Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
379/09.9YFLSB
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
TÍTULO EXTRAJUDICIAL
LETRA DE CÂMBIO
DEFESA POR IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
CONDOMÍNIO
ADMINISTRADOR
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
INEFICÁCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/14/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - Tratando-se de oposição à execução baseada em título executivo extrajudicial, pode o oponente invocar, sem qualquer limite temporal, todas as causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do exequente, e até, por vezes, negar os factos constitutivos do mesmo direito, achando-se na mesma posição em que se encontraria perante a petição inicial de uma acção declarativa.
II - A alegação do executado, na oposição à execução, segundo a qual é falso que as letras exequendas tenham sido do seu aceite, mas da exequente, não pode qualificar-se como contendo factos novos, no sentido de factos, cronologicamente, diversos dos articulados pela exequente, antes que o facto invocado por esta se passou de modo diferente daquele como a mesma o apresenta.
III - Deste modo, não se trata de factos constitutivos de excepção, que deveriam ser alegados e provados pelo oponente, mas antes de factos constitutivos de negação motivada, que deveriam ter sido alegados e provados pela exequente, por não envolverem para quem o faz o ónus da prova dos factos que a constituem, sob pena de colocar o réu em posição mais desfavorável do que na negação simples, em que lhe não pertence o respectivo ónus da prova
IV - O processo de prestação de contas é o lugar próprio para proceder ao confronto das posições recíprocas do saldo credor e devedor entre mandante e mandatário, em que se consubstanciam as posições do condomínio e do seu administrador, respectivamente.
V - Ao subscrever letras de câmbio pelo condomínio executado, aceitando o saque que sobre este a exequente, administradora do condomínio, accionou, não tendo obtido autorização da assembleia de condóminos, nem se estando perante um acto incluído no âmbito das funções que lhe competem, não actuou como representante e em nome do executado, mas em nome próprio, não tendo poderes para o obrigar, numa situação de representação sem poderes e não de abuso de representação, sendo, consequentemente, o acto ineficaz, em relação ao mesmo, que o não ratificou.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



O “Condomínio do Prédio Urbano em Regime de Propriedade Horizontal”, sito na Avª ..., nºs 74 a 74-A, C, Lisboa, na execução com processo comum, sob a forma ordinária, para pagamento de quantia certa, que lhe move a exequente “AA, Construções, Ldª”, com sede no Campo ..., nº 00, 1º, dtº, Lisboa, veio deduzir oposição à execução, pedindo que, na sua procedência, seja julgada extinta, no seu todo, a instância executiva, alegando, para o efeito, e, em síntese, que a presente execução constitui um expediente ilícito e abusivo tendente a obter uma quantia do executado, ora oponente, que a exequente sabe não ser devida, tendo esta, para tal, ficcionado as duas letras que traz à execução, sendo falso que as mesmas tenham sido aceites pelo oponente e que se destinassem a "reembolso de pagamentos da s/conta", tudo acontecendo sem poderes da exequente para obrigar o executado.
Impugna, também, as datas de emissão e a assinatura apostas nas letras, na qualidade de sacador, mas que a assinatura colocada no lugar do aceitante é da autoria de António ..., que nunca foi administrador do condomínio, qualificando a situação como um negócio consigo mesmo, operado pela exequente, ao aceitar letras em seu próprio favor.
Além do mais, a emissão de letras pelo administrador do condomínio extravasa o âmbito da sua autonomia, norteada pela prossecução do interesse do condomínio, sempre sujeito e espartilhado pelas decisões da assembleia de condóminos, a qual nunca concedeu poderes à exequente para as aceitar, desconhecendo a dívida e acusando esta de abuso de direito.
Na contestação, a exequente sustenta que deve ser julgada improcedente toda a oposição, prosseguindo a execução em conformidade com o peticionado no requerimento inicial.
A sentença julgou a oposição à execução, procedente por provada, declarando extinta a execução.
Desta sentença, a exequente interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a apelação, revogando a sentença impugnada e ordenando o prosseguimento da execução.
