e que não se debruça sobre direito interno dos estados-membros).

g) O regime interno tem de ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

h) A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber:

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e

- alínea c): critério da necessidade.

i) Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) O autor é um jogador de futebol com domicílio em ...;

(ii) O autor representou clubes no ..., Portugal, ..., ..., ... e ... (art.º 9.º da PI);

(iii) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América (introito da PI);

(iv) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor exclui a prática destes e outros atos, pela ré, na Europa não alega que a ré o faz em Portugal (art.º 2.º da PI);

(v) É o próprio autor que refere que a ré não tem atividade em território nacional, reconhecendo que são entidades terceiras a efetuar a divulgação e comercialização na Europa, incluindo naturalmente Portugal (art.º 2.º da PI);

(vi) Na PI nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, localizado em Portugal.

j) De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC, valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu

k) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

l) Em suma, não ocorreu, em Portugal, qualquer facto praticado pela ré.

m) Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

n) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

o) Sucede que não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

p) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.

q) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

r) Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete ao Tribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

s) O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorre em Portugal, não invoca qualquer dano que se tenha produzido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil localizada em Portugal

t) O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo, vendas que atribuiu apenas a terceiros, pelo que a declaração de competência à luz deste facto constitui uma competência exorbitante, já que não é um motivo diferenciar na nossa jurisdição sobre as demais, onde igualmente são comercializados os jogos FIFA.

u) A aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro, não permite justificar a declaração a circunstância de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a Ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

v) A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional, precisamente o que se visa evitar em homenagem ao princípio da soberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

w) Acresce que não se pode inferir que o autor terá sofrido danos em Portugal, porque isso não é alegado na petição inicial.

x) Essa conclusão, assente na importação dum critério europeu relativo ao centro de interesses, resulta de incorreta interpretação da Lei, pois que tal critério não encontra um mínimo de correspondência com o teor do art. 62.º do CPC.

y) Além disso, tal conclusão não se encontra sustentada em factualidade alegada pelo autor, pelo que traduz o emprego de presunção judicial de factos, o que é vedado na apreciação da competência – art.º 38.º, n.º 1 LOSJ e art.º 351.º do CC.

z) Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iii) não alegação de danos em Portugal e (iv) inexistência de qualquer ligação relevante do autor a Portugal para efeitos da demanda, retira-se a conclusão de inexistência de elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

aa) Caso este Tribunal se pronuncie sobre o art.º 62.º, alínea c) do CPC – princípio da necessidade –, cumpre ressalvar que o autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

bb) Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

cc) O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

dd) O autor chega a alegar factos na petição inicial que comprovam que os direitos que pretende exercer são reconhecidos na jurisdição norte-americana.

ee) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e não possa ser mantida, por ser inconstitucional a interpretação e aplicação da alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRL e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

ff) Cumpre ainda ressalvar que são inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas);

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório);

– princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e

– princípio do primado do direito europeu.

gg) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 38.º, n.º 1 da LOSJ e 351.º do CC e é suscitada para conhecimento expresso deste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82 porque na interpretação abstrata da lei (e sua posterior concreta aplicação) do princípio da causalidade não cabe, por contrariar os princípios constitucionais acima elencados, o critério do centro de interesses, nem o emprego de factos presumidos, factos não alegados e factos que não integram a causa de pedir.

hh) Subsidiariamente, caso este Supremo Tribunal considere admissível, constitucional e legalmente, a inclusão do critério do centro de interesses nos princípios da coincidência e causalidade, importa ressalvar que não existem factos na PI que demonstrem a existência de um centro de interesses do autor em Portugal: não indicou ter o seu agregado familiar, amigos ou outro tipo de conexão pessoal no nosso paísou sequer onde estava e quando soube da inclusão da sua imagem nos jogos FIFA – nesse sentido, veja- se a recente decisão do TRL de 13.12.2023 (Parecer / documento 3 aqui junto).

ii) Nesta tese que admite a aplicação do critério do centro de interesses, tais factos seriam essenciais para que se pudesse aplicar o critério do centro de interesses, não sendo possível o recurso à utilização de presunções, como vimos.

jj) Deve por isso ser revogado o acórdão do TRL de 07.12.2023 e substituído por decisão que declare a incompetência internacional dos tribunais portugueses para este pleito, absolvendo a ré da instância e condenando o autor nas custas.

