Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2502
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIME EXAURIDO
TENTATIVA
ACTOS DE EXECUÇÃO
TESTEMUNHA
Nº do Documento: SJ200809030025053
Data do Acordão: 09/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - A infracção prevista no art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, constitui o que a doutrina tem apelidado de crimeexaurido”, “excutido” ou “de empreendimento”, em que o resultado típico se alcança logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo.
II - Na verdade, a previsão molda-se em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados, que podem ir de uma mera detenção à venda
propriamente dita. Com tal progressividade pretende-se abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de droga.
III - Tal preocupação, de perfil transversal, concretiza-se com a integração vertida em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental daquele art. 21.º, ou seja, o art. 24.º, no sentido agravativo, e o art. 25.º, no sentido atenuativo.
IV - Lateralmente, com tal estrutura progressiva, aceita-se que a natureza de crime de perigo abstracto do ilícito criminal referido no art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, se traduz numa antecipação da tutela penal, independentemente da efectiva lesão do bem jurídico em causa – a saúde pública –, antecipação cifrada na punição dos primeiros actos de execução do agente.
V - Assim, não se exige, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da globalidade da acção projectada pelo agente. Porém, a consumação exige que se dê por provada, pelo menos, uma das ocorrências ali referidas – cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar, ou ilicitamente deter
produto estupefaciente –, não bastando o início de um qualquer processo executivo para se verificar a consumação. Consequentemente, também a tentativa de tráfico se deve reportar
a um desses actos.
VI - Por isso, não oferece crítica a decisão que considerou que não tinha qualquer virtualidade em termos de integração do tipo legal em apreço, sob qualquer uma das formas possíveis, a actuação de AP – que, por tal razão, não foi constituída arguida no processo e nele prestou depoimento como testemunha –, a quem foi proposto o transporte, desde o Brasil até Portugal, de cocaína dissimulada no corpo, em troca da quantia de € 5000, proposta que, inicialmente,
aceitou sob condição de lhe ser entregue metade do pagamento ainda em Portugal, acabando, mais tarde, num segundo contacto, por recusar ao não ver satisfeita a sua exigência.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão de primeira instância que, pela prática do crime de tráfico previsto e punido nos termos do artigo 21 do Decreto Lei 15/93 o condenou na pena de seis anos de prisão.
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:
1º O arguido não viu nenhuma das suas posições atendidas no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Évora.
2° Na verdade este confirmou "in totum" o acórdão de 1 ° instância.
3° As explicações do Tribunal" a quo", com todo o respeita não demoveram o arguida da sua convicção na maioria dos seus pontos, pelo que este continua a achar-se com razão.
4° Na verdade, e ao contrário do referido no acórdão em apreço, nenhum outro depoimento para além do da testemunha BB, incrimina o recorrente.
5° Aliás, nem sequer vem indicada qualquer outra prova que consubstancie a sua alegada actividade delituosa.
6° Entende o arguido que desde inicio o estatuto processual desta testemunha deveria ser o de arguida, com todos os deveres e obrigações dai decorrentes.
7° Entendeu o tribunal que a conduta dada como provada da testemunha se situava no plano das intenções e assim sendo, não havia lugar à sua constituição como arguida.
8° Ora, salvo o devido respeito, desde o momento que a testemunha BB prestou declarações em inquérito, deveria tê-lo sido como arguida.
9° A sua actuação não se situou no plano do desígnio ou ideia de cometer um crime.
10° É que no mínimo os actos preparatórios de traficância, (nos quais se incluí o dinheiro recebido para tal e nunca devolvido, a lição para saber como trazer o produto estupefaciente, o aguardar o telefonema para embarcar) que só foram interrompido quando chamada a depor no inquérito pelo OPC .
11 ° Estamos perante a figura jurídica a que alude o art 22 nº2 do C.P, ou seja no plano da tentativa, ou ainda se assim não se entender face a actos preparatórios um ou outros punidos neste tipo de crime exaurido.
12° Para se aferir tal situação, bastará para tanto confrontar o depoimento de fls. 471 a 473 e 932 e 933, ou o produzido em audiência de julgamento na sessão de 20 de Novembro cassete 4 rol. 0251 a 1285.
13° Insiste-se que houve urna estratégia de negociação processual por troca com a colaboração em sede de prova.
14° É que como se reitera as declarações prestadas por alguém que não foi indevidamente constituído arguido, caem sob a alçada da proibição de valoração, nos termos do art 58 nº4 do CPP, que aproveita a terceiros eventualmente criminosos.
15° As declarações prestadas em julgamento por qualquer outra testemunha ou arguido envolvem o arguido na traficância e não se diga que as declarações prestadas perante o JIC, atinente ao CC lidas em audiência apontam para a traficância do recorrente. É que este explica claramente em sede de julgamento o porque dessas respostas no 1 ° interrogatório.
16° No recurso sindicado, entende o tribunal não se ter o arguido cumprido o disposto no art 412 nº 3 do CPP, sendo que se tal aconteceu deveria ter convidado o recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões.
17° Contudo, cuidamos que não, pois a referências identificativas das cassetes é quanto basta para a questão controversa reclamada.
18° É que o que está em causa são dois depoimentos divergentes, o do arguido e da testemunha a que temos vindo aludir.
19° Da totalidade de cada um dos depoimentos resultou no plano dos factos do "thema probandi" o contrário do outro.
