Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
996/21.9T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
DIREITO AO NOME
FACTO ILÍCITO
CAUSA DE PEDIR
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
JOGADOR DE FUTEBOL
FUTEBOLISTA PROFISSIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
Apenso:
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. - São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

II.  - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

O Autor AA propôs no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Cível ... uma ação declarativa, com processo comum, pedindo a condenação da Ré Electronic Arts Inc., a pagar-lhe, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 252.000,00 (duzentos e cinquenta e dois mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.

Mais pede a condenação no pagamento ao Autor de montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal, tudo com o mais da lei.

Alegou, para o efeito e em síntese, que a Ré utiliza, sem a sua autorização, o seu nome, a sua imagem e as suas características pessoais e profissionais nos videojogos de que é produtora, denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, FIFA MANAGER FIFA (inicialmente designado Total Club Manager), nas edições 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, e FIFA MOBILE, nas edições 2020 e 2021, todos propriedade da Ré e que, em resultado da utilização indevida da sua imagem, o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.


A Ré suscitou a questão da incompetência internacional, por não se verificar nenhum dos fatores de conexão elencados no artigo 62.º do Código de Processo Civil, requerendo o conhecimento dessa questão e a sua absolvição da instância.


Notificado, veio o Autor pronunciar-se no sentido da competência dos tribunais portugueses, alegando a aplicabilidade do critério de competência territorial constante do artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a), do artigo 62.º, do mesmo diploma, mais alegando a dificuldade séria e apreciável da propositura da ação nos Estados Unidos da América, o que constitui também um fator de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses.


Foi proferida decisão que julgou o tribunal incompetente internacionalmente para apreciação e decisão da presente ação e absolveu a Ré da instância.


O autor recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a decisão recorrida, julgando-se improcedente a exceção da incompetência internacional do Juízo Central Cível ..., determinando-se o prosseguimento do processo.


A ré interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça deste acórdão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

“ O presente recurso de revista impugna o acórdão de 25.10.2022 do TRP, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Central Cível ... para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

b) A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual  da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos:

– Princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio da coincidência, princípio da causalidade, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes;

– art.º 2.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 1.º, 9.º e 351.º do CC;

– art.º 5.º, n.º 1, 62.º, 71.º, n.º 2 e 608.º, n.º 2 do CPC;

– art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ.

c) A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.

d) Sucede que o acórdão em crise entendeu recorrer a factos não alegados na petição inicial, assumindo por via de presunção judicial que (i) o autor tem o seu centro de interesses em Portugal e (ii) que foi no nosso país que sofreu os danos – danos que não estão territorialmente localizados na PI.

e) Tarefa (de identificação do local de ocorrência dos danos) que o TRP qualificou como “impossível”, mas que não se coibiu de fazer, por meio de juízos presuntivos.

f) O acórdão revidendo suporta-se, desta forma, em factos não articulados na petição inicial ou a factos que não integram a causa de pedir, na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal e na suposição dos danos do autor terem ocorrido em Portugal, assim contrariando frontalmente o regime legal aplicável, fixado no art.º 62.º do CPC.

g) A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja o exercício da atividade de futebolista ou a residência, pelo autor a dado momento em Portugal, nem a sua nacionalidade.

h) A decisão do TRP, apesar de reconhecer ser inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2, sustenta-se no conceito jurisprudencial de centro de interesses desenvolvido pelo TJUE a propósito dessa norma.

i) Apesar de depender desse conceito jurisprudencial europeu de centro de interesses, o TRP, em momento algum, define o conteúdo do mesmo.

j) A ré tem sede nos EUA e por isso o regulamento n.º 1215/2012 não lhe é aplicável, dado que este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro.

k) A jurisprudência do TJUE apenas se debruça, como resulta do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em interpretar o direito da União, sendo expressamente proibido ao TJUE interpretar direito nacional dos Estados-Membros.

l) Restrição que visa efetivar o princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não tendo o TJUE apetência ou conhecimentos para se debruçar sobre o direito interno.

m) Não sendo aplicável o regulamento n.º 1215/2012, não podem valer igualmente os conceitos jurisprudenciais desenvolvidos pelo TJUE à luz desse regulamento, sendo por isso vedado aos tribunais portugueses aplicar o conceito de centro de interesses por tal redundar em aplicação contra legem, designadamente contra o regime legal aplicável e autossuficiente consagrado no art.º 62.º do CPC.

n) De igual modo, caso o TRP pretendesse fazer uma interpretação conforme do direito nacional ao direito europeu (sendo certo que não foi esse o mecanismo utilizado na decisão revidenda), sempre deverão ser respeitadas as orientações e s finalidades da regulamentação europeia.

o) Ora, a regulamentação europeia assumiu como critério fundamental em matéria de competência internacional o domicílio do demandado, critério que apenas poderá ser afastado em circunstâncias excecionais.

p) No que concerne às circunstâncias excecionais a atender, o legislador europeu considerou expressamente as matérias de seguros, contratos de consumo e laborais, mas não excecionou as matérias relativas à responsabilidade civil extracontratual ou sequer relacionadas com a violação de direitos de personalidade.

