Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
669/16.4T8BGC.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: EQUIDADE
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: PUBLICADO EM CADERNOS DE DIREITO PRIVADO, Nº 71, ANOT. POR M. TEIXEIRA SOUSA (FLS. 39-51)
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- António Braz Teixeira, Reflexão sobre a Justiça, Nomos. Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado, n.º 1, Janeiro-Junho 1986;
- António Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, Revista de Direito e Estudos Sociais, vol. IV, p. 124;
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 378;
- José Hermano Saraiva, Equidade, VELBC, vol. VII, p. 731 e ss.;
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984;
- Paulo Ferreira da Cunha, L’Équité: Le legs realiste classique et la pensée de Michel Villey, “Notandum”, ano X, n.º 15, 2007, p. 5 e ss. ; Teoria Geral do Direito, Oeiras, A Causa das Regras, 2019, e Idem, Repensar o Direito Internacional, Almedina, 2019, p. 181 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º, N.º 4 E 566.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-12-2017, PROCESSO N.º 589/13.4TBFLG.P1;
- DE 06-12-2018, PROCESSO N.º 652/16.0T8GMR.G1.S2.
Sumário :
I – É possível ao Supremo Tribunal de Justiça aplicar critérios de equidade, nomeadamente ao nível indemnizatório, não se aderindo ao entendimento segundo o qual tal categoria pertenceria ao domínio do facto e não do direito. Além disso, um “controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado” na grande maioria dos casos, conseguirá obter resultados muito idênticos, se não até exatamente os mesmos, ao uso da equidade tout court.

II – Além da equidade, igualmente proporcionalidade, igualdade e razoabilidade levam a que o montante da indemnização por danos não patrimoniais possa ser considerado não como uma espécie de simples bónus ou suplemento, mas, pelo contrário, como um “proporcionar um certo desafogo económico ao lesado que de algum modo contrabalance e mitigue as dores, desilusões, desgostos e outros sofrimentos suportados e a suportar por ele, proporcionando-lhe uma melhor qualidade de vida, fazendo eclodir nele um certo optimismo que lhe permita encarar a vida de uma forma mais positiva”, como já declarado por este Supremo Tribunal, em Acórdão de 11 de janeiro de 2011.

III – Na atribuição de indemnização por danos não patrimoniais a um trabalhador rural, sinistrado sem qualquer culpa própria, afetado bastante fisicamente e nos seus magros rendimentos, tem de ter-se em conta o sofrimento acrescido pela sua condição e angústia da incerteza quanto ao futuro e à possibilidade de poder fazer-lhe face, pela diminuição das possibilidades de trabalho braçal, que exerce. Procurando propiciar-lhe um mínimo de segurança financeira que lhe permita de algum modo uma aproximação à reposição do statu quo ante.
Decisão Texto Integral:



Proc.º n.º 669/16.4T8BGC

1.ª Secção


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

Relatório

1.AA, identificado no processo, instaurou uma ação contra BB Seguros S.A, igualmente identificada no processo, pedindo a condenação desta última em danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de um acidente de viação, na quantia de € 79.940,31, assim como o pagamento de todas as despesas hospitalares e ainda os juros desde a citação, à taxa legal, e custas, procuradoria e demais encargos.

2.Como fundamento do pedido, alegaria, em síntese, que no dia 22 de Junho de 2015, pelas 17 horas e 58 minutos, na aldeia de ..., mais concretamente na estrada municipal 1..., município de ..., distrito de ..., ocorreu um acidente de viação.

3.Tal acidente ocorreu entre o veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo Corsa (propriedade de CC, mãe da condutora DD) com a matrícula 00-00-JI, e o ciclomotor, marca E.F.S., modelo Luxo, com a matrícula 00-NB-00; conduzido pelo seu dono e aqui autor, AA.

4.Este veículo circulava no sentido ... ... a 20 Km/h, e o

outro veículo no sentido oposto.

5.Esta última ia a descer e o A. a subir numa reta de 250 m, estrada ladeada por inúmeras vivendas, não se podendo circular a uma velocidade superior a 50 km/h; e quando se aproximou da curva acentuada para a esquerda atento o seu sentido de marcha, surgiu o veículo seguro em ziguezague sem controlo, ocupando parte da hemi-faixa contrária ao seu sentido de marcha.

6.Pelo que chocou com o motociclo do A. na parte lateral esquerda e parte da frente esquerda, tombando o veículo e o A. para o chão e contra o muro de vedação ao poste de iluminação pública assinalado no croquis.

7.Em consequência dessas queda e colisão, sofreu o A. as lesões descritas nos autos, que lhe determinaram uma I.P.P de 22/%; o que lhe dificulta o trabalho atual e comprometerá o futuro e tem implicações limitadoras na vida corrente. Designadamente se afirma (art. 50 da petição inicial): “o autor sente muitas dores na zona do peito, região dorsal, perto da zona renal e no braço esquerdo, sentido, amiúde, dormência na zona do braço, designadamente se fizer esforços, o que lhe dificulta a realização de algumas tarefas quotidianas e do foro laboral”.

8.Contestou a Ré, alegando em síntese, que confirma a existência do contrato de seguro do veículo identificado na P.I, mas, nas circunstâncias de tempo e lugar, descritas pelo A. devido ao facto de este ter perdido o controlo do seu veículo, invadiu a faixa de rodagem do veículo seguro, tendo, em consequência, colidido com a lateral esquerda na traseira do JI; este ainda travou, mas, à velocidade a que o A. circulava, o embate foi inevitável na faixa de rodagem em que circulava o veículo seguro; pelo que a responsabilidade pela ocorrência é do A. E o dano patrimonial peticionado foi considerado exagerado.


9.Ulteriormente, a fls. 349 e ss, veio o Centro Hospitalar de ... instaurar contra as FF e a EE Seguros SA, devidamente identificadas no processo, ação com vista ao pagamento das despesas decorrentes dos tratamentos ao A. em consequência do acidente.


10.Pedindo-lhes a quantia de € 27.468,50, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa legal desde a data da citação até efetivo e integral pagamento. Alegando que, sendo uma unidade pública que presta cuidados de saúde no âmbito do Sistema Nacional de Saúde, nessa qualidade prestou serviços de saúde e tratamentos médicos e medicamentosos ao A. no montante peticionado.


11.Para o efeito, além do mais, alegou os factos da ocorrência do acidente em coincidência com os alegados pelo A. na P.I. Terminado assim por concluir que o veículo seguro foi quem deu causa ao acidente e como tal a seguradora responsável pelo pagamento das despesas hospitalares. E fê-lo com base no disposto na al. c) do nº 1 do art. 23 do D.L n.º 11/93 de 15/1 por remissão do n.º1 do art. 4 do D.L 218/99 de 15/6.


12.Decidiu o Tribunal Judicial da Comarca de ... da seguinte forma, dando parcialmente provimento ao A.: “Nesta conformidade e sem necessidade de mais considerandos julga-se a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e em consequência decide-se: Condenar a ré FF S.A ( ex-BB) a pagar ao autor: €50.000,00 a título do dano biológico e 3.610,00 de lucros cessantes e despesas. No total de € 53.610,00 ( cinquenta e três mil e seiscentos e dez euros) e ainda condená-la a pagar: A quantia de €27.468,50 (vinte e sete mil quatrocentos e sessenta e oito euros e cinquenta cêntimos) mais juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento ao Centro Hospitalar ....
Custas   pelo   autor e   pela  ré   FF,   S.A   (ex-BB)   de   acordo   e correspondência com o vencimento e decaimento.
No que concerne às custas relativamente ao pedido do Centro Hospitalar serão suportadas na integra pela referida Seguradora. Finalmente absolver a ré EE Seguros S.A.”

 
13.Inconformado, o A. interpôs recurso per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, circunscrito a matéria de direito, considerando ocorrer sucumbência parcial da ré (em valor superior a metade da alçada da Relação) e ao abrigo do disposto no art. 678 n.° 1 do CPC.