O Autor apresentou resposta, sustentando a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.


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II – Objeto do recurso

Considerando as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre verificar se os tribunais portugueses não são competentes para apreciar o mérito da presente ação.


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III – O direito aplicável

Está em discussão neste recurso a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o mérito da presente ação.

Com a sua propositura, o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, invocando a violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem.

Para tanto, invoca que a Ré, que tem sede no Estado da Califórnia, dos Estados Unidos da América, utiliza, sem a sua autorização, o seu nome e a sua imagem, que inclui as suas características pessoais e profissionais, nos videojogos de que é produtora, denominados FIFA, nas edições 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2014, 2015, 2016, 2017, FIFA MANAGER, nas edições de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, nas edições de 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, os quais são produzidos pela Ré nos Estados Unidos e comercializados em todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré (destacando-se na Europa a EZ Swiss Sarl que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão), resultando dessa atuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor.

O dano invocado pelo Autor é unicamente a exposição do seu nome e da sua imagem sem a sua autorização.

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos.

Na versão do Autor, este tem nacionalidade portuguesa e tem residência em Portugal, a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia), a produção dos jogos ocorreu precisamente nesse local, a difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, incluindo Portugal, e este foi futebolista profissional nos seguintes clubes:

2001-2002, 2002-2003, 2003-2004 – A. ....... (...).

2004-2005 – U. ...... (Portugal)

2005-2006 – V. ....... (Portugal)

2006-2007 e 2007-2008 – U. ...... (Portugal)

2008-2009, 2009-2010, 2010-2011 – A........ ... (Portugal)

2011-2012 - C.. .... (...)

2012-2013 – M....... (...)

2013-2014, 2014-2015 – É.... .. (...)

2015-2016 – S........ ... (...)

2016-2017 – M......... (Portugal)

2018-2019 e 2019-2020 – M..... .... (...)

O acórdão recorrido seguiu a linha de raciocínio do Supremo Tribunal de Justiça que em vários acórdãos, em casos idênticos, sustentou a competência dos tribunais portugueses para decidir sobre o mérito deste tipo de ações 1 e que segue o seguinte raciocínio, conforme se explicitou no acórdão proferido em 13.10.2022, cuja fundamentação, por comodidade, se vai passar a transcrever.

Repetindo a fundamentação que consta do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 24-05-2020, no processo n.º 3853/20, da autoria dos subscritores do presente acórdão:

“O artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, incumbe a lei de processo de fixar os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, dispondo o artigo 59.º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do mesmo diploma.

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, dado que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, é, portanto, à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

No artigo 62.º do Código de Processo Civil são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

Segundo o critério da coincidência, que recorre a uma técnica legislativa de remissão intrasistemática 2, os tribunais portugueses são competentes sempre que a ação possa ser proposta em Portugal, segundo as regras específicas da competência territorial, estabelecidas na lei portuguesa (artigo 70.º e seguintes do Código de Processo Civil), atribuindo-se, assim, a estas regras a funcionalidade suplementar de determinarem a competência internacional dos tribunais portugueses, para além de definirem a competência territorial interna. A ideia que inspira a adoção deste critério é a de que os elementos de conexão utilizados para estabelecer a competência territorial interna traduzem um elo suficientemente forte entre a causa e o Estado português para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais.

No presente caso, estamos perante uma ação em que se pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual, pela violação, por ato ilícito, de direitos de personalidade, dispondo o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

ALBERTO DOS REIS 3 justificou a opção por este critério instrumental, no Código de Processo Civil de 1939, por ser no lugar onde o facto foi praticado que devem encontrar-se as melhores provas da ocorrência e dos danos por ele produzidos. É a proximidade do tribunal com as provas dos factos que integram os diferentes elementos da causa de pedir de uma ação de responsabilidade extracontratual que é determinante da escolha do forum delicti comissi.

