Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2045
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO-CAUÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURADORA
TOMADOR
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RESTITUIÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ200306260020452
Data do Acordão: 06/26/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9537/01
Data: 11/29/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. O seguro-caução, negócio jurídico formal, tem de constar de uma apólice, instrumento que contém o clausulado que o rege, sendo pela interpretação das respectivas cláusulas, operada à luz dos princípios acolhidos nos arts. 236º e 238º do CC, que se determina o objecto daquele contrato.

2. Os resultados dessa interpretação conduzem à conclusão de que o objecto do contrato de seguro-caução celebrado entre a B e a Companhia de Seguros C, tendo como beneficiário a A , foi garantir o pagamento das rendas relativas ao contrato de locação financeira celebrado entre a A (locadora/beneficiária) e a B (locatária/responsável), e não ao pagamento das rendas devidas à B pela locatária do contrato de ALD.

3. Do clausulado nos arts. 5º e 8º das "Condições Gerais da Apólice" do seguro-caução contratado, resulta que a resolução, aí prevista, do contrato de seguro-caução, por parte da seguradora, só pode ter por fundamento o agravamento do risco resultante de qualquer alteração verificada na caução garantida, não podendo fundar-se na anulação da apólice de seguro automóvel relativamente ao veículo objecto do contrato de locação financeira, cedido pela B, em ALD, a um seu cliente.

4. A C não se comprometeu a cumprir as obrigações da B emergentes do contrato de locação financeira, antes assumiu uma obrigação própria, com carácter indemnizatório, limitado pelo montante da quantia segura.

5. Não pode, por isso, ser responsabilizada por toda e qualquer indemnização decorrente da resolução do contrato de locação financeira, no qual não interveio - maxime, pela cláusula penal que, nesse contrato, foi fixada, a título de indemnização por perdas e danos sofridos pela locadora, para o caso desta desencadear a resolução do contrato por falta de cumprimento da B.

6. O facto de o beneficiário no contrato de seguro-caução - i.e., o terceiro a favor de quem foi convencionada a promessa - adquirir o direito à prestação, não o transforma em parte, nem mesmo no caso de adesão ao contrato.

7. Por isso, o constante das cláusulas 10ª, 11ª e 14ª das "Condições Gerais da Apólice" do contrato de seguro-caução celebrado entre a B e a C, não pode validamente vincular a beneficiária deste contrato, não sendo de aceitar que esta, não tendo assumido as obrigações constantes dessas cláusulas, possa ser responsabilizada pela violação das mesmas.

8. O seguro-caução não é uma garantia autónoma, que tenha o efeito de operar a transferência, para a seguradora, da responsabilidade da B assumida no contrato de locação financeira - é antes uma garantia simples, funcionalmente equivalente a uma garantia especial das obrigações, e que não exclui, por isso, a responsabilidade do devedor da obrigação a garantir perante o respectivo credor: esta responsabilidade subsiste.

9. Assim, a restituição do veículo objecto do contrato de locação financeira, a operar pela B à locadora, é uma consequência natural e legal da resolução do contrato, fundando-se também no art. 24º, al. f) do Dec-Lei 171/79, em vigor à data da celebração do contrato, não envolvendo enriquecimento sem causa por parte da locadora.

10. Não é ilegítimo nem abusivo o exercício, pela locadora, do direito de resolução do contrato de locação financeira sem o prévio accionamento do contrato de seguro-caução.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.

"A" intentou contra B, Companhia de Seguros C e D a presente acção com processo ordinário, pedindo que a primeira e a segunda rés fossem condenadas a pagar-lhe a quantia de 749.569$00, correspondente ao valor das rendas vencidas e não pagas até à resolução do contrato pela autora, e de uma renda vincenda, e dos respectivos juros de mora, calculados até 02.11.95, a que acrescerão os que se vencerem desde essa data até integral pagamento, e que a primeira e a terceira rés fossem condenadas a restituir-lhe o veículo locado; ou, caso assim se não entenda, serem a primeira e a segunda rés condenadas a pagar-lhe a quantia de 628.438$00, respeitante ao valor das rendas vencidas e não pagas até à resolução do contrato pela autora, da indemnização correspondente a 20% da soma das rendas vincendas e do valor residual do veículo locado, e dos respectivos juros de mora, calculados até à data acima referida, e a primeira e a terceira rés condenadas a restituir-lhe o veículo locado.
Alegou, para tanto, em síntese, ter dado em locação financeira à ré B, o veículo automóvel de marca Honda, modelo CBR, com a matrícula LX-..., e que esta não cumpriu as obrigações decorrentes desse contrato, não lhe tendo pago as rendas vencidas em 10.09.94 e 10.12.94, no valor de 172.684$00 cada, e em 10.03.95, no valor de 155.416$00, o que forçou a autora - goradas as tentativas para cobrar da ré os referidos créditos - a resolver o contrato.
A responsabilidade da ré C decorreria do facto de, através de contrato de seguro-caução que celebrou com a B, e no qual a autora figura como beneficiária, ter segurado o risco de incumprimento das obrigações desta ré para com a autora, emergentes do dito contrato de locação financeira, sendo acordado entre ambas as rés que tal garantia seria paga à primeira solicitação da autora, no prazo de 45 dias após a interpelação.
Mas o certo é que, interpelada pela autora, para pagar a indemnização devida em consequência da resolução do contrato, a ré não o fez.
Na carta de resolução do contrato, a autora exigiu também à ré B a restituição do veículo locado, tendo requerido, por força da recusa desta, contra ela e contra a 3ª ré, que detinha a posse do veículo, providência cautelar de entrega judicial e cancelamento do registo da locação financeira - providência que veio a ser decretada.

A ré B deduziu contestação/reconvenção, alegando, em súmula, que a autora exigiu, para a celebração do contrato, a apresentação de uma garantia idónea, que assegurasse o cumprimento da obrigação de pagamento da totalidade das rendas contratuais, equivalente ao preço do veículo - e que ela, ré prestou, sob a forma de seguro-caução, no qual a autora figura como beneficiária - comprometendo-se a autora, perante ela, a não promover a resolução do contrato em caso de incumprimento, mas antes a accionar o seguro, pelo que, contrariando as legítimas expectativas que nela criou, agiu com abuso de direito; pretendendo ainda a autora, com o seu pedido, tal como vem formulado, obter, à revelia do contrato, enriquecimento sem causa, pois que assumiu perante a ré que, em caso de incumprimento contratual, obteria apenas o pagamento das rendas vencidas e vincendas, e não também a entrega do veículo.
Em reconvenção, pediu a condenação da autora a accionar o seguro-caução emitido pela C, e rematou com o pedido de condenação da autora em multa (de 1.000.000$00), como litigante de má fé.

