Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
231/20.7GBABF.E1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
FUNDAMENTOS
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO
PROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL.
Sumário :
Constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, a circunstância de ao Exmo. Juiz Desembargador peticionante ter sido distribuído, como relator, um recurso de acórdão condenatório subscrito por uma Exma. Juíza de Direito, concunhada do peticionante e mãe de um sobrinho e afilhado de baptismo deste, residindo ambos, há longos anos, na mesma cidade, mantendo uma relação pessoal e familiar muito próxima, circunstancialismo que é de todos conhecido, designadamente, de advogados e funcionários.
Decisão Texto Integral:

INCIDENTE DE ESCUSA Nº 231/20.7GBABF.E1-A.S1


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Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


I


O Exmo. Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora, Dr. AA vem, ao abrigo do disposto nos arts. 43º e seguintes do C. Processo Penal, formular pedido de escusa a fim de não intervir, como desembargador relator, na subsequente tramitação do processo nº 231/20.7GBABF.E1, em que é arguido BB.


Funda a pretensão nas seguintes transcritas razões:


Distribuído que foi o presente processo 231/20.7GBABF.E1 ao signatário, oriundo do juízo central criminal de ..., constatou o mesmo que a Srª Juíza de direito Drª CC fez parte do Colectivo que proferiu o acórdão recorrido.


Acontece que a mesma é sua concunhada, uma vez que até há cerca de 34 anos foi casada com um irmão (entretanto falecido) da mulher do solicitante, tendo posteriormente ocorrido o divórcio entre aqueles e tendo depois voltado os mesmos a viver juntos e tido mais um filho (existia já um outro filho nascido na constância do casamento).


Independentemente das referidas variações de relacionamento entre a referida Srª Drª CC e o falecido irmão da mulher do solicitante, não existe, nem nunca existiu, entre aquela (Srª Drª CC) e este (o solicitante) o vínculo da afinidade, pelo que não ocorre qualquer impedimento nos termos do artº 39º, nº 3, do C.P.P..


Porém, sempre tiveram, e têm, apesar das já referidas variações, um relacionamento pessoal/familiar próximo, que é público, sendo inclusivamente o solicitante padrinho de baptismo de um dos seus sobrinhos, filho da referida Srª Drª CC e do seu falecido cunhado.


O solicitante exerceu funções, desde ... de 1994 a ... de 2008, sucessivamente, na comarca de ..., no círculo judicial de ... e no tribunal de família e menores de ....


A Srª Drª CC há vários anos que exerce funções em ..., pelo que o seu relacionamento familiar/pessoal com o solicitante é bem conhecido de todos, designadamente dos Srs. Advogados e Funcionários e certamente de outros.


Ambos são residentes em ... – a Srª Drª CC desde sempre e o solicitante desde 1987.


No entender do solicitante, tudo o referido consubstancia motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nos termos do artº 43º, nº 1, do C.P.P..


Assim sendo, nos termos do artº 45º, nº 1, al. a), do C.P.P., solicita a V. Exªs escusa de intervenção no referido processo, escusa essa já anteriormente concedida pelo S.T.J., pelos mesmos motivos, no âmbito dos procºs 119/13.8JAPTM.E1-A.S1, 12/16.2GAPTM.E1-A.S1, 30/18.6PBPTM.E1-A.S1, 2362/20.4T8PTM.E1-A.S1, 362/19.6GESLV.E1-A.S1, 819/17.3T9ABF.E1-A.S1, 193/20.0GAABF.E1-A.S1, 159/19.3T9FAR.E1-A.S1 e 41/20.1JAFAR.E1-A.S1.


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Considerou-se não ser necessária a realização de diligências de prova.


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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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II


Dos Factos


Dos autos e da consulta electrónica do processo principal resulta a seguinte factualidade, relevante para a decisão:


1. Por acórdão de 27 de Novembro de 2023 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., foi o arguido BB condenado, pela prática de um crime de falsidade informática e de um crime de burla informática, na pena única de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de dois anos e seis meses.


2. A Mma. Juíza de direito, Sra. Dra. CC foi subscritora do acórdão referido em 1, que antecede.


3. Foi interposto recurso do acórdão referido em 1, que antecede, para o Tribunal da Relação de Évora, onde foi distribuído ao Exmo. Juiz Desembargador peticionante, como relator.