q) De igual modo, as considerações do TJUE em matéria do reconhecimento e aplicabilidade do critério jurisprudencial de centro de interesses apenas dizem respeito a demandas em que a ré tenha sede dentro da União Europeia.

r) Por outras palavras, legislador e julgador europeus quiseram excluir o critério relativo ao centro de interesses para a decisão da matéria da competência internacional, quando em causa esteja uma demanda contra uma entidade não europeia.

s) Desse modo, apenas subvertendo os princípios e finalidades da legislação e jurisprudência europeia poderão os tribunais nacionais importar o conceito jurisprudencial de centro de interesses e aplicá-lo em qualquer demanda contra a ora ré.

t) Acresce que a própria jurisprudência do TJUE se vem consolidando no sentido de defender que o conceito de “lugar onde ocorreu o dano” deve ser interpretado muito restritamente e dando relevância ao local de produção do dano inicial (parágrafo 21 do acórdão do TJUE de 19.09.1995, Processo n.º C-364/93; parágrafos 19 e 21 do acórdão do TJUE de 10.06.2004, Proc. n.º C-168/02; e parágrafos 34 e 35 do acórdão do TJUE de 16.06.2016, Proc. n.º C-12/15).

u) Ou seja, o acórdão objeto de recurso não só aplica indevidamente jurisprudência do TJUE, como o faz em sentido contrário àquele que hodiernamente tal tribunal tem sustentado.

v) Em todo o caso, sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional.

w) Este regime deve ser interpretado e aplicado de acordo com os critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

x) Acresce que considerações de teoria do direito não podem afastar o dever de obediência do tribunal à lei, ínsito no art. 8.º do CC, e do qual não se pode afastar, inclusivamente por questões de justiça.

y) As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.

z) A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber:

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e

– alínea c): critério da necessidade.

aa) Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;

(ii) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo n.º 1 e 2 da petição inicial) – ou seja, de acordo com a própria alegação do autor, não há qualquer atuação da ré em território nacional;

(iii) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA Swiss Sàrl…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em  Portugal ou, sequer, na Europa;

(iv) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA;

(v) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial);

(vi) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor;

(vii) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, nem tampouco como ocorrendo em Portugal (tampouco sendo possível identificar o momento temporal da ocorrência dos danos hipoteticamente sofridos pelo autor).

bb) Destes factos, verifica-se que:

– nenhum facto territorialmente localizado em Portugal foi alegado pelo autor;

– não se imputa à ré a prática de atos em Portugal;

– não há na petição inicial concretização de danos;

– não há alegação do momento e lugar do sofrimento desses danos;

– não há nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil

extracontratual;

– não se invoca qualquer dificuldade na demanda da ré no local da sua sede.

cc) De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC.

dd) Valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu.

ee) O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

ff) A ré não pratica qualquer ato lícito ou ilícito, em Portugal, sendo que os autos imputados pelo autor à ré localizados no estrangeiro, designadamente a produção dos jogos FIFA com a aposição da imagem do autor.

gg) O facto ilícito assacado à ré ocorre no estrangeiro, não relevando a difusão desse ato por terceiros – vide, em acórdão relativo à difusão de conteúdo na televisão nacional, o acórdão do TRP de 18.03.1999, Proc. n.º 9831155, no qual o se determinou que o tribunal territorialmente competente era o local do estudo de televisão e não o tribunal do local onde o autor alegou ter sofrido danos, designadamente no seu domicílio.

hh) Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

ii) Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

jj) Sucede que nem os factos alegados na petição inicial, nem os documentos juntos são, em tese, aptos a tal.

kk) Não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

ll) Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional, nem se indicando o momento em que tal se produziu.

mm) Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais  portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

nn) Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete ao Tribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

oo) O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorre em Portugal, não invoca qualquer dano que se tenha produzido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil localizada em Portugal.

pp) O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo, vendas que atribuiu a terceiros e não à ré.

qq) A conclusão de que o autor tem o seu centro de interesses em Portugal, logo os danos são localizados em Portugal, constitui utilização de presunção judicial para assunção de factos, ato vedado na apreciação da competência.

rr) Note-se que o TRP suporta essa presunção, desde logo, na aplicação de um conceito jurídico sem fonte normativa e de conteúdo indeterminado.

ss) Sem que se conheça que tipo de factos possam integrar o conceito de centro de interesses, o TRP presume que o autor dispõe de centro interesses em Portugal.

tt) Na petição inicial, o autor não alega, pois, qualquer facto com conexão com o território nacional e que integre a causa de pedir.

uu) Em caso algum se poderá ignorar, para efeitos da análise da competência, o que o próprio autor afirma na petição inicial sobre ser entidade terceira a responsável pelas vendas na Europa, incluindo por isso Portugal, designadamente a sociedade “…EA Swiss Sàrl, pessoa colectiva registrada no Registo de Pessoas Colectivas de Genebra com o número CH-660- 2328005-8 e sede em 8 Place du Molard, 1204 Genebra, Suiça…” (artigo 2.º da petição inicial).

