Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2862/11.7TBFUN-C.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃOJSTJ000
Relator: ANA RESENDE
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
EFEITOS DO CASAMENTO
BENS COMUNS DO CASAL
MEAÇÃO
APREENSÃO
DÍVIDA DE CÔNJUGES
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- Em termos de regime patrimonial do casamento, relativamente a um matrimónio, contraído civilmente em 22 de novembro de 2003, sem convenção antenupcial, não sido dada notícia da sua dissolução, vigora o regime de comunhão de adquiridos, pelo que fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges, e os bens adquiridos na constância do casamento.


II- Afastada uma relação compropriedade, os bens comuns traduzem-se numa massa patrimonial, afetada de modo especial aos encargos da sociedade conjugal, e que por isso com um certo grau de autonomia, como património autónomo, pertencente aos dois cônjuges, em bloco, e desse modo sendo os titulares de um direito sobre ela, enquanto propriedade coletiva, consubstanciando-se numa comunhão una, indivisível e sem quotas.


III- Pode-se assim concluir que na pendência do casamento e sociedade conjugal, o direito à meação carece de consistência jurídica.


IV- A sentença que declara a insolvência decreta a apreensão de todos os bens do devedor, ainda que de alguma forma penhorados, apreendidos ou detidos, que passam a constituir a massa insolvente, abrangendo todo o património do devedor à data da declaração da insolvência. - A apreensão deve incidir sobre os bens comuns do casal com vista à satisfação de um crédito inerente a dívida que responsabiliza ambos os cônjuges, com os decorrentes reflexos nos demais trâmites processuais, por carecer de apoio legal a apreensão do direito à meação.

Decisão Texto Integral:

REVISTA n.º 2862/11.7BFUN-C.L1.S1


ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I - Relatório

1. Na reclamação de créditos, (apenso C) dos autos de insolvência de AA, requerida por R..., Lda.., declarada em 5.09.2011, veio o credor Banco Espírito Santo, SA., em 2.12.2011, impugnar a lista dos credores quanto ao crédito reclamado por BB, por não demonstrado o alegado pagamento do sinal ao Insolvente, relativo ao contrato promessa de compra e venda sobre uma moradia a construir nos imóveis identificados e apreendidos, inexistindo direito de retenção sobre os mesmos.

1. Por despacho de 23.05.2012, nos autos de insolvência de AA, foi ordenada nos termos do art.º 86 do CIRE, a apensação da insolvência do cônjuge do Insolvente, CC, requerida por Barclays Bank PCL, Sucursal em Portugal, declarada em 4.05.2012, (apenso E).

2. Em 24.5.2013, o Reclamante BB veio invocar que o seu crédito respeitante ao incumprimento de um contrato promessa relativo a uma moradia construído em dois prédios, inscritos e registado em nome do Insolvente e da mulher, CC, com processo de insolvência apensado aos autos, era um crédito sobre o Insolvente e CC, pelo que estando-se perante uma “sociedade conjugal” o património era comum a ambos os cônjuges, insolventes, nenhum deles tendo uma quota sobre a moradia, mas sim sobre o património todo, com primazia pela liquidação deste nos termos do art.º 86 do CIRE.

2. Em 14.10.2013 foi proferida sentença na qual se considerou que a massa insolvente era constituída pelos bens apreendidos no apenso B, para além do mais, meação do prédio urbano, n.º 1583/19980303 (verba 1), meação de prédio rústico n.º 2284/20040727 (verba 2), sendo o credor BB titular do crédito no valor de 3.015.000,00€, tendo direito de retenção sobre os imóveis apreendidos, em conformidade graduados os créditos relativamente às meações, bem como informando que o património comum dos insolventes estava já a ser liquidado em conjunto, sem prejuízo da venda dos bens comuns ser distribuído em partes iguais, entre os dois processos de insolvência.

3. Inconformado, veio o credor BB interpor recurso, apenas quanto à parte que determinou que o património comum dos insolventes já está a ser liquidado em conjunto, sem prejuízo do produto da venda dos bens comuns ser posteriormente distribuído, em partes iguais, entre os dois processos.

1. Em Decisão singular de 12.11.2014, foi mantida a decisão recorrida.

2. Foi arguida e conhecida a nulidade da notificação da Decisão Singular, em 15.06.2021.

3. DD, enquanto credora habilitada em substituição do ex-Recorrente BB1, veio apresentar reclamação para a Conferência, que por Acórdão de 14.10.2021 confirmou a Decisão singular.


4. Inconformada, veio a credora DD interpor revista excecional.


4.1. A Conselheira relatora ordenou a remessa dos autos à Formação.


4.2. A Formação proferiu Acórdão julgando verificado o pressuposto da contradição de julgados, e admitiu a revista excecional.


5. Nas alegações apresentadas pela Recorrente, na parte em conformidade relevante, formula as seguintes conclusões: (Transcritas nesse fragmento)


I - O presente recurso tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 14/10/2021, em sede de apreciação de reclamação para a conferência, na qual foi confirmado o teor de decisão sumária anteriormente proferida, em 12/11/2014, e determinado que a apreensão de bens para a massa insolvente tenha por objecto a “meação” de dois imóveis descritos nas verbas 1 e 2 do auto de apreensão, enquanto bens comuns do Insolvente da sua cônjuge, Exma. Sra. CC.


II. Não pode a Recorrente conformar-se com a decisão recorrida, porquanto a mesma, além de representar um prejuízo avultado para a garantia do seu crédito sobre a insolvência, evidencia alhear-se por completo do regime legal aplicável, supondo erradamente que o direito de meação que assiste ao Insolvente, enquanto cônjuge-marido no âmbito de um matrimónio ainda vigente, pode ter por objecto um bem determinado integrante do património comum, criando uma autêntica quimera jurídica.