14.Nas respetivas conclusões, o A. considera:
“1ª. - Por sentença proferida em 30 de Março de 2019, o Mer. Juiz a quo declarou parcialmente procedente a presente acção, condenando a Ré FF S.A (ex-BB) a pagar ao Autor a quantia de €50.000,00 a título do dano biológico e 3.610,00 de lucros cessantes e despesas, no total de € 53.610,00 (cinquenta e três mil e seiscentos e dez euros).
Salvo o devido respeito por opinião contrária, os montantes fixados para ressarcir o dano biológico (dano patrimonial futuro e o dano não patrimonial) são escassos, como a seguir se demonstrará, não se afigurando como justo e equilibrado tal valor indemnizatório.
2ª. - O lesado tem direito a ser indemnizado por danos patrimoniais futuros resultantes de incapacidade permanente, prove-se ou não que, em consequência dessa incapacidade, haja resultado diminuição dos seus proventos do trabalho (diminuição da capacidade geral de ganho).
3ª. - Para o cálculo justo e equilibrado do dano patrimonial futuro diversos métodos podem e devem ser ensaiados como instrumentos de trabalho, designadamente o uso da fórmula, que nos parece sugestiva e muito adequada, defendida no acórdão da Relação de Coimbra, de 04/04/1995, CJ, tomo II, pág. 23, não se dispensando o recurso à equidade, conforme o disposto no artigo 566º n.º 3 do Código Civil, os critérios jurisprudenciais adotados em casos idênticos, devendo ainda ser ponderados diversos factores, como sejam o vencimento anual do lesado, a sua esperança de vida, o tempo provável de vida laboral, a idade, o défice funcional permanente atribuído, etc
4ª. - Para alcançar tal desiderato entendemos ser imperioso valor os concretos pontos ou factores de ponderação e que - na nossa opinião - não foram devidamente sopesados pelo tribunal a quo e melhor escalpelizados nas págs 5, 6, 7 e 8 destas alegações, designadamente idade (48), esperança média de vida, patamar da vida activa, défice funcional de 20,67 pontos, sequelas concretas do acidente que obrigam a terapêutica permanente (ablação do baço, diminuição de força no membro superior esquerdo em consequência do esfacelo de partes moles, as fraturas dos arcos costais e múltiplas cicatrizes, designadamente no braço e antebraço esquerdos, dores na zona do peito, região dorsal, perto da zona renal e no braço esquerdo, acompanhadas de dormência na zona do braço, designadamente se fizer esforços), bem como o rendimento mensal e anual que o sinistrado auferia.
5ª. - O Mer Juiz a quo teria de considerar e ponderar, o que, se bem cuidamos, não fez, para efeitos de cálculo do rendimento anual do sinistrado, o salário mínimo nacional (14 vezes ao ano), bem como outras fontes de rendimento, designadamente as jeiras que fazia e que recebia e quanto a estas ficou provado que auferia 160,00€ mensais das jeiras da agricultura e 250,00€ mensais de jeiras na construção civil (factos provados 69, 87 e 88), pelo que o rendimento mensal a considerar nunca poderia ser inferior a 1.010,00€ (600 + 250€ + 160€) e o valor anual de 13.320,00€ - (600 x 14 meses = 8.400€) + (250 x 12= 3.000€) + (160 x 12 = 1.920€).
6ª. - Por seu turno, o quantum da indemnização por danos não patrimoniais deve ser significativo, visando propiciar adequada compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, tendo em conta os padrões jurisprudenciais atualizados.
 7ª. - O Mer. Juiz a quo teria de ponderar e valorar, de forma justa, equilibrada e igualitária os factos dados como provados e melhor escalpelizados supra nas páginas 10 e 11, com vista à fixação de uma indemnização em virtude dos danos não patrimoniais sofridos (autonomizando depois ou não tal categoria dentro do dano biológico), designadamente o facto de o autor ter sofrido dores físicas intensas (grau 5 numa escala de gravidade crescente de 7 graus), prejuízo estético (grau 4 numa escala de gravidade crescente de 7 graus) , muito sofrimento, quer durante o período de cura, quer por se sentir diminuído no seu aspecto físico e na sua capacidade para os exercícios físicos do dia-a-dia e na sua capacidade laboral, bem como a angústia de não conseguir arranjar trabalho, compatível com a sua experiência, bem como angústia de não poder trabalhar nas lides agrícolas ou nas suas profissões habituais e de vir a padecer de futuros problemas de saúde em consequência da ablação do baço, o défice funcional permanente que ficou a padecer (20,67 pontos), as variadas intervenções cirúrgicas a que teve de ser submetido e o longo período de internamento, com períodos de coma induzido (10 dias), bem como o tempo necessário para a recuperação, incluindo as consequências do facto de estar acamado por largos dias, com o aparecimento de feridas ou escaras (pontos 33 até 41), a culpa grave e exclusiva da condutora do veículo e situação económica do lesado, que se encontrava desempregado à data do acidente.
8ª. - Cotejando o sinistro em apreço (e toda a matéria de facto dada como provada) com outras situações que já passaram o crivo judicial, designadamente junto deste Supremo Tribunal, será imperioso concluir que o valor fixado a título de dano biológico peca por manifestamente baixo. Vejam-se designadamente as decisões referidas no corpo destas alegações.
9ª. - Contrariamente ao que sucedeu na decisão recorrida, ponderando correctamente todos os pontos referidos supra (conclusões 4ª., 5ª. e 8ª.) e designadamente não olvidando a circunstância de o autor não ter tido qualquer culpa na eclosão do acidente, antes o mesmo se deveu a culpa acentuada e exclusiva da condutora do veículo segurado na ré, o período de quase 4 anos que intercedeu entre o acidente e a sentença proferida em 1ª instância (22-06-2015 e 30-03-2019), obrigando a cálculo actualizado da indemnização (arts. 566º., nº. 2); em juízo de equidade, e ponderando casos similares ao dos presentes autos e os valores arbitrados pela nossa jurisprudência, afigura-se-nos equitativamente adequada e equilibrada, a indemnização global peticionada de 79.940,31€ (setenta e nove mil novecentos e quarenta euros e trinta e um cêntimos) ou , se se entender autonomizar as categorias de danos patrimoniais e não patrimoniais, as quantias parcelares de 57.200,00€, que acrescerá aos danos não patrimoniais no valor de 20.000,00€ e aos lucros cessantes que o tribunal a quo considerou e em que condenou.
10ª. - Ao não ponderar e/ou ao não valorizar correctamente o quadro referido supra, a decisão recorrida violou, nesta matéria, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 483º, 496º., 562º, 564º e 566º do CC, normativos que deveriam ter sido ponderados e aplicados no sentido de que, face a todos os danos sofridos e todo o circunstancialismo dado como provado, a indemnização justa e equitativa nunca poderia ser inferior ao valor peticionado e referido supra.
11ª. - Dado que a matéria do presente recurso se circunscreve a matéria de direito e houve sucumbência parcial da ré (em valor superior a metade da alçada da Relação) requer-se, nos termos do disposto no art. 678° n.° 1 do CPC, que o mesmo suba, "per saltum", para o Supremo Tribunal de Justiça.”


15.Notificada do recurso, FF, S.A, veio contra-alegar subscrevendo a sentença recorrida.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II

                          Dos Factos

Deu-se como provado o seguinte, no Tribunal de primeira instância:

1º- No dia 22 de Junho de 2015, pelas 17 horas e 58 minutos, na aldeia de ..., mais concretamente na estrada municipal 1..., município de ..., distrito de ..., ocorreu um acidente de viação, em que tiveram intervenção o veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo Corsa, com a matrícula 00-00-JI, aqui também designado como veículo nº. 1, propriedade de CC e o ciclomotor, marca E.F.S., modelo Luxo, com a matrícula 00-NB-00, aqui também designado como veículo nº. 2, conduzido pelo seu dono e aqui autor, AA.

2º. - No referido dia, o veículo identificado com o nº. 1 era conduzido por DD, filha da proprietária do veículo, a qual, com a autorização e segundo a vontade e ordens de sua progenitora, tripulava tal veículo.

3º. - A proprietária do veículo em causa tinha então a direção efetiva do mesmo e tripulava-o no seu próprio interesse, ainda que conduzido, naquele dia e hora, por um terceiro, a sua filha, a quem o tinha emprestado.

4º. - O Autor circulava no seu ciclomotor, no sentido ...- .../..., aldeias do município de ... e o outro veículo (veículo nº. 1) seguia no sentido oposto, isto é em direção ao centro da aldeia de ....

5º. - O ora autor conduzia o veículo referido dentro da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha.

6º. - E tripulava um ciclomotor e o percurso que efetuava configura uma subida com inclinação.

7º. - O ciclomotor do autor é um veículo dotado de duas rodas, tem 33 anos de antiguidade, com 50 cm3 de cilindrada, é um veículo com uma velocidade máxima, em patamar e por construção, não superior a 45 km/h2 (vide certificado de matrícula como documento nº. 1).

8º. - O autor conhece muito bem a estrada em questão, sendo certo que há mais de 20 anos que a percorre e, porque conhece bem a referida estrada, sabe que o percurso é sinuoso, com variadas curvas e contracurvas, com inclinação acentuada em alguns pontos,  onde já ocorreram acidentes de viação. (vide sequência fotográfica, retirada do programa Google Earth, que reconstitui o percurso  seguido pela condutora do veículo nº.  1, desde o entroncamento da aldeia de ... até ao local do embate que se junta como doc. nº. 2).

9º. - No aprazado dia, o céu estava limpo, não tinha chovido, pelo que a estrada, que é de asfalto, encontrava-se em boas condições de circulação.

10º. - Enquanto o autor seguia na referida subida, rumo ao cruzamento que depois flete para as aldeias da ... e de ..., percorrendo uma reta com cerca de 250 m, a condutora do veículo nº 1 seguia no sentido oposto, isto é no sentido descendente, rumo ao centro da aldeia de ....

11º. - Desde o referido cruzamento até ao local onde ocorreu o acidente, seguindo assim o percurso então efetuado pela condutora, sempre a descer, estrada essa ladeada por vivendas, não podendo circular-se a velocidade superior a 50 km/h (vide 2 Vide fotografias extraídas do programa Google earth que reconstituem o referido percurso feito pela condutora do veículo nº. 1 (doc. nº. 2).

12º. - Nos referidos dia e hora, a condutora do veículo ligeiro de passageiros (veículo nº. 1) circulava naquela estrada a uma velocidade, não apurada mas superior ao limite legal, que no local era de 50km/h.

13º. -Impedindo-a de controlar a dinâmica do veículo e, designadamente de o imobilizar ou diminuir a velocidade, de forma segura, caso se deparasse com situação de perigo.

14º. - O Autor, quando se estava a aproximar do final da dita reta, que desemboca numa

curva acentuada para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, pôde percecionar que, em sentido contrário, ainda antes de atingir a dita curva,  se aproximava o veículo nº.  1,

desgovernado, em ziguezague, sem controlo.

15º. - Ocupando nesse ziguezaguear quer parte da hemi-faixa esquerda, quer parte da hemi-faixa direita (vide fotografias que retratam a dita reta que o autor percorria como doc. nº. 4).

16º. - E o automóvel seguro na ré, quando já se encontrava a fazer a dita curva, travou e passou a descrever uma trajetória enviesada, a pender para a sua esquerda, isto é invadindocada vez mais a hemi-faixa por onde o autor circulava aproximando-se cada vez mais deste.

17º. - O Autor não conseguiu impedir que a condutora do veículo, a referida DD, invadisse a hemi-faixa de rodagem onde ele circulava e viesse embater com a sua parte lateral esquerda na parte da frente e esquerda do motociclo, tombando o veículo e o autor para o chão junto à vedação aí existente e o candeeiro de iluminação pública, assinalado no croquis referido sob a al. f).

18º. - A colisão ocorreu então quando o Autor se encontrava sensivelmente em posição perpendicular ao dito candeeiro.

19º. - Sendo então visíveis, nessa concreta zona da colisão, sita na hemi-faixa do autor, atento o seu sentido de marcha, os vidros e partes do veículo ligeiro de passageiros, designadamente pedaços do protetor lateral e do farolim do ciclomotor que se desprenderam com o embate. (reportagem fotográfica doc. nº. 5, fotos g), h), i), j), k), e l), capturadas no dia 22/06/2015).

20º. - A estrada em questão tem 5,07 metros de largura, junto ao armazém identificado no “croquis”/planta (como documento n°. 3, tem 5,30 m).