Do acórdão da Relação de Lisboa, o executado-oponente interpôs, por seu turno, recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, julgando-se a oposição à execução procedente e, consequentemente, extinta a execução, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª – Como administrador do condomínio executado, a exequente era uma mandatária desse mesmo condomínio com poderes de representação, com o dever de agir não só por conta do mandante, mas também em nome e no interesse deste;
2ª - Os poderes que foram conferidos pelo executado à mandatária/exequente são poderes-deveres, ou seja, poderes que têm obrigatoriamente que ser exercidos no interesse de outrem, no caso no interesse do executado ora recorrente;
3ª - O mandato é um contrato que deve ser executado de acordo com os princípios da boa fé (art° 762°, n° 2, do C.C.), ou seja, os princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente;
4ª - A boa fé exige que as partes num contrato cumpram determinados deveres recíprocos de conduta, como são os deveres de protecção, de lealdade e de informação, cuja violação é ilícita e susceptível de gerar responsabilidade civil contratual;
5ª - Um mandatário a quem foram conferidos poderes de representação e cujo contrato com o mandante foi celebrado no interesse único e exclusivo deste último - como era caso do contrato entre a ora exequente então administradora e o condomínio executado - não pode usar licitamente esses poderes-deveres, que formalmente detém, em seu próprio, único e exclusivo benefício, para mais com prejuízo flagrante dos interesses do mandante, o que foi precisamente o que a exequente fez ao aceitar, em representação do condomínio executado, aquelas letras de câmbio de que era sacadora e beneficiária;
6ª - A exequente não logrou demonstrar o valor dos seus alegados créditos em sede de assembleia de condomínio, pois as contas por si apresentadas foram rejeitadas, nem recorreu ao meio processual adequado (art° 1014° do C.P.C.) para demonstrar em Tribunal a correcção das contas que pretendia ver aprovadas;
7ª - Enquanto foi mandatária do condomínio executado, a exequente AA violou sistematicamente as obrigações que para si decorriam da lei e do contrato de mandato celebrado com o executado, e é contrário ao Direito e à boa fé que possa prevalecer-se do resultado dessas violações - em especial das suas obrigações de apresentar e fazer aprovar orçamentos e contas anuais -, precisamente contra quem foi lesado pelas suas condutas omissivas;
8ª - A exequente ao apor, em representação do executado, o aceite nas letras que baseiam a presente execução, não prosseguiu nenhum interesse do condomínio ora recorrente, só prosseguiu os seus próprios interesses, que, para mais, eram flagrantemente conflituantes com os do mandante;
9ª - No caso dos autos o que se verifica, no que respeita ao aceite pela exequente das letras dadas à execução, é um patente e consciente abuso dos poderes de representação que o recorrente conferira à exequente.
10ª - A consequência desse abuso de poderes de representação é a prevista no art° 8o da LULL, ou seja, as letras são ineficazes em relação ao representado, vinculando apenas o representante que as aceitou abusando dos seus poderes.
11ª - A assembleia de condóminos do condomínio executado não rejeitou as contas apresentadas pela exequente liminarmente e por razões formais, antes rejeitou essas contas por razões substanciais que indicou e a exequente não ficou, por causa dessa rejeição, exonerada da obrigação de prestar contas da sua gestão do condomínio;
12ª - Ao interpretar as declarações produzidas pelos condóminos que constam dos documentos reproduzidos nos pontos 4 a 6 da matéria de facto, no sentido em que o fez, o Tribunal "a quo" violou o disposto no art° 236° do C.C.;
13ª - A controvérsia quanto à aprovação de contas só podia ser dirimida em Tribunal, com respeito pelo princípio do contraditório, pois seria essa a sede própria para a exequente provar a existência e montante dos seus alegados créditos sobre a executada, pelo que o aceite pela exequente, em representação do executado, das letras de câmbio dadas à execução, foi um acto abusivo, com as consequências que resultam do art° 8o da LULL, ou seja, a ineficácia desses aceites em relação ao condomínio representado;