20° Assim sendo é desta evidente confrontação que resulta não ter o tribunal de 1° Instância esclarecido porque razão optou pelo depoimento da testemunha e não pelo do arguido.
21° Entende-se no acórdão tido em mira que o art 374 n02 do CPP, não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito.
22° Pelo contrário, num estado democrático e no respeito do efectivo direito de defesa consagrado no art 32 nº1 e 210 nº1 da CRP, exige-se não só a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, mas fundamentalmente, e expressão tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e direito que fundamentaram a decisão.
23° A fundamentação deve ser tal que intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior, o exame do processo lógico racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe o art 410 nº2 do CPP.
24° O acórdão não contêm o quê, do passado em audiência, em que se determinou essa convicção, e muito menos o como da sua formação, no que acórdão de 1 ° instância foi omisso, e fui sufragado pelo tribunal" a quo"
25° Há pois que concluir com inteira segurança, que o douto aresto em recurso sufragou o incumprimento pelo tribunal de 1 ° Instância do art 374 nº2 do CPP com legais consequências.
26° Pese a decisão do Tribunal da Relação de Évora, mantêm o arguido que resulta insuficiência da matéria dada como provada para a sua condenação.
27° Nem a referencia aos pontos 4° e 9° dos factos dados como provados, altera tal posição.
28° É que falta dar-se como provado elemento subjectivo do tipo, ou seja que o arguido agiu livremente, sendo certo de que do ponto nº4 e 9 dos factos dados como provados tal não resulta, mantendo o acórdão da Relação a violação do disposto no art 410 nº2 a) do CPP
29° É certo não ter o arguido apresentado grandes fundamentos para a alteração da medida da pena.
30 Contudo, face à matéria dada como provada, ao facto de a droga não ter chegado a circular, à relativa pouca quantidade de produto estupefaciente e conjuntamente com a idade do arguido, uma pena mais perto do limite mínimo, seria mais adequado ao fim as penas.
Respondeu o Ministério Público defendendo a inadmissibilidade da decisão recorrida.
Nesta instância o ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Os autos tiveram os vistos legais
*
Cumpre decidir.
Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
1.Em data não concretamente apurada mas anterior a 7.11.2004, os arguidos CC e AA, delinearam um plano para trazer cocaína do Brasil, tendo aquele proposto ao arguido Nuno, que já se vinha dedicando à venda de cocaína, pelo valor de €30,00 a €35,00 a grama, após fazer o respectivo "corte" com Marticária, ser este a deslocar-se para esse efeito a este país, o que DD aceitou.
2. Então DD contactou BB propondo-lhe que o acompanhasse ao Brasil com vista a trazer parte da cocaína dissimulada no corpo, recebendo a quantia de €5.000,00, o que esta aceitou desde que recebesse metade do pagamento ainda em Portugal.
3.Por seu turno, CC, marcou a viagem e instruiu o arguido Nuno sobre o local onde ficaria alojado, a quem iria adquirir a cocaína e como deveria proceder ao acondicionamento desta, tendo-lhe dado o dinheiro para pagar a viagem sua e da acompanhante e ainda uma quantia para gastar no Brasil.
4. Após o contacto de DD com BB esta encontrou-se, uma vez com CC e outra com AA. Tendo o primeiro explicado à mesma a forma como deveria dissimular a cocaína no corpo. E o segundo tentado convencê-la a aceitar fazer a viagem sem receber metade do valor proposto, o que não logrou.
5 . Face à recusa de BB, DD contactou EE a quem fez a mesma proposta que antes havia feito àquela, tendo esta aceite, mediante o pagamento de €2.500,00 no regresso da viagem.
6 . Em execução do descrito plano, DD e EE embarcaram no dia 7.11.2004 para o Brasil, regressando a 12.11.2004 , pelas 11,00 horas, após lhe ter sido entregue, neste mesmo dia, horas antes da partida, a cocaína por um indivíduo que o arguido CC previamente havia contactado e ao qual forneceu o contacto telefónico do arguido DD e a identificação do hotel onde este se encontrava alojado.
7. Aquando da detenção no aeroporto de Lisboa, o arguido DD tinha guardada entre as pernas uma porção de cocaína em balada em forma de chouriço, com o peso liquido de 296,100 gramas.
8 . E arguida EE, para além de transportar entre as pernas uma porção de cocaína embalada em forma de chouriço com o peso de 359,300 gramas, trazia introduzida na vagina outra embalagem de cocaína com o peso de 137,400 gramas.
9. Sabiam os arguidos AA, CC, DD e EE que a detenção de produto estupefaciente, designadamente cocaína, é proibida e punida por lei, e pese embora tal conhecimento levaram a cabo a conduta supra descrita.
10. Aquando da sua detenção o arguido CC tinha em seu poder a quantia de €1.455,00, sendo parte constituída por sete maços de €100,00, 23 cartões para utilização de cabines telefónicas e um passaporte.
11. AA foi condenado por decisão proferida nos autos de processo nº113/94 da 7' Vara Criminal de Lisboa, pela prática de um crime de tráfico substâncias estupefacientes, na pena de seis anos e seis meses de prisão, por decisão de 2.2.1994.
12 . CC, foi condenado: por decisão proferida nos autos de processo nº786/90 do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, pela prática de um crime de evasão, na pena de 7 meses de prisão; por decisão proferida nos autos de processo nº2/92 do 3º Juízo Criminal de Lisboa, pela prática de um crime de roubo e ofensas a funcionário, na pena oito anos e um mês de prisão; por decisão proferida em 13.4.2000, nos autos de processo nº6/200 da 3il Vara Criminal de Lisboa, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 5 anos de prisão.