21º. - E na zona do embate atrás assinalada é de 5 metros a largura do espaço com pavimento em alcatrão, sendo de cerca de 1,70 m a largura da berma, constituída por piso em terra e erva, sendo certo que o embate se deu junto da valeta e perpendicularmente ao dito candeeiro.

22º. - O veículo segurado na ré tem 372,9 cm de comprimento, por 161 cm de largura, ao passo que o ciclomotor do autor tem 1,20 m de comprimento por 0,20 de largura (doc. nº. 6).

23º. - Por força desse embate, o ora autor e o seu veículo foram tombados. (conforme o descrito no art. 17 desta peça) vide as fotos e croquis (reportagem fotográfica que se juntou como doc. nº. 5, designadamente foto g) capturada no dia 22/06/2015).

24º. - Tendo o autor ficado prostrado na valeta, paralelamente/em frente ao referido candeeiro público, em posição de decúbito dorsal com a cabeça orientada para o centro da aldeia de ... e com parte do ciclomotor sobre o seu corpo.

25º. - Quando entrou na curva, a condutora do veículo automóvel indicado com o nº. 1, travou, deixando no pavimento rastos de travagem de mais de 30 metros, rastos esses que se iniciaram antes do local de embate e seguem sempre em oblíquo, a orientar ou fletir para a esquerda (atento o sentido de marcha da condutora), ocupando assim cada vez mais a hemi-faixa por onde o A. circulava (doc. nº. 5, nomeadamente fotografias f), m), o), p), q) e r) juntas com a P.I).

26º. - Acabando por embater no autor e seu motociclo, acertando-lhe com a parte do veículo correspondente ao espaço que vai desde a abertura da porta do condutor até toda a porta traseira do passageiro - vide doc. nº. 5, nomeadamente fotografias c), e), e f).

27º. -Tendo partido, com tal impacto, o vidro traseiro que se desfez em pedaços.

28º. - O veículo continuou a sua marcha, marcando o asfalto com a sua travagem, tendo o pneu esquerdo traseiro rebentado, deixando marcas no alcatrão, e vindo a imobilizar-se, ficando virado em sentido contrário ao que seguia, com a parte da frente virada para .../... e ocupando a hemi-faixa direita, isto é, a hemi-faixa por onde o autor seguia (cfr citadas fotografias juntas como doc. nº. 5, capturadas no dia seguinte ao acidente).

29º. - O Autor manteve-se consciente.

30º. - E a condutora do veículo segurado na ré imediatamente após o embate, poucos minutos depois, afirmou e repetiu por variadas vezes ao Autor, a seus familiares e outras testemunhas que tudo iria correr pelo melhor e que pagaria todas as despesas e tudo o que fosse necessário.

31º. - Ao local acorreram os Bombeiros Voluntários de ..., que prestaram os primeiros socorros ao autor, tendo sido transferidos para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de ..., transporte esse a cargo dos bombeiros GG e HH (vide documento nº. 8).

32º. - Aí foi observado, tendo sido pedida a ajuda do CODU/HELI para estabilização no SUB, tendo sido entubado e ventilado e transferido para o Centro Hospitalar do ... E. P. E., sito em ..., em virtude de agravamento clínico e choque hemorrágico, onde deu entrada ainda no referido dia 22 de Junho. - vide documentos nº.s 9 e 10 juntos com a P.I.

33º. - Uma vez aí chegado, sempre consciente, embora muito queixoso pela dor, os clínicos decidiram realizar uma intervenção cirúrgica, mais concretamente laparotomia exploradora.

34º. - Ainda na referida urgência, o corpo clínico constatou (e vazou tal realidade no diário clínico do paciente) uma laceração extensa a nível do antebraço esquerdo região externa com visualização de tendões em toda a superfície (fls 1 do doc. nº. 9), bem como indicação de que o baço apresenta contornos regulares com textura heterogénea, verificando-se alterações em relação com rutura esplénica. Esboçam-se alguns focos hiperdensos no seu interior em fase venosa, podendo estar em relação com hemorragia ativa. Pequena quantidade de líquido hemático peri-esplénico. Observam-se várias áreas hipovasculares no terço inferior do rim esquerdo, em relação com laceração renal. Associa-se pequeno hematoma subcapsular. Espessamento da fáscia para-renal esquerda. Pequeno hemoperitoneu na cavidade pélvica. Nas partes esqueléticas avaliadas notam-se fraturas no terço médio da 3ª., 4ª., 5ª., 6ª., 7ª. e 8ª. costelas à esquerda, com desalinhamento dos topos ósseos na 5ª. costela e com um fragmento óssea na vertebra interna com 11 mm… há um fragmento ósseo, com 20 mm na região nadegueira esquerda (doc. nº. 9).

35º. - Depois da intervenção cirúrgica referida supra em 35, o autor foi imediatamente transferido do Bloco Operatório de ... para o SUB de ..., onde deu entrada no dia seguinte, dia 23 de Junho de 2015, 38º. - Os clínicos confirmaram então, para além do mais, que se tratava de: politraumatizado grave, com variadas costelas partidas (da 3º à 8º), com contusão pulmonar e respiratória aguda,  contusão miocárdica, ferida cortocontusa peitoral suturada e com lesões dos tecidos moles adjacentes, trauma abdominal fechado, laceração do hilo esplénico, fratura renal e com hematoma retroperitoneal esfacelos com feridas corto contusas lineares do antebraço e braço, insuficiência suprarrenal aguda.

36º. - Dia 25 de Junho, o autor regressa ao bloco operatório, sendo colocados drenos, mantendo então a disfunção renal, hematoma retroperitoneal e hematoma renal (laceração grau III) - vide doc. nº. 10, fls 5 juntos com a P.I.

37º. - O autor ficou então em coma induzido durante mais de 10 dias, sendo-lhe ministrada morfina, antibióticos e outros medicamentos, sendo depois transferido novamente para o Centro Hospitalar de ... a 03 de Julho de 2015, onde permaneceu internado até ao dia 21 de Julho.

38º. - A partir de tal data, o autor regressou a casa e, durante, pelo menos 15 dias, permaneceu na cama, sendo auxiliado pelos familiares em todas tarefas quotidianas e essenciais, designadamente nas idas à casa-de-banho, para comer ou para se vestir.

39º. - Decorrido tal período de 15 dias, o autor começou a sair da cama e a procurar andar sem ajuda de terceiros, apoiado a um pau, sendo certo que para se vestir e tomar banho ainda necessitou da ajuda de familiares durante mais de um mês.

40º. - Durante mais de um mês após a saída do hospital, o autor só saia de casa para se dirigir ao centro de saúde ou hospital de ..., onde foi seguido em variadas sessões de fisioterapia e para mudar os curativos.

41º. - Mercê do seu prolongado internamento e, portanto do acidente que lhe deu causa, durante o mesmo, o autor teve períodos em que permaneceu em coma, portanto, sem fazer qualquer movimento corporal, surgiu uma escara profunda no calcanhar do autor, que lhe acarretou mais dores e necessidade de tratamento adequado para sarar tal ferida profunda.

42º. - E em 21 de Dezembro de 2015 foi consultado pelo especialista em ortopedia e traumatologia, pós-graduado em avaliação de dano corporal, Dr. II, que se pronunciou no sentido de que, como consequência direta e necessária do acidente aqui em crise, resultou para o autor “trauma toraco-abdominal grave: Esfacelo do antebraço e braço esquerdos Trauma esplénico com esplenectomia Trauma renal esquerdo Trauma torácico com contusão pulmonar, volet torácico esquerdo e hemotórax. (cfr. relatório médico de avaliação do dano corporal doc. nº. 11 junto co a P.I).

43º. - Ainda segundo tal Clínico, o autor apresenta sequelas permanentes e irreversíveis que implicam uma diminuição da sua capacidade laboral e alterações da sua vida de relação. De entre tais sequelas, destaca a ablação do baço, que obrigará a terapêutica permanente, a diminuição de força no membro superior esquerdo em consequência do esfacelo de partes moles, as fraturas dos arcos costais e múltiplas cicatrizes, designadamente no braço e antebraço esquerdos, sendo as maiores com 10 e 11 centímetros e ainda várias cicatrizes abdominais, a maior com 22 cm.

47º (sic). - Como consequência direta e necessária do sinistro e das lesões sofridas, resultou para o autor dano estético de 4 em 7 e quantum doloris de 5 em 7.

48º. - Segundo a avaliação especializada e técnica de tal Clínico foi proposta a seguinte incapacidade: Mf1401 - 3 pontos Cb0405 - 4 pontos Vb0302 - 10 pontos Pa0101 - 5 pontos.

49º. - Correspondendo assim a uma incapacidade parcial permanente de 20,67 pontos, sem rebate profissional mas a exigir esforços acrescidos.

50º. -No presente, o autor sente dores na zona do peito, região dorsal, perto da zona renal e no braço esquerdo, sentido, amiúde, dormência na zona do braço, designadamente se fizer esforços, o que lhe dificulta a realização de algumas tarefas quotidianas e do foro laboral.

51º. - Por causa do sinistro e das consequentes lesões, o autor suportou, algumas despesas conexionadas com o acidente, designadamente algumas despesas médicas e medicamentosas, despesas de deslocação de e para os hospitais e clínicas, quer de táxi, autocarro, quer em automóvel cedido e/ou tripulado por terceiros.

52º. - O que, aliado, às memórias do acidente, o receio que sentiu de poder morrer ou ficar, até ao fim dos seus dias, confinado a uma cama, bem como a dificuldade em voltar a conduzir e voltar a trabalhar, lhe trouxe angústia, ansiedade, antes do sinistro o autor não sofria de qualquer lesão ou limitação.

53º. - O veículo seguro que havia sido emprestado à referida condutora pela sua própria progenitora, utilização essa que era conhecida e autorizada pela referida mãe.

54º.-A legitimidade e responsabilidade da ré, BB, resulta do facto de haver chamado a si a obrigação de indemnizar os danos causados (pelo menos) a terceiros pela circulação do 00-00-JI, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº. 0000000004, (sic).