14ª - Ao interpor a presente execução com base nos títulos por si sacados e nos quais apôs o aceite, em representação do executado, nos termos acima referidos, a exequente manifestamente excedeu os limites impostos pela boa fé (art° 334° do C.C.), i. e., abusou do seu direito de acção;
15ª - O condomínio executado, ora recorrente, identificou e pôs em causa a relação causal subjacente à emissão das duas letras dadas à execução, alegando que a exequente não detinha nenhum crédito sobre o condomínio enquanto não fossem aprovadas as contas da sua gestão como administradora;
16ª - Dos autos não é possível retirar que o valor aposto em cada uma das letras corresponda a "valores alegadamente pagos pela executada", pois a gestão condominial inclui recebimentos e pagamentos e um eventual crédito do administrador só é determinável no fecho de contas de cada exercício;
17ª – O Tribunal "a quo" não podia abstrair-se da concreta situação factual retratada nos autos, julgando com base em critérios estritamente formais, desconsiderando em absoluto os regimes jurídicos do mandato com representação e da propriedade horizontal;
18ª - A decisão recorrida consubstancia a legitimação de um comportamento abusivo e ilícito por parte da exequente, e, em rigor, permite a qualquer administrador de condomínio - e lembremo-nos que somos quase todos condóminos - actuar contra os interesses de quem devia representar e proteger, eximindo-se da obrigação de prestar contas e, pior, auto-liquidando alegados créditos próprios não reconhecidos pela assembleia de condóminos através da constituição de obrigações cartulares de que o próprio administrador é beneficiário;
19ª - Ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido violou regras basilares dos institutos do mandato com representação e da propriedade horizontal, o disposto nos art°s 236°, 334°, 762°, n°2, 1157°, 1161º, 1431°, n° 1, 1436°, alíneas a), b) e j), todos do Código Civil, e, ainda, o art° 8o da LULL.
A exequente não apresentou contra-alegações.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. A exequente intentou acção executiva contra o oponente, munida dos documentos de folhas 7 e 8 dos autos de execução, dos quais consta, respectivamente, "no seu vencimento pagarão a quantia de trinta e sete mil e quinhentos euros" (fls. 7) e "no seu vencimento pagarão a quantia de treze mil e quinhentos e dezanove euros e dezassete cêntimos" (fls.8), com data de emissão de 13.9.2005 e de 29.9.2005 e de vencimento, em 13.12.2005 e em 28.2.2005, dos quais consta, no lugar destinado à "assinatura do sacador", o carimbo com os dizeres "AA Construções Lda - A Gerência" e uma assinatura sobre ele aposta, no lugar destinado ao "nome e morada do sacado", a identificação do executado e, no lugar destinado ao "aceite", o carimbo com os dizeres "Condomínio Parque Estacionamento ..." e sobre o mesmo uma assinatura – A).
2. A exequente exerceu as funções de administrador do “Condomínio Parque Estacionamento ...”, desde 3 de Fevereiro de 1999 até 10 de Outubro de 2005, tendo sido a construtora do edifício – B).
3. A folhas 17 a 22, encontra-se junta a acta de condomínio n° 2, datada de 15 de Março de 2005, da qual, entre o mais, consta: "Para deliberar sobre a ordem de trabalhos que tem os seguintes pontos (...) Apresentação e Aprovação de contas (...), O Presidente da mesa, Senhor António ..., declarou não haver quorum para o funcionamento da reunião de condomínio (…)"- C) .
4. A folhas 19 a 22, encontra-se junta a acta de assembleia de condomínio n° 3, datada de 22 de Março de 2005, da qual, entre o mais, consta: "para deliberar sobre as partes da ordem de trabalhos o seguinte: (...) 2 - Apresentação e aprovação de contas (...) Pelo presidente da mesa foram apresentadas as contas, até 31 de Dezembro de 2004. (...) O adiamento foi aprovado com os votos favoráveis da Imoleasing e abstenção dos restantes condóminos" – D).
5. A folhas 62 a 71, encontra-se junta a acta de assembleia de condomínio n° 5, datada de 10 de Outubro de 2005, da qual, entre o mais, consta: "Nesta assembleia, por maioria de votos, com uma abstenção, as constas foram rejeitadas " – E).
6. A folhas 31 a 35, encontra-se junta a acta n° 7, datada de 26 de Junho de 2006, da qual consta, entre o mais: (…) a seguinte ordem de trabalhos: 1 – Apreciação e votação das constas referentes ao exercício de 1999 a 10 de Outubro de 2005. (...) Foram as constas referentes ao exercício de 1999 a 10 de Outubro de 2005 colocadas à votação e por maioria de votos, 344,30 rejeitados e com os votos a favor da empresa AA" – F).