vv) Acresce que os factos determinadores da competência internacional devem assumir conexão relevante com Portugal – acórdão do TRL de 08.10.2020, proc. 3231/19.6T8CSC.L1-2.

ww) Não podem ser os factos que ocorrem em todo o mundo e, por esse motivo, também em Portugal a justificar a avocação de competência, sob pena de se potenciar conflitos de soberania entre estados.

xx) O TRP reconhece a impossibilidade de identificar a localização geográfica e a data dos alegados danos, o que decorre da total ausência de alegação pelo autor sobre o respetivo local e  data de materialização, omissão que deve ser decidida em seu desfavor e não objeto de sanação pelo tribunal.

yy) Ao tribunal a quibus está vedado lançar mão de presunções judiciais para apreciar a competência, designadamente supor realidades que não estão na petição inicial, como seja o autor ter um centro de interesses em Portugal, que o local onde sofreu os danos foi o seu centro de interesses e que tais danos ocorreram em Portugal.

zz) A este respeito é igualmente proibido, à luz dos critérios de interpretação consagrados no direito português, utilizar conceitos jurisprudenciais do TJUE e sobre normas de regulamentos europeus inaplicáveis, nomeadamente o conceito de centro de interesses.

aaa) Sendo a existência ou não dum centro de interesses, numa determinada jurisdição, uma conclusão jurídica que assenta em determinados factos, da petição inicial não é possível identificar quaisquer factos que permitam suportar a existência de um centro de interesses em território nacional.

bbb) O conceito de centro de interesses não é um conceito normativo. Não tem qualquer fonte legal.

ccc) O conceito de “centro de interesses” é uma figura trabalhada pela jurisprudência do TJUE e indevidamente aplicada pelo TRG pois não existe qualquer lacuna na lei portuguesa que requeira integração através daquela figura.

ddd) O conceito de “centro de interesses” permanece, nos autos, de conteúdo desconhecido, não tendo o TRP oferecido qualquer definição do mesmo.

eee) Apesar da indeterminação do conteúdo do conceito de centro de interesses, tendo em conta as implicações do mesmo para sustentação de uma decisão de competência internacional,  sempre deveria ser preenchido com recurso a elementos concretos de ligação significava a um território, que sejam determinantes para a condução da vida e a tomada de decisões do autor.

fff) O autor não alega qualquer facto que demonstre uma conexão significativa ao território nacional, suficiente para a sustentação de um centro de interesses em Portugal.

ggg) Sem a alegação de factos que permitissem concluir que o seu centro de interesses se materializa em Portugal, o acórdão em crise aplica duas presunções de forma sobreposta e sobre a mesma realidade: o autor tem o seu centro de interesses em Portugal (1.º facto não alegado) e foi em Portugal onde sofreu danos (2.º facto não alegado).

hhh) Estes pressupostos que determinaram o sentido da decisão do acórdão em crise não estão alicerçados em alegação da petição inicial e existem num plano exclusivamente presuntivo!

iii) É exclusivamente, com base nas presunções judiciais que o tribunal conclui pela existência do centro de interesses do autor em Portugal e pela localização dos danos, o que é proibido pelo art.º 351.º do CC e pelo facto de não haver lugar a qualquer indagação probatória nesta fase.

jjj) A existência e análise de elementos de conexão para efeitos da apreciação da competência dos tribunais não é aferida por meio de prova testemunhal e muito menos por meio de presunções.

kkk) No caso em apreço, não fora a utilização de presunções pelo TRP e os factos alegados na petição inicial não permitiriam concluir pela existência de elementos de conexão com Portugal.

lll) Acresce que a aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados  por atos de terceiro, não permite justificar a declaração de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

mmm) A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional, precisamente o que se visa evitar em homenagem ao princípio da soberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

nnn) À luz da lei portuguesa, o domicílio do autor em nada releva para efeitos de aplicação do art.º 62.º do CPC e, sendo assim, muito menos relevará o centro de interesses.

ooo) A utilização do conceito de centro de interesses atenta contra as regras de interpretação do art.º 9.º do CC, já que o art.º 62.º estabelece, por si só, regulação suficiente sobre esta matéria, não havendo qualquer lacuna a entregar.

ppp) A consideração de um centro de interesses representa, inclusivamente, derrogação do disposto no art.º 62.º, afastando-se o respetivo regime para se solucionar esta ação à luz de norma de direito da UE inaplicável.

qqq) Neste âmbito, o legislador não quis consagrar o critério do domicílio ou centro de interesses ou da nacionalidade, sendo que o acórdão em crise atenta contra o que é a opção legislativa neste âmbito.

rrr) Por fim, importa notar que o exercício da atividade profissional de futebolista ou a residência, a dado momento em Portugal, não é um facto que integre a causa de pedir, por não respeitar a nenhum dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, designadamente, ao facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.

sss) O direito que o autor pretende fazer valer nestes autos não emerge do exercício da sua atividade profissional de futebolista, mas da invocação de violação do seu direito de imagem.

ttt) A causa de pedir, ainda que complexa, apenas compreende os factos aos cinco pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e não a factos que não visem comprovar tais pressupostos.