55º. - Como consequência direta e necessária do referido sinistro, resultaram danos no ciclomotor do autor, que ficou muito danificado, obrigando a uma reparação mecânica no valor de 641,00€, com IVA já incluído, implicando a substituição de variadas peças ou componentes, conforme fatura/recibo documento nº. 14.

58º. - Quantia, esta que já foi paga pelo Autor, que se viu obrigado a proceder à reparação, a expensas suas, do ciclomotor em causa de molde a poder continuar a utilizar o referido veículo na sua vida quotidiana.

59º. -A ré Seguradora declinou qualquer responsabilidade na produção do sinistro.

60º. - Quantia esta que o A. não suportaria se, por um lado, não tivesse havido necessidade de reparar o seu veículo (por via do acidente).

61º. - Por causa das consultas, meios de diagnóstico, medicamentos e tratamentos e deslocações atrás referidos nesta petição, o autor fez as seguintes despesas:

62- Deslocações:

- De táxi: desde o local da sua residência, sito na aldeia da ... até ao Centro Hospitalar de ... e Centro de Saúde para fisioterapia e mudança de pensos e outros curativos, nos dias 28, 29, 30, 31 de Julho, 3, 6, 10, 12, 14, 18, 21, 25, 28 de Agosto, 01, 03, 08, 10, 18, 21 de 23 de Setembro, todos de 2015, tendo gasto a quantia global de 260,00€ (doe. n°. 16 e boletim clínico do Centro de Saúde de .... 63º - Consultas:

-           de medicina dentária para conserto da prótese dentária superior, que sofreu fratura em consequência do acidente aqui em crise (doc. nº. 17) 30,00€.

-           consulta com médico especialista para avaliação do dano corporal  (doc.  nº.

11)150,006

-           Roupa e outros objetos danificados no acidente: botas impermeáveis de biqueira de aço -45€

-           t-shirt-10e - calças de ganga, de cor azul-25€ - capacete ficou com variados riscos, sendo necessário o seu polimento, implicando o pagamento de quantia não inferior- a 20,006-relógio de pulso-30€.

64º.  - Ao longo da sua vida laboral,   o  autor  sempre  desempenhou  funções essencialmente braçais, implicando esforços físicos intensos.

65º. - O Autor iniciou o seu percurso laboral com cerca de 18 anos de idade, trabalhando então na construção civil, o que fez até sensivelmente ao ano de 2009.

66º. - Depois dessa data, passou a trabalhar na construção da Autoestrada do Nordeste, atual A4, trabalho que desempenhou durante cerca de 3 anos. A partir de 2012 passou a estar inscrito no Centro de Emprego de ..., tendo então sido colocado no Agrupamento de Escolas de ..., desempenhando funções de limpeza e jardinagem, a que se seguiu novo contrato com a Junta de Freguesia da ..., fazendo então trabalho de cantoneiro de limpeza, contrato este que cessou pouco tempo antes da ocorrência do sinistro, tendo já sido informado de que a Junta de Freguesia iria celebrar novo contrato com o Autor para permanência nas referidas funções.

67º. - Assim, na data do acidente, o sinistrado, ora autor, estava desempregado, encontrando-se inscrito no Centro de Emprego de ... (vide doc. 18).

68º. - À data do acidente o autor era um homem saudável e ativo, que, nas horas vagas, designadamente aos fins-de-semana, trabalhava nas lides agrícolas quer tratando de terrenos próprios, quer trabalhando à jeira para outras pessoas e, em alturas, como a referida, em que não tinha ocupação profissional, aceitava pequenos trabalhos de construção civil e na agricultura, trabalhando ao dia ou à jeira.

69º. - Na aldeia da ..., um jornaleiro ganha habitualmente a quantia de 50€ por dia, valor que o autor auferia, designadamente nos meses da apanha da azeitona (Novembro e Dezembro), fazendo nunca menos de 20 jeiras, e aquando da limpa ou poda das oliveiras, fazendo cerca de 4 dias, totalizando, pelo menos, 24 jeiras por ano e, portanto 1.200,006.

70º. - Como consequência direta e necessária do acidente de viação, designadamente por causa das dores que sentia (dores toráxicas, renais e no braço esquerdo), dificuldades de movimentação, das intervenções cirúrgicas a que foi submetido, o autor não pôde trabalhar durante 180 dias, isto é, desde a data do acidente (22 de Junho de 2015) até 18-12-2015, conforme certificados de incapacidade temporária, subscritos pelo respetivo médico de família.

71º. - E depois da referida data, o autor continuou, como continua, a sentir dores fortes e intensas, designadamente no braço, zona lombar e peito, o que o impediu de trabalhar à jeira para outras pessoas, assim perdendo o rendimento referido supra (1.200,006) e que todos os anos auferia.

72º. - E teve de contratar três pessoas que realizassem o trabalho de apanha da azeitona dos seus terrenos agrícolas, tendo gasto a quantia global de 150,006 (506 x 3).

73º. - Durante os referidos 180 dias em que não pôde trabalhar, o autor perdeu rendimentos.

A3, 2) - danos futuros previsíveis, decorrentes da incapacidade parcial permanente:

74º. - Na data do acidente, o sinistrado, ora autor, contava 48 anos de idade (cfr certidão de nascimento que se junta como doc. nº. 20).

75º. - Os dados das Tábuas Completas de Mortalidade para Portugal relativas ao período 2012-2014, divulgados pelo INE, referem que o valor da esperança de vida à nascença foi estimado em 80,24 anos para ambos os sexos, sendo de 77,16 anos para os homens e de 83,03 anos para as mulheres.

76º. - Teria, portanto, uma esperança média de vida de, pelo menos, mais 29 anos, período durante o qual poderia obter rendimentos.

77º.  -  À data do  sinistro,   o  autor  era uma  pessoa  saudável,   sem  defeitos  físicos, designadamente sem cicatrizes.

78º. - E, antes do acidente, desenvolvia as atividades quotidianas, profissionais e agrícolas com facilidade e destreza, sem esforço e sem se cansar, o que presentemente não acontece dada a sua atual incapacidade.

79º.  - As lesões atrás mencionadas e suas consequências, designadamente a referida incapacidade parcial permanente de 20, 67 pontos estão a influenciar negativamente a vida do ora autor, diminuindo a sua capacidade física e a sua capacidade para o trabalho e para as outras tarefas do dia-a-dia.

80º. - Devido às lesões sofridas e suas sequelas, ora autor não consegue presentemente trabalhar muito tempo seguido, necessitando de fazer pausas, pois sente dores e dormência no braço esquerdo, na zona renal e peito e tem de fazer um esforço suplementar para conseguir o mesmo resultado anterior.

81º. - O autor já não consegue trabalhar como trabalhava nas suas lides agrícolas, de onde também retirava rendimentos, quer por efeito das jeiras que recebia, quer pelo cultivo de terrenos próprios de onde retirava rendimentos.

82º. - O autor e a sua esposa são proprietários de alguns terrenos, aptos para cultura, sitos no município de ...,  terrenos,  estes,  que  o  autor  cultiva  de  forma, permanente, de onde retira alimentos para consumo próprio e para venda (cfr. documento nº. 21).

83º. - Em tais terrenos têm plantadas e a produzir mais de 234 oliveiras, com produção anual de azeite de cerca de 320 litros, vendendo-se o garrafão de 51 a 15 €, o que totaliza o valor global de 960€.

84º. - Possui ainda cerca de 50 castanheiros, cuja produção de castanha destinado a consumo próprio e à venda, sendo certo que no ano de 2015 colheram 400 kg, teve de recorrer à ajuda de familiares para proceder à respetiva apanha da castanha, obtendo um rendimento de cerca de 400 € (400 kg x 1 €)

85º. - O autor tem ainda terrenos de horta onde semeia e colhe, para consumo próprio, batatas, couves, feijões, cebolas, alfaces, tomates, abóboras, figos, maças, peras, pêssegos, assim poupando quantia não inferior a 50,00€ mensais na aquisição em supermercado de tais produtos.

86º. - Mesmo depois de atingir a idade da reforma, era intenção e vontade do autor continuar a trabalhar nas lides agrícolas quer nos seus referidos terrenos, quer à jeira para outras pessoas, vontade essa que foi coartada pelo acidente ocorrido uma vez que o autor não conseguirá realizar tais trabalhos com a mesma destreza e facilidade que fazia antes do sinistro, sendo certo que os trabalhos agrícolas são trabalhos muito duros do ponto de vista físico.

87º. - O rendimento líquido que o autor obtinha da agricultura, contabilizando as jeiras que fazia e o rendimento que retirava dos seus terrenos, ascendia, em média, a quantia não inferior a 160,00€ mensais.

 88º. - E em jeiras de construção civil, fazendo pequenos trabalhos ao fim-de-semana ou em dias livres, como pinturas, construção de anexos, colocação de telhados, não recebia menos de 3.000,00€/ano- (60x50€), 250,00 € mensais.

89º. - As dores físicas, o prejuízo estético e o sofrimento do ora autor, quer durante o período de cura, quer por se sentir diminuído no seu aspeto físico e na sua capacidade para os exercícios físicos do dia-a-dia e na sua capacidade laboral, bem como a angústia de não conseguir arranjar trabalho, compatível com a sua experiência.

b)         A angústia de não poder trabalhar nas lides agrícolas ou nas suas profissões habituais, como sempre fizera, sentindo-se não útil para ajudar ao sustento da família.

c)         - a angústia de vir a padecer de futuros problemas de saúde em consequência da ablação do baço, o que sempre obrigará a vigilância e terapêutica;

d)        - o medo de morrer.

e)         Dores sofridas (grau 5 numa escala de gravidade crescente de 7 graus);

f)         Dano estético (grau 4 numa escala de gravidade crescente de 7 graus);

g)         O défice funcional permanente que ficou a padecer (20,67 pontos);

h) As das lesões sofridas (ablação do rim, diminuição de força no membro superior esquerdo em consequência do esfacelo de partes moles, as fraturas dos arcos costais e múltiplas cicatrizes.

90º- A actividade agrícola o trabalho não é diário nem contínuo, mas antes sazonal.