13 . DD, foi condenado: por decisão proferida nos autos de processo nº8/98 da Vara Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de um anos; por decisão proferida nos autos de processo comum colectivo nº123/99 da Vara Mista do Tribunal Judicial de Setúbal, pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
14 . As arguidas FF e EE não têm antecedentes criminais.
15 . O arguido AA não tem qualquer actividade profissional, tendo-se dedicado em tempos a negócios de compra e venda de automóveis.
16. Tem a frequência do 5º ano comercial.
17 . O arguido CC vivia maritalmente com a arguida FF e um filho dele com 18 anos de idade.
18 . Estava sem trabalhar desde Outubro de 2003, altura até à qual trabalhou na empresa Sadocalçada.
19 No ano 2000 procedeu à venda, em conjunto com os restantes comproprietários de um imóvel, situado no Laranjeiro, pelo preço de dezasseis milhões de escudos, vivendo da parte que lhe coube durante determinado período.
20 . O arguido tem como habilitações a frequência do 10º ano de escolaridade.
21 . O arguido DD era consumidor de produto estupefacientes desde os 14 anos de idade, sendo cocaína o que consumia, inalada ou fumada em quantidades que por vezes atingiam as 3 gramas por dia.
22. Pouco tempo antes dos factos, após ter recaído no consumo de produto estupefaciente, separou-se da mulher e passou a viver com os pais.
23 . Após ter sido detido, inseriu-se num programa de desabituação de estupefacientes e inserção no Centro Desafio Jovem, com resultados até à data positivos, mostrando empenhamento e no processo terapêutico.
24 . Três meses antes dos factos a arguida EE passou a viver sozinha, tendo ido residir para o Algarve por aí ter iniciado um contrato de trabalho no Verão de 2004, ocasião em que conheceu o arguido DD com quem iniciou uma relação de namoro.
25 . A arguida cresceu até aos 12 anos sem a mãe.
26 . Aceitou fazer a viagem pelo deslumbramento que para si constituía ir ao Brasil e pelo dinheiro que iria receber, sendo que nessa altura já havia terminado o contrato de trabalho acima referido.
27 . Actualmente a arguida vive na companhia do padrasto e de uma irmã, tendo a mãe saído de casa há alguns meses.
28 . Encontra-se a arguida sinceramente arrependida.
29 . Tem a seu cargo a execução das tarefas domésticas e trabalha na padaria onde trabalha o padrasto.
30 Os arguidos CC, DD e EE confessaram parcialmente os factos da acusação.
Não se provou da acusação que:
1- AA e CC delinearam um plano conducente à introdução e difusão em território nacional de produto estupefaciente e que consistia em aproveitar as viagens ao Brasil em vôo «charter » aproveitando os descontos das campanhas promocionais e beneficiando do menor controlo a que tais vôos estavam sujeitos, para adquirir produto estupefaciente que depois dissimulavam no corpo e introduziam em território nacional, o que passaram a fazer de forma concertada.
2- AA, CC e FF, viajavam amiúde para o Brasil, ali adquirindo quantidades volumosas de produtos estupefacientes" mister, cocaína, a um individuo conhecido por "Cácá" ou "Jocimar" que depois forneciam a elementos de confiança designadamente a DD, para posterior venda a terceiros, evitando eles próprios o contacto com consumidores directos.
3- Nuno pagava a CC por cada grama de cocaína, um valor entre 25,00 a 35,00 euros, embora o produto lhe fosse entregue à consignação, pelo que só efectuava este pagamento depois de efectuar o "corte" do poduto e de o vender a outros consumidores, sendo que efectuava o referido corte acrescentando-lhe igual quantidade de um produto de "corte" de modo a duplicar a quantia de produto e obter algum para seu consumo.
4- Posteriormente encontrava-se com CC para receber mais produto estupefaciente e para lhe fazer entregas intercalares de pagamentos .
5- A determinada altura, por forma a reduzir os riscos de serem detectados, AA e CC resolveram recorrer a «correios», isto é, indivíduos que transportassem produto estupefaciente com eles a troco de dinheiro.
6- Para tanto, aliciavam toxicodependentes e pessoas que soubessem precisar de dinheiro para realizarem as referidas viagens, efectuando com os mesmos contactos directos a fim de apurar da sua idoneidade para tal transporte e se tinha um aspecto que não levantasse suspeitas.
7 - Numa primeira fase, CC e FF, na companhia um do outro ou separados, acompanhavam os «correios», no transporte do produto estupefaciente entre o Brasil e Portugal, por forma a controlarem a transacção efectuarem o pagamento ao respectivo fornecedor.
8- Fizeram-no, designadamente, quanto a GG, a quem aliciaram para servir de «correio».
9- A arguida FF viajou para o Brasil com o objectivo de acompanhar HH e II que ela e o arguido CC haviam aliciado para servir de correios.
10- O DD era um elemento preponderante na distribuição de cocaína em território nacional, pelo que os arguidos AA, CC e DD começaram a preparar mais duas ou três novas viagens ao Brasil.
11- Os telemóveis, viatura, dinheiro equipamento informático e outro que foram apreendidos aos arguidos estavam directamente relacionados com a actividade de tráfico.
12- Tal actividade tráfico decorreu desde Julho de 2004 até à data da detenção.