uuu) O exercício pelo autor da atividade profissional de futebolista em Portugal ou a residência, a determinada altura, não é um facto que preencha ou integre os pressupostos da responsabilidade civil da ré, designadamente, ação, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.

vvv) A adotar-se o entendimento do acórdão, qualquer facto em território nacional relativo ao autor equivaleria a facto que integra a causa de pedir, entendimento que obviamente contraria frontalmente o sentido normativo do princípio da causalidade.

www) No caso concreto, os factos relevantes prendem-se com a inclusão não autorizada da imagem do autor nos jogos FIFA, atuação que, sob nenhum prisma, ocorre em território nacional, como se reconhece nestes autos (autor incluído).

xxx) Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iii) não alegação de danos em Portugal e (iv) irrelevância da nacionalidade portuguesa ou do exercício da atividade de futebolista e residência, a dado momento, em Portugal, inexistem elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

yyy) Caso este Tribunal se pronuncie sobre o art.º 62.º, alínea c) do CPC – princípio da necessidade –, cumpre ressalvar que o autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

zzz) Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

aaaa) O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

bbbb) O autor chega a alegar factos na petição inicial que comprovam que os direitos que pretende exercer são reconhecidos na jurisdição norte-americana.

cccc) Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e não possa ser mantida, por ser inconstitucional a interpretação e aplicação da alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRG e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

dddd) São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas);

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório); e

– princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei.

eeee) Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ é suscitada para conhecimento expresso deste Supremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º- A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82.


O autor contra alegou defendo a confirmação da decisão recorrida

Colhidos os vistos cumpre decidir

… …

Considerando as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre verificar se os tribunais portugueses são competentes para apreciar o mérito da presente ação.

… …

Ainda que a extensão das conclusões possa suscitar reservas de que o recorrido faz eco, tem sido entendimento deste tribunal que o disposto  no 639.º nº 1 do CPC relativamente às conclusões de recurso, desde que existam, deve ser apreciado de forma que se sobreleve o conhecimento e delimitação do objeto do recurso e, no caso, esse objeto está definido nos termos sobreditos. Razão pela qual não se justifica qualquer convite ao aperfeiçoamento.


No conhecimento do objeto da presente revista foi proferido por este STJ em 13-10-2022 -  proc. 1014/20.0T8PVZ.P1.S1 (relator Cura Mariano) – decisão que constituí já a matriz de todas aquelas que em casos em tudo semelhantes este Tribunal tem vindo a conhecer e decidir de forma constante. Como assim, e de igual ao que tem sido realizado  noutras revistas em que a questão da competência internacional do tribunal se coloca em suturações de facto que têm os mesmos contornos e em que a similitude das conclusões é quase e transcritiva, seguiremos sem alteração de conceito e construção normativa aquele acórdão citado, e até sem reserva por transcrição, que aborda de forma completa e exemplar as questões suscitadas nas instâncias.

Está em discussão neste recurso a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar o mérito da presente ação.

Com a sua propositura, o Autor pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização, por violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem.

Para tanto, invoca que a Ré, que tem sede no Estado da Califórnia, dos Estados Unidos da América, utiliza, sem a sua autorização, o seu nome e a sua imagem, que inclui as suas características pessoais e profissionais, nos videojogos nas edições FIFA 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, FIFA MANAGER FIFA (inicialmente designado Total Club Manager), nas edições 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, e FIFA MOBILE, nas edições 2020 e 2021,  os quais são produzidos pela Ré nos Estados Unidos e comercializados em todo o mundo por empresas “subsidiárias” da Ré resultando dessa atuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor.

Os danos invocados pelo Autor são a exposição do seu nome e da sua imagem sem o recebimento de qualquer contrapartida, a influência negativa que a invenção de atributos físicos e técnicos àquele, nos referidos videojogos, poderá ter na sua vida profissional e pessoal, e os estados psicológicos de perturbação, desgosto, tristeza e revolta que o Autor sentiu ao constatar a utilização não consentida do seu nome e da sua imagem.

A causa de pedir invocada pelo Autor é plurilocalizada, uma vez que tem contactos com diferentes ordenamentos jurídicos. O Autor tem nacionalidade portuguesa e reside em Portugal, a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia), a produção dos jogos ocorreu precisamente nesse local, a difusão comercializada do nome e da imagem do Autor, sem consentimento deste, verificou-se por todo o mundo, e os sentimentos negativos experienciados pelo Autor sucederam nos locais onde ele se encontrava durante todo este período.

O acórdão recorrido decidiu que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente ação, ao contrário do que a ora recorrente pretende e do que já foi decidido em outros acórdãos das Relações proferidos em ações idênticas, interpostas por outros jogadores de futebol profissional que decidiram que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para julgar a presente ação, com o principal argumento de que não se verificaram em território nacional os danos causados pela invocada atuação ilícita da Ré, uma vez que não é o local onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o referido jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo Autor, incluindo os danos diretos invocados.


Da competência internacional dos tribunais portugueses

O artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, determina que a lei de processo fixe os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, dispondo o artigo 59.º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do mesmo diploma.