96 (sic) - O Hospital requerente é uma entidade pública empresarial que presta cuidados de saúde integrada no Serviço Nacional de Saúde e foi criada pelo Decreto-Lei n.º 50-A/2007 de 28 de Fevereiro, por fusão do Centro Hospitalar de .../..., E.P.E. com o Hospital Distrital de ... e o Hospital Distrital de ..., e sucedeu às unidades de saúde que lhe deram origem em todos os direitos e obrigações.

97º. - Como consequência direta, necessária e adequada do acidente, o sinistrado do veículo nº - 2, com a matrícula 00-NB-00, teve necessidade de ser admitido no Serviço de Urgência do Autor no dia do acidente e submetidos a vários tratamentos médicos.

98º.- Os episódios de urgências, exames complementares de diagnóstico, internamento, consultas e demais cuidados de saúde dos sinistrados orçaram na quantia total de 27.468,50.

99°. - Desde 28.07.2015, e daí em diante, por diversas vezes, a R. seguradora foi contactada no sentido de, voluntariamente, proceder ao pagamento da quantia em dívida, sem que, no entanto, tenham efetuado qualquer pagamento.

100°. - Desde 13.07.2016, e daí em diante, por diversas vezes, a 2a-R. foi contactada no sentido de, voluntariamente, proceder ao pagamento da quantia em dívida, sem que, no entanto, lograsse pagar.

Cumpre apreciar e decidir

III

Fundamentação

1.Antes de mais, importa curar da admissibilidade deste recurso, que é feito sob a modalidade per saltum.

A decisão sumária da Conselheira Ana Paula Boularot (295/04.0TBOFR.1.S1 – 6.ª secção, 26 / 1/ 2016) sintetiza os requisitos essenciais da mesma: “I Interposto que seja um recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, há que apreciar se se verificam os requisitos prevenidos no artigo 678º, nº1, alíneas a), b), c) e d) do CPCivil, dos quais dependem o conhecimento da Revista assim interposta, isto é se, tal como alegado se mostra pelo Recorrente: i) se o valor da causa é superior à alçada da Relação; ii) se o valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação; iii) se apenas se suscitam aqui questões de direito, nomeadamente, a interpretação jurídica a dar quer aos pedidos efectuados; iv) se não está em causa qualquer decisão interlocutória.”.

Cremos não haver impedimento, desta banda, à referida admissão, por nenhum dos referidos aspetos.

2.É nas Conclusões do Recurso que encontramos as questões a responder. E, muito especificamente, a matéria de direito em causa (que é, por regra, o que exclusivamente cumpre apreciar ao Supremo Tribunal de Justiça) é, aqui, a interpretação / aplicação (concretização) de normas: no caso, relativas ao montante da indemnização.

Com efeito, recorde-se o que o A. diz, quase in fine das suas Conclusões: no seu entendimento, a “decisão recorrida violou, nesta matéria, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 483º, 496º., 562º, 564º e 566º do CC, normativos que deveriam ter sido ponderados e aplicados no sentido de que, face a todos os danos sofridos e todo o circunstancialismo dado como provado, a indemnização justa e equitativa nunca poderia ser inferior ao valor peticionado e referido supra”.

3.É certo que a douta sentença recorrida dá, no domínio dos factos, substancial razão ao ora Recorrente, que não teve qualquer culpa no acidente e arcou com sofrimentos e danos muito consideráveis. Porém, em que medida há cabal indemnização pelos danos resultantes do acidente (art. 483)? Os danos não patrimoniais foram acautelados devidamente, sendo graves, e tal corresponde a uma medida equitativa (art. 496, máx. n.º 1 e n.º 4)? A indemnização ao menos se aproxima, na reparação que propicia, de uma forma de aproximar o vitimado do statu quo ante, de que usufruía antes do sinistro (art. 562)? E atendeu, grosso modo se diga, não apenas ao dano emergente como ao lucro cessante, tendo ainda em atenção os danos (ou prejuízos) futuros decorrentes do sinistro na pessoa do sinistrado (art. 564)? É aquilo que se procurará responder, de forma holística, com os considerandos subsequentes.

4.Importa, porém, antes de mais, precisar algumas ideias fundamentais sobre o problema do enquadramento do juízo de equidade, categoria jurídica que deverá estar, de um modo ou de outro, em tela de fundo de uma decisão, como a presente, sobre montantes indemnizatórios; quiçá se justificando tal mais ainda, ao menos no plano da legitimação pelo procedimento (recordando Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfaheren, 2.ª ed., Neuwid, 1975), tratando-se de um recurso per saltum, em que tal juízo não conta com um parâmetro prévio de intermediação após o primeiro julgamento da causa.

5.No seu Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 378, Antunes Varela (que – deve referir-se – sempre desejou acautelar a unidade do sistema jurídico), depois de explicar que a equidade é a “justiça do caso concreto”, avança que o significado da expressão na lei é o da possibilidade, dada ao juiz, de se afastar claramente da norma aplicável, em certas circunstâncias.

O que para nós tem mais relevância, hic et nunc, é que o ilustre civilista sublinha o desvio da norma aplicável permitido ao juiz. Tal parece, assim, encontrar-se do lado das funções jurisdicionais especificamente de direito do julgador, e não meramente no domínio dos factos. Por razões de equidade não procede o juiz dando como apurados ou não estes ou aqueles factos, mas usando a norma de maneira menos convencional, no limite, com finalidade de justiça do caso concreto.

6.No mesmo sentido vão António Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier, na “Revista de Direito e Estudos Sociais”, vol. IV, p. 124 que, igualmente depois de definirem a equidade como a justiça do caso concreto, referem: “Ao julgar segundo a equidade dá-se ao caso a solução que parecer mais justa, atendendo unicamente à sua especificidade e prescindindo das normas gerais e abstractas eventualmente aplicáveis”.

7.Já Aristóteles debateu a questão da relação entre o équo e o justo, tendo chegado à conclusão que “o équo, sendo superior a uma certa justiça, é em si mesmo justo, e não é como pertencendo a um outro género diferente que ele é superior ao justo” (Ética a Nicómaco, V, 14 – 1137 b). Acrescentando: “Há assim realmente identidade entre o justo e o equitativo, e ambos são bons, embora o équo seja o melhor dos dois.” (Ibidem), dando mesmo célebre exemplo da Régua da Ilha de Lesbos, adaptável, pela sua ductilidade, aos objetos a medir (Ibidem). Para mais desenvolvimentos cf. Francesco D’Agostino, Epieikeia. Il tema dell’equità nell’antichità greca, e La tradizione dell’epieikeia nel medioevo latino, editados nos anos ’70 do séc. XX pela Giuffrè (e Paulo Ferreira da Cunha, L’Équité: Le legs realiste classique et la pensée de Michel Villey, “Notandum”, ano X, n.º 15, 2007, p. 5 ss..).

8.É globalmente este, com efeito, o significado prevalecente na doutrina e mesmo na vox populi. Esta última acaba por, sem os conhecer, sintonizar com máximas tais como: non omne quod licet honestum est (D. 50.17.144), semper in dubiis benigniora praeferenda (D. 50.17.56), et dubia sunt in meliore parte interpretanda (Summa Th. IIa, IIae, q. 60, art. 4).

9.Podem, porém, descortinar-se três funções para a equidade, e por essas funções ser-nos-á possível cunhar três tipos de equidade e três entendimentos a seu respeito:

1) “instrumento de individualização das normas”;

2) “fonte subsidiária de integração” das mesmas – e contudo, para alguns, como Maggiore e Recasens-Siches, ela seria uma espécie de “super-fonte”, “fonte universal do direito”.

3) “corretivo para as consequências injustas da norma jurídica” – esta última, aliás, muito próxima da posição de Cabral de Moncada ainda. (Cf. o erudito artigo de José Hermano Saraiva, “Equidade” in VELBC, vol. VII, cols. 731 ss.)

10.Como facilmente se retira desta enunciação, em nenhum caso se está no plano dos simples factos, mas sempre no plano do direito. Metodologia ou instrumentarium de recorte mais adequado de normas é direito, é prática de direito, de indagação e construção jurídica; fonte de direito, ainda que subsidiária, é igualmente questão de direito; e mesmo quando corretivo do direito não pode deixar de ser ainda direito – porque corretivo de um certo direito, de uma sua interpretação e não do direito que se tem por justo.

11.No mesmo sentido, vários autores, entre os quais Vives, aproximam a equidade do Direito Natural (que é – embora pouco na moda - Direito – embora haja quem o posso considerar filosofia ou moral ou mesmo política). O não recurso à equidade, nos casos em que ela é a solução aconselhável (como em casos mais singulares ou excecionais, mas não apenas), seria uma violação do Direito Natural segundo o Aquinate (Summa..., IIa IIae, q. 60, 5, 2).

12.Mesmo autores geral e fundamentalmente  avessos à categoria, como parece haver sido o nosso Correia Teles (Discurso sobre a equidade, 1824), acabam por não prescindir inteiramente da mesma, e dentro do sistema: assim, a equidade “natural” remete para perspetivas jusnaturalistas (que são ainda jurídicas), e a equidade “hipotética” acaba por confundir-se com os princípios gerais do sistema jurídico. Estes últimos, como se sabe, têm uma interessante história, entre o art. 16 do Código de Seabra e o art. 10, n.º 3 do Código Civil em vigor, e ao nível internacional os princípios são reconhecidos pelo art. 38 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, devendo, embora a concreta expressão constante dessa norma ser objeto de uma interpretação atualista (Cf. Paulo Ferreira da Cunha, Teoria Geral do Direito, Oeiras, A Causa das Regras, 2019, e Idem, Repensar o Direito Internacional, Almedina, 2019, p. 181 ss. V. ainda, por todos (e são muitos), o clássico Clapham, Andrew, Brierly’s Law of Nations, 7.ª ed., Oxford, Oxford Univ. Press, 2012, p. 63 ss..).

13.Insiste-se: uma identificação da equidade com o Direito Natural não a retira do âmbito jurídico; mas, mesmo que assim se pensasse (considerando o Direito Natural metajurídico, moral, etc.), sempre restaria a perspetiva da equidade como equivalente aos princípios jurídicos, e, nessa medida, plenamente jurídica (“Que todo o ordenamento jurídico é constituído por normas de tipos diferentes, expressas ou não (...) e que algumas dessas possuem (...) o estatuto ou valor de ‘princípios’ é coisa que os juristas sabem e teorizam desde sempre” – começa por afirmar Riccardo Guastino em prefácio ao tratado de Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 19.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2019, p. 13).

14.Neste tipo de casos, importa precisar que tipo de equidade está em causa. Não é, verdadeiramente, corretivo da norma que implique consequências injustas; antes se encontra entre a fonte auxiliar de integração (ajudando à individualização, rectius, concretização da norma no caso como justiça do caso concreto).

15.Em nenhuma dessas modalidades ou funções parece ser apenas questão de facto, ou de facto não já transmutado em Direito. Para lembrar a metáfora do mítico rei Midas, aliás usada por Hans Kelsen na sua Reine Rechtslehre (trad. port. e prefácio de João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed.  port., Coimbra, Arménio Amado, 1976, p. 376) e mais remotamente o brocardo ex facto oritur ius. Mas, para além desse problema complexo, da mutabilidade do facto em direito, ou da origem factual do direito (e isso nos levaria para a falácia naturalística), sabemos que do que há que curar aqui é da cisão metodológico-processual entre facto e direito (a célebre Questão-de-facto / questão de direito da tese de António Castanheira Neves). Que tem consequências na decisão ou não da questão nesta sede.

16.Com muita agudeza de espírito alude ao problema a tese, bem mais recente, de Delphine Louis-Caporal, La Distinction du Fait et du Droit en Droit Judiciaire Privé, na Universidade de Montpellier, defendida em 2014. E afirma, logo no início da sua longa indagação:

“Por que o jurista se ocupou do direito, sabe distingui-lo do facto. Porque o direito se distingue do facto (...) ele ganha em importância e o jurista, conhecendo-o, firma-se numa legitimidade no campo social (...). Para se assegurar essa legitimidade, o jurista será tentado a limitar o seu estudo ao objeto ‘direito’, e excluindo dele o facto. A distinção entre o facto e o direito passa assim a ser garantia de cientificidade.” (p. 15).

17.E acabará por, pouco depois, se perguntar pelo fenómeno da juridificação dos próprios factos:

“Podemos legitimamente perguntar-nos se estes factos a que o direito determina um regime não entraram no domínio jurídico, se não se trata de factos qualificados, se não existe uma categoria jurídica ‘facto’” (p. 16).

O facto tende a aproximar-se do Direito, ou o Direito a absorver o facto.

18.E afinal, ainda que mal se pergunte, de que Direito se trata? O que temos por Direito, para este efeito, pelo menos? Não desejamos uma indagação teórica e erudita, mas encontrar noção operacional, que nos esclareça o problema em mãos.

O problema, quando se afirma a colocação da equidade do lado dos factos e não do Direito, não terá na sua base um quadro de identificação, ao menos tendencial do Direito com a lei? É que, evidentemente, a equidade não é, em si, direito “legal” – muito importante mas apenas uma das modalidades jurídicas, das formas de direito (v., v.g., Francisco Puy, Tópica Jurídica, Santiago de Compostela, Paredes, 1984, p. 269 ss..). É, porém, em geral, direito jurisprudencial (cfr. ibidem, p. 531 ss.). Ou seja, direito que pode ser feito pelos tribunais, e mesmo pelos juristas em geral, de acordo com parâmetros do sistema jurídico e de justiça, obviamente, e não subjetivamente, ou como “direito livre” (cf. Juan Vallet de Goytisolo, Metodología Juridica, Madrid, Civitas, 1988, p. 183). É o que se retiraria também já de Aristóteles, Ética a Nicómaco, livro V, quando afirma que o équo (ou equitativo) é justo, mas não no sentido de legal ou segundo a lei, mas (precisamente) enquanto uma forma de retificação da justiça legal. E especificamente se explica que há coisas que estão por natureza fora da previsão legal (que não pode ser nem totalizante nem totalitária): “Esta também é causa de que nem tudo se regule pela lei, porque sobre algumas coisas é impossível estabelecer uma lei”.

19.Ora, evidentemente, não pode haver lei que seja precisa e justa na consagração de critérios (nem um algoritmo, hoje em dia, certamente) capazes de resolver plenamente as questões indemnizatórias, como esta.

E não se esqueça que a equidade não é um super-conceito (Oberbegriff) espúreo, errático, ou sequer categoria de um para-direito, pré-direito, ou meta-direito. É antes um conceito rigorosa e cabalmente jurídico, que nem se pode dizer sequer apenas ou simplesmente “admitido” pela ordem jurídica, porque está mais que apenas isso: nela se encontra plenamente integrado, dela sendo plena parte constituinte. E mesmo parte do direito positivo e para que o “direito legal” ou “legislado” remete.

Não nos devemos deixar iludir pela formulação (em pano de fundo positivista legalista, naturalmente) um tanto defensiva do art. 4.º do Código Civil. Ao de-limitar os casos de aplicação da equidade legalmente admissíveis, desde logo no início desse corpus iuris, a lei deixa de fora qualquer dúvida sobre uma sua pretensa ajuridicidade ou qualidade de mero critério moral, etc.

E na questão que nos importa até a lei é clara e explícita, remetendo para danos não patrimoniais designadamente no n.º 1 do art. 496 do CC.

20.São multidão as definições, descrições e tópicas aproximativas das noção, conceito e ideia de Direito (e mesmo autores como Michel Villey e Francisco Puy, que da matéria têm uma visão panorâmica, renunciaram a um empreendimento desse tipo; dizia também o romanista Sebastião Cruz que definir é de-limitar, o que empobrece). Contudo, sempre nos serviremos, para deixar as ideias mais claras, do incontestado privatista francês François Gény, no seu clássico Science et Technique em droit prive positif (2.ª tir., Paris, Sirey, 1922). Note-se que não é um tratado de esotérica jusfilosofia, mas de uma obra que, logo no título, se quer científica e técnica e no domínio específico do Direito Privado positivo. Nada, pois, de mais diretamente adequado ao nosso problema.

Procurando uma aproximação ao Direito através do estudo de vários tipos de normas, acaba por encontrá-lo em normas sem dúvida com tendência a um constrangimento social (vol. I, p. 48), mas também considera que “as regras de Direito visam necessariamente, e, creio, exclusivamente, a realização da justiça” (vol. I, p. 49). E não estaremos a pensar em juízos equitativos e afins quando lemos esta passagem, além do mais de imensa atualidade (dados os rumos doutrinais nesse sentido):

“Em si, o Direito positivo é antes de mais, essencialmente, uma arte, se por tal entendermos todo o mecanismo de concretização dos preceitos vitais (leis adquiridas e crenças), em vista de um fim prático. Mas a arte (assim entendida), que não faz senão adaptar os meios aos seus fins, supõe estabelecidos os fins em si mesmos (...) De forma que, no seu conjunto, o Direito nos surge como uma arte fundada na ciência.”.

Arte boa e équa (jus est ars boni et aequi), já se dizia do Direito entre os Romanos.

  21.Sem ser necessário entrar em doutrina estrangeira e nas subtilezas da expressão “equity” (cf. os nossos artigos “Equity” e “Equity law” na “Verbo. Edição do Século XXI”, Lisboa / São Paulo, vol. X, cols. 545 ss. e 547 ss.), sempre se recordará, de entre os mais modernos clássicos, um John Rawls considerando a “justiça como equidade” (justice as fairness – embora esta palavra possa também ser traduzida, por exemplo, por lisura – A Theory of Justice, ed. revista, Cambridge, Ms., Harvard Univ. Press, 1991, p. 3 ss. et passim) e, entre nós, a equidade como “momento da concreta realização do direito” (A. Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1968-1969, p. 244) (cf. estes e outros passos na apologia da equidade – por exemplo citando Orlando de Carvalho –  que constitui o artigo de Alexandre Libório Dias Pereira, «Ius est Ars Boni et Aequi»: Da Equidade e da Arte de Bem Interpretar toda a Regra Jurídica, in RJLB, Ano 1 (2015), nº 3, p. 86 ss., máx. p. 87).

22.Se a equidade é “momento da concreta realização do Direito” (Castanheira Neves, op. loc. cit.), ou “medida das medidas” (Orlando de Carvalho, Ius — Quod iustum?, BFDUC, LXXII, 1996, p. 10) não pode estar no simples plano da factualidade a ter em consideração, a interpretar (Théodore Ivainier, L'Interprétation des faits en Droit, Paris, LGDJ, 1988) ou a dar como provada. Está noutro plano, não do ser (sein), mas do dever-ser (sollen), ou no caminho para ele.

23.E, por outro lado, o que são factos? Comecemos pelo facto jurídico: Acontecimento que produz efeitos na ordem jurídica (Marcello Caetano), acontecimento ou evento que produz efeitos jurídicos (Castro Mendes), evento juridicamente relevante (João Baptista Machado), todo o evento ou mudança que provoca efeitos jurídicos (José de Oliveira Ascensão), indo este mais longe: “Toda a situação jurídica é mesmo por natureza um efeito de factos” (Direito Civil. Teoria Geral, vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 10).

Carlos Alberto da Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), por exemplo, é dos que distinguem, com recorte certeiro, factos jurídicos (os “juridicamente relevantes”) e os “factos sociais ou naturais indiferentes ao direito, isto é, desprovidos de qualquer eficácia jurídica” (p. 355 ss).

24.De qualquer forma, sempre os factos são do domínio do fenómeno, e apesar de as suas motivações, se forem voluntários, poderem estar tingidas de sentido e consequências ético-jurídicas, não são facilmente confundíveis com o Direito na sua vertente judicatória. Os atos jurídicos e os negócios jurídicos têm, é certo, uma forte componente de ligação com o Direito que em alguns momentos os podem fazer considerarem-se juridicidade (e pense-se até, por exemplo, nos atos reais ou operações jurídicas – a que a lei liga certos efeitos jurídicos – v. ibidem, p. 358). Mas não são entidades da mesma natureza. O que os separa não é medida, não é grau, nem mesmo perspetiva, é mesmo uma radical e essencial diversidade ontológica. Factos são factos, Direito é Direito.