Também a ré C apresentou contestação/reconvenção, alegando, com interesse, que o contrato de seguro-caução que celebrou com a B se destinou a garantir, como a autora bem sabia, não as obrigações desta ré para com a autora, mas antes o pagamento das rendas a pagar à B pelos locatários dos contratos de aluguer de longa duração (ALD) celebrados entre esta empresa e os seus clientes, ficando até estabelecido que, em caso de sinistro coberto pela apólice (não pagamento por parte desses mesmos locatários), a B transferiria a propriedade do veículo locado para a seguradora, sem qualquer contrapartida. Ora, nem sequer foi alegada a falta de pagamento por parte do locatário de ALD, pelo que está excluída a responsabilidade da ré.
Sustentou ainda que, mesmo que assim não fosse, sempre seria de considerar nulo o contrato de locação financeira celebrado entre a autora e a B, por ofensa à lei imperativa (arts. 280º e 281º do CC).
Por outro lado, o contrato de seguro foi resolvido pela contestante, e a respectiva apólice cancelada, em 11.08.94, pelo que o máximo que poderia pedir-se-lhe seria a renda vencida em 10.09.94.
Em reconvenção - e para o caso de vir a entender-se que o seguro-caução abrange as obrigações assumidas pela B para com a autora - pede a ré que a autora seja condenada a pagar-lhe a indemnização que vier a liquidar-se em execução de sentença, equivalente, no mínimo, ao montante pelo qual viesse a responder por força da apólice, fundando tal pretensão na circunstância de a autora não ter agido com presteza, pois não promoveu a resolução do contrato a seguir ao não pagamento da primeira renda, nem reclamou de imediato a devolução do veículo, permitindo à B continuar a receber as rendas pagas pelo locatário do ALD, e possibilitando a utilização e consequente deterioração do veículo, desprotegendo o direito de regresso da reconvinte e o direito desta a receber o veículo.

Finalmente, a ré D também apresentou contestação, na qual sustenta a sua ilegitimidade ad causam, e impugna os factos alegados pela autora.

Replicou a autora, refutando a tese das rés e sustentando a improcedência das excepções por elas arguidas, e a improcedência do pedido reconvencional formulado por cada uma das rés B e C.

Elaborados o despacho saneador - no qual foi, além do mais, julgada improcedente a excepção de ilegitimidade arguida pela 3ª ré - e a especificação e questionário, e decididas as reclamações apresentadas, veio, oportunamente, a ser realizado o julgamento, com sequente prolação da sentença, na qual foi a acção julgada procedente, sendo as rés condenadas, solidariamente, a pagar à autora a quantia de 500.784$00, acrescida do IVA respectivo e dos juros de mora, à taxa de desconto do Banco de Portugal, os vencidos até 02.11.95, no montante de 82.256$00, e os vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento, e a quantia de 42.313$00, correspondente a 20% da soma das rendas vencidas e do valor residual do veículo locado, acrescido de juros de mora, vencidos até 02.11.95, no valor de 3.130$00 e os vincendos até integral pagamento.
As rés B e D foram também condenadas a restituir à autora o veículo locado.
A sentença declarou ainda improcedente o pedido reconvencional formulado pela ré C.

Da sentença apelaram as três rés.
A Relação de Lisboa, por acórdão de 29.11.01, julgou "parcialmente procedentes os fundamentos da apelação", e revogou parcialmente a decisão recorrida, absolvendo a ré D do pagamento da quantia em que havia sido condenada, mantendo-se, no mais, o decidido na sentença.

Recorrem agora de revista, as rés C e B.
A primeira remata a sua alegação de recurso com a enunciação de um alargado leque de conclusões, com as quais pretende demonstrar, em síntese, que
- a intenção das partes (i. e., da C e da B) ao contratarem a emissão do seguro-caução aludido nos autos consistiu - como o demonstram os protocolos firmados entre ambas - na prestação de garantia ao pagamento das rendas por parte dos clientes da B, locatários nos contratos de aluguer de longa duração;
- o acórdão recorrido, apesar de reconhecer a nulidade da sentença da 1ª instância por omissão de pronúncia sobre a questão da anulação, pela recorrente, com efeitos a partir de 11.08.94, da apólice de seguro por falta de pagamento do sobre-prémio reclamado, não deu resposta a essa questão, não suprindo o invocado e reconhecido vício, sendo totalmente omisso sobre a questão da improcedência das alíneas c) e d) do pedido subsidiário quanto à mesma recorrente;
- a considerar-se que a garantia do seguro-caução incide sobre o contrato de locação financeira, deve a condenação da recorrente ser limitada às alíneas a) e b) do pedido subsidiário, pois a tanto se resumirá a sua responsabilidade;
- accionando a autora a garantia prestada pela apólice do seguro-caução, fica necessariamente vinculada ao cumprimento dos termos e condições em que tal garantia é prestada, designadamente às condições dos arts. 10º, 11º e 14º das condições gerais da apólice; todavia,
- não foram ponderados os factos em que assenta o pedido reconvencional formulado pela recorrente, impondo-se, pois, a reformulação da especificação e do questionário nos termos oportunamente requeridos, seguindo-se então os demais termos até final;
- o acórdão recorrido viola os arts. 236º e 238º do CC e o art. 659º do CPC.
Deve, assim, - finaliza a recorrente - ser revogado o acórdão recorrido e ser a recorrente absolvida do pedido; ou, em alternativa, ser limitada a sua condenação ao pagamento das quantias referidas nas alíneas a) e b) do pedido subsidiário, caso em que deverá conhecer-se do mérito do pedido reconvencional.

Por sua vez a B fez terminar a sua alegação enunciando um ainda mais alargado quadro conclusivo, que pode assim sintetizar-se:
a) O seguro de caução directa é uma garantia autónoma, automática, à 1ª interpelação, completamente independente do contrato base - não é uma fiança. Não há, portanto, devedores solidários, mas apenas a seguradora, pois a recorrente, através desse seguro, transferiu a sua responsabilidade civil contratual, salvaguardando-se, assim, das consequências do incumprimento;
b) Na verdade, o garante está obrigado a satisfazer a garantia de imediato, bastando que para tal o beneficiário o tenha solicitado, pelo que nunca poderia a recorrente ser condenada, mas apenas a seguradora, que assumiu a totalidade da responsabilidade da dívida, ou seja, o pagamento de todas as rendas vencidas e não pagas, bem como das vincendas, do contrato de locação financeira;
c) A A, aquando da celebração do contrato de locação financeira com a recorrente, exigiu a prestação, por esta, de uma garantia idónea que cobrisse o eventual incumprimento da B, e tal garantia foi prestada através do seguro de caução directa referido nos autos (ap. 150104101752), por força do qual a C garantiu à autora, beneficiária do seguro-caução, em caso de incumprimento da recorrente, o pagamento das rendas vencidas e não pagas, bem como das rendas vincendas, a efectuar à 1ª interpelação e no prazo de 45 dias;
d) Assim, outra coisa não restava à ré seguradora senão pagar a quantia peticionada, à primeira interpelação, pelo que, não o tendo feito, incorreu em mora desde essa interpelação;
e) Se a seguradora tivesse pago as rendas vencidas e não pagas e as vincendas, logo que interpelada pela autora, esta não teria resolvido o contrato e, consequentemente, não haveria lugar à restituição do veículo, sob pena de enriquecimento sem causa por parte da autora; a B pagaria apenas o valor residual, a autora transmitir-lhe-ia a propriedade do veículo e a B, por sua vez, transmiti-lo-ia ao seu locatário de ALD;
f) A conduta da autora, criando na recorrente a confiança na possibilidade de outorga futura de um contrato de ALD, com terceiro alheio ao contrato de locação financeira, impede igualmente a condenação na restituição do veículo, na sequência da resolução do contrato de leasing.

A C sustentou ainda a inadmissibilidade do recurso da B, argumentando com o valor da sucumbência desta - que, em seu entender, é inferior a metade do valor da alçada da Relação.

A autora/recorrida não apresentou contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2.

Ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 713º/6 e 726º do CPC, remete-se para a matéria de facto tida como assente pelas instâncias, dando-se aqui por reproduzido o elenco factual vertido na decisão recorrida.

E, estando assentes os factos, passemos ao direito aplicável.

3.

Começaremos por apreciar a questão prévia suscitada pela recorrente C, respeitante à inadmissibilidade do recurso interposto pela B.
Sustenta ela que a decisão recorrida é desfavorável à referida ré em apenas 543.097$00 mais juros, o que é inferior a metade da alçada do tribunal recorrido, que era, então, de 1.000.000$00, não sendo, pois, admissível o recurso, face ao disposto no art. 678º/1 do CPC.
Não lhe assiste, porém, razão.
Não só a quantia pecuniária que a B foi condenada a pagar à autora é significativamente superior àquele indicado montante de 543.097$00, como certo é ainda ter sido a aludida ré condenada a restituir-lhe o veículo locado, como havia sido pedido pela demandante.
O valor deste pedido afere-se pelo valor do veículo a restituir, que a autora adquiriu por 1.312.192$00 (cf. doc. de fls. 19).
E mesmo ignorando-se o seu valor actual, não é ousado concluir que, somado este valor com o montante pecuniário em que a B vem condenada, se alcançará uma quantia - tradutora da sucumbência - que claramente supera metade do valor da alçada da Relação.
De todo o modo, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa (art. 678º/1 do CPC), pelo que não há senão que concluir pela admissibilidade do recurso.

4.

Apreciada e decidida a questão prévia acima aludida, avancemos na dilucidação das demais questões a apreciar, suscitadas nas conclusões das recorrentes.

4.1. Objecto do contrato de seguro-caução

É esta a questão nuclear a decidir, não sendo, por isso, de estranhar que ela seja tema fulcral de ambos os recursos - e em cada um deles ponderada de forma radicalmente oposta.
A seguradora entende que o objecto do contrato de seguro-caução se reconduz à prestação de garantia ao pagamento das rendas devidas pelo cliente - no caso, a ré D - à B, respeitantes ao contrato de ALD celebrado entre estas duas sociedades. Ao invés, para a B, o dito contrato tem por objecto garantir o pagamento das rendas decorrentes do contrato de locação financeira que, em veste de locatária, celebrou com a autora.
O acórdão recorrido perfilhou este segundo entendimento, na linha do já decidido na 1ª instância.
E, a nosso ver, com inteira razão.
Estando em causa a interpretação de um negócio jurídico formal, como é o contrato de seguro, é patente que o adequado enfoque da questão deverá partir da análise e interpretação do respectivo documento - a apólice do seguro - tendo presente o disposto nos arts. 236º e 238º do CC.
Mas há ainda que ter em conta os factos apurados em julgamento, na medida em que possam contribuir para se alcançar a vontade real dos contraentes.
Pois bem!
O contrato de seguro-caução, cuja disciplina se encontra no Dec-lei 183/88, de 24 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Dec-lei 127/91, de 12 de Março, é celebrado entre a empresa seguradora e o devedor da obrigação a garantir ou o seu contragarante, a favor do respectivo credor (art. 9º/2).
O seguro-caução é sempre contratado pelo devedor (ou eventual devedor) a favor do credor (ou eventual credor). Distingue-se do seguro de crédito, que é contratado pela seguradora com o credor da obrigação segura (art. 9º/1).
O contrato de seguro assume, no seguro-caução, a feição típica de um contrato a favor de terceiro, cobrindo, directa ou indirectamente, o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval - nele assumindo o devedor a posição de segurado e o credor a de beneficiário.
O seguro-caução tem, para assegurar a sua validade, de constar de uma apólice, instrumento que contém o clausulado que o rege - é, como já se deixou referido, um contrato formal, como resulta do art. 426º do CCom. (aplicável ex vi do n.º 1 do art. 1º do Dec-lei 183/88).
Vai, pois, descer-se à análise da apólice do seguro-caução em causa, tentando surpreender, a partir da sua interpretação, o respectivo objecto.
O princípio interpretativo geral, em matéria de interpretação da declaração negocial, e válido para as declarações receptícias, vem enunciado no art. 236º do CC.
Do disposto no seu n.º 1 colhe-se que o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal - i.e., um declaratário medianamente esclarecido e diligente - colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
Importa, todavia, salientar que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (n.º 2 do citado art. 236º).
Nos negócios formais, decorre do n.º 1 do art. 238º que, em princípio, a declaração negocial não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento. Essa regra não é, porém, absoluta, valendo um sentido que não tenha a dita correspondência no texto do documento se corresponder à vontade real das partes no negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (n.º 2 do mesmo preceito).

Para interpretarmos a apólice do seguro-caução teremos, antes de mais, de indagar as razões que subjazem à realização do seguro.
Perscrutando a apurada matéria de facto, verificamos que
- Em 02.09.92, a autora e a B celebraram entre si um contrato, através do qual a primeira deu, em locação financeira, à segunda, o veículo Honda CBR, de matrícula LX-..., sob as seguintes condições:
- duração do contrato: 36 meses;
- n.º e valor das prestações da renda: 12 prestações trimestrais, de 132.834$00 cada;
- valor residual: 78.732$00 (respostas aos quesitos 1º a 7º).
- O referido veículo foi entregue à B em 10.09.92 (resposta ao quesito 9º).
- A B obrigou-se a apresentar, em simultâneo com a celebração do aludido contrato, um seguro-caução, de que seria beneficiária a autora (respostas aos quesitos 20º e 21º).
- Nas negociações que precederam a celebração do contrato, a autora fez depender a conclusão do mesmo da obtenção, pela B, da prestação de uma garantia, a prestar por uma seguradora aceite pela autora, sendo que o objecto do seguro deveria ser o pagamento de todas as obrigações emergentes do contrato supra aludido, celebrado entre ambas (respostas aos quesitos 23º, 24º e 26º).
- E por isso a ré C celebrou com a B o contrato de seguro-caução com o n.º de apólice 150104101752, em que a autora é beneficiária e a B tomadora (respostas aos quesitos 30º, 31º e 32º).