A primeira questão suscitada nos presentes autos prende-se com a aplicação da lei no tempo em virtude da alteração da lei adjectiva. No que respeita regula o artigo 5 do Código de Processo Penal que proclama a imediata aplicação da lei processual penal, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.
Á regra geral sucedem duas excepções consignadas no número 2 do normativo em causa e que se referem:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa.
b)Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
Pela forma citada consagra-se o principio “tempus regit actum” o qual se conjuga com o princípio do respeito pelo anterior processado.
Sobre tal conjugação se pronunciou Castanheira Neves referindo que o problema da aplicação das leis no tempo só surge, portanto, porque certas circunstâncias podem, porventura, justificar o pretender-se que esta distribuição natural de tempos e domínios de vigência não coincida com o campo de aplicação das normas a que esses domínios de vigência se referem.
Por outras palavras, acrescenta, pode em certos casos pretender-se que a "solução natural" sofra excepções: ou aplicando-se a lei a factos que decorreram num período anterior ao da sua vigência (i. é, retroactivamente), ou deixando de aplicar-se a factos que se verificam nesse período (não sendo assim, ou nesses casos, a lei de aplicação imediata). E porque a primeira pretensão vai geralmente referida ao direito material - pretende-se submeter a uma nova e diferente apreciação um facto anterior ou os seus efeitos -, e a segunda tem sobretudo a ver com o direito processual - pretende-se ou põe-se a questão de saber se um acto ou situação processual embora actual, mas integrada na unidade de um processo que teve o seu início num período anterior de vigência, não deverá continuar a regular-se pela lei anterior -; porque é assim, porque essa pretensão excepcional relativamente ao direito material é o da retroactividade, e a pretensão excepcional relativamente ao direito processual é a de não aplicação imediata, é que se enunciam os princípios que se lhes opõem (i. é, que visam negar, em gerai, a validade e as excepções - para o princípio da não-retroactividade, para aqui o princípio da vem algo mais do que a solução natural - aquela que sem eles se imporia pela própria natureza temporal das leis na medida em que visam repelir em geral aquelas excepções.
Nestes termos, adianta o mesmo Mestre, o problema em direito processual (criminal) põe-se assim: "a lei só dispõe para o futuro", mas no "futuro", i. é, depois do início do seu domínio de vigência, é naturalmente só ela que dispõe - por outras palavras, é de aplicação imediata.
As excepções decorrem em primeiro lugar, do próprio princípio de que resulta que os actos e as situações processuais praticados e verificados no domínio da lei anterior terão o valor que essa lei lhes atribuir. Só que sendo eles actos e situações de um "processo" - a desenvolver, como tal, num dinamismo de pressuposto para consequência -, decerto que muitas vezes o respeito pelo valor desses actos e situações implicará o ter de aceitar-se o seu intencional desenvolvimento processual. E implicá-lo-á sempre que a nova regulamentação desses desenvolvimentos (os actuais) não puder integrar-se unitariamente com o sentido e valor dos actos seus pressupostos, se houver entre aquela nova regulamentação e este valor uma contradição normativa. Nesses casos o respeito pelo valor dos actos anteriores justifica uma excepção: o desenvolvimento processual desses actos continuará a ser regulamentado pela lei anterior. A menos que para a intenção de verdade e de justiça, porque esteja dominada a nova lei, seja intolerável a persistência da lei anterior.
Em segundo lugar, não fica excluído que se justifiquem excepções à aplicabilidade imediata da nova lei por aquelas mesmas razões que levam a excluí-la também em direito criminal - para dar plena eficácia aos princípios nullum crimen ... , nulla poena ... (recorde-se que a nova lei criminal já será de aplicação imediata se daí resultar benefício para o autor do delito). É assim que se deverá excluir a aplicação da nova lei processual sempre que essa aplicação a um processo pendente pudesse traduzir-se indirectamente numa incriminação ou numa agravação, insusceptíveis de se verificarem pela aplicação da lei processual anterior - pense-se, p. ex., na atribuição do processo agora a um tribunal especial cujo estatuto fizesse prever aquelas consequências.
O sentido desta justificação dar-nos-á também, em terceiro lugar, o critério por que se deverá, no problema em causa, decidir a qualificação (como material ou processual) de alguns institutos mistos de efeitos materiais e processuais. Assim 1) a prescrição (fundamento de exclusão de pena e pressuposto processual) 2) a denúncia e a acusação particular (condição de punibilidade e condições de procedibilidade); 3) o caso julgado (extinção do jus puniendi e excepção processual); 4) a exterritorialidade (fundamento de exclusão de punibilidade e impedimento de procedibilidade)
Pronunciando-se sobre o tema em apreço Taipa de Carvalho acentua a distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais materiais formais tornado tal distinção o eixo da resolução da questão de aplicação da lei processual penal no tempo.
Insurgindo-se contra a aceitação superficial do principio da aplicação imediata das leis processuais penais na sua globalidade o mesmo Autor chama á colação os cultores de visão imediatista, segundo a qual toda a norma que directamente condicionasse (p. e., queixa e prescrição), orientasse (p. e., espécies de prova) ou pressupusesse (p. e., prisão preventiva) o processo era uma norma exclusivamente processual, partiam para a afirmação indiscutível do princípio da aplicação imediata.