7. A Imoleasing foi condómino, desde 4 de Novembro de 1997, tendo pago à administradora PH-Gestão as quotas em atraso, no montante de €50 052,96 (euros), em Dezembro de 2005, quantia empregue em obras de melhoramento do condomínio e financiamento de falta de pagamento por parte dos outros condóminos – G).
8. As assinaturas constantes dos documentos, referidos em A), no lugar destinado ao "aceite", sobre o carimbo, foram apostas pelo punho de Vasco António ... – H).
9. As assinaturas constantes dos documentos, referidos em A), no lugar destinado à "assinatura do sacador", sobre o carimbo da “AA”, foram apostas pelo punho de Maria ... – I).
10. A folhas 225 a 229, encontra-se a certidão do registo comercial atinente à exequente – J).
11. A exequente é condómina de várias fracções do edifício – K).
12. A administradora do condomínio é a PH Gestão – L).
13. Os condóminos não concederam poderes à exequente, enquanto
administradora, para emitir os documentos, referidos em A) – 2º.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da existência de um crédito do administrador do condomínio sobre este.
II – A questão do excesso dos poderes de representação do administrador do condomínio.

I. DO CRÉDITO DO ADMINISTRADOR SOBRE O CONDOMÍNIO

Efectuando uma síntese do essencial da factualidade que ficou consagrada, importa reter que, no decurso do período temporal em que a exequente exerceu funções de administradora do condomínio executado, que ocorreu entre 3 de Fevereiro de 1999 e 10 de Outubro de 2005, não foram aprovadas as contas da administração do condomínio, quer, no dia 15 de Março de 2005, por falta de «quorum», quer no dia 22 de Março de 2005, devido a adiamento fundado na inobservância das normas contabilísticas oficiais, acabando, a 10 de Outubro de 2005, por ser rejeitadas, por maioria de votos, o que voltou a acontecer, a 26 de Junho de 2006, também, por maioria de votos, agora, apenas, com os votos favoráveis da exequente “AA, Construções, Ldª", simultaneamente, administradora do condomínio e respectivo condómino.
Entretanto, dos documentos em que se baseia a execução, constam duas ordens de pagamento, com as assinaturas apostas pelo punho de Maria ..., sobre o carimbo da exequente “AA”, dadas ao executado condomínio, que as aceitou, mediante as assinaturas, sobre o carimbo da exequente, apostas pelo punho de V...., sendo certo, porém, que os condóminos não concederam poderes â exequente, enquanto administradora do condomínio executado, para emitir as letras de câmbio exequendas.
A acção executiva tem por base uma obrigação passível de execução, a qual não pode deixar de constituir um seu pressuposto material (1), uma condição da acção (2)..
O título executivo é, portanto, a fonte de qualquer execução, sem o qual, ou com um título executivo a que a lei não atribua eficácia, o credor não pode instaurar a execução, ou, se o fizer, está sujeito a vê-la declarada extinta, tudo em conformidade com o disposto pelos artigos 45º, nº 1, 814º, a), 816º e 817º, nº 4, todos do CPC.
Por isso, é que a lei exige não só a verificação de certas condições de admissibilidade da execução, como, igualmente, a observância de determinados requisitos processuais de procedência (3).

Sendo possível a propositura de uma acção executiva, sem que exista o correspondente direito substantivo, muito embora se junte o respectivo título executivo, donde conste a existência de uma obrigação certa, líquida e exigível, ainda que já extinta, a lei faculta ao executado que, em oposição à execução, possa destruir os efeitos do título e da acção executiva.
O executado goza, assim, do direito de deduzir oposição de mérito à execução, invocando, nomeadamente, motivos substanciais, como sejam, a inexistência ou insubsistência da obrigação exequenda, a inexequibilidade, «lato sensu», do título executivo, ou a ocorrência de factos extintivos, impeditivos ou modificativos da obrigação exequenda (4).
