Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
464/19.9T8VRL.G1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ROSA TCHING
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
REVISTA EXCECIONAL
PRESSUPOSTOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 10/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. A revista excecional está prevista para situações de dupla conforme, nos termos em que esta está delimitada pelo nº 3 do artigo 671º, do Código de Processo Civil, desde que se verifiquem também os pressupostos gerais do recurso de revista “normal”, constituindo factor impeditivo de qualquer recurso de revista a existência de norma que vede o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

II. Em matéria de procedimentos cautelares, existe a norma do artigo 370º, nº 2 do Código de Processo Civil, que veda, em regra, o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, incluindo o que determine a inversão do contencioso, a não ser que se verifique qualquer uma das situações elencadas nas alíneas a) a d) do nº 2 do artigo 629º, do mesmo código, em que o recurso é sempre admissível. 

III. Daí constituir entendimento unânime, quer da doutrina, quer da jurisprudência, que, de harmonia com o disposto no artigo 370º, nº 2 do Código de Processo Civil, os acórdãos proferidos pela Relação em autos de procedimento cautelar, só podem ser objeto de recurso de revista “normal” nos casos excecionais previstos no citado artigo 629º, nº 2, não sendo admissível, quanto aos mesmos, recurso de revista, a título excecional.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




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I. Relatório

1. Prazeres da Terra - Produção, Comércio e Exportação de Produtos Regionais, Ldª., com sede na Rua …, n.° …, …, …, instaurou providência cautelar especificada de arresto contra AA, residente na Rua …, n.° …, .., …, pedindo que se decrete o arresto:

1º- da quantia de 22.908,98 euros, depositada à ordem do Proc. n.° 887/12.4…, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Execução de …;

2º- da quantia de 10.207,70 euros, correspondente à penhora dos saldos bancários pertencentes à requerida e efetuada no âmbito do Proc. n.° 1512/15…., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Local Cível de … - Juiz 2;

3º- do prédio urbano sito na Rua …, n.° 1, Bairro dos …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.° 23 e inscrito na respetiva matriz sob o art 57°;

4º- do prédio rústico sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz sob o art. 510; e

5º- do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca "Citroen", matricula …, com a remoção deste.

2. Realizado o arresto e citada a requerida AA,. deduziu a mesma oposição, requerendo que se julgasse improcedente a providência cautelar requerida pela requerente "Prazeres da Terra, Lda." e se ordenasse o levantamento do arresto decretado.

3. A requerente respondeu, impugnando parte dos factos alegados pela requerida na oposição e concluindo pela improcedência da oposição.

4. Em 17.04.2020, foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição, mantendo o arresto nos precisos termos determinados.

5. Inconformada com esta decisão, a requerida e opoente AA dela apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão proferido em 18 de junho de 2020, julgou procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgou procedente a oposição e ordenou o levantamento do arresto decretado nos autos.

6. Inconformada com esta decisão, dela interpôs a requerente recurso de revista, a título excecional, para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no art. 672º, nº1, al. a), do CPC, argumentando estar em causa uma questão cujo interesse ultrapassa a decisão do caso concreto, relevando para decisões futuras.

7. Apresentado o processo ao Senhor Juiz Desembargador relator, pelo mesmo foi proferido, em 28.07.2020, despacho de não admissão do recurso interposto pela requerente, com o fundamento de que, tendo o acórdão recorrido sido proferido no âmbito de um procedimento cautelar, resulta claro do disposto no art. 370º, nº 2 do CPC que uma tal decisão só é suscetível de recurso nos casos em que o recurso é sempre admissível, ou seja, nas exceções contempladas nas als. a), b), c) e d) do art. 629º, situações que não foram invocadas pela recorrente nem se verificam no caso dos autos.   

8. Discordando deste despacho de não admissão do recurso interposto, veio a requerente apresentar reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do nº 1 do art. 643º do CPC, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« I - Vem a recorrente reclamar do despacho, datado de 28/07/2020, que, entendendo que o acórdão recorrido não é recorrível, não admitiu o recurso interposto por aquela no pretérito dia 07/07/2020.

II - Com o devido respeito e por dever de patrocínio, a recorrente não partilha deste entendimento. De facto, não obstante estarmos no âmbito de um procedimento cautelar de arresto, a recorrente entendeu que se justificava a interposição do recurso de revista excepcional ora não admitido, invocando que estava "em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito" - cf. artigo 672°, n.° 1, a) CPC.

III - Ou seja, o recurso interposto tem natureza de revista excepcional, pelo que, salvo melhor opinião, é da competência deste Supremo Tribunal aferir da verificação de algum dos casos especiais de admissibilidade do recurso.

IV - Na verdade, os contornos do caso concreto não encontram solução reiterada e expressa na jurisprudência, sendo, por isso, uma questão merecedora de superior ponderação jurisprudencial, porque suscetível de provocar divergências.

V - Ora, o que está em discussão, em linhas gerais, prende-se com saber se se encontram preenchidos os pressupostos legais para o decretamento da providência cautelar de arresto, designadamente, no que concerne à existência, liquidez e exigibilidade do crédito de que se arroga a aqui recorrente titular sobre a recorrida, isto é, saber se o decretamento da providência cautelar de arresto se basta ou não com a probabilidade séria da existência do crédito da primeira sob a segunda.

VI - Após ter sido decretado o arresto pela Primeira Instância, recorreu a requerida para o tribunal recorrido, o qual revogou a sentença recorrida, que julgou a oposição ao arresto improcedente, e substituíram-na por outra em que julgam procedente essa oposição e ordenam o levantamento do arresto decretado nos autos.

VII - Ora, o que ocorreu no caso em apreciação nos presentes autos, pode muito bem repetir-se noutros que ainda não tenham sido levados à superior apreciação deste Supremo Tribunal, pois a questão aqui em causa tem relevância jurídica e é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e tem relevância eminentemente prática, passível de se repercutir noutros casos exatamente iguais ou apenas semelhantes.

VIII - Se se entender como entendeu o tribunal a quo, então na prática os credores vêm-se impedidos de recorrer ao procedimento cautelar de arresto quando esteja em causa um crédito como o dos autos, mesmo quando tenham sido provados factos que comprovem o justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito, como é o caso sub judice.

IX - Ora, salvo melhor opinião, no caso dos autos, o crédito da recorrente é exigível e existente, na medida em que esta tem um crédito reconhecido judicialmente sobre a requerida Helena, em face da decisão proferida na qualificação da insolvência da Prazeres na Loja - Produtos Regionais, Lda. Tal crédito está perfeitamente determinado, não sendo, salvo opinião em contrário, futuro, hipotético e eventual, como entendeu o acórdão recorrido.

X - Ao contrário do que parece ser o entendimento do acórdão recorrido, entendimento este que se pode repercutir em outras decisões judiciais, a Lei não estabelece que, para ser decretado o arresto, seja necessário que se prove que o crédito seja certo, líquido e exigível, bastando somente que se prove a probabilidade séria da sua existência no momento do decretamento da providência cautelar em causa.

XI - Além de que o acórdão recorrido veio revogar a sentença de primeira instância, não se tratando, portanto, de decisão que tenha confirmado esta decisão sem fundamentação diversa.

XII - De modo que, a recorrente interpôs recurso de revista excepcional pois que a solução a que chegar este Supremo Tribunal pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, não se limitando a sua utilidade e os seus efeitos práticos ao caso concreto sub judice. Tem assim capacidade de expansão da controvérsia, uma vez que ultrapassa os limites da situação singular aqui em discussão, pelo que, a utilidade da decisão a proferir na presente revista extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no conflito dos autos. Sendo, portanto, também patente por este aspeto a relevância jurídica da questão, que urge esclarecer para se obter uma melhor aplicação do direito.

XIII - Por tudo isto, justificava-se que este Supremo Tribunal de Justiça apreciasse o objeto do referido recurso, o que se requereu em tal recurso de revista excepcional.

XIV - Diga-se ainda que, atendendo ao invocado pressuposto para o recurso de revista excepcional, deve ser este Supremo Tribunal de Justiça a verificar se o mesmo se encontra ou não preenchido, nos termos legais. Na verdade, não estamos perante um recurso de revista ordinário, mas sim perante um recurso de revista excepcional, que foi interposto pela recorrente e cuja admissão deve ser aferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.