III. Ademais, a decisão recorrida assenta numa visão puramente formalista do regime da apreensão e liquidação de bens da massa insolvente, obnubilando e, em última análise, inviabilizando a finalidade do processo de insolvência, que é a de satisfazer os direitos dos credores na maior medida e com a maior celeridade possível.


IV. A questão decidenda que está na essência do presente recurso, formulada em abstracto, consiste em saber se é, ou não, admissível, que a apreensão a realizar no processo de insolvência que corra contra um dos cônjuges, em casamento sob o regime da comunhão de adquiridos, tenha por objecto uma “meação” de cada um dos bens que integram o património conjugal.


V. A posição do Tribunal a quo a este respeito resulta da remissão que no mesmo é feita para a decisão proferida em 1.ª instância, e pode encontrar-se no seguinte trecho da sentença que foi objecto da apelação: “é manifesto que apenas a meação de cada um dos cônjuges sobre o património comum, poderá ser apreendido para cada uma das massas insolventes, tal como decorre do disposto no artigo 159.º do CIRE”.


VI. A posição propugnada pela Recorrente e adiante circunstanciada, pelo contrário, é no sentido de ser inadmissível uma apreensão com tal objecto, e que apenas os bens comuns do casal poderiam ser apreendidos e liquidados nos presentes autos, e não também uma meação, incida ela sobre o património comum ou sobre cada bem determinado que o integra.


(…)


IX. Quanto à alínea a) do artigo 672.º n.º 1 do CPC: o facto de a questão decidenda se poder repercutir sobre a posição jurídica de uma pluralidade vastíssima de credores por dívidas de cônjuges (comuns ou próprias), aí operando uma contração substancial a exequibilidade das garantias dos respectivos créditos quando incidam sobre bens comuns, permite concluir que a respectiva apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça é fulcral para uma melhor aplicação do Direito.


X. Quanto à alínea b) do art.º 672, n.º1 do CPC: tendo em vista a mencionada restrição ao exercício de direitos de crédito, a decisão recorrida implica também uma limitação ao direito fundamental à propriedade previsto no art.º 62, da CRP, pelo que congrega também interesses de particular relevância social, longe de se cingir a sua relevância ao interesse particular da Recorrente.


(…)


XIII. O insolvente é casado no regime da comunhão de adquiridos com a Exma. Sra. CC desde 22 de Novembro de 2003 (cfr. certidão que consta dos autos), a qual foi «declarada insolvente, por sentença proferida em 4/5/2012, no âmbito do processo de insolvência corre termos como apenso E dos presentes autos.


XIV. Os bens imóveis descritos nas verbas 1 e 2 do auto de apreensão, sobre os quais incide direito de retenção a favor da Recorrente para garantia do seu crédito sobre a insolvência, foram adquiridos posteriormente ao casamento, conforme certidões que também constam dos autos, pelo que são bens comuns do casal.


XV. As questões suscitadas no presente recurso cingem-se, contudo, aos efeitos da declaração de insolvência do aqui insolvente e da composição da massa insolvente deste, independentemente dos termos do processo de insolvência, autónomo, da sua cônjuge.


XVI. No casamento sob o regime de comunhão de adquiridos (e, bem assim, de comunhão geral) forma-se um património colectivo, composto pelos bens comuns adquiridos pelo casal na constância do matrimónio.


XVII. Esse património consiste num conjunto de posições activas e passivas unificado em torno do fim de servir de suporte à união conjugal, sendo dotado de certo grau de autonomia.


XVIII. Como corolário dessa autonomia, esse património é titulado por ambos os cônjuges, como se de uma única posição jurídica se tratasse.


XIX. Consequentemente – e é isto que importa sublinhar – cada cônjuge não tem um qualquer direito próprio / individual directamente sobre qualquer um dos bens integrantes da comunhão conjugal; ao invés, cada cônjuge é aí contitular directo do património conjugal no qual, por seu turno, estão inseridos os bens comuns.


XX. A comunhão conjugal não se confunde com a compropriedade ou com outras formas de contitularidade de direitos, porquanto as mesmas postulam direitos das partes sobre bens específicos, e não sobre um património – que é uma realidade jurídica distinta de cada um dos bens específicos que o compõem.


XXI. Por conseguinte, o Insolvente não é – nem poderia ser ao abrigo do regime de bens que escolheu para o seu matrimónio – titular de um direito, uma quota ou, em geral, uma qualquer posição jurídica activa que tenha por objecto directamente os bens comuns que integram o referido património conjugal.


XXII. O Insolvente, assim como a sua esposa, é, isso sim, titular de um direito de meação que incide directamente sobre o referido património, enquanto realidade jurídica distinta de cada um dos bens que o compõem.


XXIII. Por conseguinte, o direito a meação não tem, nem poderia ter, por objecto qualquer um dos bens que integram o património conjugal.


XXIV. Esse direito do Insolvente à meação (o mesmo se dizendo do homólogo direito da sua cônjuge) consiste, em termos técnico-jurídicos, numa mera expectativa de vir a ser futuramente beneficiário da partilha do património do casal, se e quando esta ocorra, sendo-lhe aí atribuídos putativos direitos, esses sim, sobre bens determinados do património conjugal.


XXV. O direito a meação não confere ao Insolvente qualquer prerrogativa contra terceiro, mormente contra credores; nem lhe permitem eximir-se de responsabilidades perante esses terceiros.


XXVI. O direito a meação, atenta a sua natureza (que não o qualifica como um verdadeiro direito em sentido técnico) não pode ser alienado a terceiros, nem onerado a favor destes.


XXVII. Consequentemente, o direito a meação não integra a garantia geral (ou especial) dos créditos de terceiros sobre os cônjuges, nos termos do disposto no artigo 601.º do Código Civil, nem pode, como tal, ser penhorado nos termos do artigo 735.º do CPC nem, sobretudo, apreendido termos do artigo 149.º n.º 1 do CIRE.