25.É verdade que a juridicidade, em sentido lato, pressupõe entidades como “norma, facto e valor” (tridimensionalidade sobretudo divulgada por Miguel Reale, Filosofia do Direito, 19.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999), e ainda texto (José Calvo González) e até justiça (Paulo Lopo Saraiva) (cf. o Paulo Ferreira da Cunha, Filosofia do Direito, 2019, p. 371 ss.). Simplesmente, há a distinguir de um lado o facto e o texto, que são elementos materiais, dos elementos propriamente normativo-axiológicos, como a norma (e o princípio, que é norma também; sendo inclusivamente norma a Constituição, mesmo a principiológica, como sublinhou, v.g., García de Enterria), e o valor. Ora a Equidade tem que ter em consideração factos (isso é essencial, é uma sua conditio sine qua non). Tem que se balizar no contexto das normas (donde alguma doutrina se preocupe em delimitar os casos em que a equidade pode legalmente agir), que são hoje em dia sempre escritas (plasmadas num texto), e reportar-se aos valores, e muito especialmente ao valor Justiça. Mas o dever ter em consideração os factos não faz da equidade facto ou conjunto de factos, em vez de Direito e aplicação de Direito.

26.A distinção entre questão-de-facto e questão-de-direito, sendo sem dúvida complexa, como sublinham Henke e Kuchinke, inter alia, e nessa linha é reconhecido por um Jauernig, contudo pode aquilatar-se com clareza muito nítida a partir do sucinto texto que ao tema dedicou no seu Direito Processual Civil (trad. port. de Silveira Ramos, Coimbra, Almedina, 2002, p. 386):

“Visto que a instância de revista realiza apenas em princípio um exame jurídico, é necessária a distinção de questões de facto de questões de direito. A delimitação é difícil (...). Às questões de direito pertencem o menosprezo da norma jurídica aplicável, dos elementos constitutivos abstratos, a subsunção à norma dos factos constatados (p. ex., a conceitos como a negligência, atentado aos bons costumes, culpa comum, motivo ponderoso, pertinência do vício, ofensa da boa fé, erro, dissensão, etc.). (...) Nas questões de facto tem de contar-se a determinação de um facto concreto, por ex., que a declaração foi expressa e qual o seu teor, e ainda a apreciação das provas, por ex., a credibilidade duma testemunha, a força probatória de uma carta como documento particular de informação. Também a interpretação duma declaração de vontade habitual é questão de facto. Contudo, é questão de direito se a interpretação infringe normas de interpretação (...), leis do raciocínio ou regras de experiência ou não observa disposições legais (...)”.

            O conjunto de questões que a Equidade coloca parece, assim, muito mais pender para o conjunto das que são consideradas aqui explicitamente como de Direito que para o rol aqui avançado como sendo questões de facto. Parece haver, na verdade, uma até intuitiva homologia de problemas, um ar de família entre essas questões (vejam-se designadamente os conceitos como a negligência, atentado aos bons costumes, culpa comum, motivo ponderoso, pertinência do vício, ofensa da boa fé, erro, etc.) e a Equidade. O mesmo não ocorrendo com os problemas elencados como sendo “de facto”.

27.Assim, não pareceria haver dúvidas “de que lado estará” a Equidade. Como disse Placentino de Montpellier, a equidade é convenientia rerum, sim, é adequação à coisa (deve estar adequada aos factos...), mas não é a própria coisa, a coisa em si mesma, porque, como dizia Baldo, é antes “aquilo a que a razão natural persuade”. Há até uma alusão ou sabor retórico nesta fórmula.

28.A nossa Jurisprudência, e em especial a do Supremo Tribunal de Justiça, consagra alguns casos significativos de recurso à Equidade em situações semelhantes à presente. Assim, por exemplo:

“I - A lei não obsta a que a indemnização do lesado por danos futuros tenda a representar um capital que se extinga ao fim da sua vida activa e que seja susceptível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
II - No cálculo do referido capital, à luz de juízos de equidade, devem ser considerados, inter alia, se possível, a natureza do trabalho realizado pela vítima, o rendimento por ela auferido, as suas condições de saúde ao tempo do evento, o tempo provável do trabalho que realizaria e a depreciação da moeda (05-02-2004 - Revista n.º 83/04 - 7.ª Secção – Relator: Conselheiro Salvador da Costa).

Ou ainda: “IV - O montante indemnizatório correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à sua situação económica e à do lesado e às demais circunstâncias do caso.”
 (04-03-2004 - Revista n.o 4439/03 - 2.ª Secção – Relator: Conselheiro Santos Bernardino).

E novamente: “I - O recurso às fórmulas matemáticas ou de cálculo financeiro para a fixação dos cômputos indemnizatórios por danos futuros/lucros cessantes não poderá substituir o prudente arbítrio do julgador, ou seja a utilização de sãos critérios de equidade, de resto em obediência ao comando do n.º 3 do art.º 566 do CC.” (15-01-2004 - Revista n.º 3926/03 - 2.ª Secção – Relator: Conselheiro Ferreira de Almeida).

29.Em abono da tese do aumento da indemnização aduz o Recorrente argumentos ponderosos e pertinente jurisprudência. Nomeadamente: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2012 - Revista n.º 991/08.3TJVNF.P1.S2 - 6.ª Secção – Relator: Conselheiro Azevedo Ramos; Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 11-09-2012 - Revista n.º 30/05.6TBPNC.C1.S1 - 1.ª Secção – Relator: Conselheiro Mário Mendes; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-06-2012 - Revista n.º 4954/07.8TVLSB.L1.S1 - 6.ª Secção – Relator: Conselheiro Fonseca Ramos; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2018 - Revista n.º 652/16.0T8GMR.G1 .S2 - 7.ª Secção – Relatora: Conselheira Maria do Rosário Morgado. Feita uma global comparação das situações de facto e dos montantes arbitrados, nestes e noutros casos, e relacionando-os com a situação sub judice, revela-se a necessidade de ponderar.

30.Cremos, antes de mais, que deve prevalecer um juízo de equidade na apreciação destas situações (sem mais preocupações de enquadramento, que esperamos já dilucidadas pelas considerações supra). E esse é, a nosso ver, o entendimento legal, desde logo em sede geral (v.g. art. 496, n.º 4 CC: “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal (…)” e art. 566, n.º 3: “Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”) e jurisprudencial.

31. Não se ignora que este Supremo Tribunal de Justiça por vezes tem propendido para um entendimento especificador da forma como pode conhecer da equidade (por exemplo, apartando juízo de justiça normativa de juízo de justiça concreta), por não a considerar “em rigor” questão de direito. Assim, ainda recentemente:

““o julgamento de acordo com a equidade envolve um juízo de justiça concreta e não um juízo de justiça normativa, razão por que a determinação do quantum indemnizatório não traduz, em rigor, a resolução de uma questão de direito.

Neste contexto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objetiva e subjetiva dos prejuízos sofridos.

A sua apreciação cingir-se-á, por conseguinte, ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado”. (Acórdão n.º 2706/17.6T8BRG.G1.S1.,  7.ª Secção, tendo como Relatora a Conselheira Maria do Rosário Morgado).

Passagem esta remetendo em nota para Ac. STJ de 14.12.2017, Revista nº 589/13.4TBFLG.P1. Relatora: Conselheira Fernanda Isabel Pereira).

32.Tudo ponderado, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que se trata essencialmente de um rigor classificatório que na prática não obsta ao vero conhecimento em sede de uma equidade prática e concreta. Porquanto “controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado” realmente, na grande maioria dos casos, desde que feito com espírito (animus) de Justiça que sempre deve animar o julgador, conseguirá obter resultados muito idênticos, se não até exatamente os mesmos, que o uso de uma equidade sem limites (que na verdade é uma componente da Justiça, como bem recorda António Braz Teixeira, Reflexão sobre a Justiça, in “Nomos. Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado”, n.º 1, Janeiro-Junho 1986). Parte da Justiça que é, da equidade dificilmente se consegue prescindir, quando tenha pertinência para a concretização (precisamente concretização) dessa mesma Justiça. Sobre a ligação da Equidade e da Justiça, especificamente em sede de dano moral, v.g., Maria Francisca Carneiro, na sua obra Método de valuación del daño moral, Buenos Aires, Hammurabi, 2001, assim comenta o nosso sistema (tradução nossa): “na nossa opinião, no direito português do ((dano)) moral, o que mais chama a atenção, o particular e diferente do que predomina no Ocidente, é que a fixação do montante da indemnização se deve dar pela equidade (própria da natureza da justiça) e não pelo arbítrio (que é uma falácia arbitrária)” (p. 105).

33.E permita-se-nos assinalar que a consideração dos pressupostos normativos do recurso à equidade (que é óbvia baliza imposta pela ordem jurídica – desde logo na dimensão da legalidade) e os limites de proporcionalidade e igualdade que permitam atingir um valor razoável na indemnização, como é o que se discute, são critérios absolutamente pertinentes.

Ou seja, ainda que não se considere a equidade tout court e na sua máxima e livre extensão aplicativa uma matéria de direito, ao limitar a sua apreciação a questões de proporcionalidade e igualdade com vista à obtenção da razoabilidade no valor encontrado, não se fecha a porta à Justiça pela total limitação dessa sua válvula de segurança, e tal poderá certamente apreciar-se pela justeza dos julgados nessa ordem de ideias.

34.Cremos assim que o obstáculo por assim dizer epistemológico (porque de ordem conceitual) que se poderia colocar à consideração da equidade acaba por poder ser entendido, no limite, um problema de designação e (concedamos) de algumas cautelas (essas justificadas) para que não se caísse no que consideramos ser já negação da equidade, ou seja, juízos desvinculados e subjetivistas de “direito livre”. Não repugna, de modo algum, balizar a equidade nos termos e limites da proporcionalidade, da igualdade e da razoabilidade (parâmetros que também de forma alguma estão isentos de polissemia e possíveis derrapagens semânticas). E é o que faremos sempre que a ela nos referirmos. Também, por exemplo, a jurisprudência germânica quando desenvolve o seu labor no domínio da boa fé (cf., entre nós, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984) acaba por se abeirar, se não mesmo por adentrar-se no terreno da Equidade. Havendo, assim, um diálogo e por vezes mais ou menos subtil fungibilidade entre categorias, conceitos, institutos. O que, se torna difícil categorizações rígidas e didáticas, pode contribuir para o objetivo principal do trabalho jurisprudencial, que não pode deixar de ser a constante e perpétua vontade de justiça.