XV - Por conseguinte, salvo melhor entendimento, o recurso interposto pela recorrente deve ser admitido.

XVI - Ao não admitir o recurso interposto do despacho recorrido, o tribunal a quo fez, salvo melhor opinião, errada interpretação e aplicação das disposições conjugadas dos artigos 641.°, n.° 2, al. a) e 672.°, ambos do CPC.».

Termos em que requer seja atendida a presente reclamação.

 

9. A requerida respondeu, pugnando pela manutenção da decisão de não admissão do recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto do acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Guimarães, atendendo à natureza cautelar do processo, sob pena de violação do disposto nos artigos 370º, n.º 2 e 629º, n.º 2, todos do CPC;

 

10. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal, em 10 de setembro de 2020, foi proferido despacho de não admissão do recurso de revista, com o seguinte teor:

« (…)  A questão a dirimir na presente reclamação prende-se com a admissibilidade do recurso de revista interposto pela requerente, a título excecional e com fundamento no disposto no art. 672º, nº2, al. a), do CPC, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação  no âmbito do presente procedimento cautelar de arresto.


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A este respeito, cumpre, desde logo, referir que, como ensina Abrantes Geraldes[1], a revista excecional está prevista para situações de dupla conforme, nos termos em que esta está delimitada pelo nº 3 do art. 671º, desde que se verifiquem também os pressupostos gerais do recurso de revista “normal”, constituindo factor impeditivo de qualquer recurso de revista a existência de norma que vede o acesso ao STJ.

E a verdade é que, em matéria de procedimentos cautelares, existe a norma do art. 370º, nº 2 do CPC, que veda, em regra, o recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, incluindo o que determine a inversão do contencioso, a não ser que se verifique qualquer uma das situações elencadas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.  

Equivale tudo isto por dizer, conforme entendimento unânime quer da doutrina, quer da jurisprudência[2], que, de harmonia com o disposto no art. 370º, nº 2 do CPC, os acórdãos proferidos pela Relação em autos de procedimento cautelar, só podem ser objeto de recurso de revista “normal” nos casos excecionais previstos no citado art. 629º, nº 2, não sendo admissível, quanto aos mesmos, recurso de revista, a título excecional.

Daí que, não tendo a recorrente invocado, como fundamento do recurso de revista, nenhuma das situações previstas no art. 629º, nº 2, als. a), b), c) e d), mostra-se respeitado o preceituado no citado art. 370º, sendo, por isso, de manter a rejeição do recurso de revista interposto pela requerente, ao abrigo do disposto no nº 2, al. a), do citado art. 641º.


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III. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, não se admite o recurso de revista interposto, indeferindo-se a presente reclamação.

Custas do incidente pela reclamante.

Notifique.».


11. Vem, agora, a recorrente, requerer, nos termos do artigo 652.º.n.º 3 do Código Processo Civil, que sobre a matéria do despacho singular recaia o competente Acórdão, reiterando os fundamentos já invocados.


12. Não foi deduzida resposta.


13. Cumpre, pois, apreciar e decidir.


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II - Do mérito da reclamação


A questão a dirimir na presente reclamação prende-se com a admissibilidade, ou não, do recurso de revista interposto, a título excecional, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 18 de junho de 2020.


Analisada por este coletivo toda a fundamentação do despacho reclamado, conclui-se por manter integralmente essa fundamentação.


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III - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em confirmar a decisão da relatora de não admissão do recurso de revista interposto.

As custas do incidente da reclamação fica a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.


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Supremo Tribunal de Justiça, 29 de outubro de 2020


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Bernardo Domingos, que compõem este Coletivo.

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Catarina Serra

José Manuel Bernardo Domingos

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[1] In “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, págs. 378, 387 e 388. 
[2] De que são exemplo os Acórdãos de 21.02.2019 ( revista excecional  nº 428/18.0T8FNC.L1.S1) e de 06.06.2019 ( revista excecional nº 254/16.0YHLSB.L1.S1), citados no despacho reclamado.