XXVIII. A garantia patrimonial dos créditos desses credores é constituída, quanto às dívidas próprias de cada cônjuge, pelos bens próprios deste e, subsidiariamente, pelos bens comuns; e quanto às dívidas comuns, pelos bens comuns do casal e, subsidiariamente, pelos bens próprios de cada um dos cônjuges, nos termos, respectivamente, dos artigos 1695.º n.º 1 e 1696.º n.º 1 do Código Civil.


XXIX. A actuação das referidas garantias, pelos credores, em sede de processo de insolvência é regida pelos termos conjugados dos artigos 740.º do CPC e 1.º e 46.º do CIRE.


XXX. Desses preceitos resulta, primeiro, que não é juridicamente possível a apreensão da “meação” do Insolvente nos bens imóveis comuns do casal, pois o direito a meação não pode, pela sua própria configuração, ter por objecto bens específicos/determinados; recorde-se que os cônjuges não são titulares de qualquer posição jurídica que directamente incida sobre os específicos bens que compõem a comunhão conjugal;


XXXI. Segundo, que não é juridicamente admissível a apreensão da meação do Insolvente no património conjugal constituído com a sua mulher, Exma. Sra. CC, pois não se trata aí de um direito que possa ser objecto de relações jurídica (maxime, alienado em venda judicial);


XXXII. E, terceiro, que é perfeitamente admissível a apreensão individualizada dos bens comuns do casal, no âmbito do presente processo de insolvência movido contra o Insolvente-marido.


XXXIII. O entendimento supra é também o que resulta do acórdão-fundamento e exprime a correcta interpretação das normas jurídicas acima elencadas, quer de cariz substantivo, quer de cariz processual.


XXXIV. De resto, tal entendimento é amplamente sufragado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, que têm considerado pacificamente que não é admissível a apreensão da meação de bens comuns determinados nem tão pouco da meação (aí em sentido próprio) do cônjuge sobre o património conjugal enquanto, perdurando o matrimónio, o referido património não tenha sido objecto de partilha;


XXXV. Sendo antes devida a apreensão de cada um dos bens, próprios ou comuns, que integram o património do cônjuge insolvente, globalmente considerado.


XXXVI. Acrescente-se que a posição da cônjuge do Insolvente, enquanto titular de direito de meação sobre o património do casal, sempre seria salvaguardada pela possibilidade de pedir, em incidente próprio, a devida separação de bens, nos termos do disposto no artigo 141.º n.º 1, alínea b), do CIRE.


XXXVII. Esse eventual pedido de separação de bens – que, no fundo, só conferiria à cônjuge o reconhecimento do seu direito a meação no património comum, a ser feito valer no âmbito da eventual, futura, partilha desse património – não foi apresentado pela cônjuge do Insolvente, pelo que se precludiu o correspondente direito.


XXXVIII. Consequentemente, a liquidação dos bens do Insolvente no âmbito do presente proc. insolvência não deverá atender à posição da cônjuge do mesmo, e os bens comuns a apreender deverão responder na íntegra pelas dívidas do Insolvente, sem qualquer separação.


XXXIX. Contudo, sempre haverá que considerar que o crédito da Recorrente corresponde a uma dívida comum do casal (nos termos do disposto nos artigos 1691.º n.º 1, alínea a), e 1694.º do Código Civil) e, além disso, é garantido por direito de retenção sobre dois imóveis que são bens comuns do casal.


XL. Pelo que, ainda que a cônjuge do Insolvente tivesse movido o referido incidente de separação de bens, ou que o pudesse ainda vir a mover, não colheria daí qualquer benefício relevante nem se veria desresponsabilizada da dívida perante a Recorrente, sendo mesmo de questionar o seu interesse processual nesse sentido.


XLI. A decisão recorrida, além de desatender por completo às normas presentes nos artigos 740.º do CPC e 1.º e 46.º do CIRE, alheando-se dos corolários que delas resultam para o caso concreto, fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 159.º do CIRE – de resto, a única norma invocada pelo Tribunal a quo (e pelo Tribunal de 1.ª instância) para sustentar a decisão em crise.


XLII. A aplicação do artigo 159.º do CIRE sempre dependeria, ou da eventual verificação do “direito de restituição ou separação de bens indivisos”, que vimos já não ter ocorrido, nem por iniciativa da cônjuge do Insolvente, nem por iniciativa do douto Tribunal ou do Sr. Administrador da Insolvência;


XLIII. Ou, alternativamente, da putativa “existência de bens de que o insolvente seja contitular”, o que também constatámos não ser o caso quanto aos bens imóveis (comuns do casal) que garantem o crédito da Recorrente, uma vez que – repita-se – nem o Insolvente nem a sua cônjuge são titulares de qualquer direito ou posição jurídica activa que incida sobre tais bens, antes sendo, apenas, titulares de um direito (rectius: expectativa) de meação sobre a globalidade do património conjugal, que não é contemplado pelo artigo 159.º do CIRE.


XLIV. Assim, conclui-se que o acórdão recorrido padece de um manifesto error in judicandi, por ter julgado verificados os pressupostos de aplicação do artigo 159.º do CIRE, sancionando, nessa base, a apreensão de uma “meação” de dois bens imóveis para integrarem a massa insolvente.


XLV. E requer-se a V. Exas. seja a decisão recorrida revogada com esse fundamento e substituída por outra que determine a apreensão dos bens imóveis mencionados nas verbas 1 e 2 do auto de apreensão (não de uma “meação” dos mesmos), enquanto bens comuns do casal composto pelo Insolvente pela sua esposa, declarando que os mesmos deverão ser liquidados na íntegra no âmbito dos presentes autos, atento o direito de retenção da Recorrente sobre os mesmos.