No entanto, a aplicação deste critério para aferir a competência territorial interna revela algumas dificuldades e divergências quando a ação ofensiva decorre em local diferente onde se produzem os danos, uma vez que, nesse caso, as provas dos factos que integram a causa de pedir se encontrarão espacialmente dispersas, registando-se opiniões no sentido de que, em caso de dissociação entre o lugar do facto causal e o lugar onde o dano se produziu, o lesado pode propor a ação respetiva em qualquer um destes lugares 4, à semelhança do que ocorre quando a ação se desenvolve plurilocalizadamente, em contraponto com posições menos flexíveis que sustentam que, nessas situações, releva apenas o local onde ocorreu o comportamento do agente violador de direitos do lesado 5.

Cremos, no entanto, que essas dificuldades não se colocam quando o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, funciona como norma ad quam, das regras definidoras da competência internacional, uma vez que, segundo o critério da causalidade (artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil), os tribunais portugueses têm competência para decidir os litígios em que algum dos factos que integram a sua causa de pedir ocorra em território português 6. Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir 7.

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens 8.

É essa, aliás, a leitura que também tem sido feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia das normas gémeas do artigo 7.º, 2), do Regulamento Bruxelas I bis, e dos artigos 5.º, n.º 3, dos anteriores instrumentos legais europeus que tiveram por objeto o estabelecimento de regras comuns de competência judiciária em matéria cível e comercial, a Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, a Convenção de Lugano de 16.09.1988, a Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e o Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, tendo, nesses casos, o Tribunal aplicado, com temperança, a regra da ubiquidade 9 10.

Mas, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem também uma importante jurisprudência precisamente em matéria de competência internacional, relativa a ações de responsabilidade civil extracontratual por violações de direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, aplicando o artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis e as normas que lhe antecederem contidas nos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, da Convenção de Lugano de 16.09.1988, da Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000 11.

O artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis, nas situações em que o demandado não tenha domicílio num Estado-Membro, como ocorre no presente caso, ao determinar uma remissão para as regras do direito processual civil do Estado Membro cujo tribunal é chamado a pronunciar-se, em matéria de competência internacional, sendo estas as normas aplicáveis nessas situações, denuncia que essas regras internas também fazem parte de um mesmo sistema de regras de conflito de competências instituído pelo Regulamento, que se pretende global e coerente 12. Não deixamos, pois, de estar também aqui perante uma remissão intrasistemática, apesar da sua aparência extrasistemática 13. Este convívio, por efeito desta remissão, no nosso ordenamento jurídico das regras de direito europeu sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros da União Europeia, incluindo os tribunais portugueses (neste caso, o Regulamento Bruxelas I bis), e as regras do direito processual civil português sobre a mesma matéria, embora com um âmbito de aplicação distinto, exige a preservação da coerência sistémica do nosso ordenamento jurídico. Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não deve conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu”.

Na jurisprudência desse Tribunal 14, tal como se refere no mais recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em ação idêntica 15, nesta matéria “as questões inerentes à especificidade do evento danoso resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global têm encontrado resposta normativa no sentido de uma configuração desse tipo de dano e da determinação da sua localização ajustadas aos novos meios tecnológicos através dos quais se propagam os efeitos lesivos potenciados pelos comportamentos ilícitos e veiculados em dimensões virtuais até se materializarem onde podem ser concretamente verificados e mais facilmente provados.

Assim, a opção preferencial pelo centro de interesses do lesado como local da materialização do dano resultante da violação dos direitos de personalidade através de meios de divulgação global, nomeadamente por meios audiovisuais, é a que se afigura mais consentânea com a viabilidade prática da prova desse dano, por parte do lesado, posto que é aí que este, em regra, disporá dos meios de prova tendentes a demonstrar os efeitos danosos na sua personalidade e para a sua condição de vida.

Daí decorre uma relevante conexão entre o centro de interesses do lesado e o órgão jurisdicional mais vocacionado para dirimir o litígio, como fator de atribuição de competência internacional, seja manifestamente em sede do critério da causalidade constante da alínea b) do artigo 62.º do CPC, seja ainda, de certo modo, em sede do critério da coincidência estabelecido na alínea a) daquele artigo com referência ao n.º 2 do artigo 71.º do mesmo diploma. Uma tal conexão não ficará desmerecida pela eventual competência concorrente de jurisdições estrangeiras situadas em territórios por onde o facto ilícito se tenha dispersado ou distendido”.

Tal como já se havia referido no nosso anterior acórdão proferido em 24.05.2022:

« (…) Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir 16.

