Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
042854
Nº Convencional: JSTJ00018112
Relator: ALVES RIBEIRO
Descritores: ACUSAÇÃO
PROVA INDICIÁRIA
PRONÚNCIA
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ199302170428543
Data do Acordão: 02/17/1993
Votação: MAIORIA 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Referência de Publicação: ASSENTO Nº 4/93 DR Iº SERIE A Nº 72 DE 26/03/1993, PÁG. 1494 A 1496 - BMJ Nº 424 ANO 1993, PÁG. 73
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática: DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 311 N2 A.
Sumário :
A alínea a) do n. 2 do artigo 311 do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária.
Decisão Texto Integral:
Acordam em Plenário das sub-secções criminais do
Supremo Tribunal de Justiça:


O Excelentissímo Procurador Geral Distrital junto do
Tribunal da Relação de Évora interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do acórdão daquela Relação, proferido a 7 de Janeiro de 1992, num processo vindo em recurso do tribunal da comarca de Loulé movido pelo Ministério Público contra o arguido A. Num acórdão foi confirmado o despacho do juiz da comarca de Loulé que rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido A por manifesta insuficiência de prova indiciaria do crime.

Em sentido oposto havia já sido decidido pelo acórdão da Relação de Coimbra, de 16 de Janeiro de 1991, já transitado em julgado e publicado na revista Colectânea de Jurisprudência, ano XVI - 1991, tomo I, pagina 92, com o sumário seguinte:

O juiz do julgamento não pode sujeitar a acusação com o fundamento na insuficiência de indícios.


Em conferencia já se decidiu no sentido de os acórdãos das Relações de Coimbra e de Évora, já referidos, terem decidido em sentido oposto no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, ou seja, sobre a interpretação a dar ao artigo 311 n. 2 alínea a) do Código de Processo Penal.


O Excelentissímo Procurador Geral Adjunto junto deste
Supremo Tribunal apresentou a minuta de alegações de fls. 19 a 38 dos autos, na qual apoiou a tese e a solução dada ao caso pelo acórdão da Relação de Coimbra, propondo que nesse mesmo sentido se fixasse jurisprudência.
É essa, pois, a questão que se passa a abordar, depois de os Excelentíssimos Conselheiros intervenientes terem aposto nos autos os respectivos vistos.


De acordo com o preceituado nos artigos 283 n. 1 e 285 n. 1, ambos do Código de Processo Penal, se, depois de terminado o inquérito, vier a ser deduzida acusação pública ou particular, será esta notificada ao arguido, que poderá, no prazo de 5 dias, a contar da notificação da acusação, requerer a abertura da instrução. Se nem pelo arguido, nem por qualquer outro interessado a quem seja concedido o direito respectivo,tiver sido requerida a instrução, há que dar cumprimento ao que se preceitua no artigo 311 n. 2 alínea a) do Código de


Processo Penal, onde se dispõe:


2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada.


Segundo a solução dada pelo acórdão fundamento esse preceito não autoriza o juiz a rejeitar a acusação na base da insuficiência de indícios. Mas de forma oposta decidiu o acórdão da Relação de Évora, o acórdão recorrido, ou seja, de que o juiz poderá rejeitar a acusação por manifesta insuficiência de prova.


Segundo o acórdão fundamento o juiz não poderá rejeitar a acusação na base da falta de prova indiciaria, competindo-lhe apreciar a acusação nos precisos termos desta, como faz o juiz em processo civil, quando uma petição inicial lhe é apresentada a despacho para ordenar a citação.
Acontece que não há qualquer analogia entre a acusação deduzida contra o arguido em processo penal e a petição inicial numa acção cível. Quando ao juiz é apresentada a despacho uma petição inicial, este, em regra, não dispõe de elementos probatórios de que se possa socorrer para a apreciação da sua viabilidade. Ora isso não acontece com a acusação, que vai acompanhada do inquérito, donde constam as provas recolhidas que fundamentam a acusação deduzida.


E nenhuma analogia há também entre o despacho do juiz ordenando a citação do réu e o despacho que recebe a acusação e designa dia para julgamento em processo penal pela prática de um crime.
O simples recebimento pelo juiz de uma acusação em processo penal pode acarretar para o arguido consequências graves, designadamente, a adopção de medidas coactivas que podem ir até à prisão preventiva, além de perante a sociedade ficar numa situação de presumível culpado da prática de um ou mais crimes.


O acórdão fundamento apresenta ainda um outro argumento em abono da solução que deu ao caso, a que o Excelentissímo Procurador Geral Adjunto dá o seu apoio, e equaciona nos termos seguintes:
"O arguido perante a acusação do Ministério Público ou a aceita para ser discutida em julgamento ou requer a abertura da instrução".
É claro que o mesmo problema põe-se também em relação à acusação particular.
Esse magistrado acrescenta ainda:


"Trata-se de um direito disponível competindo à defesa aceitar ou não o juízo de indiciação" formulado pelo acusador.