Sem prescindir, e admitindo por mera hipótese, e sem conceder, que o entendimento vertido e explanado supra não proceda,


XLVI. Só se prefigura uma decisão alternativa à supra peticionada, que importa contemplar subsidiariamente, por mera cautela de patrocínio: a eventual apreensão para a massa insolvente da meação do insolvente nos bens comuns (em todos os bens comuns) – cumprindo aqui recordar novamente que o direito à meação só poderia incidir sobre o património comum considerado no seu todo e não sobre os bens individuais que o compõem.


XLVII. Pelo que, atento o sobredito erro de julgamento, se requer, a título subsidiário, que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que determine que a apreensão a ter lugar nos autos, nos termos do artigo 149.º do CIRE, tenha por objecto a meação do Insolvente no património conjugal detido com a sua esposa.


XLVIII. Sob a égide desta (mera) hipótese subsidiária, não deixe de se observar que a eventual apreensão e liquidação da meação do Insolvente no património comum do casal não poderia prejudicar o direito de retenção da Recorrente sobre os mencionados bens imóveis comuns.


XLIX. Esse direito de retenção sempre se manteria, mesmo após uma eventual venda judicial da sobredita meação do Insolvente, não caducando por força do artigo 824.º do Código Civil.


L. Daí resultaria, certamente, um entrave inultrapassável para a liquidação do activo, que se veria prolongada ad eternum por falta de compradores interessados, com prejuízo para os credores.


Nestes termos, julgue integralmente procedente o recurso e, consequentemente:


i) revogue a decisão recorrida, com fundamento em erro de julgamento, substituindo-a por outra que determine a apreensão dos bens imóveis mencionados nas verbas 1 e 2 do auto de apreensão, enquanto bens comuns do casal composto pelo Insolvente pela sua esposa, e declare que os mesmos deverão ser liquidados na íntegra no âmbito dos presentes autos, atento o direito de retenção da Recorrente sobre os mesmos; caso assim não se entenda quanto à decisão substitutiva peticionada, o que se concebe apenas por hipótese e sem conceder,


ii) revogue a decisão recorrida, com fundamento no aludido erro de julgamento, substituindo-a por outra que determine que a apreensão nos autos tenha por objecto a meação do Insolvente no património conjugal detido com a sua esposa.

6. Cumpre apreciar e decidir.

*


II – Enquadramento facto-jurídico

A – Factualidade

Resulta da sentença proferida, confirmada pelo Acórdão sob recurso:


1. No âmbito dos presentes autos de insolvência, por sentença transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA.


2. O Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos uma “lista de todos os credores por si reconhecidos”, nos termos do artigo 129.º do CIRE, que foi objecto de impugnação por parte do BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A.


3. A massa insolvente é constituída pelos bens apreendidos no apenso B:


- Meação do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Comercial sob o n.º 1583/19980303 (VERBA 1.);


- Meação do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Comercial sob o n.º 2284/20040727 (VERBA 2.);


- Quota da sociedade comercial por quotas denominada C..., Lda.. (VERBA 3.);


- Quota da sociedade comercial por quotas denominada C..., Lda. (VERBA 4.).


4. Da “lista de credores reconhecidos” consta que, a título de indemnização, é devido a BB um crédito no valor de 3.015.000,00€ (três milhões e quinze mil euros);


5. Por sentença proferida no dia 28 de Setembro de 2011, e transitada em julgado no dia 19 de Outubro de 2011, no âmbito da providência cautelar de restituição provisória da posse n.º 481/1..., que correu termos na … Secção, das Varas de Competência Mista do ..., em que é Requerente BB e Requeridos AA e CC, foi decidido o seguinte:


“(…) Pelo exposto, julgo procedente a providência requerida por BB e, consequentemente, ordeno que seja restituída provisoriamente a posse da moradia edificada nos dois prédios, de que os Requeridos são donos, conforme certidões permanentes com os códigos PL-...4 e ...5: um lote de terreno para construção urbana (…) descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob a ficha número 1583/19980303; e um rústico, (…) descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob a ficfa número 2284/20040727. (…)”;


6. Por sentença proferida no dia 19 de Dezembro de 2011, e transitada em julgado no dia 03 de Fevereiro de 2012, no âmbito da acção comum declarativa, sob a forma ordinária n.º 529/1..., que correu termos na … Secção das Varas de Competência Mista do ..., em que é Autor BB e são Réus AA e CC, foi decidido o seguinte:


“(…) Pelo exposto, decido julgar a acção totalmente procedente e, consequentemente:


(i) Declaro verificado o incumprimento por parte dos réus relativamente ao contrato promessa de compra e venda de 30/05/2008 (com aditamento de 20/2/2009), da moradia construída ao abrigo dos alvarás de obras de construção n.º 94/2004, e n.º 79/2006, emitidos pela Câmara Municipal do ..., respectivamente, em 3/9/2004 e 244/10/2006, nos dois seguintes prédios, de que os réus são donos, (…): um lote de terreno para construção urbana (…) descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob a ficha número 1583/19980303; e um rústico, (…) descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob a ficha número 2284/20040727;


(ii) Condeno os Réus a pagarem ao autor uma indemnização por virtude desse incumprimento, igual ao dobro do sinal por si prestado em execução do contrato promessa referido em (i), ou seja, três milhões e quinze mil euros;


(iii) Condeno os réus a pagarem os juros que se vencerem sobre a quantia referida em (ii), desde a citação até efectivo pagamento;


(iv) Reconheço e declaro que o autor é titular do direito de retenção sobre a moradia identificada em (i), por ter havido tradição e dela ser possuidor, até lhe ser paga a indemnização que lhe é devida pelos réus, pelo incumprimento do contrato promessa, com os respectivos juros. (…)”.