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens 17

E ainda:

“ (…) a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a maioria dos danos alegados não ocorreram nesse local, não sendo aí que se encontram as provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização”.

Note-se, sossegando as preocupações reveladas pela Ré na sua resposta às alegações de recurso, que não estamos a aplicar (mesmo por interpretação extensiva ou integração analógica) à resolução da questão objeto do presente recurso o direito da União Europeia nem a sua jurisprudência. Fomos apenas lê-la e, por concordarmos com o seu iter argumentativo, adotámos igual critério na interpretação do nosso direito interno, com a vantagem de obtermos soluções coerentes com aquelas que seguimos em Portugal quando aplicamos o Regulamento Bruxelas I bis. Isto é, a jurisprudência do TJUE não é a fonte do direito aplicado na resolução deste caso, mas apenas uma inspiração do modo como interpretámos e aplicámos o nosso direito interno para resolver a questão da competência internacional dos tribunais portugueses aqui colocada, tendo sido seguido igual critério normativo.

Tal como se afirmou no nosso anterior acórdão de 24.05.2022:

“Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, iremos seguir de perto a linha definida por esta jurisprudência, não só porque a isso aconselha a preservação da coerência e harmonia do nosso ordenamento jurídico, mas também porque reconhecemos nessa linha um equilíbrio ponderado da valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização.

O facto daquela jurisprudência se debruçar, na maioria das situações, sobre violações de direitos de personalidade, através da Internet, não desaconselha a sua transposição para o presente caso, em que o instrumento da ofensa a esses direitos são videojogos mundialmente comercializados, em larga escala, uma vez que também a exposição dos seus conteúdos se carateriza pela ubiquidade, não tendo uma divulgação circunscrita a um território. Eles são visionados e operados por um número indefinido de jogadores, espalhados por todo o mundo, fora de qualquer controle do seu produtor, pelo que as ponderações efetuadas pelo TJUE, tendo em consideração a divulgação mundial de conteúdos ofensivos dos direitos de personalidade pela Internet, são aplicáveis a este caso”.

Antes de iniciarmos a aplicação deste critério normativo ao caso concreto, convém frisar que, consoante já afirmava Manuel de Andrade 18, citando o processualista italiano Enrico Redenti, a competência internacional afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos como o autor configura a relação jurídica controvertida, e não, pelo que, mais tarde, será o quid decisum.

Voltando a reproduzir o que anteriormente afirmámos no acórdão proferido em 24.05.222, que analisou uma pretensão semelhante à deduzida nos presentes autos “dado estarmos perante uma ação com uma causa de pedir complexa, do ponto de vista da competência jurisdicional, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, podem constituir critérios de vinculação quer o lugar do evento causal, quer o lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil, do ponto de vista da prova e da organização do processo, para se determinar qual é o tribunal ou tribunais que se encontram em melhores condições para proferir uma decisão de mérito informada.

Relativamente ao lugar onde ocorreu a ação causal do dano, há que ter em consideração, que a ação violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes 19. Apesar de na petição inicial se dizer que essa comercialização era efetuada por empresas “subsidiárias” da Ré, designadamente por EZ Swiss Sarl, que assumia a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, não deixa o Autor de imputar a divulgação pública apenas à Ré, responsabilizando-a por todos os danos resultantes desses atos. Não devendo, neste momento, efetuar-se qualquer juízo sobre a imputabilidade da ação ilícita alegada pelo Autor para dele retirar a competência do tribunal, há que apenas relevar a perspetiva do Autor, apresentada na petição inicial, de que a Ré é a responsável pela produção, lançamento no mercado e divulgação por todo o mundo dos videojogos FIFA e FIFA Manager.

Assim, a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado 20 (...).

Os danos causados pela ofensa aos direitos de personalidade ao nome e à imagem são realidades distintas do ato lesivo, claramente diferenciados na parte que se traduz na atividade criadora do suporte que contém o conteúdo lesivo, mas coincidente com a atividade de divulgação púbica generalizada do nome e da imagem do Autor sem o seu consentimento.