Tal aplicação imediata, no seu entender, menospreza as rationes jurídico-política e politico-criminal da aplicação da lei penal favorável e descura a distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais. Esquecem-se, adianta Taipa de Carvalho, que as primeiras (de que são exemplos, como já referimos, a queixa, a prescrição, as espécies de prova, os graus de recurso, a prisão preventiva, a liberdade condicional) condicionam a efectivação da responsabilidade penal ou contendem directamente com os direitos do arguido ou do recluso, enquanto que as segundas (de que são exemplos as formas de citação ou convocação, a redacção dos mandados, as formas de audição e registo dos intervenientes processuais: estenografia, video, etc., prazos de notificação do arguido, formalidades e prazos dos exames periciais, formalidades e horários das buscas), regulamentando o desenvolvimento do processo, não produzem os efeitos juridico-materiais derivados das primeiras.
De tal pressuposto arranca o mesmo Autor para afirmar a sujeição das normas processuais penais materiais ao princípio constitucional da aplicação da lei penal favorável: proibição da retroactividade desfavorável e imposição da retroactividade favorável (CRP, Arts. 18.0, nº 2 e 3, 29.nº 4 - 2.a Parte, 282. nº3 2ª. Parte; CP, ART. 2º, nº4)
Argumenta com a circunstância de a ratio de garantia política do cidadão face a possíveis decisões legislativas ou judiciais arbitrárias ou mesmo persecutórias, ao mesmo tempo que determinou a consagração constitucional da proibição da retroactividade da lei penal posterior desfavorável, determina a sua aplicabilidade às referidas normas processuais penais materiais - ubi eadem ratio, ibi eadem iuris dispositio. Também nestas, os direitos do arguido e do recluso estão em causa, não deixando, portanto, de estar sempre presente a possibilidade de o poder punitivo tentar servir-se de alterações legislativas posteriores ao tempus delicti para agravar retroactivamente a situação jurídica dos referidos arguido ou recluso.
A ratio político criminal constitucionalmente consagrada na lei fundamental portuguesa conduz, por sua vez, á aplicação retroactiva das normas processuais penais materiais favoráveis. Favoráveis, quer quando da sua aplicação resulta a impossibilidade ou redução das possibilidades de aplicar a pena (caso do encurtamento dos prazos de prescrição ou da exigência de queixa) em consequência da nova concepção politico criminal que a lei nova incarna quer quando da sua aplicação aumentam direitos de defesa do arguido (p. e., aumento dos graus de recurso ou eliminação da suficiência probatória de determinado meio de prova) ou as possibilidades de o recluso ver, efectivamente, reduzida a pena (p. e., aumento do período de liberdade condicional).
Ainda segundo o mesmo Autor o principio da irretroactividade desfavorável e da retroactividade favorável da lei penal- em que se incluem as normas processuais penais materiais - afirmado no citado art. 29º da Constituição- não será mais do que a concretização, no campo jurídico-penal, das razões de garantia politica e da máxima restrição possível das intervenções estaduais nos direitos, liberdades e garantias, proclamadas pelo artigo 18 do mesmo diploma fundamental.
Deste modo, tem de concluir-se que a sucessão de leis processuais materiais rege-se pelos princípios constitucionais de proibição de retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da retroactividade da lei penal favorável. Estes princípios que foram, pelo art. 29 da CRP elevados à dignidade penal, estão consagrados no art. 2º nº4 do Código Penal.
No desenvolvimento do seu argumentário conclui que o artigo 5 do Código de Processo Penal tem um campo de aplicação limitado ás normas processuais formais o que aliás é expresso na sua afirmação de que “apesar de o inovador art. 5º do novo Código de Processo Penal de 1988 (421) referir, no n. ° 2-a), a aplicabilidade da lei processual vigente no inicio do processo penal, quando da aplicação imediata. da lei nova resultar um «agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa», há que afirmar claramente que todo este artigo só é aplicável às leis (normas) processuais penais formais. Nestas, sim, o princípio geral é o da aplicação imediata - tempus regit actum (CPP, 5.°, 1 -, sendo a excepção a aplicação da L.N. só aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor, o que significa a ultraactividade da LA (CPP, 5.°, 2, b))”.
Tese sem dúvida sugestiva, e acentuando uma destrinça fundamental, tem contra si a circunstância de efectuar uma interpretação restritiva do artigo 5 do Código de Processo Penal que não tem fundamento na letra ou no espírito da lei e que, ao invés do adequado método dedutivo de interpretar a lei e concluir, antes elabora, em primeiro lugar, a conclusão para em seguida induzir a interpretação adequada a tal conclusão.
Na verdade, a questão de aplicação de aplicação da lei processual penal é regulada no citado artigo 5 em qualquer uma das facetas policromáticas que apresenta e quer estejam em causa normas processuais materiais quer formais. Como já bem acentuava Figueiredo Dias o eixo fundamental de decisão da mesma questão é a posição processual do arguido e, nomeadamente, o seu direito de defesa.
Na verdade, para este Mestre a aplicação temporal da lei processual penal acentua-se em regra que ela "só dispõe para o futuro", mas que esta regra será respeitada logo que a lei nova se aplique a actos processuais que tenham lugar já no seu domínio de vigência, mesmo que o processo tivesse sido instaurado (ou a infracção a que se refere tivesse sido cometida) no domínio da lei antiga.
Para alguns, adianta, o princípio da legalidade só tem incidência substantiva e não processual, a que acresceria o carácter instrumental e a natureza publicistica das normas processuais. Quando muito haveria que ressalvar aqui, como em geral, o valor que a lei antiga atribuiu a actos praticados e a situações verificadas no seu domínio de vigência e que agora não deveria ser posto em causa
Esta doutrina não merece o inteiro aplauso de Figueiredo Dias que, pronunciando-se sobre a mesma, refere que é a dominante; mas não parece que seja a melhor.
Assim, adianta, logo que a circunstância de o processo ser constituído por uma longa e complexa tramitação, em que os diversos actos se encadeiam uns nos outros de forma por vezes inextricável, pode conduzir a que se deva aplicar uma alteração legislativa processual apenas aos processos iniciados na vigência da lei nova - mesmo que a solução contrária não conduza directamente a pôr em causa o valor de um certo acto ou situação constituído à sombra da lei antiga
Em segundo lugar, e sobretudo, sabemos já que - para além do nulo valor da invocação da <<instrumentalidade» do processo - o princípio jurídico-constitucional da legalidade se estende, em certo sentido, a toda a repressão penal e abrange, nesta medida, o próprio direito processual penal. Aqui deparamos com o essencial: tal como vimos suceder no problema da analogia, importa que a aplicação da lei processual penal a actos ou situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infracção cometida no domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da legalidade. Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que ocorra em processo pendente ou derive de um crime cometido no domínio da lei antiga, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa.

Temos, assim, por adquirido que, face ao artigo 5 do Código de Processo Penal, a não aplicação imediata da alteração cominada no processo penal pela Lei 48/87 apenas se poderá sufragar numa das duas situações previstas no número 2 ou seja:
Quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo
Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido nomeadamente um limitação do seu direito de defesa.


O direito de defesa do arguido integra um complexo de direitos parcelares que constituem, em última análise, o seu estatuto processual. Para Figueiredo Dias a concessão daqueles autónomos direitos processuais, legalmente definidos, corresponde ao reconhecimento do arguido como sujeito, e não como objecto de processo. Os actos processuais do arguido deverão ser, assim, expressão da sua livre personalidade e da cidadania.
Como sujeito processual penal assistem ao arguido relevantes direitos entre os quais o direito de audiência; o direito de presença; direito de assistência do defensor e direito à interposição de recursos. Aspecto importante da sua defesa material é exactamente o seu direito de, em qualquer momento e em qualquer fase do processo, apresentar requerimentos exposições ou memoriais que tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais, desde que se contenham dentro dos limites do processo, e tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais.
O facto de a lei nova retirar ao arguido o direito a um recurso que estava inserido no seu complexo de direitos e garantias, se aplicada a lei antiga, leva-nos a considerar que, por aplicação daquele artigo 5 é a mesma lei aplicável ao caso vertente sendo admissíveis os recursos interpostos.
Assim entende-se que improcede a questão prévia suscitada pelo Ministério Público



I
O recorrente renova a questão da existência de uma proibição de prova uma vez que a testemunha BB, essencial na formação da convicção do Tribunal, deveria ter sido constituída arguida, considerando que esta praticou actos de execução de um crime que decidiu cometer e não prosseguiu os seus intentos por motivos alheios á sua vontade.
No que concerne admite-se, como ponto de partida, que as declarações probatórias prestadas por alguem que não foi, indevidamente, constituído arguido, caem sob a alçada da proibição de valoração do artigo 58 nº4 do Código de Processo Penal. (1)
Assim sendo o cerne da questão suscitada prende-se, em primeira linha, com a configuração da actuação da testemunha em causa na dinâmica dos factos sob julgamento e, nomeadamente, saber se a mesma deveria, ou não, ter sido constituída arguida. Por outras palavras perguntar-se-á se os actos por si praticado integram a figura dos actos preparatórios da prática de um crime, e como tal não puníveis, ou integram já o instituto da tentativa.
Respondendo a tal questão o recorrente entende que a mesma testemunha praticou actos de execução de um crime que decidiu cometer e não prosseguiu os seus intentos por motivos alheios á sua vontade. Ao argumentar por tal forma o mesmo recorrente omite por completo o explanado na decisão recorrida quando, a propósito de tal questão, se pronuncia pela existência de meros actos preparatórios.
Em termos dogmáticos o recorrente omite que o nº 1 do artº 22º do C.P. dispõe que a tentativa existe quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer sem que este chegue a consumar-se. E quanto aos actos de execução, são eles aqueles que, nos termos das alíneas do nº 2 do preceito, preenchem um elemento constitutivo de um tipo legal de crime; os actos que forem idóneos a produzirem o resultado típico, e os que “segundo a experiência comum, e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas na alíneas anteriores”.

A infracção do artº 21º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, constitui o que a doutrina tem apelidado de crimeexaurido”, “excutido” ou “de empreendimento”, em que o resultado típico se alcança logo, com aquilo que surge por regra como realização inicial do “iter criminis”, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo. A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita. Com tal progressividade pretende-se abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de droga.
Tal preocupação, de perfil transversal, concretiza-se, com a integração vertical vertida em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental daquele artigo 21, ou seja, o artigo 24 no sentido agravativo e o artigo 25 do mesmo diploma no sentido atenuativo.
Lateralmente com tal estrutura progressiva aceita-se que a natureza de crime de perigo abstracto, do crime do artº 21º citado, se traduz numa antecipação da tutela penal, independentemente da efectiva lesão do bem jurídico em causa, a saúde pública, antecipação cifrada na punição dos primeiros actos de execução do agente.