35.O desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial (v., v.g., já Martim de Albuquerque, com a colaboração de Eduardo Vera Cruz, Da Igualdade. Introdução à Jurisprudência, Coimbra, Almedina, 1993; Acórdãos do Tribunal Constitucional 563/96, 319/00, 232/03 e 254/07) mais recente sobre aqueles três conceitos, que são princípios, e, pelo menos no caso da igualdade, valor, leva mesmo a ponderar que, pelo menos por vezes e em certo sentido, o uso do conceito, mais antigo (mas nem por isso muito mais elaborado), “equidade” acaba por ser deles “um outro nome”, uma forma de os sintetizar de uma forma prática e com pergaminhos históricos mais antigos e reconhecidos. (v., em geral, inter alia, José Sérgio da Silva Cristóvam, Colisões entre Princípios. Razoabilidade, Proporcionalidade e Argumentação Jurídica, Curitiba, Juruá, 2006; Willis Santiago Guerra Filho, Notas em torno ao Princípio da Proporcionalidade, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, ed. de Jorge Miranda, Coimbra, Coimbra Editora, 1996; Carolina Pereira Saéz, Una Contribución al estudio del empleo del Principio de Proporcionalidade en la jurisprudência reciente del Tribunal Constitucional Español, Separata do “Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña”, 8, p. 1043 ss.) Embora também haja riscos interpretativo / aplicativos na convocação da igualdade, por exemplo (cf. Paulo Ferreira da Cunha Direito Constitucional Anotado, Lx., Quid Juris, 2008, p. 128 ss.). E já tenha havido quem lhe preferisse, até constitucionalmente, a equidade – mas decerto por daquela ter uma visão muito aritmética e estática e não geométrica e dinâmica.

36.Seja como for, também proporcionalidade, igualdade e razoabilidade levam a que o montante da indemnização por danos não patrimoniais não possa ser considerado uma espécie de bónus ou suplemento, mas, pelo contrário, como diz a que nos afigura melhor e já aceite jurisprudência,

«A indemnização por danos não patrimoniais terá por finalidade proporcionar um certo desafogo económico ao lesado que de algum modo contrabalance e mitigue as dores, desilusões, desgostos e outros sofrimentos suportados e a suportar por ele, proporcionando-lhe uma melhor qualidade de vida, fazendo eclodir nele um certo optimismo que lhe permita encarar a vida de uma forma mais positiva.

Isto é, esta indemnização destina-se a proporcionar, na medida do possível, ao lesado uma compensação económica que lhe permita satisfazer com mais facilidade as suas necessidades primárias que possam constituir um alívio e um consolo para o mal sofrido.» Cf. Acórdão de 11-01-2011 - Revista n.º 210/05.4TBLMG.P1.S1 - 1.ª Secção – Relator: Conselheiro Garcia Calejo.

Em sentido semelhante:

4. A indemnização por danos não patrimoniais - que visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido - deve ser significativa, e não meramente simbólica.

5. Indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária: a indemnização deve ser fixada segundo critérios de equidade, atendendo às circunstâncias referidas no art. 494º do CC, o que significa que o juiz deve procurar um justo grau de "compensação".

(03B3528. N.º convencional: JSTJ000, SJ200311200035282, 20-11-2003. Relator: Conselheiro Santos Bernardino).

           

37.É absolutamente certo que os danos morais a considerar hão-se ser graves, como explicita o art. 496, n.º 1 CC. E que “a gravidade deve medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado; e, por outro lado, deve ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (04-03-2004 - Revista n.º 4439/03 - 2.ª Secção -  Relator: Conselheiro Santos Bernardino – sumário, III). Mas bastará recordar a matéria de facto provada para se aquilatar da gravidade requerida.

38.Por outro lado, vão fazendo o seu curso na jurisprudência a invocação dos critérios do Acórdão da Relação de Coimbra, de 04/04/1995, CJ, tomo II, pág. 23, e, em geral, a abertura a uma não estrita consideração valores fixados nas Portarias n.º 377/2008 de 26/05, e n.º679/2009, de 25/06, por exemplo.

39.Tendo em consideração os sofrimentos, traumas e medida da incapacidade, a total ausência de culpa, o facto de que, tratando-se de um trabalhador rural e de trabalhos pontuais, a presumível vida ativa seria mais longa que o normal naqueles que contam com o relativo conforto de uma reforma “clássica”, e os cálculos que foram apresentados (que se dão por reproduzidos), não considerando sequer o período de quase 4 anos que mediou entre o acidente e a sentença proferida pela 1.ª instância (22-06-2015 e 30-03-2019), em que o sinistrado teve que haver-se com as suas próprias dificuldades e as angústias psicológicas da (natural) incerteza do pleito, cremos que é justo e équo arbitrar uma indemnização que tenha ainda mais em consideração o sentido não acanhado e miserabilista da jurisprudência e da doutrina. E essa perspetiva é de direito, e não de simples assistencialismo. Aliás, “A presença do direito é a antítese do assistencialismo”, como encerra a sua análise sobre o tema Aldaísa Sposati (in Dicionário de Políticas Públicas, org. de Geraldo Di Giovanni e Marco Aurélio Nogueira, 2.ª ed., São Paulo, Unesp/Fundap, 2015, p. 94). Por outro lado, é hoje claríssimo que, sobretudo em matéria de danos não patrimoniais, estão em causa direitos humanos fundamentais constitucionalmente protegidos. Essa uma dimensão a ter, pelo menos, sempre em pano de fundo.

40.Reconhecendo-se explicitamente o mérito da douta sentença da 1.ª instância, considera-se que os valores pedidos pelo A. não são, de modo algum, exagerados, desde logo se contabilizarmos e entre si apartarmos as parcelas do dano moral e do dano patrimonial, e se considerarmos a função da indemnização do dano moral tal como, por exemplo, faz a jurisprudência supracitada (Acórdão de 11-01-2011 - Revista n.º 210/05.4TBLMG.P1.S1 - 1.ª Secção – Relator Conselheiro Garcia Calejo). Ou seja, parafraseando um conhecido livro de Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously, Harvard, Harvard Univ. Press, 1977), levando a sério o dano moral.

41.Recordando que a Sentença recorrida condenou a ré FF S.A (ex-BB) a pagar ao autor: €50.000,00 a título do dano biológico e 3.610,00 de lucros cessantes e despesas, no total de € 53.610,00 (cinquenta e três mil e seiscentos e dez euros), não parece de modo algum excessivo discriminar danos patrimoniais e não patrimoniais, arbitrando aos primeiros uma quantia um pouco maior e considerando, atentas as vicissitudes referidas, aqui dadas por reproduzidas, um dano moral de € 20.000,00.

42.Justifica-se uma tal consideração do dano moral, pelo já exposto e tendo em consideração ainda a especificidade do espírito do nosso sistema: Maria Francisca Carneiro, professora brasileira que, na Argentina, na sua obra Método de valuación del daño moral, Buenos Aires, Hammurabi, 2001, p. 105. E a autora cita Delfim Maya de Lucena, Danos não patrimoniais, Coimbra, Almedina, 1985, designadamente pp. 17 e ss., sublinhando a importância, para este autor (inter alia) de se não esquecer que a finalidade principal da compensação é proporcionar ao lesado meios de diminuição da sua dor. O que dificilmente se consegue sem autonomização e o tomar a sério do dano moral.

403.Sendo assim, procede, globalmente considerada, a doutrina das Conclusões do Recurso do Recorrente.

IV

Decisão

 Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a revista, revoga-se a sentença recorrida e condena-se a ré a pagar ao A. as seguintes quantias:

a) danos patrimoniais no montante de € 57.200,00;

b) danos não patrimoniais no valor de € 20.000,00;

c) mantém-se a condenação a pagamento de lucros cessantes e despesas que o tribunal a quo já considerou, no valor de € 3.610,00;

d) juros dos danos patrimoniais à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento e dos danos morais, nos mesmos termos, desde a sentença;

e) Custas pela Recorrida e pela Recorrente em função do respetivo decaimento.

Lisboa, 17 de dezembro de 2019

Paulo Ferreira da Cunha - Relator

Maria Clara Sottomayor

Alexandre Reis - com declaração de voto

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Declaração de voto

A pretensão deduzida nesta revista interposta per saltum da 1ª instância visou apenas a reponderação dos montantes arbitrados com base em critérios de equidade para reparar as sequelas patrimoniais e não patrimoniais advindas ao recorrente, propondo este que os mesmos se situem nos valores que peticiona, por melhor se adequarem a tais critérios.
E, segundo me parece, a tanto se cinge a decisão ora obtida maioritariamente, ao arbitrar, também equitativamente, «uma quantia um pouco maior».
Ora, o segmento impugnado da sentença recorrida, ao aplicar juízos de equidade, não traduz, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pois assenta, não em critérios normativos, mas numa ponderação prudencial e casuística das circunstâncias do caso.
Assim, sendo o STJ (organicamente) um Tribunal de revista, fora dos casos previstos na lei, apenas conhece de matéria de direito e daí que quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, em princípio, não compete a este Tribunal a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar em função da ponderação das circunstâncias concretas do caso.
A este Tribunal caberá, tão-somente verificar, em segunda linha, se o referido juízo equitativo formulado pelas instâncias, dentro da margem de discricionariedade que lhes é consentida, não se revela colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade devendo, para tanto, ter-se em consideração «todos os casos que mereçam tratamento análogo», como o exige o art. 8º nº 3 do CC.
Portanto, à luz de tais razões, só haverá fundamento bastante para censurar o juízo formulado pelas instâncias e alterar o decidido, também com apelo à equidade, se puder afirmar-se, tendo em conta os critérios que vêm sendo adoptados, generalizadamente, por este Tribunal, que os montantes em apreço serão manifestamente desproporcionados à gravidade objectiva e subjectiva dos efeitos sofridos pelo lesado.
Pelo exposto, votei no sentido de que este Tribunal não conhecesse a revista interposta per saltum e determinasse a remessa dos autos à Relação, nos termos do art. 678º, nºs 1, c), e 4 do CPC

Lisboa, 17/12/2019

Alexandre Reis