Neste processo, o Autor limita-se a alegar como prejuízo a divulgação da sua imagem e nome para fins lucrativos pela Ré sem o seu consentimento, o que coincide com essa dimensão do ato lesivo, ou seja a divulgação do seu nome e imagem com finalidades lucrativas, sem o consentimento do Autor.

Apesar deste localizar o prejuízo invocado em todo mundo, uma vez que que a divulgação do seu nome e imagem é relativa à sua vida profissional de futebolista, ele ganha maior expressão no local onde o Autor, no momento, exerce essa profissão.

Tem-se entendido que, nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização pela lesão do direito à imagem e nome do lesado poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta exigência, os inconvenientes do denominado “forum shopping.” 21. Não merece acolhimento a tese de que deveria ser proposta uma ação em cada um dos Estados por onde o Autor exerceu a sua profissão, relativamente aos danos que este sofreu em cada um dos países por onde passou (neste caso, Portugal, ..., ..., ... e ...), como aparenta sugerir a respeitável opinião de Miguel Teixeira de Sousa, numa página do Blog do IPPC (Instituto Português de Processo Civil), num artigo datado de 6 de fevereiro de 2023, com o título “Futebolistas, videojogos e competência internacional”, e que a Recorrente apresenta como “parecer”, por tal sugestão não atender ao princípio da economia processual, segundo o qual se deve procurar obter o máximo resultado processual, através do mínimo de atividade possível, e se revelar insuportavelmente onerosa para o lesado, ignorando as exigências constitucionais de um processo equitativo.

Ora, relativamente à escolha do foro português pelo Autor, constata-se a alegação na petição inicial de diversos elementos que revelam a existência de um elo de ligação suficientemente forte entre a alegada violação dos direitos de personalidade do Autor e o Estado português que justificam essa escolha:

- o Autor tem domicílio em Portugal (identificação do Autor no cabeçalho da petição inicial);

- o Autor é português (identificação do Autor no cabeçalho da petição inicial);

- o país onde maioritariamente o Autor exerceu a sua profissão foi em Portugal - cerca de metade do tempo da sua actividade futebolística foi desenvolvida em clubes portugueses (artigo 9.º da petição inicial);

-os videojogos são difundidos e vendidos em Portugal (artigo 26.º da petição inicial);

- os jogos são utilizados em torneios realizados em Portugal (artigos 29.º e 30.º da petição inicial).

Perante a alegação destes elementos fácticos, a competência dos tribunais portugueses não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.

Acolhem-se, pois, as razões que o acórdão recorrido convocou para concluir pela competência dos tribunais portugueses, face à factualidade alegada pelo Autor na petição inicial, não se tendo recorrido à utilização da qualquer raciocínio presuntivo factual para relevar factos não alegados pelo Autor e tendo a determinação da competência dos tribunais portugueses resultado unicamente da aplicação do critério da causalidade adotado no artigo 62.º, n.º 1, b), do Código de Processo Civil, pelo que não há que conhecer das questões de constitucionalidade colocadas pela Recorrente nas alegações de recurso, uma vez que as interpretações normativas por ela arguidas de inconstitucionais, quanto à utilização de raciocínios presuntivos, aplicação de regras de direito europeu e consideração de factos não alegados na petição inicial não se verificam, pretendendo-se apreciações de constitucionalidade de interpretações ficcionadas pelo Recorrente que não integram a ratio decidendi do acórdão recorrido e que também não são aqui perfilhadas.

Por estas razões, deve o recurso interposto ser julgado improcedente, confirmando-se o decidido pelo acórdão recorrido.


*


Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Ré, confirmando-se o acórdão recorrido.


*


Custas do recurso pela Ré.

*


Notifique.

*


Lisboa, 14 de março de 2024

João Cura Mariano

Maria da Graça Trigo

Afonso Henrique

_____


1. Ac. do STJ de 24-05-2022, Revista n.º 3853/20.2T8BRG.G1.S1, relatado por João Cura Mariano;

  - Ac. do STJ de 07-06-2022, Revista n.º 4157/20.6T8STB.E1.S1, relatado por Manuel Aguiar Pereira;

  - Ac. do STJ de 07-06-2022, Revista n.º 24974/19.9T8LSB.L1.S1, relatado por Fernando Baptista;

  - Ac. do STJ de 23-06-2022, Revista n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1, relatado por Maria Graça Trigo;