7. BB foi absolvido do pedido deduzido pelo credor BANCO ESPIRITO SANTO, S.A., por o mesmo ser titular de um CRÉDITO GARANTIDO no valor de 3.015.000,00€ (três milhões e quinze mil euros).


8. (i)Reconhecer os créditos constantes da “lista de credores reconhecidos” elaborada pelo Sr. Administrador da Insolvência, na parte em que não foi impugnada ou oficiosamente corrigida, bem como os créditos referidos no ponto III supra;


(ii) Graduar os créditos pela seguinte forma:


A) MEAÇÃO DO PRÉDIO URBANO, DESCRITO NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO COMERCIAL SOB O N.º 1583/19980303 (VERBA 1.):


1. As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda da VERBA 1.;


2. Do remanescente dar-se-á pagamento:


2.1. Ao CRÉDITO GARANTIDO de BB referidos em 4.1.1, A), 15.;


3. Do remanescente dar-se-á pagamento:


3.1. Aos CRÉDITOS GARANTIDOS do credor BARCKLAYS BANK, PLC. referidos em 4.1.1, A), 1. e 4.;


As hipotecas concorrem entre si na proporção dos respectivos créditos;


4. Do remanescente dar-se-á pagamento:


4.1. Aos CRÉDITOS GARANTIDOS do credor BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. referidos em 4.1.1, A), 7. e 10.;


As hipotecas concorrem entre si na proporção dos respectivos créditos;


5. Do remanescente dar-se-á pagamento:


5.1. Ao CRÉDITO GARANTIDO de EE referidos em 4.1.1, A), 13.;


6. Do remanescente dar-se-á pagamento:


6.1. Ao CRÉDITO PRIVILEGIADO da FAZENDA NACIONAL referido em 4.1.1, B), 17.;


7. Do remanescente dar-se-á pagamento:


7.1 Aos CRÉDITOS COMUNS referidos em 4.1.1, C), entre os quais o saldo remanescente do crédito do credor R..., Lda. referido em 4.1.1, B), 18., na eventualidade do mesmo (crédito) não vir a ser integralmente satisfeito à custa do produto da venda das VERBAS N.os 3 e 4 (cfr. artigo 174.º, n.º 1, 2.ª parte, aplicável ex vi artigo 175.º, n.º 2, do CIRE);


Os créditos comuns sob condição do BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. e da T..., S.A., identificados no ponto 4.1.1, C), 25. e 32. supra, serão atendidos nos termos do artigo 181.º do CIRE;


8. Do remanescente dar-se-á pagamento:


8.1 Aos CRÉDITOS SUBORDINADOS, referidos em 4.1.1, D), segundo a ordem de pagamento correspondente à enumeração das alíneas do artigo 48.º do CIRE, efectuando-se o rateio relativamente a créditos constantes da mesma alínea.


B) MEAÇÃO DO PRÉDIO RÚSTICO, DESCRITO NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO COMERCIAL SOB O N.º 2284/20040727 (VERBA 2.):


1. As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda da VERBA 2.;


2. Do remanescente dar-se-á pagamento:


2.1. Ao CRÉDITO GARANTIDO de BB referidos em 4.1.1, A), 15.;


3. Do remanescente dar-se-á pagamento:


3.1. Aos CRÉDITOS GARANTIDOS do credor BARCKLAYS BANK, PLC. referidos em 4.1.1, A), 1. e 4.; As hipotecas concorrem entre si na proporção dos respectivos créditos;


4. Do remanescente dar-se-á pagamento:


4.1. Aos CRÉDITOS GARANTIDOS do credor BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. referidos em 4.1.1, A), 7. e 10.;


As hipotecas concorrem entre si na proporção dos respectivos créditos;


5. Do remanescente dar-se-á pagamento:


5.1. Ao CRÉDITO PRIVILEGIADO da FAZENDA NACIONAL referido em 4.1.1, B), 17.;


6. Do remanescente dar-se-á pagamento:


6.1 Aos CRÉDITOS COMUNS referidos em 4.1.1, C), entre os quais o saldo remanescente (i) do crédito do credor EE referido em 4.1.1, A), 13. e (ii) do crédito do credor R..., Lda. referido em 4.1.1, B), 18., na eventualidade dos mesmos (créditos) não virem a ser integralmente satisfeitos à custa do produto da venda das VERBAS N.os 1, 3 e 4 (cfr. artigos 174.º, n.º 1, 2.ª parte, e 175.º, n.º 2, do CIRE);


Os créditos comuns sob condição do BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. e da T..., S.A., identificados no ponto 4.1.1, C), 25. e 32. supra, serão atendidos nos termos do artigo 181.º do CIRE;


7. Do remanescente dar-se-á pagamento:


7.1 Aos CRÉDITOS SUBORDINADOS, referidos em 4.1.1, D), segundo a ordem de pagamento correspondente à enumeração das alíneas do artigo 48.º do CIRE, efectuando-se o rateio relativamente a créditos constantes da mesma alínea.