Volvendo agora a nossa atenção para a aludida apólice do seguro-caução, deparamos, logo nas "Condições Gerais", no cap. I, sob a epígrafe "Definições e objecto da Garantia", que integra os arts. 1º e 2º, com as seguintes menções:
Para os efeitos do presente contrato, considera-se:
TOMADOR DO SEGURO - A entidade que contrata com a C, sendo responsável pelo pagamento dos prémios;
BENEFICIÁRIO - A entidade a favor de quem reverte o direito de ser indemnizado pela C e que igualmente subscreve a apólice;
SINISTRO - O incumprimento atempado, pelo TOMADOR DO SEGURO, da obrigação assumida perante o BENEFICIÁRIO.
E, quanto ao "objecto da garantia", consta do art. 2º:
A C, com base na proposta subscrita pelo tomador do seguro e de acordo com o convencionado nas Condições Gerais, Especiais e Particulares deste contrato, garante ao BENEFICIÁRIO, pela presente apólice, até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que devia receber do TOMADOR DO SEGURO, em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida, conforme se expressa nas Condições Particulares (...).
Por seu turno, das "Condições Particulares"da apólice (fls. 42) constam, com interesse, as seguintes indicações:
Tomador do Seguro: B
OBJECTO DA GARANTIA: Pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de 1.798.800$00, referentes ao veículo Honda CBR LX-...
BENEFICIÁRIO: A
OBSERVAÇÕES: O seguro é feito pelo prazo de 36 meses, com início em 03.09.92 e termo em 02.09.95.
Verifica-se, assim, da articulação do clausulado das "Condições Gerais"com o das "Condições Particulares"da apólice, que
- é a B a tomadora do seguro;
- é a autora a beneficiária do mesmo, isto é, a entidade a favor de quem reverte o direito de ser indemnizado pela C;
- a C garante ao beneficiário (a autora), pela presente apólice, o pagamento da importância que este devia receber do tomador do seguro (a B), em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida;
- o objecto da garantia vem indicado como sendo o pagamento de 12 rendas trimestrais, referentes ao veículo Honda CBR LX-..., e o prazo do contrato 36 meses, coincidindo com os termos do contrato de locação financeira celebrado entre a autora e a B.
Ora, de tudo isto, tendo em conta os princípios válidos em matéria de interpretação das declarações negociais, que acima deixámos expressos, colhe plena aceitação a tese de que o seguro-caução em causa se refere às rendas respeitantes ao contrato de locação financeira.
E esta tese sai ainda mais reforçada se tivermos em conta a matéria de facto dada como assente e acima transcrita - a que pode ainda aditar-se o facto seguinte, igualmente inserido no elenco factual apurado, e resultante da resposta ao quesito 54, revelador da vontade real da recorrente:
A ré C sempre quis garantir, com a emissão da apólice (n.º 150104101752), o não pagamento das rendas do contrato (de locação financeira).
A recorrente C insurge-se contra a desconsideração, pela Relação, dos protocolos por ela celebrados com a B, que antecederam a celebração do contrato de seguro-caução e ao abrigo dos quais foi emitida a apólice - protocolos que, no seu entendimento, são fundamentais para se alcançar aquela que foi a efectiva vontade dos contraentes.
Mas, embora se aceite que a natureza formal do contrato não constitui obstáculo a que se lance mão, na interpretação da apólice respectiva, de elementos exteriores ou estranhos ao texto desta, designadamente aos protocolos a que alude a recorrente - mesmo que, como é o caso, neles não seja parte a autora - não se nos afigura que de tais protocolos possa extrair-se a conclusão avançada pela dita recorrente.
Não é, aliás, inteiramente exacto que a decisão recorrida tenha abstraído, de todo, da argumentação da C, no que concerne à valoração dos protocolos no processo interpretativo da apólice. Na verdade, depois de haver feito a análise do clausulado geral e particular desta, a Relação concluiu que "do texto escrito da apólice junta, não é possível extrair o sentido e o alcance pretendido pela apelante seguradora, pois não têm suporte no texto da declaração negocial".
É, na verdade, difícil, sem o recurso a contorcionismos interpretativos, sustentar que o conteúdo dos protocolos juntos aos autos, tem alguma correspondência - ainda que imperfeitamente expressa - nos arts. 1º e 2º das "Condições Gerais"e na globalidade das "Condições Particulares"da apólice.
Existe, é certo, uma aparente coincidência entre a indicação do objecto da garantia, constante das ditas "Condições Particulares"- Pagamento de 12 rendas trimestrais no valor de 1.798.800$00, referentes ao veículo Honda CBR LX-... - e a proposta de seguro junta pela seguradora recorrente com a sua contestação (fls. 141/142). Com efeito, tendo tal proposta - elaborada pela B e enviada à seguradora com carta daquela (fls. 140) - constam da missiva remetente os seguintes elementos:
Assunto: D
N.º do contrato: T92. 1243
Duração do seguro: 36 meses
Tomador do seguro: B
Beneficiário: A
Prestação trimestral: 149.900$00
Capital seguro: 1.798.795$00
Objecto da garantia: 12 rendas trimestrais
Marca: Honda CBR 1000
Matrícula: LX-....
E da proposta constam idênticas menções quanto à duração do contrato e à identidade do tomador e do beneficiário, sendo o capital a segurar indicado através da expressão aritmética 12X149.900$00=1.798.800$00.
Daqui extrai a seguradora recorrente que, sendo este expediente inequivocamente reportado ao contrato (de ALD) celebrado entre a B e a sua cliente D, a referência ao objecto da garantia, constante das "Condições Particulares" da apólice, não podia deixar de entender-se como visando igualmente aquele contrato: a coincidência na indicação do capital seguro era disso prova iniludível.
A conclusão da seguradora não é, porém, de aceitar.
Nada autoriza a supor que o ofício e a proposta a que vem de aludir-se visassem o contrato de ALD antes que o contrato de locação financeira.
A referência à locatária de ALD e ao número do contrato de ALD insere-se, a nosso ver, na obrigação que, de acordo com as "Condições Gerais"da apólice, recaía sobre o tomador do seguro (a B), de "fornecer à C, com exactidão, todos os elementos de informação relativos à operação a segurar"- entre os quais se contam, sem dúvida, a identificação do veículo a que o seguro respeita, a identidade do seu detentor e a qualidade em que este o detém.
Que não era o contrato de ALD o visado no ofício e na proposta a que vimos aludindo, enviados pela B à seguradora recorrente, resulta claro deste dado irrefutável: o contrato de ALD efectivamente celebrado entre a B e D, respeitante ao veículo Honda CBR LX-..., com o n.º T92. 1243 - que se acha igualmente nos autos (fls. 187/190) - não tem a mínima correspondência com os elementos referidos naqueles ofício e proposta. Como se alcança das "Cláusulas Particulares"do contrato, o prazo do aluguer é de 12 meses e o pagamento das rendas é mensal, sendo o primeiro aluguer de 920.599$00 e os restantes de 59.883$00 (cf. também a al. D) da especificação).
Daí que não seja legítimo interpretar a referência ao objecto da garantia, contida nas "Condições Particulares" da apólice, que acima deixámos transcrita, como expressão da vontade real da seguradora de garantir o pagamento das quantias devidas à tomadora (B) pela cliente desta, no contrato de ALD. Tal sentido declarativo não tem um mínimo de correspondência no texto do documento, o que, como vimos, é razão bastante para o rejeitar.
Conclui-se, pois, de tudo quanto se deixou referido, que a garantia assumida pela seguradora recorrente através do seguro-caução dos autos, se destinou a cobrir o pagamento das rendas relativas ao contrato de locação financeira firmado entre a autora e a B, e não as rendas devidas a esta última pela ré D, respeitantes ao contrato de aluguer de longa duração entre ambas celebrado.
E não vale o argumento, in extremis avançado pela recorrente, de que este entendimento - o de que o seguro-caução em análise garante o pagamento das rendas referentes ao contrato de locação financeira - levaria a concluir "pela nulidade do contrato em sede interpretativa, sob pena de se fazer valer o negócio com um sentido totalmente contrário à vontade das partes nele intervenientes".
O argumento dá por demonstrado o que importaria demonstrar - que a intenção e vontade das partes ao contratarem o seguro-caução consistia na prestação de garantia ao pagamento das rendas por parte dos clientes da B, locatários nos contratos de ALD - e que demonstrado não está, como irrefutavelmente decorre da resposta ao quesito 54º, acima transcrita.
Esclarecida esta primeira questão, que aproveita a ambos os recursos, vejamos agora as demais questões colocadas no recurso da C.