Não se exige, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da globalidade da acção projectada pelo agente. Porém, a consumação exige pois que se dê por provada, pelo menos uma das ocorrências ali referidas. “Cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qual quer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar, ou ilicitamente detiver” produto estupefaciente não bastando o inicio de um qualquer processo executivo para se verificar a consumação. Consequentemente também a tentativa de tráfico se deve reportar a um desses actos o que não se verificou no caso vertente.

Assim, não nos oferece qualquer critica a forma como a decisão recorrida definiu a actuação da testemunha em causa considerando que a aceitação condicionada da proposta criminosa formulada, seguida da sua recusa, não tinha qualquer virtualidade em termos de integração do tipo legal em apreço sob qualquer uma das formas possíveis.
Aliás, suponhamos, por mera hipótese, que todo o itinerário criminoso traçado pelos arguidos tinha terminado com a recusa da mesma testemunha em assumir o papel de correio de droga. Também aí não oferece dúvidas, a nosso ver, a inexistência de qualquer acto susceptível de integrar o artigo 22 nº2 do Código Penal.
Ainda numa outra perspectiva se poderia equacionar a hipótese vertente. Na verdade mesmo, pressupondo que a actuação da testemunha em causa detinha a potencialidade para configurar uma actuação criminosa, devendo conferir o estatuto processual de arguida, a verdade é que não se poderia afirmar a existência de uma conexão processual com o crime imputado ao recorrente nos presentes autos-artigo 24 do Código de Processo Penal-susceptível de provocar o impedimento a que alude o artigo 133 do mesmo diploma.
Não assiste, assim razão ao recorrente no que concerne á questão suscitada.


II
O recorrente vem suscitar a questão dos vícios a que alude o artigo 410 do Código de Processo Penal nomeadamente a insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada.
Reavivando a posição já expressa em plúrimos Acórdãos desta Secção Criminal (2) o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP. Assim, relembrando conceitos por demais sedimentados, em relação ao invocado vicio da sentença importa precisar que o C.P.P. de 1987 trata os vícios previstos no artigo 410 nº2 do Código Penal como vícios da decisão, e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente á exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.
Consubstancia-se, assim, o mesmo recurso num recurso de revista ampliada configurando a possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária á exposta pelo tribunal.
Não vislumbramos na análise da decisão recorrida, e só ela releva para o fim em vista, onde é que exista uma insuficiência dos factos para a decisão de direito
*
A decisão recorrida de fls 2600 e seguintes analisa com pormenor o argumentário exposto pelo recorrente sendo certo que o mesmo recorrente omite por completo a decisão recorrida.
Como bem aponta o Ministério Público o recorrente não impugna a decisão recorrida na sua lógica, rebatendo posições e explanando razões de discordância, mas represtina as razões que já tinha suscitado perante o tribunal da Relação, omitindo a pronuncia deste Tribunal sobre o mesmo tema. Saliente-se que sobre o facto de a decisão recorrida apontar o ponto 9 da matéria provada como consubstanciando o elemento subjectivo do crime, o recorrente não se pronuncia.
*
Para um cabal esclarecimento do recorrente impõe-se considerar que, no caso vertente a afirmação do tipo subjectivo da infracção pressupõe a demonstração da existência de dolo. No que concerne a este elemento subjectivo da infracção entendemos, na esteira da lição do Professor Figueiredo Dias, que o dolo é integrado por três elementos distintos:
l) Elemento intelectual;
2) Elemento volitivo;
3) Elemento emocional
O elemento intelectual é o conhecimento dos elementos objectivos do tipo; o elemento volitivo é a vontade de realização do tipo-de-ilícito objectivo (Querer a prática de certo facto ou querer a produção de um certo resultado); O elemento emocional é a especial atitude interior que se traduz na consciência da contraditoriedade ao direito que é manifestada no facto; a censurável posição da consciência ética do agente perante o desvalor do facto.
Nesta sequência os elementos intelectual e volitivo enquadram-se ao nível do tipo-de-ilícito, constituindo o tipo-de-ilícito subjectivo, e o elemento emocional ao nível do tipo-de culpa precisamente porque toda a culpa é culpa da atitude interior. O que se censura ao agente em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto uma atitude de contrariedade ou de indiferença ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente).
Para que se verifique um crime não basta, assim, que este preencha uma acção típica e que seja desvaliosa na sua objectividade, é necessário, ainda, que esta seja reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa. Parte-se do princípio juridico-constitucional da culpa em que não há pena sem culpa e culpa é fundamento e limite de toda a pena" A culpa parte do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, do tratamento do homem como um se livre e responsável valores estes fundamentais da constituição de um Estado de Direito.
A culpa consistirá, então, no juízo de censura dirigido ao agente que, tendo podido actuar segundo o dever, optou por agir ilicitamente evidenciando uma atitude contrária ao direito.
Ao longo da materialidade considerada provada são elencados os actos materiais praticados pelos arguidos e susceptíveis de integrar o tipo legal de crime imputado. Igualmente peremptório na afirmação do elemento volitivo e emocional é o ponto 9 da materialidade considerada provada.
Como pretender então colocar em causa a presença do elemento subjectivo da infracção a não ser por um mero exercício de especulação jurídica?
Improcede também neste ponto a alegação do recorrente.

*
III
O recorrente dedica um segmento das suas alegações ao que denomina impugnação das conclusões.