C) QUOTAS SOCIAIS (VERBAS 3. E 4.):


1. As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda das VERBAS 3. e 4.;


2. Do remanescente dar-se-á pagamento:


2.1. Ao CRÉDITO PRIVILEGIADO da FAZENDA NACIONAL referido em 4.1.1, B), 17.;


3. Do remanescente dar-se-á pagamento:


3.1. Ao CRÉDITO PRIVILEGIADO da credora R..., Lda. referido em 4.1.1, B), 18.;


4. Do remanescente dar-se-á pagamento:


4.1 Aos CRÉDITOS COMUNS referidos em 4.1.1, C), entre os quais o saldo remanescente dos créditos (i) de BB referidos em 4.1.1, A), 15.; (ii) do credor BARCKLAYS BANK, PLC. referidos em 4.1.1, A), 1. e 4.; (iii) do credor BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. referidos em 4.1.1, A), 7. e 10.; e (iv) de EE referido em 4.1.1, A), 13., na eventualidade dos mesmos (créditos) não virem a ser integralmente satisfeitos à custa do produto da venda das VERBAS N.os 1 e 2 (cfr. artigo 174.º, n.º 1, 2.ª parte, do CIRE);


Os créditos comuns sob condição do BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. e da T..., S.A., identificados no ponto 4.1.1, C), 25. e 32. supra, serão atendidos nos termos do artigo 181.º do CIRE;


5. Do remanescente dar-se-á pagamento:


5.1 Aos CRÉDITOS SUBORDINADOS, referidos em 4.1.1, D), segundo a ordem de pagamento correspondente à enumeração das alíneas do artigo 48.º do CIRE, efectuando-se o rateio relativamente a créditos constantes da mesma alínea.


9. BB, por requerimento datado 24 de Maio de 2013, veio requerer que:


a) A liquidação a ter lugar nestes autos tenha por objecto a moradia construída nos dois prédios apreendidos nos presentes autos ao abrigo dos alvarás de construção n.os 94/2004 e 70/2006, emitidos pela CÂMARA MUNICIPAL DO ...;


b) Ao Sr. Administrador seja ordenado que este proceda ao registo da moradia na competente Conservatória do Registo Predial, inscrevendo-a igualmente na respectiva matriz;


c) A liquidação do património dos insolventes AA e CC seja feita conjuntamente tendo o Tribunal decido:


1. Notificar o Sr. Administrador da Insolvência para, no prazo de 10 (dez) dias, informar os autos se procedeu a avaliação das benfeitorias construídas nos dois imóveis apreendidos e se o referido valor se encontra reflectido no valor base fixado para a sua venda;


2. Informar o Requerente BB que o património comum dos insolventes já está a ser liquidado em conjunto, sem prejuízo do produto da venda dos bens comuns ser posteriormente distribuído, em partes iguais, entre os dois processos de insolvência.


10. AA e CC casaram civilmente no dia 22.11.2003, sem convenção antenupcial (certidão junta no apenso E).


11. CC foi declarada insolvente por sentença de 2.05.2012 nos autos 4641/1..., ora apenso E.


B. Do Direito


1. Estando nós no âmbito de uma revista excecional, admitida conforme o Acórdão da Formação de 3.11.2022, no seu necessário atendimento, importa reter o que no mesmo se mostra consignado na situação sob análise:


“Alega a Recorrente/Reclamante/DD que se verifica uma contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães a 28 de janeiro de 2016, no âmbito do processo 524/14.2T8VRL-B.G1, no que concerne à questão de saber se é, ou não, admissível que a apreensão a realizar no processo de insolvência que corra contra um dos cônjuges, em casamento sob o regime da comunhão de adquiridos, tenha por objeto uma "meação" de cada um dos bens que integram o património conjugal.


Considerou-se no acórdão recorrido ser admissível a apreensão para a massa insolvente do cônjuge marido, casado em regime de comunhão com a cônjuge mulher (também ela declarada insolvente, tendo o respetívo processo sido apensado ao presente), do "direito à meação" do primeiro sobre bens imóveis comuns, concluindo-se pela improcedência da pretensão do aí apelante no sentido de que os bens fossem integralmente vendidos no âmbito do processo em apreço.


Já o acórdão fundamento entendeu carecer de fundamento legal a apreensão para a massa insolvente de um dos ex-cônjuges do "direito à meação" deste sobre um bem comum do dissolvido casal, determinando-se a correção do auto de apreensão no sentido de ser apreendida a totalidade desse imóvel.


Nos dois casos discute-se, no âmbito da reclamação de créditos em processo de insolvência, a apreensão, com reflexos na venda a realizar, do "direito à meação" do insolvente cônjuge sobre bens comuns do casal com vista à satisfação de créditos inerentes a dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges (ainda que esta circunstância não haja sido expressamente afirmada pelo acórdão recorrido)2.


Enquanto que no acórdão recorrido se considerou que, à luz do art.° 159° do CIRE, a apreensão de tal direito se mostra possível, o acórdão fundamento - que, não obstante não ter citado tal artigo, foi proferido no decurso do seu período de vigência, integrando a sobredita disposição o quadro normativo subjacente à solução jurídica adotada - entendeu não ter sustentabilidade legal a apreensão do mencionado "direito à meação" sobre o bem imóvel integrante do património conjugal, atendendo à específica natureza deste património.


Surpreende-se, assim, uma pronúncia contraditória dos dois acórdãos relativamente a uma mesma questão fundamental de direito com relevância determinante para o desfecho das duas causas no que tange ao âmbito dos direitos e bens suscetíveis de apreensão para a massa insolvente e que se prende com a possibilidade de, em sede de processo de insolvência de um dos cônjuges em que tenham sido reclamados créditos correspetivos a dívidas da responsabilidade de ambos, apreender para a massa o "direito à meação" do insolvente sobre bens comuns do casal3.


(…) encontra verificada a contradição jurisprudencial pressuposta pela norma constante da alínea c) do n.° 1 do art.° 672° do Código de Processo Civil (…) tornando-se, outrossim, despicienda a análise dos invocados restantes fundamentos da revista excecional.”