Não se baseando a execução, de que a presente oposição constitui uma contra-acção, em sentença, mas antes em dois títulos executivos extrajudiciais, como é o caso da letra de câmbio, inexistindo, portanto, uma apreciação jurisdicional anterior, pode o executado opor à execução toda a defesa que lhe era lícito apresentar na acção declarativa, ou seja, defesa por impugnação e defesa por excepção, nos termos do estipulado pelo artigo 487º, nºs 1 e 2, alargando-se, entretanto, os fundamentos da oposição especificados, em relação à execução baseada em sentença, por, obviamente, não ser necessário preservar a autoridade do caso julgado, com ressalva daqueles que, congenitamente, se mostrem inaplicáveis à situação da execução em apreço, ou seja, os fundamentos contemplados nas alíneas b), d), f), g) e h), do artigo 814º, em conformidade ainda com o estipulado pelo artigo 816º, todos do CPC.
Podem, por isso, porque se trata de oposição à execução baseada em título executivo extrajudicial, invocar-se, sem qualquer limite temporal, todas as causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do exequente, e até, por vezes, negarem-se os factos constitutivos do mesmo direito, achando-se o executado na mesma posição em que se encontraria perante a petição inicial de uma acção declarativa, podendo alegar, nesta oposição ampla, tudo o que seria susceptível de ser invocado, na contestação dessa acção, impugnando ou excepcionando a obrigação materializada pelo título extrajudicial.
No domínio das relações imediatas, onde se situam as letras de câmbio exequendas, subscritas pelo executado, uma vez que as mesmas se encontram na posse do seu tomador, a ora exequente, que não é estranha às relações extracartulares, pode aquele opor à exequente quaisquer excepções fundadas na obrigação causal, em que se traduz o alegado pagamento pela exequente, em nome do executado, de valores respeitantes a despesas do condomínio, com base no preceituado pelo artigo 17º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), tudo se passando como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, para ficar sujeita às excepções que, nessas pessoas, se fundamentam.
Alegando o executado que se trata de uma dívida inexistente, por se estar em presença de dois títulos preenchidos pela exequente, com abuso dos poderes de representação, deverá ter de provar essa circunstância, de natureza anormal, excepcional ou singular, considerando que a situação normal consiste na regularidade do exercício do mandato?
No âmbito da teoria geral do processo civil, factos constitutivos são os factos susceptíveis de produzir, segundo a norma jurídica aplicável, o efeito jurídico que a parte pretende obter, enquanto que os factos impeditivos são aqueles que se destinam a determinar a ineficácia jurídica dos factos constitutivos.
Efectivamente, o autor não carece de provar a presença do que é normal, ou seja, a capacidade, o mútuo consenso, a possibilidade do objecto, incumbindo antes ao réu demonstrar a ausência ou a falta de algum dos requisitos normais.
É que o autor só tem de provar o que, na formação do acto jurídico, reveste carácter singular ou anormal, e o réu o que, como facto excepcional, pode obstar a que o acto jurídico produza os efeitos que lhe são próprios, criando-se a favor do autor uma espécie de presunção da existência de tais factos ou condições, com dispensa de efectuar a sua prova, e fazendo-se incidir sobre o réu o encargo de alegar e provar que, no caso concreto, falta algum desses factos.
Desde que o autor faça a prova do acto jurídico, beneficia da presunção da eficácia do mesmo, por dever ter-se como provável ou verosímil que o acto está em condições de produzir os efeitos jurídicos que lhe são próprios, mas se essa presunção não é exacta, deve, então, o réu alegar e provar o facto correspondente (5).
Ora, quando o executado alega que se trata de uma dívida inexistente, por se estar em presença de dois títulos preenchidos pela exequente, com abuso dos poderes de representação, a sua defesa equivale à dedução de uma excepção ou antes a uma impugnação, através da negação, simples ou motivada, dos factos que servem de fundamento à acção?
A questão fundamental que, neste caso concreto, importa determinar, contende em saber se o facto é fundamento de excepção, incumbindo ao réu a sua prova, ou antes de impugnação ou negação, em que é o autor que suporta o respectivo ónus da prova, tal como se de uma acção se tratasse, atento o preceituado pelo artigo 342º, nºs 1 e 2, do Código Civil (CC).
Assim sendo, urge, desde logo, atender que cada parte deverá alegar e provar a existência de todos os pressupostos das normas que favorecem e legitimam, legalmente, a sua pretensão (6), ou seja, à norma de direito material que se quer aplicar e à posição das partes em juízo com relação a essa norma, posição caracterizada pelo efeito jurídico que cada uma delas pretende obter (7).