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível e comercial é o denominado Regulamento Bruxelas I bis (Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012). Com exceção das ações previstas nos artigos 18.º, n.º 1, 21.º, n.º 2, 24.º e 25.º deste Regulamento, onde não se inclui a presente ação, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha domicílio num Estado Membro. Se este requisito não se verificar, como sucede na presente ação, uma vez que a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América, o referido Regulamento determina que a competência dos tribunais dos Estados Membros seja a definida pelas leis internas destes (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis).

Como não existe nenhum instrumento internacional que vincule o Estado Português em matéria de competência judiciária aplicável à presente ação, é, portanto, à luz do disposto nos artigos 62.º e 63.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I, bis, que deve ser determinada a competência dos tribunais portugueses para decidir a presente ação.

No artigo 62.º do Código de Processo Civil são enunciados os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional, com origem legal, aos tribunais portugueses – o da coincidência (alínea a), o da causalidade (alínea b) e o da necessidade (alínea c). A escolha destes critérios visou corresponder à exigência de uma tutela efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, conferindo competência aos tribunais portugueses quando, pela sua proximidade com as partes e com as provas, se encontrem em condições de melhor dirimirem os litígios que necessitam de uma intervenção jurisdicional.

Segundo o critério da coincidência, que recorre a uma técnica legislativa de remissão intrasistemática [1], os tribunais portugueses são competentes sempre que a ação possa ser proposta em Portugal, segundo as regras específicas da competência territorial, estabelecidas na lei portuguesa (artigo 70.º e seguintes do Código de Processo Civil), atribuindo-se, assim, a estas regras a funcionalidade suplementar de determinarem a competência internacional dos tribunais portugueses, para além de definirem a competência territorial interna. A ideia que inspira a adoção deste critério é a de que os elementos de conexão utilizados para estabelecer a competência territorial interna traduzem um elo suficientemente forte entre a causa e o Estado português para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais.

No presente caso, estamos perante uma ação em que se pretende efetivar a responsabilidade civil extracontratual, pela violação, por ato ilícito, de direitos de personalidade, dispondo o artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que se a ação se destinar a efetivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.

Baseado na proximidade do tribunal com as provas dos factos que integram os diferentes elementos da causa de pedir de uma ação de responsabilidade extracontratual a aplicação deste critério sofre contestação e reserva quando a ação ofensiva decorre em local diferente onde se produzem os danos. Neste caso as provas dos factos que integram a causa de pedir encontrando-se espacialmente dispersas faz suscitar a polémica entre quem pretenda abrir a competência do tribunal para a  ação respetiva a qualquer um dos lugares em que se tenha produzido o dano - vg. Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2011, pág. 336. - à semelhança do que ocorre quando a ação se desenvolve plurilocalizadamente, em contraponto com posições que sustentam que, nessas situações, releva apenas o local onde ocorreu o comportamento do agente violador de direitos do lesado - vg.  Abrantes Geraldes, Paulo Pimenbta , Pires de Sousa Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 2018, vol. I, pág. 102.

Seja como seja, tais dificuldades não estão presentes no art. artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, porque este funciona como norma ad quam, das regras definidoras da competência internacional, uma vez que, segundo o critério da causalidade (artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil), os tribunais portugueses têm competência para decidir os litígios em que algum dos factos que integram a sua causa de pedir ocorra em território português - O aditamento da parte final da redação deste artigo, conferindo competência aos tribunais portugueses quando apenas alguns dos factos que integram a causa de pedir ocorram em território português, foi efetuado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, que reviu o Código de Processo Civil de 1961, consagrando a orientação jurisprudencial e doutrinal que vinha sendo seguida nesse sentido (v.g. ALBERTO DOS REIS, ob. cit., pág. 136-137,

Como se refere no acórdão que seguimos “Sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir.

No entanto, nestas situações, deve exigir-se, de modo a evitar que a competência determinada por este critério possa ser considerada exorbitante, que esses elementos da causa de pedir traduzam uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, designadamente que um significativo acervo das provas a produzir presumivelmente se situe em Portugal, numa aplicação da teoria do forum non conveniens.

É essa, aliás, a leitura que também tem sido feita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia das normas gémeas do artigo 7.º, 2), do Regulamento Bruxelas I bis, e dos artigos 5.º, n.º 3, dos anteriores instrumentos legais europeus que tiveram por objeto o estabelecimento de regras comuns de competência judiciária em matéria cível e comercial, a Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, a Convenção de Lugano de 16.09.1988, a Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e o Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, tendo, nesses casos, o Tribunal aplicado, com temperança, a regra da ubiquidade - Sobre a “rule of ubiquity”, na aplicação do artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis, THOMAS KADNER GRAZIANO, The Law Applicable to Cross-Border Damage to the Environment, Yearbook of Private Law, 2008, vol. 2007, pág. 74-76..


A jurisprudência do TJUE

No âmbito das ações de responsabilidade civil extracontratual por violações de direitos de personalidade, como os direitos ao nome, à imagem e à honra, através de meios de exposição globais, aplicando o artigo 7.º do Regulamento Bruxelas I bis e as normas que lhe antecederem contidas nos artigos 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas, de 27.09.1968, da Convenção de Lugano de 16.09.1988, da Convenção de Lugano II, de 30.10.2007, e do Regulamento n.º 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, o Tribunal de Justiça da União Europeia tem produzido jurisprudência precisamente em matéria de competência internacional.