1. Com efeito, tendo as Instâncias convergido no entendimento perfilhado, em sede de sentença, foi salientado que apesar do processo da insolvente CC ter sido apensado aos presentes autos de insolvência de AA, seu cônjuge, os respetivos processos não tinham perdido a sua autonomia, pelo que era manifesto que apenas a meação de cada um dos cônjuges sobre o património comum, podia ser apreendido para cada uma das massas insolventes, nos termos do art.º 159, do CIRE, e assim “(…) embora se venha a proceder a uma única venda dos bens comuns do casal, em sede dos presentes autos, o produto da mesma será distribuída em partes iguais, ingressando 50% do valor da venda dos bens comuns na massa insolvente de AA e os restantes 50% da messa insolvente da sua cônjuge-mulher (...)”, com a tradução prática de os respetivos credores terem de reclamar os seus créditos em cada um dos processos de insolvência, sendo pagos com base em 50% do produto da venda dos bens comuns do casal apreendidos e liquidados.


No concerne ao Acórdão recorrido, foi considerado que a doutrina trazida pelo Recorrente “(…) o direito à meação é único e indiviso, não é o suscetível de apreensão pela massa falida. Na situação dos autos, sendo a apreensão efetuada sobre bens comuns do casal (prédios), tem de se entender que foi efetuada na integralidade destes, posto que o Tribunal não pode substituir-se aos cônjuges na decisão de separação das meações. Não tendo estes, todavia, os cônjuges, feito tal separação, a venda dos prédios deve ser feita só à ordem deste processo, justamente porque não houve separação de meações (…)”pudesse ter assentimento na lei, porquanto, dispondo o “(…) art. 159.° do CIRE, “sob a epígrafe «Contitularidade e indivisão» que "...Verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens..."Ora, justamente porque “…só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens...", este comando vai frontalmente contra o desiderato do recorrente de que a venda dos prédios deve ser feita só à ordem deste processo. A doutrina que melhor espelha a Lei é a escolhida pelo Senhor Juiz a quo.”.

2. O Acórdão fundamento do Tribunal da Relação, proferido em 28.01.2016, no processo n.º 524/14.2T8VRL-B.G1, mencionando que pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, na falta ou insuficiência deles, solidariamente os bens próprios de qualquer dos cônjuges, tais bens comuns, no regime de comunhão integram um património coletivo de afetação especial, não sendo admissível a apreensão (ou a penhora) de um direito à meação em cada um dos bens que constitui o património do casal, “ uma vez que nenhum dos cônjuges possui uma quota-parte sobre bens em concreto, sendo titulares de um único direito sobre um património autónomo, que não suporta divisão, nem mesmo ideal.” Dessa forma o imóvel em causa deveria ser apreendido na totalidade para a massa insolvente, sem necessidade da citação para ser requerida a separação de bens, por se tratar de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges.

1. Configura-se, assim que importa fazer a articulação entre o regime patrimonial do casamento com o legalmente previsto em termos de apreensão de bens na insolvência, com os decorrentes efeitos na posterior liquidação, relevando desde logo salientar a exclusão do regime previsto nos artigos 264 e seguintes do CIRE no concerne à insolvência de ambos os cônjuges, pois como avulta dos autos, ainda que a insolvência de cada um tenha sido declarada, a mesma foi realizada em processos autónomos, ainda que tenha ocorrido a apensação do processo de insolvência do cônjuge mulher, nos termos do art.º 86, n.º1, também do CIRE, apensação esta que assenta no propósito da apreciação conjunta de casos, nos quais haja entidades igualmente responsáveis pelas dívidas do insolvente4, sem contudo, os processos perderem a respetiva autonomia, formal e substancial, cada um seguindo os seus próprios termos, não se comungando as vicissitudes5.

1. No que concerne ao regime patrimonial do casamento, importa que nos centremos no caso dos autos, relativamente a um matrimónio, contraído civilmente em 22 de novembro de 2003, sem convenção antenupcial, não sido dada notícia da sua dissolução, pelo que e desde logo se pode concluir que vigora no mesmo o regime de comunhão de adquiridos, como decorre dos artigos, 1717.º e 1722 e segs, do CC, do que ressalta essencialmente, e para o que aqui interessa, fazerem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges, e os bens adquiridos na constância do casamento, que não sejam legalmente exceptuados, art.º 1724, participando os cônjuges por metade no activo e passivo da comunhão, a designada regra da metade, sem prejuízo do demais vertido na lei, e não relevante para o caso, art.º 1731, todos do CC.


Decorre, relevantemente, afastando-nos de uma relação compropriedade, os bens comuns traduzem-se numa massa patrimonial, afetada de modo especial aos encargos da sociedade conjugal, e que por isso com um certo grau de autonomia, como património autónomo, pertencente aos dois cônjuges, em bloco, e desse modo sendo os titulares de um direito sobre ela, enquanto propriedade coletiva, consubstanciando-se numa comunhão una, indivisível e sem quotas6, levando à conclusão que na pendência do casamento e sociedade conjugal, o direito à meação carece de consistência jurídica.


Não contrariando o afirmado, a regra da metade, enquanto um direito ao valor de metade compaginável com o conceito de património coletivo, que se apontou relativamente à comunhão conjugal, está sobretudo ligada à rejeição de soluções de sistemas jurídicos que admitem cláusulas de partilha desigual, surgindo como mais consentânea com a ideia de colaboração no esforço patrimonial do casamento7.


2.2. Por sua vez, no que concerne à responsabilidade pelas dívidas do casal, relevante não só para as relações entre os cônjuges, mas também para os credores da insolvência no que diz respeito à satisfação dos seus créditos, enunciando-se no art.º 1691, do CC, as dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, nomeadamente, n.º1, alínea a), as contraídas, antes e depois do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro, pelas mesmas respondem os bens comuns do casal, e na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges, art.º 1695, n.º1, do CC, vedado está aos mesmos alterar o regime de responsabilidade de dívidas, atente-se ao disposto no art.º 1699, também do CC.