Aprofundando tal capítulo o recorrente entra decididamente na impugnação da matéria de facto o que lhe é vedado num recurso cujo objectivo é a matéria de direito. Em seguida coloca em causa a forma como o tribunal fundamentou a decisão em relação a um ponto concreto, mas estabelece uma incorrecta qualificação da patologia que entende existir classificando-a como erro notório relevante á face do artigo 410 do Código de Processo Penal
No que concerne ainda á impugnação elaborada importa, ainda, precisar conceitos e, nomeadamente, especificar qual o sentido da obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que hão de fundamentar a decisão.
A exigência expressa do exame crítico da prova situa-se exactamente nos limites propostos, ente outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal-Acordão de 13/2/1992- com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal colectivo se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobe as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido
Por essa forma acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema permitindo o reexame do processo lógico ou racional que subjaz á decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto.
Igualmente é certo que tal dever de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional-artigo 208-em relação ao qual ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira que é parte integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, ao menos quanto ás decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Constituição Anotada pag 799).
É pressuposto adquirido o de que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-se impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. O entendimento que a lei se basta com a mera indicação dos elementos de prova frustra a “mens legis”, impedindo de se comprovar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo portanto uma decisão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova. Tal entendimento assume assim uma concreta conformação violadora do direito ao recurso consagrado constitucionalmente.
Como refere Gianformaggio motivar significa justificar. E justificar significa justificar-se dar a razão do trabalho produzido admitindo como linha de principio a legitimidade das críticas formuladas ou seja a legitimidade de um controle (3).
Efectivamente, a exigência de motivação responde a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível o racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva

A concretização de tal obrigação de fundamentação em sede de motivação da sentença é formulada em termos lapidares pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1992 quando refere que : "A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência ''Ou seja, "trata-se ( .. .) de referir os elementos objectivos de prova que permitam constatar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte; e de indicar o íter formativo da convicção, isto é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, em especial na prova indiciária, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi irracional absurdo, por outra".
Também refere Paulo Saragoça da Mata (4) a fundamentação das sentenças consistirá: (a) num elenco das provas carreadas para o processo que se consubstanciará;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente.
Adianta o mesmo Autor que apenas desse modo se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente levante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).
A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor.
*
Considerando por tal forma temos que, em primeira análise, a tarefa do Tribunal da Relação ao apreciar a impugnação produzida em termos de matéria de facto incidiu, também, sobre a forma como o Tribunal de primeira instância exprimiu a lógica dedutiva que permitiu a aceitação de determinados factos em detrimento de outros. A questão será, então, a de saber se a decisão recorrida cumpriu o seu dever de investigar de indagar de uma forma precisa e detalhada a validade da impugnação produzida em relação a concretos pontos de facto.
A análise da mesma decisão imprime a conclusão de que tal obrigação foi efectivamente cumprida. Existiu uma compreensão unitária e superior efectuada pela decisão recorrida sobre a mesma prova que conduziu a um convencimento que a sentença de primeira instância se mostra sustentado/fundamentada em termos de motivação.
Na verdade, e como se transcreve a fls 2585 e seg existiu o cuidado de dar visibilidade e transparência ao processo pelo qual o tribunal fundamentou a sua convicção privilegiando determinados méis de prova em relação a outros e conexionando-os por forma a obter uma visão global e unitária em relação á matéria da acusação. Para alem de tal limite, que permite ao arguido uma percepção da formação de tal convicção, exercendo o seu direito de impugnar, não é exigível que o tribunal venha minuciosamente explicitar em relação a cada um dos minúsculos actos que se inscrevem na dinâmica factual que lhe é proposta qual a forma como formou a sua convicção e porque motivo optou por um meio de prova em detrimento de outro.
Não foram violados quaisquer dos ónus que impediam sobre a decisão recorrida em termos de fundamentação ou pronuncia e não merece censura a conclusão nela expressa.


IV
No que respeita ao enquadramento jurídico da conduta do recorrente estamos em face de questão não suscitada pelo recorrente junto do Tribunal da Relação.
Significa o exposto que o recorrente pretende colocar agora questão que não colocou oportunamente por forma a ser analisada na decisão recorrida.
Reafirma-se a jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não para obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.
Na verdade, os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim para apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso
Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento em recurso não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas a admitidas alegações escritas)
Não pode, assim, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre. No caso, o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer de questões que não foram suscitadas perante a 2.ª Instância, de cuja decisão agora se recorre.

V
Resta por último a dosimetria da pena aplicada em relação á qual o recorrente traça um excelente repositório dogmático intitulado “A situação politico criminal da pena privativa de liberdade em Portugal”
Porém em concreto, e como bem afirma, é verdade não ter o recorrente apresentado na sua motivação grandes elementos para a pena ser alterada.
Concorda-se inteiramente com tal conclusão e, consequentemente, não se justifica tal alteração.

Termos em que decidem os Juízes que constituem esta 3ªSecção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto.
Custas pelo recorrente
Taxa de Justiça 9 UC


Lisboa, 3 de Setembro de 2008

Santos Cabral
Oliveira Mendes

____________________________________________________
1- Sufragando o entendimento de Medina de Seiça “O conhecimento probatório do co-arguido” pag 80
2- Processo 4463/07
3- Conf. Pefecto Andrés Ibanez “Acerca de la motivacion de los hechos en la sentencia penal
4- Jornadas de Direito Processual Penal