Seguindo de novo o acórdão deste STJ citado “ O artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis, nas situações em que o demandado não tenha domicílio num Estado-Membro, como ocorre no presente caso, ao determinar uma remissão para as regras do direito processual civil do Estado Membro cujo tribunal é chamado a pronunciar-se, em matéria de competência internacional, sendo estas as normas aplicáveis nessas situações, denuncia que essas regras internas também fazem parte de um mesmo sistema de regras de conflito de competências instituído pelo Regulamento, que se pretende global e coerente.

Não deixamos, pois, de estar também aqui perante uma remissão intrasistemática, apesar da sua aparência extrasistemática. Este convívio, por efeito desta remissão, no nosso ordenamento jurídico das regras de direito europeu sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros da União Europeia, incluindo os tribunais portugueses (neste caso, o Regulamento Bruxelas I bis), e as regras do direito processual civil português sobre a mesma matéria, embora com um âmbito de aplicação distinto, exige a preservação da coerência sistémica do nosso ordenamento jurídico. Não só os conteúdos das normas internas sobre competência internacional não devem conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.

O TJUE, no Acórdão de 7.03.1995, Fiona Shevill, Ixora Trading Inc, Chequepoint SARL e Chequepoint Internacional Ltd contra Presse Alliance, S.A., relativamente à propositura de uma ação em que se pedia o pagamento de uma indemnização por difamação cometida através de um artigo publicado no jornal France Soir, à venda em vários países europeus, incluindo Inglaterra, onde a vítima residia, começou por sustentar que a expressão “lugar onde ocorreu o facto danoso”, utilizada no artigo 5.º, n.º 3, da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968, deveria ser interpretada no sentido de que a vítima pode intentar uma ação de indemnização contra o editor da publicação difamatória quer nos órgãos jurisdicionais do Estado onde se situa o estabelecimento da editora, quer nos órgãos jurisdicionais de cada Estado em que a publicação foi divulgada e onde a vítima alega ter sofrido um atentado à sua reputação, os quais seriam competentes para conhecer apenas dos danos causados no Estado do tribunal onde a ação foi proposta.

Neste aresto, o Tribunal considerou:

(...)

21. (...) que o lugar do evento causal, do ponto de vista da competência jurisdicional, pode constituir um critério de vinculação não menos significativo do que o critério do lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil do ponto de vista da prova e da organização do processo.

(...)

23. Estas considerações, feitas a propósito de danos materiais, devem ser válidas também, pelas mesmas razões, no caso de prejuízos não patrimoniais, nomeadamente os causados à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou coletiva por uma publicação difamatória.

(...)

28. O lugar de materialização do prejuízo é o local em que o facto gerador, implicando a responsabilidade extracontratual do seu autor, produziu efeitos danosos em relação à vítima.

29. No caso de uma difamação internacional através da imprensa, o atentado feito por uma publicação difamatória à honra, à reputação e à consideração de uma pessoa singular ou coletiva manifesta-se nos lugares onde a publicação é divulgada, quando a vítima é aí conhecida.

30. Daqui resulta que os órgãos jurisdicionais de cada Estado contratante onde a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação são competentes para conhecer dos danos causados nesse Estado à reputação da vítima.

31. Com efeito, de acordo com o imperativo de uma boa administração da justiça, fundamento da regra de competência especial do artigo 5., n. 3, o tribunal de cada Estado contratante em que a publicação difamatória foi divulgada e onde a vítima invoca ter sofrido um atentado à sua reputação é territorialmente o mais qualificado para apreciar a difamação cometida nesse Estado e determinar o alcance do prejuízo correspondente.

(...)

No entanto, uns anos volvidos, no Acórdão de 25.10.2011, e-Date Advertising GmbH contra X e Olivier Martinez contra MGN Limited, relativamente à propositura de ações de responsabilidade civil pela publicação em portais noticiosos na Internet já se entendeu que o artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, deveria ser interpretado no sentido de que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade extracontratual pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar onde se situa o estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos interesses do lesado.

Neste aresto, após se transcreverem múltiplas passagens do anterior acórdão Fiona Shevill, Ixora Trading Inc, Chequepoint SARL e Chequepoint Internacional Ltd contra Presse Alliance, S.A., acima mencionado, discorre-se nos seguintes termos:

(...)

45. Todavia, como alegaram tanto os órgãos jurisdicionais de reenvio como a maioria das partes e dos interessados que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça, a colocação em linha de conteúdos num sítio na Internet distingue‑se da difusão, circunscrita a um território, de um meio de comunicação impresso, na medida em que visa, em princípio, a ubiquidade dos referidos conteúdos. Estes podem ser consultados instantaneamente por um número indefinido de internautas em todo o mundo, independentemente de qualquer intenção da pessoa que os emitiu, relativa à sua consulta para além do seu Estado‑Membro de estabelecimento e fora do seu controlo.

