Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
296/03.6TBASL.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: COMBOIO
PRESUNÇÃO DE CULPA
CULPA DO LESADO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 503º, 570º
CÓDIGO DA ESTRADA, ARTIGOS 24º E 25º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE 9 DE OUTUBRO DE 2008, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 07B2399
Sumário :

1. Não são transponíveis para a circulação ferroviária as regras, constantes dos artigos 24º, nº 1 e 25º, nº 1, do Código da Estrada, segundo as quais os condutores devem regular a velocidade de forma a que possam parar no espaço livre e visível à sua frente e devem moderar especialmente a velocidade em espaços de visibilidade reduzida, como curvas.

2. Se a responsabilidade se basear em presunção de culpa, a culpa do lesado exclui o dever de indemnizar.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA e BB instauraram contra I...B... – Companhia de Seguros, SA, Rede Ferroviária Nacional – REFER, EP e CC uma acção na qual pediram a sua condenação solidária no pagamento de € 95.000,00, acrescidos de juros de mora contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito, e em síntese, alegaram que DD, respectivamente seu marido e seu pai, quando realizava trabalhos de substituição e pregação da via férrea ao serviço da ré REFER, foi atropelado mortalmente por uma máquina atacadeira de via e reguladora de balastro conduzida sob a direcção e no interesse da proprietária, a sociedade SAMAFEL, pelo réu CC; que o acidente se deu por culpa única ou, pelo menos, principal de CC; que na atacadeira seguia um maquinista da REFER, EE, responsável pela circulação da máquina, cabendo-lhe “indicar os locais e a velocidade a que a mesma se deve manter”, também “no interesse e sob a sua direcção da sua entidade patronal, a REFER EP”; que a REFER é a responsável pela segurança da via, que não assegurou; que a REFER tinha transferido a responsabilidade para a ré B...; que devem ser indemnizadas pelos danos não patrimoniais sofridos (€ 50.000,00 pelo dano da morte e € 20.000,00 e € 25.000,00 pelos próprios de cada uma das autoras, respectivamente).
Todos os réus contestaram. Quanto ao que agora releva, a ré REFER atribuiu à vítima a “culpa exclusiva” pelo acidente; o réu CC alegou ter cumprido todas as regras definidas para a circulação da máquina, que conduzia “com toda a atenção e todo o cuidado” exigíveis, atribuindo o acidente “à má organização de trabalho feito pela” REFER “e a circunstâncias fortuitas que ocorreram nesse momento”.
Pela sentença de fls. 513, a REFER foi condenada a pagar às autoras a quantia de € 25.000,00, a título de dano da morte, e de € 10.000,00 e € 7.500,00, pelos danos não patrimoniais sofridos por cada uma; a Companhia de Seguros B... e CC foram absolvidos do pedido.
Em síntese, a sentença entendeu que o acidente ficou a dever-se à REFER, responsável pelas condições de segurança do pessoal que trabalhava na via, por não ter sido accionado o avisador sonoro de aproximação de composição ferroviária à passagem da máquina, ou, caso tenha sido accionado, por não ter sido audível, o que revela violação de “uma regra de segurança fundamental”; mas que a vítima tinha culposamente concorrido para o acidente, por ter descurado as funções de vigilante que também lhe incumbiam. Assim, repartiu a responsabilidade em 50% para a vítima e 50% para a REFER, que foi condenada nos termos já referidos.
Quanto ao réu CC, a sentença observou que não se pode “estabelecer qualquer paralelo com a condução de veículos automóveis” e que não ocorreu “qualquer comportamento culposo” seu, “por não haver violação das normas constantes da instrução complementar de segurança nº 2/84, nem de outros deveres gerais de cuidado, sendo de afastar qualquer parcela de responsabilidade da sua parte”. Assim, apesar de “recair sobre o mesmo a presunção de culpa no acidente, nos termos do artigo 503º, nº 3 do C. Civil, tal presunção tem-se por ilidida. Acresce que o referido condutor vinha acompanhado de outro funcionário – FF – de quem recebia instruções, não se provando que tivesse agido contra as mesmas”.
A REFER recorreu. Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de fls. 685, foi anulado parcialmente o julgamento, “para ampliação da matéria de facto, devendo o tribunal ‘a quo’, produzida a necessária prova, responder ao seguinte quesito: Não foi accionado o dispositivo destinado a emitir um aviso sonoro de aproximação da atacadeira?”. No entanto, considerando que essa anulação parcial não tinha repercussão relativamente ao réu CC, a Relação confirmou a sentença na parte em que o absolveu do pedido.