Na negação motivada ou indirecta, aceitando o réu algum elemento do facto visado, apresenta uma versão diversa do mesmo, mas sem que daí possa resultar o efeito jurídico pretendido pelo autor, quando só assim aquela negativa ganhe consistência e credibilidade (8), enquanto que, nas excepções peremptórias, segundo a definição constante do artigo 493º, nº3, do CPC, o réu invoca factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
Por outro lado, são factos, tipicamente, impeditivos, que agora interessa considerar, os factos susceptíveis de obstar a que o direito do autor se tenha, validamente, constituído, tais como aqueles que correspondem aos motivos legais da invalidade do negócio jurídico, tratando-se de factos, por via de regra, cronologicamente, coincidentes com os factos constitutivos.
A directriz genérica da distinção entre a negação motivada e a defesa por excepção consiste em que aquela pressupõe a aceitação parcial dos factos alegados, negando-se sempre a realidade do facto constitutivo, enquanto que, na última, o facto constitutivo não é negado, mas, tratando-se de factos impeditivos, que aqui interessa relevar, tão-só, se alegam outros que, segundo a lei, infirmam os seus efeitos, no próprio acto do seu nascimento.
Assim sendo, a alegação do executado, no articulado da oposição à execução, segundo a qual é falso que as letras tenham sido do seu aceite, não pode qualificar-se como contendo factos novos (9), no sentido de factos, cronologicamente, diversos dos articulados pelo autor, mas antes que o facto invocado pela exequente se passou de modo diferente daquele como esta o apresenta.g,m
Deste modo, não se trata de factos constitutivos de excepção, que deveriam ser alegados e provados pelo réu, mas antes de factos constitutivos de negação motivada, que deveriam ter sido alegados e provados pelo autor, sendo certo que a negação motivada não envolve para quem a faz o ónus da prova dos factos que a constituem, sob pena de colocar o réu em posição mais desfavorável do que acontece na negação simples, em que, por força do disposto pelo artigo 487º, nº 2, 1ª parte, do CPC, lhe não pertence o respectivo ónus da prova (10).
Como assim, não se tendo provado, não obstante a assinatura das letras pelo executado, na qualidade de sacado, embora por intermédio da exequente, a sua obrigação cambiária, em consequência de uma relação jurídica anterior que o vinculasse, e que consiste na obrigação causal ou subjacente, não está demonstrado o contrato originário ou a relação jurídica fundamental, objectivada, «in casu», no crédito do administrador sobre o condomínio, proveniente do saldo da conta corrente existente entre ambos.
E, encontrando-se as letras de câmbio, no âmbito das relações imediatas, isto é, no domínio das relações em que os sujeitos cambiários o são, concomitantemente, das relações extracartulares, como já se disse, pode o executado opor, validamente, à exequente, como meio de defesa, as excepções fundadas na relação causal, nos termos do preceituado pelo artigo 17º, da LULL, não se justificando, consequentemente, o pagamento do respectivo montante.

II. DO EXCESSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO DO ADMINISTRADOR DO CONDOMÍNIO

Dispõe o artigo 1430º, nº 1, do CC, que “a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia dos condóminos e a um administrador”.
A assembleia de condóminos é um órgão colegial constituído por todos os condóminos, com carácter deliberativo e poderes de controlo, aprovação e decisão final sobre todos os actos de administração.
O administrador, eleito e exonerado pela assembleia de condóminos, é o órgão executivo do condomínio, competindo-lhe, antes do mais, a gestão corrente dos bens comuns, encontrando-se a sua competência subordinada às deliberações que a assembleia tome a esse respeito, a quem deve prestar contas da sua actividade, procedendo, portanto, à execução das decisões da mesma, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1435º, nº 1, e 1437º, do CC (11).
Independentemente da natureza jurídica do estatuto do administrador do condomínio, deve considerar-se-lhe aplicável, por analogia, o preceituado pelo artigo 987º, nº 1, do CC, que prevê a aplicação das normas do mandato aos direitos e obrigações dos administradores das sociedades civis (12).
São, assim, aplicáveis ao administrador do condomínio as obrigações que impendem sobre o mandatário, isto é, designadamente, a pratica dos actos jurídicos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante, a prestação de contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir, e a entrega ao mandante do que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu, normalmente, no cumprimento do mandato, em conformidade com o estipulado pelos artigos 1161º, a), d) e e) e 1157º, ambos do CC.