46. Afigura-se‑, portanto, que a Internet reduz a utilidade do critério relativo à difusão, na medida em que o âmbito da difusão de conteúdos colocados em linha é, em princípio, universal. Além disso, nem sempre é possível, no plano técnico, quantificar essa difusão com certeza e fiabilidade relativamente a um Estado‑Membro em particular, nem, por conseguinte, avaliar o dano exclusivamente causado nesse Estado‑Membro.

47. As dificuldades de aplicação, no contexto da Internet, do referido critério da materialização do dano decorrente do acórdão Shevill, já referido, contrastam, como o advogado‑geral salientou no n.° 56 das suas conclusões, com a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo que viola o referido direito está disponível em qualquer ponto do globo.

48. Há, portanto, que adaptar os critérios de conexão recordados no n.° 42 do presente acórdão no sentido de que a vítima de uma violação de um direito de personalidade através da Internet pode intentar, em função do lugar da materialização do dano causado na União Europeia pela referida violação, uma ação num foro a respeito da integralidade desse dano. Tendo em conta que o impacto de um conteúdo colocado em linha sobre os direitos de personalidade de uma pessoa pode ser mais bem apreciado pelo órgão jurisdicional do lugar onde a pretensa vítima tem o centro dos seus interesses, a atribuição de competência a esse órgão jurisdicional corresponde ao objetivo de boa administração da justiça recordado no n.° 40 do presente acórdão.

49. O lugar onde uma pessoa tem o centro dos seus interesses corresponde em geral à sua residência habitual. Todavia, uma pessoa pode ter o centro dos seus interesses igualmente num Estado‑Membro onde não reside habitualmente, na medida em que outros indícios, como o exercício de uma actividade profissional, podem estabelecer a existência de um nexo particularmente estreito com esse Estado.

50. A competência do órgão jurisdicional do lugar onde a pretensa vítima tem o centro dos seus interesses é conforme ao objetivo de previsibilidade das regras de competência (v. acórdão de 12 de Maio de 2011, BVG, C‑144/10, ainda não publicado na Coletânea, n.° 33), igualmente a respeito do demandado, dado que a pessoa que emite o conteúdo danoso está, no momento da colocação em linha desse conteúdo, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas que são objeto deste. Deve, portanto, considerar‑se que o critério do centro de interesses permite simultaneamente ao demandante identificar facilmente o órgão jurisdicional a que se pode dirigir e ao demandado prever razoavelmente o órgão jurisdicional no qual pode ser demandado (v. acórdão de 23 de Abril de 2009, Falco Privatstiftung e Rabitsch, C‑533/07, Colect., p. I‑3327, n.° 22 e jurisprudência referida).

51. Por outro lado, em vez de uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade do dano, o critério da materialização do dano decorrente do acórdão Shevill, já referido, confere competência aos órgãos jurisdicionais de cada Estado-Membro em cujo território um conteúdo colocado em linha esteja ou tenha estado acessível. Estes são competentes para conhecer apenas do dano causado no território do Estado-Membro do órgão jurisdicional em que a ação foi intentada.

(...)

Mais tarde, no Acórdão de 17.10.2017, Bolagsupplysningen OU e Ingrid Ilsjan contra Svensk Handel AB, relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação numa página da Internet de dados incorretos e comentários difamatórios sobre uma sociedade comercial estónia, entendeu-se que o artigo 7.º ponto 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, deveria ser interpretado no sentido de que uma pessoa coletiva que alega que os seus direitos de personalidade foram violados pela publicação de dados incorretos a seu respeito na Internet e pela não supressão de comentários a ela relativos pode intentar uma ação destinada a obter a retificação desses dados, a supressão desses comentários e a reparação da totalidade do dano sofrido nos tribunais do Estado-Membro no qual se situa o seu centro de interesses.

Neste aresto, após se transcreverem múltiplas passagens do acórdão antes mencionado, acrescenta-se:

(...)

32. No contexto específico da Internet, o Tribunal de Justiça declarou, contudo, num processo relativo a uma pessoa singular, que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade dos danos causados nos órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro onde se encontra o centro dos seus interesses (acórdão de 25 de outubro de 2011, eDate Advertising, C-509/09 e C-161/10, EU:C:2011:685, n.º 52).

33. Quanto a esses conteúdos, a alegada violação é, com efeito, geralmente sentida mais intensamente no centro de interesses da pessoa visada, tendo em conta a reputação de que goza nesse local. Assim, o critério do «centro de interesses da vítima» traduz o local onde, em princípio, o dano causado por um conteúdo em linha se materializa, na aceção do artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, de modo mais significativo.

(...)

 Finalmente, no recente Acórdão de 21-12-2021, Gtflix Tv contra DR,  relativamente à propositura de uma ação de responsabilidade civil pela publicação em sítios e fóruns Internet de afirmações depreciativas da sociedade Gtflix Tv que se dedica à produção e difusão de conteúdos audiovisuais para adultos, voltou a ser reafirmada a jurisprudência dos acórdãos anteriormente mencionados, com transcrição das suas passagens mais relevantes, pronunciando-se no sentido que a ação indemnizatória poderá sempre ser proposta nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-membro onde aquelas afirmações depreciativas tenham estado acessíveis ao público, mesmo que esses órgãos não sejam competentes para conhecer dos pedidos de retificação e supressão desses conteúdos.