4.2. Anulação da apólice do contrato de seguro-caução por falta de pagamento do sobre-prémio reclamado pela seguradora

Sustenta a recorrente que, não obstante haver reconhecido a nulidade da sentença da 1ª instância, por omissão de pronúncia sobre a questão em epígrafe, a Relação não deu resposta a tal questão, não suprindo o invocado e reconhecido vício.
E acrescenta que, tendo a apólice sido cancelada com efeitos a partir de 11.08.94, por não terem, nem a B nem a autora, procedido ao pagamento do aludido sobre-prémio, e sendo o cancelamento legítimo e fundado, pois assenta nos arts. 5º e 8º das condições gerais da apólice e 16 n.º 3 do protocolo de 01.11.93, deverão daí ser extraídas as respectivas consequências, que se traduzem na total absolvição da recorrente do pedido, uma vez que a primeira renda não paga pela B teve vencimento a 10.09.94, quando já não se encontrava em vigor a apólice.
Não tem, porém, razão.
Não é, desde logo, exacto que a Relação tenha incorrido na omissão que a recorrente lhe imputa.
Com efeito, após haver reconhecido que a 1ª instância silenciara indevidamente sobre a questão em apreço, assim dando causa à nulidade prevista na alínea d) do art. 668º do CPC, o acórdão recorrido refere expressivamente:
Acontece que essa nulidade não importa que o tribunal de recurso não conheça do objecto da apelação, nos termos do artigo 715º do CPC, razão pela qual se conheceu do recurso.
O passo ora transcrito está relacionado com uma passagem anterior do acórdão, onde se deixou consignado o que segue (fls. 809 dos autos):
No que se refere à alegada resolução do contrato de seguro, tendo sido cancelada a respectiva apólice por falta de pagamento do sobre-prémio, quer pela B quer pela autora, não pode operar em virtude da falta de alegação de factos que levem a concluir pelo agravamento do risco, não bastando o simples facto do incumprimento da B, pois é precisamente esse risco que se pretende cobrir com a celebração do contrato de seguro, antes sendo necessária a alteração da situação objectiva.
Resulta, pois, evidente que a Relação valorou juridicamente as consequências decorrentes da alegada "anulação" ou cancelamento da apólice e correspondente resolução do contrato de seguro - embora em termos diversos dos pretendidos pela recorrente.
Mas, não deveria antes a decisão ser, nesta parte, coincidente com o acima referenciado entendimento da recorrente?
Vejamos.
Por carta de 3 de Agosto de 1994 a C propôs à B, nos termos do n.º 1 do art. 5º das "Condições Gerais da Apólice", o pagamento do sobre-prémio de 37.800$00, referente à apólice do seguro-caução - o que fez por ter sido anulada a apólice de seguro automóvel relativamente ao veículo LX-... (doc. de fls. 147 e respostas aos quesitos 35 e 36).
Nessa carta, a C referia que, caso a B não aceitasse o pagamento do sobre-prémio, no prazo de 8 dias, resolveria o contrato, sem necessidade de novo aviso (doc. cit. e resposta ao quesito 37).
E, por carta da mesma data, a C comunicou à autora a proposta feita à B, de pagamento do aludido sobre-prémio, juntando cópia da carta acima referida, e informando-a de que poderia, querendo, substituir-se à B em tal pagamento (doc. de fls. 148, al. B) da especificação e resposta aos quesito 37-B).
A B não efectuou o pagamento do sobre-prémio, outro tanto tendo feito a autora (resposta ao quesito 37-A e al. C) da especificação).
O art. 5º das "Condições Gerais da Apólice"dispõe, no seu n.º 1:
O Tomador do Seguro e/ou o Beneficiário devem comunicar, no prazo de 8 dias, qualquer alteração verificada na caução garantida, capaz de produzir um agravamento do risco. A C dispõe de 8 dias para recusar o risco agravado ou propor novas condições.
Por seu turno, o art. 8º das ditas condições gerais, exara no seu n.º 3:
A C poderá resolver o contrato dando conhecimento do facto ao Beneficiário, quando, face ao agravamento do risco a que se refere o n.º 1 do art. 5º, o Tomador do seguro não aceitar o sobre-prémio correspondente.

Resulta evidente do clausulado transcrito que o agravamento do risco que obriga à comunicação a fazer pelo tomador e/ou pelo beneficiário do seguro à C é apenas o que resulta de qualquer alteração verificada na caução garantida.
Tal comunicação (aludida no art. 5º) está directamente relacionada com a obrigação imposta no art. 4º ao tomador e ao beneficiário:
O Tomador do seguro e o Beneficiário obrigam-se a fornecer à C com exactidão, todos os elementos de informação relativos à operação a segurar e a autorizar, em qualquer momento, o acesso desta à escrituração e demais elementos contabilísticos conexos com a referida operação.
É, na verdade, a partir do exacto conhecimento da operação a segurar - e, concretamente, das obrigações que o tomador assume perante o beneficiário - que a seguradora define o risco que vai suportar e estabelece o prémio a pagar pelo tomador.
Com efeito, o tomador, ao contratar com a seguradora o seguro-caução, fá-lo em virtude da sua condição de devedor obrigado a um concreto comportamento face a um seu credor, e para o proteger dos danos patrimoniais que este pode sofrer em consequência da falta de cumprimento da obrigação a garantir.
Esta - a obrigação a garantir - pode ter uma maior ou menor amplitude, sendo por ela (recte, pelo conhecimento dela) que a seguradora se inteirará do risco, maior ou menor, que assume, e ficará habilitada a propor o prémio a pagar pelo tomador, de modo a estabelecer o equilíbrio das prestações.
Mas, para que se verifique o equilíbrio das prestações, é necessário que o risco se mantenha idêntico durante todo o tempo de vigência do contrato.
Por isso, se, durante a vida do contrato, o âmbito da obrigação caucionada for alargado, por acordo entre o tomador do seguro e o seu credor (beneficiário do seguro) ou por força de outras circunstâncias supervenientes, em termos de daí resultar um agravamento do risco, o princípio da boa fé contratual justifica e impõe que um ou outro, ou ambos, comuniquem à seguradora, em prazo côngruo, a alteração verificada, de modo a possibilitar-lhe a rejeição do risco agravado ou a proposta de novas condições - maxime, a correcção do montante do prémio - que restabeleçam o equilíbrio das prestações.
É esse o sentido da obrigação imposta no citado art. 5º ao tomador e ao beneficiário.
Se, proposta pela seguradora o reajuste do prémio, tal não for aceite pelo tomador, poderá a seguradora resolver o contrato, comunicando o facto ao beneficiário, como lho consente o n.º 3 do art. 8º, também já citado e transcrito.
Sendo esta a interpretação a fazer das cláusulas do contrato invocadas pela recorrente, é bom de ver que o fundamento invocado pela seguradora recorrente para a "anulação" do contrato de seguro-caução não pode proceder, uma vez que o alegado agravamento do risco - decorrente, no dizer da C, da anulação da apólice de seguro automóvel relativamente ao veículo LX-... - nada tem a ver com qualquer alteração verificada no âmbito da obrigação caucionada.
E de nada vale argumentar com o constante do protocolo de 01.11.93 - de cujo art. 16º n.º 3 consta que "o risco do seguro de CAUÇÃO considera-se agravado quando o respectivo seguro do Ramo Automóvel não estiver em vigor"na C - porquanto, como expressamente decorre do seu art. 2º, tal protocolo não tem aplicação ao seguro-caução a que se reportam estes autos, visando antes " definir as responsabilidades resultantes da emissão de seguros de CAUÇÃO destinados a garantir o pagamento das rendas devidas à B pelos locatários de veículos sob o regime de aluguer de longa duração".
É, assim, porque operada sem fundamento válido, ilegítima e ineficaz a "anulação"ou resolução do contrato de seguro-caução, de que a recorrente pretende valer-se.