2.3. Quanto ao processo de insolvência, diz-nos a lei, art.º1, do CIRE, que constitui um processo de execução universal que, no que ora releva, tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente, com a repartição do produto pelos credores, numa linearidade aparente, porquanto embora esteja vocacionado para a satisfação dos interesses dos credores, desenrola-se numa sequência de atos, de complexidade variável, segundo as regras constantes do diploma que as contempla (CIRE), com aplicação das normas do Código de Processo Civil, em termos subsidiários, na medida que não contrariem aquele diploma, art.º 17, do CIRE.


Assim a sentença que declara a insolvência decreta a apreensão de todos os bens do devedor, ainda que de alguma forma penhorados, apreendidos ou detidos, art.º 36, do CIRE, que passam a constituir a massa insolvente, abrangendo todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, excluídos em princípio, os que ainda que passíveis de avaliação pecuniária, estão isentos de penhora, ficando confiados em regra ao administrador da insolvência, artigos 46, 149, n.º1 e 150, n.º 1, do CIRE.


Na possibilidade de indevida apreensão dos bens para a massa insolvente, quanto à restituição e separação de bens, nas circunstâncias apontadas no n.º1, do art.º 141, do CIRE, caso do previsto na alínea b), à reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, para além dos normativos constantes neste último diploma referenciado, terá de ser necessariamente ponderado o regime substantivo de regime de bens, e nessa medida, chamadas à colação as disposições do Código de Processo Civil, adjetivamente previstas no que concerne não só à separação de bens, mas também da comunicabilidade da dívida, em termos incidentais.


Deste modo, embora de forma breve, reporta-se, antes da vigência do actual CPC, o disposto no art.º 825, que na sua redação original estabelecia a suspensão da execução dos bens comuns, depois de penhorado o direito à meação do devedor, até ser exigível em termos substantivos, isto é, quando o casamento fosse declarado dissolvido, nulo ou anulado, ou após de decretada a separação judicial de pessoas e bens.


Com a reforma operada pelo DL 329-A/95, de 12.12, foi tal moratória forçada abolida, na indicação que no caso de penhora de bens comuns do casal por dívidas incomunicáveis, podiam ser penhorados bens comuns do casal, desde que o exequente ao nomeá-los, pedisse a citação do cônjuge, para querendo requerer a separação de bens,


Na versão decorrente do DL 38/2003, de 8.03, este preceito manteve-se essencialmente idêntico, sem prejuízo do estabelecimento em certas circunstâncias de mecanismos de comunicação da dívida, que agora encontram tratamento autónomo nos artigos, 741.º e 742.º do CPC, em vigor, no que diz respeito ao incidente de comunicabilidade da dívida, e que seria ocioso esmiuçar pois reportam-se a realidades não coincidentes com a dos presentes autos.


Tais apontamentos, mais não visam, que sublinhar no concerne à técnica legislativa e sua evolução temporal, o não atendimento em termos processuais do direito à meação, que como aliás já resultava do regime substantivo enunciado, não se mostra passível de ser contemplado na pendência do casamento, por qualquer dos cônjuges.


Daí, e voltanto ao processo de insolvência, quanto ao disposto no art.º 159, do CIRE, mesmo que se entenda aplicável, tendo em conta o aludido relativamente à comunhão conjugal, esta não pode deixar de abranger os bens comuns apreendidos, sem prejuízo de o outro cônjuge, se assim o entender, utilizar os meios legais tidos por convenientes.

2. Retomando o caso concreto em análise, conforme ficou provado, o casamento entre o insolvente nos presentes autos e o seu cônjuge está sujeito ao regime de comunhão de adquiridos. Por outro lado o crédito reclamado pelo Recorrente constitui uma dívida pela qual respondem o insolvente, bem como o cônjuge mulher, também insolvente, e os bens apreendidos são bens comuns do casal (certidão junta no apenso G).


Deste modo, forçoso é de concluir que a apreensão levada a cabo nestes autos deve incidir sobre os bens comuns do casal com vista à satisfação de um crédito inerente a dívida que responsabiliza ambos os cônjuges, com os decorrentes reflexos nos demais trâmites processuais, por carecer de apoio legal a efetuada apreensão do direito à meação.


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III – DECISÃO


Nestes termos, decide-se revogar o Acórdão recorrido determinando a correção verbas A) e B) da massa insolvente, passando das mesmas a constar a apreensão dos imóveis ali identificados, prosseguindo decorrentemente os presentes autos de insolvência.


Custas pela massa insolvente, artigos 303.º e 304.º do CIRE.


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Lisboa, 15 de março de 2023

Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Graça Amaral


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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.





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1. “(…) para ocupar o lugar deste nos presentes autos de insolvência, nomeadamente no Apenso de reclamação de créditos.” Sentença de 3.05.2018 (apenso N).↩︎

2. Sublinhado nosso.↩︎

3. Sublinhados nossos.↩︎

4. Cf. Menezes Leitão, Codigo da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 11ª edição, pág. 163.↩︎

5. Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, Codigo da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, I vol, pág. 361, referindo que se alcança uma perspectiva generalizada, em virtude dos elementos de conexão que legitimam a apensação, “(…) favorece o cumprimento de certas exigências da lei, como seja, por exemplo, a do não recebimento por nenhum credor de mais do que lhe é devido, o que obviamente, pode ser favorecido pelo concurso simultâneo às diversas massas insolventes responsáveis pela dívida (…)”.↩︎

6. Entendimento que se julga maioritário, cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, Volume I, Introdução Direito Matrimonial, pag. 507 e segs, Antunes Varela, Direito da Família, apud Ac. Relação de Coimbra, de 18.5.2020, processo n.º 2150/19.7T8CBR-C.C1, in www.dgsi.pt, dando-se neste aresto nota da discordância de autores, caso de Duarte Pinheiro, in O Direito da Família Contemporânea.↩︎

7. Cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra mencionada, fls. 510/511.↩︎