  - Ac. do STJ de 27-09-2022, Revista n.º 637/20.1T8PRT.P1.S1, relatado por Jorge Arcanjo;

- Ac. do STJ de 29-09-2022, Revista n.º 2160/20.5T8PNF.P1.S1, relatado por Tomé Gomes;

  - Ac. do STJ de 13-10-2022, Revista n.º 1014/20.0T8PVZ.P1.S1, relatado por João Cura Mariano;

- Ac. do STJ de 10-11-2022, Revista n.º 1579/20.6T8PVZ.P1.S1, relatado por Catarina Serra;

 - Ac. do STJ de 10-11-2022, Revista n.º 17046/20.5T8LSB.L1.S1, relatado por Catarina Serra;

 - Ac. do STJ de 15-12-2022, Revista n.º 3731/21.8T8BRG.G1-A.S1, relatado por Ana Paula Lobo;

  - Ac. do STJ de 10-01-2023, Revista n.º 996/21.9T8PVZP1.S1, relatado por Manuel Capelo;

  - Ac. do STJ de 19-01-2023, Revista n.º 2161/20.3T8CSC.L1-A.S1, relatado por Sousa Pinto;

 - Ac. do STJ de 14-02-2023; Revista n.º 3803/20.6T8BRG.G1-A.S1, relatado por Pedro de Lima Gonçalves;

 - Ac. do STJ de 15-02-2023, Revista n.º 4239/20.4T8STB.E1.S1, relatado por Ana Resende;

  - Ac. do STJ de 25-05-2023, Revista n.º 3729/21.6T8BRG.G1-A.S1, relatado por Isabel Salgado;

  - Ac. do STJ de 30-05-2023, Revista n.º 4167/20.3T8LRA.C1.S1, relatado por António Magalhães;

- Ac. do STJ de 16-11-2023, Revista n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1, relatado por Maria Clara Sottomayor;

  - Ac. do STJ de 08-02-2024, Revista n.º 4425/20.7T8ALM-B.L1.S1, relatado por Nuno Pinto de Oliveira

  - Ac. do STJ de 29-02-2024, Revista n.º 17657/20.9T8LSB-A.L1.S1, relatado por Ferreira Lopes

  - Decisão singular de 04-03-2024, Revista n.º 2507/20.4T8AVR.P1-A.S?, relatada por Maria dos Prazeres Beleza.

2. DÁRIO MOURA VICENTE, A Competência Internacional no Código de Processo Civil Revisto, em “Aspectos do Novo Código de Processo Civil”, LEX, 1997, pág. 84, e LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. III, tomo 1, 3.ª ed., 2019, Almedina, pág. 337, nota 1334.

  Sustentando a inutilidade deste critério, face à dupla funcionalidade das normas de competência territorial, num alinhamento com o sistema alemão, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Competência e a Incompetência nos Tribunais Comuns, 3.ª ed., AAFDL, 1990, pág. 54, Apreciação de Alguns Aspectos da Revisão do Processo Civil – Projecto, na Revista da Ordem dos Advogados 55 (1995), pág. 367 e seg., e em Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., LEX, 1997, pág. 99-100.

3. Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1º, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1960, pág. 195.

4. Vg. REMÉDIO MARQUES, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 336.

5. V.g. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, vol. I, pág. 102.

6. O aditamento da parte final da redação deste artigo, conferindo competência aos tribunais portugueses quando apenas alguns dos factos que integram a causa de pedir ocorram em território português, foi efetuado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, que reviu o Código de Processo Civil de 1961, consagrando a orientação jurisprudencial e doutrinal que vinha sendo seguida nesse sentido (v.g. ALBERTO DOS REIS, ob. cit., pág. 136-137, BAPTISTA MACHADO, La Competence Internationale em Droit Portugais, no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 41 (1965), pág. 101, ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declarativo, vol. II, Almedina, 1982, pág. 26-29, e o Assento do S.T.J. n.º 6/94, de 17.02.1994, pub. no D.R. de 30.03.1994), tendo este critério sido reposto pelo Código de Processo Civil de 2013, após a Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, o ter suprimido do artigo 65.º do Código de Processo Civil de 1961, com fundadas críticas da doutrina (v.g. LEBRE DE FREITAS, Competência ou Incompetência Internacional dos Tribunais Portugueses ?, na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, vol. I/II.

7. LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 119, RITA LOBO XAVIER, Elementos de Direito Processual Civil. Teoria Geral. Princípios. Pressupostos, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, pág. 215, nota 31, e LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2018, pág. 155-156.

  Sobre as vantagens da aplicação do critério da causalidade nas causas de pedir complexas, como sucede nas ações de responsabilidade civil extracontratual, com exemplos elucidativos, LEBRE DE FREITAS, est. cit.

8. Sobre esta modelação restritiva do princípio da causalidade, FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, 2018, pág. 444-445, RUI MOURA RAMOS, A Reforma do Direito Processual Civil Internacional, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 130, n.º 3879, pág. 167-168, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349, RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 204, Almedina, 2018, e JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, AAFDDL, 2022, vol. I, pág. 279.

9. Sobre essa jurisprudência, RUI MOURA RAMOS, Le Droit International Privé Communautaire des Obligations Extracontractuelles, em “Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional”, vol. II, Coimbra Editora, 2007, pág. 80 e seg., LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 131, JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pág. 191-193, ISABEL ALEXANDRE, Direito Processual Civil Internacional I, AAFDL, 2021, pág. 203-204, e JOANA COVELO DE ABREU, Tribunais Nacionais e Tutela Jurisdicional Efetiva. Da Cooperação à Integração Judiciária no Contencioso da União Europeia, Almedina, 2019, pág. 143-144.

10. Sobre a “rule of ubiquity”, na aplicação do artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis, THOMAS KADNER GRAZIANO, The Law Applicable to Cross-Border Damage to the Environment, Yearbook of Private Law, 2008, vol. 2007, pág. 74-76.

11. Sobre esta jurisprudência, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 132-133, ALEXANDRE DIAS PEREIRA, O Tribunal Competente em Casos da Internet Segundo o Acórdão «edate advertising» do Tribunal de Justiça da União Europeia, Revista Jurídica Portucalense, n.º 16, 2014, pág. 3-10, e JOÃO CASTRO MENDES, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, ob. cit., pág. 191-193.

  Efetuando uma leitura crítica desta Jurisprudência, ELSA OLIVEIRA DIAS, Do Tribunal Competente Para Apreciar Litígios Relativos a Responsabilidade Extracontratual Decorrente da Violação de Direitos de Personalidade, Revista do CEJ, 1.º semestre 2016, n.º 1, que, aderindo à posição do Advogado Geral no processo eDate/Martinez, defende a relevância do local onde se localize o centro de gravidade do conflito entre os bens e os interesses em jogo, convocando a globalidade da situação para determinar a competência do Tribunal.

12. Neste sentido o Parecer 1/03 do TJUE, de 07.02.2006, § 148.

13. Sobre estes dois tipos de remissão, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2021 (reimpressão), pág. 105-108.

14. Pode consultar-se um relato dessa jurisprudência no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-05-2020, no processo n.º 3853/20, que temos vindo a reproduzir, em parte.

15. Acórdão de 29.09.2022, Processo n.º 2160/20 (Rel. Tomé Gomes).

16. LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, cit., pág. 119, RITA LOBO XAVIER, Elementos de Direito Processual Civil. Teoria Geral. Princípios. Pressupostos, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, pág. 215, nota 31, e LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2018, pág. 155-156.

17. Sobre esta modelação restritiva do princípio da causalidade, FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, 2018, pág. 444-445, RUI MOURA RAMOS, A Reforma do Direito Processual Civil Internacional, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 130, n.º 3879, pág. 167-168, LUÍS LIMA PINHEIRO, ob. cit., pág. 348-349, RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 204, Almedina, 2018, e JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, AAFDDL, 2022, vol. I, pág. 279.

18. Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, pág. 88-89.

19. Neste sentido, ELSA DIAS OLIVEIRA, Da Responsabilidade Civil Extracontratual por Violação de Direitos de Personalidade em Direito Internacional Privado, Almedina, 2011, pág. 400-409.

20. ELSA DIAS OLIVEIRA, ob. cit., pág. 405-407.

21. Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.06.2022, Proc. 3239/20 (Rel. Maria da Graça Trigo).