2. Novamente recorreu a REFER, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, quanto a esta absolvição. O recurso foi recebido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

“1ª Vem o presente recurso de revista do acórdão prolatado pelo tribunal" a quo", na parte em que manteve a decisão de 1a instância que considerou ter o R. CC ilidido a presunção de culpa que sobre ele recaia na produção do acidente.
2ª Como se apurou na matéria provada este R. quando conduzia uma máquina na linha férrea veio a atropelar a vítima do que resultou o falecimento da mesma.
3ª Mais se apurou que este R. conduzia a máquina no interesse e sob a direcção da sua entidade patronal,
4ª na via estavam afixados sinais " S ", sinalização visual da existência de trabalhos na via, o local do acidente situa-se à saída de uma curva sendo visível a distância não inferior a 30 metros e,
5ª o R. não conseguiu imobilizar a máquina no espaço livre e visível à sua frente, antes de chegar ao local onde a vitima se encontrava .
6ª Diversamente do alegado pelo R. em sede de contestação não se provou que este, ao avistar a sinalização de trabalhos na via, tenha diminuído a velocidade da máquina e, reduzido ainda mais essa velocidade ao chegar à curva (resposta aos artgs.º 30 e 32 da B.I.), nem que tenha travado a fundo com o freio pneumático e o freio de emergência, logo que avistou a vítima ( resposta ao artg.º 35 da B.I.).
7ª Tendo em consideração a sinalização existente na via e a entrada em curva sem visibilidade podia e devia ter reduzido a velocidade,
8ª e, podia e devia ter accionado a travagem a fundo com o freio pneumático e o freio de emergência , logo que avistou a vítima.
9ª Não se podendo, assim, considerar que tenha ilidido, pelo menos totalmente, a presunção de culpa que sobre ele recai na produção do acidente, nos termos dos artgs.º 483 n° 1 e 503 n° 3 do C.Civil.
10ª Tendo, assim, a decisão recorrida violado a este propósito o disposto nos artgs.º 483° n° 1 e 503 n° 3 do C.Civil ao considerar que o R. CC ilidiu a presunção de culpa que sobre ele recaía.
11ª Consequentemente, devendo o acidente dos autos ser considerado como acidente de viação, deveria este R. ter sido considerado como exclusivamente culpado pelo acidente, nos termos do artg.º 503 n° 3 do C.Civil.”

Contra-alegou CC, concluindo que “As instâncias, depois de terem correctamente determinado a matéria de facto que serve de fundamento às decisões em causa, interpretaram e aplicaram correctamente o Direito, não tendo violado, designadamente, os artigos 487°, n.° 1, 496, n.° 3, 503°, n.° 3, ou 570°, n.° 1, todos do Código Civil, nem, tão-pouco, a Instrução Complementar de Segurança n.° 2/84, junta aos autos, motivo pelo qual, confirmando-se o acórdão recorrido, em especial na parte em que nela foi o recorrido absolvido do pedido (…)”.

3. Sem prejuízo da anulação parcial determinada pela Relação, vem provada a seguinte matéria de facto (transcreve-se da sentença):

“1. No dia 28 de Julho de 2000, na via-férrea da linha do sul, ocorreu um acidente (alínea A) da matéria assente).
2. Nele interveio uma máquina atacadeira de via e reguladora de balastro conduzida por CC, no interesse e sob direcção da sua proprietária, a sociedade Samafel, quando atropelou DD (alínea B) e C) da matéria assente).
3. No dia, hora e local indicado em A), DD procedia à pregação da via, ao serviço da Rede Ferroviária Nacional – REFER, EP( alínea D) da matéria assente).
4. Na via estavam afixados sinais “S” (sinalização visual da existência de trabalhos na via) – (alínea E) da matéria assente).
5. Na atacadeira seguia FF responsável pela circulação da máquina no sentido de indicar os locais e velocidade da mesma ao réu CC (alínea F) matéria assente).
6. Na consequência do acidente, DD foi decapitado pela base do pescoço, ficando com a cabeça esmagada e irreconhecível, para além de fracturas múltiplas, lesões essas que foram causa directa e necessária da sua morte (alínea G) e H) da matéria assente).
7. À data referida em 1), DD tinha 49 anos (alínea I) da base matéria assente).
8. O acidente referido em A), ocorreu cerca das 14 horas e 10 minutos (resposta ao n.º1 da base instrutória).
9. O acidente ocorreu próximo do Km 66 (resposta ao n.º 3 a base instrutória).
10. A máquina atacadeira referida em B) seguia no sentido Alcácer do Sal /Setúbal que é o mesmo sentido de Alcácer do Sal – Monte Novo de Palma (resposta ao nº 5 da base instrutória).
11. O local do acidente situa-se à saída de uma curva, sendo visível, atento o sentido de marcha da atacadeira, a uma distância não inferior 30 metros (resposta ao nº7 da base instrutória).
12. O condutor da atacadeira não conseguiu imobilizá –la num espaço livre e visível à sua frente, antes de chegar ao local onde dois trabalhadores procediam a trabalhos na via, um dos quais a vítima (9 e 10 da base instrutória).
13.Entre a curva e o local do acidente existe uma recta com uma distância não inferior a 30 metros, pelo que do local do acidente é possível visualizar parte da curva (12 e 13 da base instrutória).
14. Nos 10 minutos que precederam o acidente, a atacadeira não circulou a velocidade superior a 80 Km/hora (14 da base instrutória).
15. A referida atacadeira quando autopropulsionada não tem aptidões mecânicas que lhe permitam uma circulação com velocidade superior a 100 km/hora (14-A da base instrutória).
16. FF era funcionário da CP ( resposta ao n.º 17 da base instrutória).
17. Foi emitida pelo chefe da estação de Sabóia a “ Folha de Marcha de Circulação extraordinária da atacadeira, a que foi atribuída o n.º 96004/05 (resposta ao n.º 18 A da base instrutória).
18. Como consta da Folha de M de Circulação Extraordinária”, a circulação foi autorizada para se realizar à velocidade de 100k/hora -- ( resposta ao n.º 18-B da base instrutória).
19. Na paragem que antecedeu o acidente ninguém comunicou aos ocupantes e condutor que havia pessoal a trabalhar na linha (resposta ao n.º 20 da base instrutória).
20. O avisador sonoro de aproximação de composição ferroviária estava colocado a cerca de 100 metros do local do acidente (resposta ao n.º 23-c da base instrutória).
21. O responsável pelo avisador sonoro ainda tentou alertar a vítima, através de sinais com os braços (resposta ao nº 23-D).
22. DD era um homem saudável e trabalhador, formando com a mulher e filha uma família feliz e unida (resposta ao n.º 24 e 25 da base instrutória).
23. A morte de DD constituiu para as autoras uma perda irreparável e um profundo desgosto (resposta ao n.º 26 da base instrutória).
24. A autora AA ainda hoje sente desgosto pela perda do marido (resposta aos nº 28 da base instrutória).
25. CC ao avistar o sinal “S” começou a buzinar constantemente, e ao entrar na curva continuou a buzinar (resposta ao n.º 31º e 33ºda base instrutória).
26.Ao sair da curva o réu CC viu que estavam dois homens a trabalhar com uma máquina na linha, tendo frenado (resposta aos n.º 34 e 35 da base instrutória).
27. DD não ouviu a buzina da atacadeira, uma vez que a máquina que operava era muito ruidosa (resposta aos n.ºs 36 e 37 da base instrutória).
28. DD também era vigilante, estando no momento do acidente a apertar um parafuso (tirefond), por também dar apoio profissional a GG (resposta aos nº 40 e 41 da base instrutória).”

4. Antes de mais, cumpre ter em conta que não são aplicáveis ao presente recurso as alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; e recordar que, não tendo sido interposto recurso da sentença na parte correspondente, está definitivamente assente que houve culpa da vítima na ocorrência do acidente, cabendo-lhe 50% da respectiva responsabilidade (pelo menos, já que a responsabilidade da REFER está ainda pendente).

5. A questão colocada pela recorrente neste recurso (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil) é pois, tão somente, a de saber se deve ou não considerar-se ilidida a presunção de culpa do condutor da atacadeira, prevista no nº 3 do artigo 503º do Código Civil.
As instâncias consideraram que a prova feita a afastou a presunção; mas a REFER discorda.
Ora a verdade é que a prova demonstra que o referido condutor, como se escreveu no acórdão recorrido, “actuou em conformidade com os procedimentos que lhe eram exigidos”.
Está provado que o acidente ocorreu num local situado à saída de uma curva; que é visível a uma distância não inferior a 30 metros; que entre a curva e o local do acidente existe uma recta com esse cumprimento; que CC, condutor da atacadeira, não a conseguiu imobilizar antes de chegar ao local; que a atacadeira, nos 10 minutos imediatamente anteriores ao acidente, não circulou a velocidade superior a 80km/h, tendo sido autorizada a circular a 100km/h (cfr. ponto 5.1 da Instrução Complementar de Segurança nº 3/98, junta a fls. 87 e Folha de Marcha junta a fls. 90); que o condutor, ao avistar o sinal “S”, relativo a trabalhos na via, “começou a buzinar constantemente, e ao entrar na curva continuou a buzinar” (cfr. ponto 3.1 do Anexo I à Instrução Complementar de Segurança nº 2/84, junto a fls. 42); que travou, quando, ao sair da curva, “viu que estavam dois homens a trabalhar com uma máquina na linha”; e que na atacadeira seguia FF, funcionário da CP, “responsável pela circulação da máquina no sentido de indicar os locais e velocidade da mesma ao réu CC”.
A recorrente, fazendo apelo aos artigos 24º, nº 1 e 25º, nº 1, do Código da Estrada, sustenta que “qualquer condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo, designadamente, à existência de trabalhos na via possa parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente – artº 24 nº 1” e que “deve-se moderar especialmente a velocidade em locais de visibilidade reduzida como curvas – artº 25º nº 1 alínea f) do mesmo diploma”. Ora é manifesto que tais regras não podem ser transpostas para a circulação ferroviária, como aliás a recorrente observou e explicou na contestação (cfr. artigos 19º e 20º).
Também não vem provado que tenha sido desrespeitada qualquer indicação de FF.
Não estão, pois, provados factos dos quais se possa concluir ter havido culpa do réu CC. Antes se verifica, com as instâncias concluíram, que está provado que o réu não teve culpa, já que cumpriu as regras destinadas a evitar o acidente.

6. Provado que o réu não agiu com culpa, estaria afastada a presunção de culpa que o nº 3 do artigo 503º do Código Civil prevê.
Mas a verdade é que nunca, no caso presente, se poderia basear em presunção de culpa uma eventual responsabilidade do réu CC, porque está definitivamente assente a ocorrência de culpa do lesado. Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 570º do Código Civil: “se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado (…) exclui o dever de indemnizar” (cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Outubro de 2008, disponível em www.dgsi.pt, proc. nº 07B2399).

7. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Fevereiro de 2010

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Lopes do Rego