A obrigação de prestação de contas pelo mandatário, que pressupõe a cobrança das receitas e a efectivação das despesas comuns, a que corresponde idêntica função do administrador do condomínio, perante a assembleia de condóminos, atento o preceituado pelo artigo 1436º, d) e j), do CC, só releva quando haja, em relação às partes, créditos e débitos recíprocos, comunicando o mandatário ao mandante, nomeadamente, o nome do terceiro com o qual celebrou o negócio, as despesas e prejuízos sofridos, que devam ser pagos e recuperados pelo mandante, e a demonstração da regularidade das operações realizadas, no âmbito do processo especial a que aludem os artigos 1014º e seguintes, do CPC, inexistindo acordo entre os interessados relativamente ao saldo da conta.
Por seu turno, o mandatário é obrigado a entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu, normalmente, no cumprimento do mandato, o que comporta não só o que o mandatário recebeu do mandante para execução do mandato, e que por ele não foi utilizado, como aquilo que, na execução do mesmo, recebeu de terceiros, a fim de que, à excepção oposta pelo mandatário de ter despendido certa soma no cumprimento do mandato, possa o mandante contrapor a alegação de que tal dispêndio não tem justificação, no plano de razoabilidade em que a actuação do mandatário deve ser apreciada (13).
A isto acresce que, encontrando-se o mandante, por sua vez, obrigado a fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, sem prejuízo de ser convencionado que essa obrigação deva ser cumprida, somente, depois da execução do mandato, devendo pagar-lhe a retribuição que ao caso competir e reembolsá-lo das despesas efectuadas, que por este hajam sido consideradas indispensáveis, tudo em conformidade com o preceituado pelo artigo 1167º, a), b) e c), do CC, é o aludido processo de prestação de contas o lugar próprio para proceder ao confronto das posições recíprocas do saldo credor e devedor.
Por outro lado, encontrando-se o administrador subordinado às deliberações da assembleia de condóminos, que deve executar, atento o disposto pelo artigo 1436º, h), do CC, importa enfatizar que se demonstrou que os condóminos não concederam poderes à exequente, enquanto administradora da propriedade horizontal, para emitir as duas letras de câmbio em execução.
Efectivamente, a existência da representação pressupõe a prática de um acto jurídico pelo agente, em nome de outrem, para, na esfera do representado, se produzirem os respectivos efeitos, mas exige, para ser eficaz, que o representante actue nos limites dos poderes que lhe competem, em conformidade com o disposto pelo artigo 258º, do CC, ou, então, que o representado realize, supervenientemente, uma ratificação.
No contrato de mandato sem representação, o mandatário não recebeu poderes para agir, em nome do mandante, actuando, por conta deste, mas, em nome próprio (14).
Para que o negócio representativo surta os efeitos que lhe são próprios, é necessário que a pessoa que age, no lugar de outrem, tenha os necessários poderes de representação e proceda dentro dos limites dos mesmos, onde apenas se incluem os actos de mera administração ou administração ordinária e não os actos de disposição.
E, assim, não tendo o administrador obtido autorização da assembleia de condóminos para subscrever letras de câmbio pelo condomínio, nem se estando perante um acto incluído no âmbito das funções que lhe competem, face ao prescrito pelos artigos 1436º e 1437º, nº 1, do CC, trata-se de um acto praticado pelo administrador, em nome próprio, por conta do mandante, em nome do qual não recebeu poderes para agir, e que, portanto, não responsabiliza o condomínio, enquanto mandante, nos termos do disposto pelo artigo 1180º, do CC.
Ao subscrever as duas letras de câmbio, aceitando o saque que sobre si a exequente accionou, esta não actuou como representante e em nome do executado, não tendo poderes para o obrigar, sendo, consequentemente, o acto ineficaz, em relação ao executado condomínio, nos termos do disposto pelo artigo 268º, nº 1, do CC, uma vez que não foi ratificado, tratando-se de uma situação de representação sem poderes e não de abuso de representação, pois que a existência deste pressupõe a representação, o que se não verifica.