Só que esse poder oferecido ao acusado de dispôr da relação processual surgida contra a sua vontade com a formulação de uma acusação pela prática de um crime não lhe interessará nada e para ele representaria uma sujeição ao seu acusador com uma série de consequências bastante graves para ele. Na verdade o pedido de abertura da instrução envolveria para ele despesas e incómodos e deixar seguir o processo para julgamento acarretaria para ele a sujeição imediata a medidas coactivas e, posteriormente, a sujeição a um julgamento público, que lhe não interessaria.


Acontece ainda que essa interpretação não tem qualquer apoio no Código de Processo Penal.


Antes de estar instituído o actual regime democrático, numa altura em que o país estava sendo governado sem Constituição e sem Parlamento, foi publicado o decreto-lei n. 605/75, de 3 de Novembro, que criou o inquérito policial e deu ao artigo 389 do Código de


Processo Penal de 1929 a redacção seguinte:


A acusação só não será recebida quando o facto não for punível, se achar extinta a acção penal ou a arguido for inimputável.


Por força desse preceito o juiz nos processos correccionais (esse preceito não era aplicável aos processos de querela) não podia deixar de receber a acusação por falta de indícios. É esse o regime legal que o acórdão fundamento vê como instituído a avaliar pela interpretação que dá ao artigo 311 n. 2 alínea a) do Código de Processo Penal de 1987. Mas essa interpretação não é aceitável, pois, para começar contraria a letra da lei por ser restritiva sem qualquer razão que o justifique; e também não está de acordo com o espírito da lei, como o demonstra a evolução legislativa.
Esse artigo 311 n. 2 alínea a) tem como fonte, não a redacção que o artigo 389 do Código de Processo Penal de 1929 foi dada pelo Decreto-Lei n. 605/75, de 3 de Novembro, mas o artigo 390 n. 2 do mesmo código na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n. 377/77, de 6 de Setembro, embora utilizando uma terminologia diferente.


O Decreto-Lei n. 377/77 foi promulgado para dar satisfação a uma exigência estabelecida na redacção primitiva do n. 3 do artigo 293 da Constituição, onde se prescrevia:


"A adaptação das normas anteriores atinentes ao exercício dos direitos, liberdades e garantias consignadas na Constituição estará concluída até ao fim da 1 secção legislativa". E disso se dá conta no n. 1 do relatório desse decreto-lei, que refere destinar-se esse diploma a "adaptar a legislação processual penal às regras mínimas em matéria de direitos,

liberdades e garantias" aos preceitos constitucionais.

Mal se compreenderia então que na vigência da mesma Constituição

viesse a ser introduzido no Código de Processo Penal de 1987 o regime processual penal do Decreto-Lei n. 605/75, que havia sido substituido pelo Decreto-Lei n. 377/77 por incompatível com os novos princípios estabelecidos dessa Constituição em matéria de direitos, liberdades e garantias.
Como se pode ver do relatório que precede o articulado do Código de Processo Penal de 1987, mais precisamente no n. 4-I, nesse novo código pretendeu-se dar relevo à tradição processual penal portuguesa. E não há duvida de que, relativamente aos poderes conferidos ao juiz de receber ou rejeitar a acusação, o regime tradicional, estratificado ao longo da vigência do Código de Processo Penal de 1929, foi o restabelecido pela redacção que ao seu artigo 390 n. 2 foi dada pelo Decreto-Lei n. 377/77, de 6 de Setembro, que pôs termo ao efémero regime do Decreto-Lei n. 605/75, no qual passou a ser vedado ao juiz deixar de receber a acusação por insuficiência de prova indiciaria; mas

isso apenas em processo correccional.

O n. 2 alínea a) do artigo 311 respeita a todas as causas de direito substantivo susceptíveis de inviabilizar a acusação, designadamente a insuficiência de indícios probatórios dos factos, a não punibilidade dos mesmos por variadas razões, inclusive, a inimputabilidade do acusado, a prescrição do procedimento criminal, etc.. A formula usada nesse preceito tem a vantagem de abranger essas causas sem referir, concretamente, nenhuma delas, não se correndo, assim, o risco da omissão de alguma.
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e fixar, como obrigatória, a jurisprudência seguinte:


A alínea a) do n. 2 do artigo 311 do Código de Processo
Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciaria.
Não há lugar ao pagamento de custas e taxa de justiça.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 1993

Alves Ribeiro,


Ferreira Vidigal,


Ferreira Dias,


Pinto Bastos,


Sá Nogueira,


Abranches Martins,


Coelho Ventura,


Guerra Pires,


Sousa Guedes,


Sá Ferreira,


Lopes de Melo (vencido, por ter entendido que a alínea a) do n. 2 do artigo 311 do Código de Processo Penal não permite a rejeição da acusação, pelo juiz do julgamento, com base na apreciação desses indícios; pelos fundamentos constantes das alegações do Ministério Público publicadas na "Revista do Ministério Publico", n. 51, paginas 99 a 107).
Decisões impugnadas:


- Acórdão de 91.01.16 da Relação de Coimbra;


- Acórdão de 92.01.07 da Relação de Évora.