4.3. Limitação da responsabilidade da seguradora recorrente

A questão que, a seguir, vem colocada a este Tribunal tem os seguintes contornos, definidos pela recorrente:
A Relação silenciou sobre a questão da improcedência, quanto à recorrente, das alíneas c) e d) do pedido subsidiário, incorrendo em vício que determina a nulidade do acórdão recorrido; e
A condenação da recorrente - ainda que se considere que a garantia por ela prestada se reporta ao contrato de locação financeira - deve ser limitada às alíneas a) e b) do pedido subsidiário, pois a tanto se resume a sua responsabilidade.
Quid juris?
Quanto à arguida nulidade, por omissão de pronúncia (sobre a improcedência, relativamente à recorrente, das alíneas c) e d) do pedido subsidiário) vale referir - sem quebra do respeito que à recorrente é devido - que, mais uma vez, esta não leu, com a atenção exigível, o acórdão impugnado.
O que a recorrente questiona é a condenação no montante de 42.313$00, valor da indemnização correspondente a 20% da soma das rendas vincendas com o valor residual do veículo locado [al. c)], acrescido dos juros de mora vencidos (3.130$00) e vincendos até integral pagamento, calculados sobre aquela quantia [al. d)].
Ora, a propósito desta questão pode ler-se no acórdão sob censura:
Assente que está que o contrato em referência se encontra resolvido, por iniciativa da recorrida, por falta de pagamento de rendas de acordo com a cláusula 15ª das "Condições Gerais" do contrato, e sendo certo que por virtude de tal facto tem direito às rendas vencidas e não pagas e aos respectivos juros de mora, uma das questões suscitadas pela apelante seguradora consiste em saber se é lícito à recorrida exigir-lhe uma indemnização nos termos da cláusula 15ª, uma vez que esta estaria fora do âmbito da garantia.
E, depois de concluir que, de acordo com a dita cláusula, a locatária (a B) estava obrigada a satisfazer à locadora a dita indemnização, acrescida dos respectivos juros moratórios, o acórdão remata:
Ora, respondendo solidariamente com a apelante B, por força do seguro-caução, a medida da responsabilidade da apelante seguradora será necessariamente a mesma que a da B, respondendo nos mesmos termos que esta.
É, pois, claro e seguro que não se verifica a alegada omissão de pronúncia, nem, consequentemente, a arguida nulidade do acórdão recorrido.

Ponto é saber se, como sustenta a recorrente, a responsabilidade desta se confina ao peticionado pela demandante nas alíneas a) e b) do pedido subsidiário, de modo a dever excluir-se a sua condenação na indemnização acima aludida (e respectivos juros moratórios).
A autora, aqui recorrida, demanda a B com base no não cumprimento, por esta, do contrato de locação financeira entre ambas celebrado; e acciona a C com fundamento no não cumprimento, por esta, das obrigações para ela decorrentes do contrato de seguro-caução que garantia o cumprimento daquele primeiro contrato.
Ora, nos termos do art. 2º n.º 1 das "Condições Gerais" da apólice do dito seguro-caução, já acima transcrito, a C garante ao beneficiário, até ao limite do capital seguro, o pagamento da importância que este deveria receber do tomador do seguro, em caso de incumprimento, por este último, da obrigação garantida, "conforme se expressa nas condições particulares".
Também já acima se deixou clarificado o constante das "Condições Particulares" da apólice, que referem que o contrato de seguro-caução garante o pagamento de 12 rendas trimestrais, no valor de 1.798.800$00, referentes ao veículo Honda CBR LX-..., sendo o seguro feito pelo prazo de 36 meses, com início em 03.09.92 e termo em 02.09.95, e dele sendo beneficiária a A.
Como decorre do referido art. 2º n.º 1 das "Condições Gerais" da apólice, a ora recorrente não se comprometeu a cumprir as obrigações da B emergentes do contrato de locação financeira, antes assumiu uma obrigação própria, com carácter indemnizatório, limitado este pelo montante da quantia segura. Não pode ser responsabilizada por toda e qualquer indemnização decorrente da resolução do contrato de locação financeira, no qual não interveio.
Não pode, designadamente, ser responsabilizada pela cláusula penal que, no contrato de locação financeira, foi fixada por acordo entre as partes nesse contrato, prevista, "a título de indemnização por perdas e danos sofridos pelo locador" (cf. art. 15º/2.c) das "Condições Gerais" do contrato de locação financeira), para o caso da autora desencadear a resolução do contrato por falta de cumprimento da B.
A obrigação da recorrente traduzia-se, no caso de incumprimento da B, na garantia de pagamento de 12 rendas trimestrais, nos moldes já acima referidos.
Tendo a autora resolvido o contrato, apenas poderia reclamar da recorrente - como reclamou - o valor das rendas que se achavam vencidas (e não pagas) na data em que operou a resolução, e o IVA respectivo, bem como os respectivos juros moratórios, vencidos e vincendos, nos termos dos arts. 804º e 805º/1 do CC.
Poderia ainda reclamar, como, aliás, o fez, as rendas vincendas. Mas essa pretensão foi desatendida na sentença da 1ª instância, não podendo já ser reactivada, uma vez que a sentença, nessa parte, transitou em julgado.
Deverá, assim, cair a condenação da recorrente na parte correspondente às alíneas c) e d) do pedido subsidiário, nessa parte se revogando o acórdão recorrido.

4.4. Do pedido reconvencional da recorrente

A C formulou pedido reconvencional, para o caso de o Tribunal vir a considerar - como efectivamente aconteceu - que o seguro-caução de quo agitur se reporta ao pagamento das rendas no contrato de locação financeira, e que não estava resolvido na data do vencimento das duas rendas não pagas pela B. E funda tal pedido na responsabilidade contratual da autora que, por não ter dado adequado cumprimento ao disposto nos arts. 10º, 11º e 14º das "Condições Gerais" da Apólice, lhe provocou prejuízos.
Como vimos, o pedido reconvencional foi julgado improcedente, na 1ª instância.
A reconvinte reagiu, sustentando, nas suas alegações de recurso para a Relação, que não haviam sido incluídos na especificação e no questionário os factos sobre que assenta o pedido reconvencional, impondo-se, por isso, a anulação de todo o processado posterior ao despacho saneador, reformulando-se aquelas peças de condensação de acordo com a reclamação contra elas a seu tempo formulada e que não foi atendida pelo juiz da 1ª instância.
Esta pretensão da recorrente foi desatendida pela Relação, que ponderou a propósito:
Quanto aos factos sobre os quais assentava a reconvenção, não incluídos na especificação nem no questionário, afiguram-se irrelevantes para a decisão deste recurso face à natureza do seguro-caução (defendida infra) como uma garantia autónoma, não dependente das vicissitudes da obrigação principal, constituindo a "feição típica de um contrato a favor de terceiro", pelo que a autora como beneficiária, não tendo assumido com a apelante seguradora qualquer obrigação, é estranha às obrigações dele decorrente, não lhe sendo oponíveis as obrigações acordadas entre esta e a B, pelo que a reconvenção, mesmo que fossem provados todos os factos sobre os quais assenta, seria improcedente.
Mas a autora dissente deste entendimento, persistindo na sua tese, rejeitada pela Relação, e afirmando que, ao accionar a garantia prestada pela apólice dos autos, a autora fica vinculada ao cumprimento dos termos e condições em que a mesma é prestada, designadamente às resultantes dos arts. 10º, 11º e 14º acima aludidos. Daí que, não tendo sido ponderados os factos sobre que assenta o pedido reconvencional, se imponha a reformulação da especificação e do questionário, nos moldes oportunamente requeridos.

Não se sufraga este modo de ver as coisas.
O contrato de seguro-caução é um contrato a favor de terceiro, como o afirma a doutrina e a jurisprudência.
Sendo a autora a beneficiária - isto é, na terminologia legal (art. 444º/1 do CC) o terceiro a favor de quem foi convencionada a promessa - ela adquiriu o direito à prestação, independentemente de aceitação.
Mas isso não a transforma em parte no contrato: como certeiramente assinala o Prof. Leite de Campos (1), mesmo no caso de adesão ao contrato, "o facto de um terceiro adquirir um direito a exigir o cumprimento do estipulado a seu favor, (...) não o transforma em parte".
Por isso, o constante das cláusulas do contrato de seguro-caução celebrado entre a B e a C - e, concretamente, das cláusulas supra indicadas - não pode validamente vincular a beneficiária deste, a autora/recorrida, não sendo de aceitar que esta, não tendo assumido as obrigações consagradas nessas cláusulas, possa ser responsabilizada pela violação das mesmas.
Assim o tem entendido este Tribunal (2) .
E daqui resulta que não há que reformular a especificação e o questionário.

5.

Esgotadas as questões colocadas pela seguradora recorrente curemos agora daquelas que constituem o objecto do recurso da B.

5.1. Exclusão da responsabilidade da B em consequência da celebração do contrato de seguro-caução

Sustenta a recorrente que, estando as obrigações que assumiu perante a autora, garantidas pelo seguro-caução a que vimos aludindo, não poderia aquela demandá-la, já que, ao celebrar tal contrato, a recorrente transferiu a sua responsabilidade para a C, só esta podendo, pois, ser accionada, atenta a sua qualidade de garante das referidas obrigações.
A recorrente filia a sua tese no entendimento de que o seguro-caução que contratou com a C é uma garantia autónoma automática, à primeira interpelação - não é uma fiança - sendo, por isso, completamente independente do contrato de locação financeira que lhe está subjacente, e envolvendo a transferência, para a seguradora, da responsabilidade contratual adveniente do não cumprimento deste contrato por ela, recorrente.
A seguradora seria, assim, a única responsável.
Será de aceitar a tese da recorrente?
A garantia autónoma é uma figura jurídica - cujo fundamento jurídico-positivo se encontra no art. 405º do CC - que se destina a proteger o credor contra o risco de incumprimento por parte do devedor.
É uma medida de protecção mais forte do que aquela que constitui o arquétipo das garantias pessoais - a fiança - na medida em que arreda da sua disciplina o princípio da acessoriedade, que constitui o traço característico da fiança.
Na verdade, enquanto a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor (art. 627º/2 do CC), o que significa que o fiador pode opor ao credor os meios de defesa de que pode valer-se o devedor - designadamente as excepções relativas à validade, eficácia, conteúdo, extinção, ... da obrigação garantida - a garantia autónoma acha-se inteiramente desligada da relação principal, não podendo o garante opor ao beneficiário as excepções atinentes à dita relação principal.
Na garantia autónoma o garante "assegura ao credor determinado resultado, assumindo o risco da não verificação do mesmo, qualquer que seja, em princípio, a sua causa" (3) .
A obrigação assumida pelo garante, na garantia autónoma, funda-se na responsabilidade objectiva, é autónoma e independente, e não se molda sobre a obrigação (de prestar ou de indemnizar) do devedor do contrato base, nem quanto ao objecto nem quanto aos pressupostos da sua exigibilidade (4) .
Existe, pois, clara diferença entre o contrato de garantia autónoma e a fiança.
Há, por outro lado, garantias autónomas simples e garantias autónomas automáticas. Enquanto nas primeiras o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, já tal prova não lhe é exigível nas segundas, devendo nestas o garante entregar imediatamente ao beneficiário, ao primeiro pedido deste, a quantia pecuniária fixada.
Nestas garantias automáticas insere-se a garantia de pagamento à primeira interpelação (on first demand), a que alude a recorrente: ao primeiro pedido do beneficiário da garantia o garante é, em princípio, obrigado a pagar imediatamente sem contestação, sem poder exigir a prova da inadimplência do devedor garantido e mesmo com a eventual oposição deste.
Será o seguro-caução a que se reportam estes autos uma garantia autónoma?
A resposta, adianta-se desde já, é negativa.
Como salienta MÓNICA JARDIM (5), face ao direito português, mesmo que um específico seguro-caução seja uma garantia de cumprimento, e mesmo que essa garantia seja ressarcitória e autónoma face à obrigação garantida, nunca se confundirá com o contrato de garantia autónoma.
São várias e inconciliáveis as diferenças entre ambas as figuras.
Assim, o seguro-caução é, como já ficou referido, um contrato a favor de terceiro (celebrado entre a seguradora e o devedor da obrigação a garantir, a favor do respectivo credor) - natureza que não quadra ao contrato de garantia autónoma; este é celebrado entre o garante (em regra um banco ou uma seguradora) e o próprio beneficiário/credor do contrato base.
O contrato de seguro-caução cria duas relações jurídicas: uma entre o tomador e a seguradora, que envolve direitos e obrigações para ambos, outra entre a seguradora e o beneficiário/segurado (terceiro), da qual emerge um direito de crédito deste em relação àquela, e a correspectiva obrigação desta. Ao contrário, na garantia bancária, o garante assume apenas, face ao dador da ordem/devedor do contrato base, a obrigação de celebrar o contrato de garantia autónoma, manifestando-se a eficácia deste contrato apenas no quadro das relações entre garante e beneficiário. Do contrato celebrado entre o dador da ordem e o garante não resulta qualquer direito para o beneficiário.
O contrato de seguro-caução é um contrato bilateral ou sinalagmático, do qual decorrem obrigações para ambas as partes, ao contrário do contrato de garantia autónoma, do qual apenas resultam obrigações para uma delas - o garante.
O contrato de seguro caução - dada a essencialidade que, na sua formação, reveste o requisito prémio - é um contrato oneroso, ao contrário do de garantia autónoma, que é um contrato gratuito.
O contrato de seguro-caução tem natureza formal, dependendo a sua validade da redução a escrito num instrumento que constitui a apólice de seguro. Já o contrato de garantia autónoma é um contrato cuja validade não depende de uma determinada forma.
Através do seguro-caução, a seguradora assume, perante o segurado, a obrigação de indemnizar os prejuízos apurados, até ao limite da quantia segura, resultantes do incumprimento contratual do tomador; não um qualquer montante previamente fixado na apólice, mas os danos efectivamente sofridos, até ao limite convencionado. O garante assume, na garantia autónoma, a obrigação de entregar ao beneficiário uma certa soma em dinheiro, normalmente já conhecida no momento da constituição da obrigação e que abstrai da dimensão do dano (6).
O seguro-caução não é, assim, meio para a concessão de uma garantia autónoma, nem constitui uma modalidade desta.
Nada, na regulamentação do seguro-caução, constante do Dec-lei 183/88, permite situar este instrumento jurídico entre as garantias autónomas.
E também não é possível inferir essa natureza, relativamente ao contrato sub judice, das respectivas cláusulas, seja das que integram as condições gerais, seja das que constituem as condições especiais ou as condições particulares da apólice.
A recorrente entende que nos n.ºs 4 e 5 do art. 11º das "Condições Gerais" da apólice do seguro-caução em causa está caracterizada uma verdadeira garantia autónoma, automática, à primeira interpelação.
Não temos por acertada tal afirmação.
Desde logo, porque decorre do n.º 4 que só após a recusa injustificada do tomador (a B), interpelado para satisfazer a obrigação, é que o beneficiário (a A) podia reclamar da seguradora a indemnização devida, o que não se compagina com a natureza e o regime da garantia à primeira interpelação.
Ademais, face ao teor literal do n.º 5, afigura-se-nos que seria ainda exigível do beneficiário a alegação e a prova da recusa injustificada de pagamento por parte da B.
Não cabe, pois, ao contrato de seguro-caução celebrado entre a B e a C a qualificação de garantia autónoma, que tenha o efeito de operar a transferência, para a seguradora, da responsabilidade da B assumida no contrato de locação financeira, em termos de esta ficar totalmente exonerada das obrigações contraídas no dito contrato.
O contrato de seguro-caução é, antes, uma garantia simples, que é funcionalmente equivalente a uma garantia especial das obrigações, e que não exclui, por isso, a responsabilidade do devedor da obrigação a garantir perante o respectivo credor: esta responsabilidade subsiste.
A pretensão da B, de ver excluída a sua responsabilidade relativamente ao contrato de locação financeira que celebrou com a autora, como decorrência da celebração do contrato de seguro-caução, cai, pois, pela base.

5.2. A questão da restituição do veículo à autora: enriquecimento sem causa

Esta questão está inteiramente conexionada com a anterior, e foi suscitada pela recorrente no pressuposto de que a sua posição quanto a essa questão anterior era correcta.
Mas, não se aceitando ser a seguradora a responsável única, por via do contrato de seguro-caução, daquilo que, face ao contrato de locação financeira, a B devia à autora, e não sendo de questionar o acerto da resolução deste último contrato, operada pela A, a restituição do veículo pela B surge como consequência natural e legal da resolução - que importa a restituição de tudo o que tiver sido prestado (art. 289º, ex vi do art. 433º, ambos do CC) - fundando-se também no disposto no art. 24º, al. f) do Dec-lei 171/79, em vigor à data da celebração do contrato.
Tal restituição, em consequência da resolução do contrato, fora até acordada pelos contraentes (A e B), constando das "Condições Gerais" do contrato [art. 15º-2.a)].
Daí que não possa validamente sustentar-se que, nas condições em que se verificou, tenha a restituição do veículo envolvido enriquecimento sem causa por parte da autora.

5.3. A questão do abuso de direito

Embora de forma algo canhestra, imputa a recorrente à autora actuação integradora de abuso de direito.
Se bem percebemos, esse abuso traduzir-se-ia em ter a autora agido de modo contrário às legítimas expectativas da recorrente, pois que, tendo-se vinculado a não resolver os contratos celebrados, em caso de incumprimento, e a accionar o seguro-caução, fez a B confiar em que poderia prosseguir os seus objectivos, celebrando com um terceiro um contrato de ALD respeitante ao veículo, assim criando nela uma confiança que foi abruptamente cerceada com o exercício posterior do direito de resolução do contrato.
O modo de exercício deste direito é ilegítimo, constituindo abuso de direito e impedindo a condenação na restituição do veículo.
É evidente a falta de razão da recorrente.
E estranha-se a sua persistência em continuar a agitar a questão, quando é certo que, logo em sede de julgamento da matéria de facto, não logrou fazer a prova do que alegara como suporte para o invocado abuso de direito - o compromisso da autora em não avançar para a resolução do contrato, em caso de incumprimento por parte da B. O quesito 45º, que recebeu essa matéria de facto, obteve a resposta de "não provado".
Gorado o pressuposto fáctico do alegado exercício do direito, justificava-se a contenção da recorrente, até pelo absurdo da alegação, já que não é crível que algum contraente renuncie voluntária e antecipadamente ao direito de resolver um contrato, no caso de o outro contraente incumprir as suas obrigações.
Perante a insistência, não nos resta senão reafirmar o mal fundado da arguição.
A doutrina do abuso de direito tem, para o Prof. Manuel de Andrade, a função de obstar a "injustiças clamorosas", a que poderia conduzir, em concreto, a aplicação dos comandos abstractos da lei. E assim, para este insigne Mestre, haverá abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante.
Nas mesmas águas navega o Prof. Vaz Serra, para quem "de um modo geral, há abuso de direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante".
O abuso de direito é, como refere Castanheira Neves, um princípio normativo, um postulado axiológico-normativo do direito positivo.
Não precisaria sequer de ser afirmado em lei para se aceitar a sua vigência.
Mas o princípio tem consagração legal, repousando no seio do art. 334º do Cód. Civil.
Aí se dispõe que:
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A B passou a ter, desde o início de 1994, uma renda em atraso, o que levou a autora a comunicar-lhe, por alturas de Agosto de 1994, que, caso deixasse de cumprir alguma outra renda, resolveria o contrato.
Já em 05.06.95, a autora enviou à B uma carta registada com A/R, referindo-lhe que, caso esta não procedesse ao pagamento das quantias em dívida, no prazo de oito dias, consideraria o contrato resolvido.
Bastaria este comportamento da autora para varrer da sua testada a imputação de exercício do direito em termos indevidos e abusivos.
De concluir é, pois, que também nesta parte claudica o recurso da recorrente B.

6.

Nos termos que se deixam expostos,
- nega-se a revista, relativamente à ré B, confirmando-se, quanto a ela, o acórdão recorrido;
- concede-se em parte a revista, relativamente à ré C, que apenas responde solidariamente com a ré B no pagamento da quantia de 500.784$00 (que se convertem em € 2497,90), acrescida do IVA, e de juros de mora à taxa de desconto do Banco de Portugal, os vencidos até 02.11.95, no montante de 82.256$00 (€ 410,29), e os vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento.
Custas pela ré B, no que respeita ao seu recurso.
Quanto ao recurso da ré C, ficam a cargo desta as custas correspondentes à parte em que decaiu, ficando o recurso, na parte restante, sem tributação, uma vez que o autor/recorrido não contra-alegou.


Lisboa, 26 de Junho de 2003
Santos Bernardino
Moitinho de Almeida (votei a decisão)
Ferreira de Almeida
_________
(1) - Contrato a favor de terceiro, 2ª ed., Coimbra 1991, pág. 159.

(2) - Cf. Acórdãos de 05.07.01 (revista 1456/01, da 7ª Sec.), de 18.04.02 (revista 4348/01, da 7ª Sec.), de 04.07.02 (revista 1959/02, da 6ª Sec.), e de 19.11.02 (revista 2296/02, da 6ª Sec.).

(3) - Prof. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pág. 265.

(4) - Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, Almedina, 2002, pág. 181.

(5) - Ob. cit., pág. 237.

(6) - Seguimos, de muito perto, a exposição da autora ultimamente citada, págs. 238 e seguintes.