E, sendo admissível o mandato sem representação, no direito cambiário(15), preceitua, a este propósito, o artigo 8º, da LULL, que “todo aquele que apuser a sua assinatura numa letra, como representante de uma pessoa, para representar a qual não tinha, de facto, poderes, fica obrigado em virtude da letra e, se a pagar, tem os mesmos direitos que o pretendido representado. A mesma regra se aplica ao representante que tenha excedido os seus poderes”.
Ora, tendo a exequente, na qualidade de mandatária, actuado em nome próprio, é ela e não o executado condomínio que é parte no negócio, porquanto é ela quem adquire os direitos e assume as obrigações dele decorrentes, sendo nesta qualidade que agora age para exercer os direitos emergentes das letras, designadamente, de accionar o executado mandante pelo seu pagamento.
Colhem, assim, no essencial, as conclusões constantes das alegações de revista do executado-oponente, o que determina a procedência da oposição à execução, com a consequente extinção total da mesma, nos termos do disposto pelo artigo 817º, nº 4, do CPC.

CONCLUSÕES:

I – Tratando-se de oposição à execução baseada em título executivo extrajudicial, pode o oponente invocar, sem qualquer limite temporal, todas as causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do exequente, e até, por vezes, negar os factos constitutivos do mesmo direito, achando-se na mesma posição em que se encontraria perante a petição inicial de uma acção declarativa.
II - A alegação do executado, na oposição à execução, segundo a qual é falso que as letras exequendas tenham sido do seu aceite, mas da exequente, não pode qualificar-se como contendo factos novos, no sentido de factos, cronologicamente, diversos dos articulados pela exequente, antes que o facto invocado por esta se passou de modo diferente daquele como a mesma o apresenta.
III - Deste modo, não se trata de factos constitutivos de excepção, que deveriam ser alegados e provados pelo oponente, mas antes de factos constitutivos de negação motivada, que deveriam ter sido alegados e provados pela exequente, por não envolverem para quem o faz o ónus da prova dos factos que a constituem, sob pena de colocar o réu em posição mais desfavorável do que na negação simples, em que lhe não pertence o respectivo ónus da prova
IV - O processo de prestação de contas é o lugar próprio para proceder ao confronto das posições recíprocas do saldo credor e devedor entre mandante e mandatário, em que se consubstanciam as posições do condomínio e do seu administrador, respectivamente.
V - Ao subscrever letras de câmbio pelo condomínio executado, aceitando o saque que sobre este a exequente, administradora do condomínio, accionou, não tendo obtido autorização da assembleia de condóminos, nem se estando perante um acto incluído no âmbito das funções que lhe competem, não actuou como representante e em nome do executado, mas em nome próprio, não tendo poderes para o obrigar, numa situação de representação sem poderes e não de abuso de representação, sendo, consequentemente, o acto ineficaz, em relação ao mesmo, que o não ratificou.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, e, nessa medida, revogam o acórdão recorrido, julgando procedente a oposição à execução, com a consequente extinção total da execução.

Custas pela exequente.

Notifique.

Lisboa, 14 de Julho de 2009

Helder Roque (relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

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(1) Castro Mendes, Acção Executiva, AAFDL, Lisboa, 1980, 13.
(2)Teixeira de Sousa, A Exequibilidade da Pretensão, Cosmos, Lisboa, 1991, 14 e ss
(3) Teixeira de Sousa, Aspectos Metodológicos e Didácticos do Direito Processual Civil, Revista da FDUL, XXXV, Lex, Lisboa, 1994, 371 a 373.
(4) Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Almedina, 2000, 17 e 18; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª edição, 1973, 279.
(5) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 295 e 296.
(6) Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, 455.
(7) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 299.
(8) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 126 e 127; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, 1970, 343.
(9) O próprio facto alegado, «ex novo», pelo réu não importa, necessariamente, que a defesa tenha de ser qualificada como excepção, podendo tratar-se antes de negação indirecta dos factos deduzidos pelo autor como constitutivos do seu direito, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 129 e nota (1).
(10) Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, 1970, 348 a 350.
(11) Mota Pinto, Direitos Reais, Coimbra, 1971, 284 e 285.
(12) Henrique Mesquita, A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, 1978, 56, nota (123).
(13) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 796.
(14) Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 541.
(15) Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, III, 1966, 118 a 120.