4. A Mma. Juíza de direito foi casada com um irmão, já falecido, do cônjuge do Exmo. Juiz Desembargador peticionante, casamento que veio a ser dissolvido por divórcio, mas voltando os mesmos, depois, a viver juntos e tendo tido mais um filho, além do já existente, nascido na constância do matrimónio.


5. O Exmo. Juiz Desembargador peticionante e a Mma. Juíza de direito sempre tiveram um relacionamento pessoal e familiar próximo, sendo o primeiro padrinho de baptismo de um dos filhos do seu falecido cunhado e da Mma. Juíza de direito.


6. Este relacionamento pessoal e familiar próximo é público e bem conhecido de todos designadamente, de advogados e de funcionários pois que, Mma. Juíza de direito exerce há vários anos funções em ..., onde sempre residiu, enquanto o Exmo. Juiz Desembargador peticionante reside na mesma cidade desde 1987, e aí exerceu funções entre ... de 1994 e ... de 2008, em diversos tribunais.


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Do Direito


1. Dispõe o art. 44º do C. Processo Penal que a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate.


A fixação de momentos processuais para a dedução dos incidentes de recusa e de escusa prende-se com a necessidade de evitar o seu uso abusivo, em detrimento do normal andamento do processo, não lhe sendo também alheio o fim de obstar à sua utilização inútil quando, por já ter sido proferida a decisão final, estar esbatido o risco de conduta parcial do juiz.


In casu, o pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pelo Exmo. Juiz Desembargador peticionante antes de ser atingido o momento processual fixado na lei para a sua dedução.


Dispõe o art. 45º, nº 1, a), do C. Processo Penal que o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior.


Estando em causa o pedido de escusa de um Exmo. Juiz Desembargador; mostra-se o mesmo correctamente deduzido perante este Supremo Tribunal.


Nada obsta, portanto, ao conhecimento do mérito do incidente, pelo que passamos à sua apreciação.


2. Compete aos tribunais, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Nesta função, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º, da Constituição da República Portuguesa).


O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Constituição da República Portuguesa (cfr. art. 216º), e asseguradas pela lei ordinária (art. 4º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).


Com efeito, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como, a decisão das causas em prazo razoável e mediante processo equitativo, que a Constituição da República garante a todos os cidadãos no seu art. 20º, nºs 1 e 4, têm como pressuposto a imparcialidade de quem julga pois, sem ela, é impossível a realização do direito no caso concreto.


Visando assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C. Processo Penal regula, no Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos e das suspeiçõesrecusas e escusas – do juiz.


Relativamente às recusas e escusas, estabelece o art. 43º:


1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.


2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.


3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.


4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.


Recusa e escusa são pois, figuras processuais que comungam o mesmo objecto, isto é, obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, distinguindo-as a diferente legitimidade para a respectiva dedução [a recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43º, nº 3, do C. Processo Penal), enquanto a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo artigo)].


A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, é concebida numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.


Na perspectiva subjectiva, ela respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque, o teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa (Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 127). A imparcialidade subjectiva presume-se, pelo que, só a existência de provas da parcialidade, podem afastar a presunção.


Na perspectiva objectiva, relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto, do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade. Aqui, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo.


Como se escreveu no Ac. do STJ de 06/07/2005 (CJ, S, XIII, II, 236), os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que juiz e do “ser” relevam do “parecer”, têm de se apresentar, nos termos da lei, “sério” e “grave”. (…) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (…) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.


Em suma, o motivo sério e grave referido no nº 1, do art. 43º, do C. Processo Penal, tem de resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem objectivamente adequados a fazer nascer e suportar a dúvida sobre a imparcialidade do juiz.


A concordância prática entre o princípio do juiz natural e a suspeita fundamentadora da escusa exige uma especial gravidade desta, suportada em factos objectivos, por forma a que o afastamento do juiz não resulte de motivos menores. Por isso, vem a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça adoptando um critério apertado para a avaliação da seriedade e gravidade do motivo que suporta a suspeição, critério que, partindo do caso concreto, deve ser conjugado com as regras da experiência e do senso comum, conforme o juízo do bonus pater familiae (acórdãos deste Supremo Tribunal de 19 de Abril de 2023, processo nº 37/23.1JAFAR-A.E1-A.S1 e de 26 de Outubro de 2022, processo nº 193/20.0GBABF.E1-A.S1, ambos in www.dgsi.pt).


Sem perder de vista que o deferimento de qualquer escusa constitui, sempre, uma derrogação do princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido pelo art. 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa, princípio este que constitui uma das garantias de defesa em processo penal e visa, ao proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso concreto, assegurar a imparcialidade e isenção da decisão a proferir, atentemos agora nos factos invocados pelo Exmo. Juiz Desembargador peticionante, fundamentadores do pedido.


i) Começamos por dizer, na perspectiva subjectiva de imparcialidade, que não está em causa qualquer concreto comportamento do Exmo. Sr. Juiz Desembargador, susceptível de levantar suspeita, por mínima que seja, sobre a sua imparcialidade.


ii) Atentemos agora na questão a decidir, na perspectiva objectiva de imparcialidade.


No caso, o Exmo. Juiz Desembargador peticionante foi distribuído, na qualidade de relator, o recurso interposto no processo nº 231/20.7GBABF.E1, tendo por objecto o acórdão condenatório da 1ª instância, acórdão este que foi subscrito pela Mma. Juíza de direito, Dra. CC.


Acontece que a Mma. Juíza de direito foi casada com um cunhado do Exmo. Juiz Desembargador peticionante, mantendo ambos, há décadas, um relacionamento pessoal e familiar muito próximo, sendo o peticionante padrinho de baptismo de um sobrinho, filho da Mma. Juíza, acrescendo que esta reside em ..., e exerce funções nesta cidade, enquanto o peticionante, residindo na mesma cidade, nela exerceu funções entre ... de 1994 e ... de 2008.


E este relacionamento pessoal e familiar próximo é conhecido da generalidade das pessoas que integram o meio envolvente designadamente, de advogados e de funcionários.


Pois bem.


Em matéria de imparcialidade do juiz, não basta que este seja imparcial, é também preciso que o pareça.


A lei faz depender o deferimento do pedido da verificação e escusa de uma cláusula geral de suspeição, consistente na existência de motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. Todavia, não define os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, conceitos que terão de ser densificados, em cada caso, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum e, portanto, tendo em conta a perspectiva do homem médio, do cidadão comum, representativo do sentir da comunidade.


Consagra, pois, a lei, um critério individual-objectivo de suspeição, uma solução eminentemente objectiva, mas direccionada à concreta actuação do juiz e/ou aos condicionalismos que a rodeiam (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, 1ª Edição, 2022, Gestlegal, págs. 61-62).


No caso em análise, o processo foi distribuído a um Juiz Desembargador relator que, pelas razões de ordem pessoal/familiar descritas, mantém com a Sra. Juíza de direito, subscritora do acórdão condenatório objecto do respectivo recurso, uma relação de convivência familiar muito próxima, relação esta conhecida do meio envolvente designadamente, de advogados e funcionários.


Esta relação, familiar e social, chegada ao conhecimento do homem médio, fá-lo-á razoavelmente admitir que a capacidade de manter a equidistância que deve estar sempre presente em quem tem a função de julgar, possa estar comprometida ou, dizendo de outro modo, que, face às referidas circunstâncias, a imparcialidade do Exmo. Juiz Desembargador peticionante, possa ter deixado de existir.


Assim, pelas expostas razões, entendemos que existe motivo sério e grave que, objectivamente, suportará um juízo de suspeita sobre o Exmo. Juiz Desembargador peticionante, caso seja mantida a sua intervenção, como relator, no processo em referência, sendo, por isso, desaconselhada a continuação da sua intervenção nos autos (neste mesmo sentido, na mesma situação, acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Abril de 2023, processo nº 41/20.1JAFAR.E1-A.S1, in www.dgsi.pt).


Estando, pois, verificados os pressupostos da escusa, previstos no art. 43º, nºs 1 e 4, do C. Processo Penal, deve a mesma ser concedida.


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III


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o pedido de escusa formulado pela Exmo. Juiz Desembargador Dr. AA, relativamente à sua intervenção no processo nº 231/20.7GBABF.E1.


Incidente sem tributação.


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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


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Lisboa, 21 de Março de 2024


Vasques Osório (Relator)


Agostinho Torres (1º Adjunto)


Celso Manata (2º Adjunto)