A aplicação ao caso concreto

Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, acolhemos a definição realizada pela jurisprudência acabada de citar uma vez que esta pondera equilibradamente a valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Repetindo-se com o acórdão deste STJ que nos serve de guião decisório que “ Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização. 

O facto daquela jurisprudência se debruçar, na maioria das situações, sobre violações de direitos de personalidade, através da Internet, não desaconselha a sua transposição para o presente caso, em que o instrumento da ofensa a esses direitos são videojogos mundialmente comercializados, em larga escala, uma vez que também a exposição dos seus conteúdos se carateriza pela ubiquidade, não tendo uma divulgação circunscrita a um território. Eles são visionados e operados por um número indefinido de jogadores, espalhados por todo o mundo, fora de qualquer controle do seu produtor, pelo que as ponderações efetuadas pelo TJUE, tendo em consideração a divulgação mundial de conteúdos ofensivos dos direitos de personalidade pela Internet, são aplicáveis a este caso.

Relembre-se que, na presente ação, o Autor fundamenta o pedido indemnizatório, por responsabilidade extracontratual, na violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem, no facto de um “seu avatar” ser um dos muitos protagonistas dos videojogos mundialmente comercializados (,,,) produzidos pela Ré, sem que tenha dado autorização para que o seu nome e imagem fossem utilizados, invocando como danos a ressarcir a exposição pública não autorizada do seu nome e imagem sem qualquer contrapartida, (…). Na versão apresentada na petição inicial, esses videojogos foram produzidos nos Estados Unidos da América (no Estado da Califórnia) e foram e são comercializados e difundidos por todo o mundo (…) tendo o Autor domicílio em Portugal e jogado profissionalmente até aos dias de hoje em clubes portugueses(…).

A competência internacional afere-se pelos termos como o autor configura a relação jurídica controvertida, e não, pelo que, mais tarde, será o a realidade que se vier a apurar em julgamento.

Por estarmos perante uma ação com uma causa de pedir complexa, do ponto de vista da competência jurisdicional, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, podem constituir critérios de vinculação quer o lugar do evento causal, quer o lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil, do ponto de vista da prova e da organização do processo, para se determinar qual é o tribunal ou tribunais que se encontram em melhores condições para proferir uma decisão de mérito informada.

Relativamente ao lugar onde ocorreu a ação causal do dano, há que ter em consideração, que a ação violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes. O Autor imputa a divulgação pública à Ré, responsabilizando-a por todos os danos resultantes desses atos e, nestes termos releva-se a perspetiva do Autor, apresentada na petição inicial, de que a Ré é a responsável pela produção, lançamento no mercado e divulgação por todo o mundo dos videojogos que identifica,

De novo com o acórdão deste STJ que vimos acompanhando “a ação causal imputada à Ré, pelo Autor, nesta ação, ocorre inicialmente nos Estados Unidos da América (a produção dos videojogos) e desenvolve-se, posteriormente, em todo o mundo (a comercialização dos videojogos), uma vez que a lesão deste tipo de bens de personalidade ocorre com a divulgação pública não autorizada do nome e da imagem do lesado.

Coisa diferente da lesão destes direitos de personalidade, são os danos que dela terão resultado na versão apresentada pelo Autor. Se a ação lesiva dos direitos do Autor se inicia, mas não se completa com a produção dos videojogos contendo o nome e a imagem do Autor sem o seu consentimento, já, os danos, ou seja, as consequências negativas para o lesado que resultaram dessa ação causal poderão ou não ocorrer no mesmo lugar em que essa ação teve lugar.(…) Os danos na ofensa aos direitos de personalidade ao nome à imagem são realidades distintas do ato lesivo e claramente diferenciadas quando este é apenas resumido à atividade criadora do suporte que contém o conteúdo lesivo, não se considerando a atividade de divulgação púbica generalizada.

Quanto ao lugar onde os danos invocados pelo Autor se verificaram, revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.

Nos casos em que os danos se prolongam no tempo e o centro de interesses do lesado vai variando ao longo desse tempo, localizando-se em diferentes Estados, a ação em que se reclame o pagamento de uma indemnização desses danos poderá ser intentada em qualquer uma das jurisdições desses Estados, desde que se verifique um elo suficientemente forte entre a causa e o foro escolhido para fundamentar a competência internacional dos seus tribunais, evitando-se, com esta restrição, os inconvenientes do denominado forum shopping.”

No caso em decisão, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem o seu centro de interesses localiza-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.

Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois era aí que o Autor se encontrava.

Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça.

Esta conclusão não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.

Por estas razões, deve ser negado provimento ao recurso interposto e na confirmação da decisão recorrida, reconhecer-se a competência aos tribunais portugueses para julgarem a presente ação, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil.

… …

Síntese conclusiva

- São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.

 - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, julgando-se improcedente a exceção da incompetência internacional do Juízo Central Cível ... determinando-se o prosseguimento do processo.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 10 de janeiro de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves