Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3252/03.0TBVCT.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: BALDIOS
ÁGUAS
USUCAPIÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 05/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS
Doutrina: - Antunes Varela, in “RLJ”, Ano 115º/222.
- J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa” Anotada, 4ª Ed. Revista, Vol. I, pág. 988.
- Pires de Lima, in “RLJ”, Ano 96º/210.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., pág. 196; in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 305; In RLJ – Ano 115º/219, em anotação ao Ac. deste Supremo, de 15.01.81.
- Rodrigues Bastos, in “NOTAS ao CPC”, Vol. III, 3ª Ed., pág. 202.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º1, AL. B), 497.º, 498.º, 671.º, 1344.º, N.º1, 1390.º, NºS 1 E 2, 1547.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 82.º
LEI Nº 68/93, DE 04.09: - ARTIGOS 1.º, N.ºS1, 2 E 3, 4.º, N.1, 30.º, 42.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 20.06.00, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 03.03.05, IN COL/STJ – 1º/105;
-DE 25.10.05, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT;
-DE 23.03.06, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT;
-DE 03.10.06, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT;
-DE 25.02.10, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios.
II – Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis.
III – Quer o direito de propriedade, quer o direito de servidão previstos no nº1 do art. 1390º do CC, só podem ser constituídos por usucapião quando esta é acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
IV – Com as mencionadas visibilidade e permanência visa-se apoio fáctico para poder presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou a assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, salvaguardar a boa fé do comércio jurídico, relativamente a eventual adquirente, nos termos em que a lei pretende tutelá-la.
V – O caso julgado não pode afectar os terceiros que são sujeitos duma relação ou posição jurídica independente e incompatível com a das partes.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – O “Conselho Directivo de Baldios de Carvoeiro”, concelho de Viana do Castelo, instaurou, em 07.07.03, na comarca de Viana do Castelo (com distribuição ao 4º Juízo Cível), acção ordinária contra AA e BB e mulher, CC, pedindo:
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IQue se declare que:
a) – O talhão de terreno id. no art. 2º da p. i. é terreno baldio da freguesia de Carvoeiro, concelho de Viana do Castelo;
b) – Tal terreno e as águas nele nascentes e existentes no seu subsolo, para além de serem baldio, são possessões e propriedade comunitária cuja posse, gestão, uso e fruição (de terreno e águas) pertence à comunidade local, constituída pelo universo de compartes da freguesia de Carvoeiro;
c) – Tal terreno baldio e as águas nele nascentes ou existentes no seu subsolo são administradas pelos compartes, através da Assembleia de Compartes e Conselho Directivo, órgãos eleitos e constituídos nessa freguesia para esse fim;
IIQue os RR. sejam condenados a:
a) – Reconhecerem o peticionado nas als. anteriores;
b)– Restituir aos compartes, livres e devolutos de quaisquer encargos, o talhão de terreno descrito no art. 2º da p. i., bem como todas as águas nele existentes, quer nascentes à superfície, quer do seu subsolo, de que se tenham apropriado ilegalmente;
c) – Fechar o fosso mencionado na p. i., que abriram nesse talhão de terreno;
d) – Pagar ao A., a título de indemnização por danos causados nesse monte baldio, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença.
Contestaram os RR., no essencial impugnando o invocado direito de propriedade do A. sobre as águas nascentes e existentes no subsolo do terreno baldio e invocando a aquisição, por si e por usucapião, desse mesmo direito de propriedade sobre as mencionadas águas, direito esse que já lhes havia sido reconhecido por sentença proferida na acção sumária que correu termos no 2º Juízo Cível de Viana do Castelo, sob o nº 141/95, em que os, aqui, RR. figuraram como AA.
Deduziram, ainda, o incidente de intervenção principal activa do Estado Português, que foi rejeitado, tendo sido negado provimento ao correspondente agravo.
Foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.).
Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 03.06.05, com complemento em 19.09.05), sentença que julgou a acção, parcialmente, procedente.
Tendo apelado o A., a Relação de Guimarães, por acórdão de 26.10.06 (Fls. 677 e segs.) decretou a ampliação da b. i., com repetição do julgamento para apreciação da matéria aditada.
Culminando o cumprimento do decidido neste último aresto, veio a ser proferida (em 03.07.09) nova sentença que, julgando, parcialmente, procedente a acção, declarou que o monte constituído por terreno de mato, pinheiros, sobreiros e carvalhos, com a área de cerca de 25 000 m2, sito no lugar de Valinhas, freguesia de Carvoeiro, Viana do Castelo, que confronta, do Norte, com estrada municipal, do Sul, com estrada municipal e outros, do Nascente com estrada municipal, e, do Poente, com AA e caminho florestal, omisso na matriz predial e na Conservatória do Registo Predial, é terreno baldio da freguesia de Carvoeiro, administrado pelo A., condenando-se os RR. a reconhecer tais factos, sendo, ainda, julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao pedido relativo ao fecho do fosso aberto pelos RR. naquele monte.
Inconformado com o decidido em seu desfavor, apelou o A., tendo a Relação de Guimarães, por acórdão de 06.05.10 (Fls. 1127 a 1132vº) e no que, ora, interessa, julgado procedente o recurso, condenando (Cfr. também fls. 1153) os RR., AA e BB e mulher, CC, a reconhecerem que as águas nascentes e existentes no subsolo do monte já identificado são propriedade da comunidade local e administradas pelos compartes e, bem assim, a restituírem-nas ao A., “Conselho Directivo dos Baldios de Carvoeiro”.
Daí a presente revista trazida pelos RR.-apelados, visando a revogação do acórdão impugnado, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:
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1ª – A água da nascente é um bem imóvel autónomo e independente do monte baldio, sendo que os recorrentes fizeram prova da aquisição do direito de propriedade, por usucapião, dessa água - vd. al. b), n°1, art. 204° e arts. 1316°, 1251°, 1258° e ss e 1287° CC;
2ª – Os factos provados nos pontos 30 a 34 demonstram que os recorrentes fizeram obras visíveis e permanentes no prédio, pois que tiveram uma intervenção activa, efectiva e em concreto para poderem usufruir dessas águas - vd. art. 9° CC;
3ª – Caso não procedam as conclusões anteriores, deve então decidir-se pela existência de uma servidão de águas constituída por usucapião a favor dos recorrentes, por se encontrarem preenchidos todos os pressupostos legais - art° 30° Lei n° 68/93, de 4 Setembro, e arts 1547°, 1251°, 1258° e ss e1287°CC;
4ª – No provimento da revista, deve ser revogado o douto acórdão proferido e, caso assim se não entenda, deve o mesmo acórdão ser revogado, na parte em que condena os recorrentes a restituírem as águas ao A., tendo em conta a servidão de águas a favor dos mesmos.
Contra-alegando, defende o recorrido a manutenção do julgado.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

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2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:
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1 – Na freguesia de Carvoeiro, lugar de Valinhas, existe um monte constituído por terreno de mato, pinheiros, sobreiros e carvalhos, com a área de cerca de 25 000 m2, que confronta, do Norte, com estrada municipal, do Sul, com estrada municipal e outros, do Nascente, com estrada municipal, e, do Poente, com AA e caminho florestal, omisso na matriz predial e na Conservatória do Registo Predial (A);
2 – O terreno referido em A), desde tempos imemoriais, é usado pela comunidade local da freguesia de Carvoeiro, sendo gerido e administrado de acordo com os usos e costumes locais, usado para pastagem de gado, colheita de lenha e matos (B);
3 – Tal uso é feito, há mais de 150 e 200 anos, ininterruptamente, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, convencidos de que o prédio pertence à comunidade dos habitantes de Carvoeiro (C);
4 – No dia 06.06.03, os RR. introduziram, no monte referido em A), uma máquina retroescavadora, tendo aberto um fosso com 8 m de comprimento, 2 m de largura e 3 m de profundidade (D);
5 – Para o referido em D) os RR. não deram conhecimento ao Conselho Directivo (E);
6 – O Presidente do Conselho Directivo embargou extrajudicialmente a obra, embargo esse que não foi ratificado (F);
7 – Em 27.04.95, os, aqui, RR. intentaram contra DD e mulher, EE, acção sumária que correu termos no 2º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 141/95 (G);
8 – Na acção referida em G), foi declarado que os AA. (aqui RR.) são proprietários da água da nascente identificada na matéria de facto (H);
9 – Foram os, ali, RR. condenados a demolir a obra que fizeram na proximidade da nascente e retirar os tubos que ali colocaram e que conduzem a água a sua casa (I);
10 – O Tribunal da Relação confirmou a decisão, tendo-a alterado em parte, de modo que os, ali, RR. foram condenados a demolir o fosso que abriram na proximidade da nascente e a retirar o tubo que colocaram e que conduz a água da referida nascente para a sua residência e unidade industrial (J);
11 – Corre termos no 2º Juízo Cível, por apenso à acção aludida em G), o processo de execução para prestação de facto nº 141-A/95 (L);
12 – No processo referido em L) e com data de 01.03.04, foi proferido o seguinte despacho:”Os exequentes podem executar ou mandar executar os trabalhos (art. 936º, nº1 do CPC) (M);
13 – Por escritura de habilitação e partilha outorgada, em 18.01.83, no 2º Cartório Notarial de Viana do Castelo, foram adjudicados ao R., BB, os seguintes prédios:
- Casa de habitação de rés-do-chão e 1º andar, situada em Vale, Carvoeiro, inscrita na matriz sob o nº 203;
- Casa térrea de habitação situada em Vale, Carvoeiro, inscrita na matriz predial sob o art. 204;
- Terreno de cultivo do lugar da vivenda, situado no lugar de Vale, Carvoeiro, inscrito na matriz sob o art. 2 165 (N);
14 – Por escritura de venda outorgada, em 22.07.69, no 2º Cartório Notarial de Viana do Castelo, AA declarou comprar a FF e GG, que, representados por HH, declararam vender, o prédio composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, sita no lugar de Vale, Carvoeiro (O);
15 – No monte referido em A), existe uma nascente de água e águas no subsolo (1º);
16 – Com a obra referida em D), os RR. pretendiam captar a água de uma nascente existente no monte, aludida na resposta ao quesito 1º (8º);
17 – A água referida em I) é a água aludida na sentença proferida na acção constante da al. G) (9º);
18 – As obras referidas em D) destinavam-se a executar a referida sentença (10º);
19 – A pendência da acção referida em G) era do conhecimento da generalidade dos habitantes da freguesia de Carvoeiro (11º);
20 – No dia 19.03.04, os RR., munidos de máquinas, deslocaram-se ao baldio e procederam, no local do fosso referido em D), a uma escavação lateral e vertical (12º);
21 – Não tendo dado conhecimento ao A. nem tido a sua autorização (13º);
22 – Com o referido na resposta ao quesito 12º, os RR. pretendiam captar a água de uma nascente existente no monte (14º);
23 – Nesse dia, os RR. instalaram um tubo de duas polegadas para condução da água (15º);
24 – Com tal acto diminuíram o caudal dos lençóis de água existentes no subsolo (16º);
25 – A nascente de água referida em H) alimentava um tubo de ¾ de polegada (17º);
26 – O tubo de duas polegadas leva 1 polegada e ¾ de água (19º);
27 – A escavação referida na resposta ao quesito 12º surgiu na sequência do despacho aludido em M) (20º);
28 – Na execução dos trabalhos, os RR. retiraram o tubo subterrâneo que os executados tinham instalado para a condução da água (21º e 22º);
29 – Procederam à colocação de um tubo que leva a água aos seus prédios (23º);
30 – Logo que instalaram o tubo, os RR. fecharam o fosso e alisaram o terreno do monte (24º);
31 – No sítio das Valinhas, freguesia de Carvoeiro, num terreno de monte, existe, há mais de 30 anos, uma nascente de água (25º);
32 – Há mais de 30 anos que os RR. começaram a aproveitar a água de tal nascente, que vinha, subterraneamente, para um terreno pertencente aos RR., encaminhando-a em direcção a uma poça por eles construída, cerca de 20 metros abaixo do local da nascente referida na resposta ao quesito 25º (26º e 27º);
33 – E a recolher e apresar as águas na referida poça, utilizando-as, depois, regularmente, para consumo doméstico e fins agrícolas (28º);
34 – Mais tarde, e dentro do seu terreno, os RR. fizeram uma construção em tijolo, coberta com placas, para apresamento da água vinda daquela nascente (29º);
35 – E fizeram sair dali um tubo que conduzia a água da nascente, numa extensão de cerca de 400 metros, até ao depósito situado no sopé do terreno de monte (30º);
36 – Desse depósito saem dois tubos, sendo um para os prédios referidos em N) e outro para os prédios aludidos em O) (31º);
37 – Os tubos referidos na resposta ao quesito 31º conduziam a água que ia sendo armazenada no depósito, numa extensão de cerca de 15 metros, e abasteciam as casas referidas na resposta ao quesito 31º, para fins domésticos e para rega das hortas plantadas nos respectivos logradouros (32º);
38 – Desde há mais de 20 anos que os RR. vêm procedendo à prática dos actos referidos nas respostas aos quesitos 26º a 32º, à vista de toda a gente, sem oposição de alguém, convictos de que não lesam ninguém e exercem um direito próprio como donos da água da nascente (33º).
3 - Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção (3) –, constata-se que as questões por si suscitadas e que, no âmbito da revista, demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso são, essencialmente, as seguintes:
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I – Se a água da nascente existente no terreno baldio pode ser considerada “um bem imóvel autónomo e independente do monte baldio”;
II – Se os recorrentes fizeram prova da aquisição, por usucapião, do respectivo direito de propriedade;
III – Se, em qualquer caso, terá de haver-se por constituído, em benefício dos prédios dos recorrentes mencionados nos autos, um correspondente direito de servidão quanto ao uso e fruição de tal água.
Apreciemos, então.

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4I – Nos termos do disposto no art. 1º, nº1 da Lei nº 68/93, de 04.09, “São baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais”, por estas se entendendo o universo dos compartes, o qual é constituído pelos moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio (nº/s 2 e 3 do mesmo art.). Aqueles constituem, em regra, “logradouro comum, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola” (art. 3º do mesmo diploma legal). Segundo J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (4) , os baldios incluem-se no sector comunitário integrante do sector cooperativo e social, previsto como um dos três sectores de propriedade dos meios de produção, no art. 82º da CRP, segundo a respectiva revisão de 2005, com o mesmo se pretendendo abranger “os meios de produção possuídos e geridos por comunidades territoriais sem personalidade jurídica («povos», «aldeias»), que são sobrevivências de antigas formas de propriedade comum da terra e dos meios de produção necessários à vida colectiva(moinhos, fornos, eiras, represas e levadas, colmeias, rebanhos, animais reprodutores, etc), sendo acompanhadas também de formas mutualistas de seguros colectivos (perda de animais, funerais, etc), também ela ainda sobrevivente no mundo rural”. E, na lição de tais Mestres (ob. e loc. citados), “…o direito de propriedade e de gestão dos bens comunitários pelos próprios «condóminos» está garantido, respectivamente, pelo direito de propriedade privada (art. 62º) e pelo direito à autogestão reconhecido no art. 61º, nº5…”
Por via do preceituado no art. 4º, nº1 da citada Lei, “Os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, excepto nos casos expressamente previstos na presente lei”. Dispondo-se, a este propósito, no art. 30º da mesma Lei que “Podem constituir-se servidões sobre parcelas de baldios, nos termos gerais de direito, nomeadamente por razões de interesse público”.
Paralelamente, estatuía-se, no art. 2º do DL nº 39/76, de 19.01 (revogado pelo art. 42º da sobredita Lei), que “Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião”.
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II – Confrontados com este obstáculo legal à aquisição, por usucapião, do direito de propriedade reportado à água nascida e/ou existente no subsolo do terreno baldio do recorrido-A., o qual ditou a procedência da apelação interposta por este último, com a inerente revogação do, em contrário, decidido na 1ª instância, ensaiam, engenhosamente, os recorrentes a transposição de tal obstáculo, sufragando a peregrina tese de que “a água da nascente é um bem imóvel autónomo e independente do monte baldio, sendo que os recorrentes fizeram prova da aquisição do direito de propriedade, por usucapião, dessa água”…
Não têm, porém e como insinuado já se deixou, razão.
Certo que, nos termos do disposto no art. 204º, nº1, al. b) do CC, “São coisas imóveis…as águas”.
No entanto, como decorre dum não longínquo acompanhamento das vicissitudes ocorridas no nosso mundo rural e, com a sua reconhecida autoridade, anotam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (5), “Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios, tal como a terra, as pedras, etc.”, só adquirindo autonomia e sendo consideradas, de per si, imóveis, quando desintegradas. Igual entendimento tendo sido perfilhado, designadamente, no Ac. deste Supremo de 03.03.05 (COL/STJ – 1º/105), de que foi relator o Ex. mo Cons. Azevedo Ramos, ora, 2º Adjunto.
Daí que, na constatada ausência de prova da sobredita desafectação legal ou negocial, tenham as questionadas águas de reger-se pelo estatuto legal do terreno baldio donde promanam, com a inerente impossibilidade jurídica da respectiva apropriação individual, designadamente por via de usucapião, mesmo que preenchidos estivessem os correspondentes requisitos (6)
Sendo, pois, totalmente desprovida de consistência jurídica a 1ª questão suscitada pelos recorrentes e supra elencada, o que, de um lado, determina a improcedência do, correspondentemente, alegado e concluído pelos recorrentes e, por outro lado, nos dispensa, por, assim, prejudicada, a abordagem da 2ª questão acima enunciada.
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III – Mas, será que os recorrentes-RR. poderão invocar a aquisição, por usucapião e em benefício dos seus prédios identificados nos autos, de uma servidão tendo por objecto o uso e fruição da água nascida e existente no subsolo do sobredito baldio?
Questão esta que, aproximando a factualidade provada dos pertinentes comandos legais, não pode, em nosso entender, deixar de ter uma resposta negativa.
Certo que, nos termos previstos no art. 30º da citada Lei nº 68/93, “Podem constituir-se servidões sobre parcelas de baldios, nos termos gerais de direito, nomeadamente por razões de interesse público”. Sendo inquestionável o direito de propriedade do A. sobre tais águas, porquanto proclama o art. 1344º, nº1, do CC que “A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico”.
E, conforme textua o art. 1390º deste mesmo Cod.: “Considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões (1)”.
Ensinando, a este propósito, os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (Ob. citada, Vol. III, 2ª Ed., pags. 305): “O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a da servidão…A constituição dum direito de propriedade depende da existência de um título capaz de a transferir; a constituição de uma servidão, da existência de um dos meios referidos no art. 1547º: contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa”. Ou, numa outra formulação dada à estampa pelo último dos sobreditos e saudosos Mestres (7): verifica-se “a possibilidade de sobre uma água existente ou nascida em prédio alheio se constituírem dois tipos distintos de situações: o direito de propriedade, sempre que, desintegrada a água da propriedade superficiária, o seu titular pode usá-la, fruí-la e dispor dela livremente; o direito de servidão, quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo ou de um outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente”.
No entanto, estipula o nº 2 do citado art. 1390º que: “A usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio: sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova”.
Na lição do Prof. Antunes Varela (citada anotação, in “RLJ – Ano 115º/222”), a ratio legis da exigência, no caso, da permanência e visibilidade das obras ou sinais equiparados reside na possibilidade, assim facultada, de presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, na necessidade de salvaguardar a boa fé do comércio jurídico, relativamente a eventual adquirente, nos termos em que a lei pretende tutelá-la. Coincidente sendo o correspondente ensinamento do Prof. Pires de Lima (8) .
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IV – Ora, no caso dos autos e como – muito bem – decidiu a Relação, a factualidade provada não nos demonstra que tenha ocorrido a construção de quaisquer obras que preencham a correspondente exigência constante do nº2 do citado art. 1390º, pelo que jamais poderia vir a ser configurada a servidão de águas prevista nos termos conjugados dos nº/s 1 e 2 do mencionado preceito legal, não se vislumbrando, por outro lado, nem tão pouco tendo sido, sequer, aventada pelos recorrentes, a existência da mesma servidão, agora emergente dos outros meios de constituição previstos no art. 1547º do CC.
Aliás, não poderá deixar de observar-se que a decisão final proferida nos mencionados autos nº 141/95 e tantas vezes invocada pelos RR.-recorrentes não poderá ser oposta ao A-recorrido, contra o qual não pode formar caso julgado (material), como, necessariamente, decorre do preceituado no art. 671º, nº1, em conjugação com os, aí, referidos arts. 497º e 498º. Na realidade, este último tem, no configurado quadro fáctico-jurídico, de ser considerado um terceiro titular de uma relação jurídica incompatível com a relação que a sobredita decisão final resolveu, sendo, pois, juridicamente prejudicado – como os presentes autos, eloquentemente, evidenciam – se tivesse de reconhecer o correspondente caso julgado (9) .
Tudo impondo, assim, a rejeição da pretensão recursiva dos RR., sem necessidade, pois, de, aqui e agora, evidenciar e extrair as correspondentes ilações, da diferenciação de nascentes para que apontam os factos acolhidos em 8, 20, 23, 25 e 26 de 2 supra.
Com o que improcedem as conclusões formuladas pelos recorrentes, nenhuma censura merecendo o acórdão recorrido.

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5Concluindo:
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I – Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios.
II – Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis.
III – Quer o direito de propriedade, quer o direito de servidão previstos no nº1 do art. 1390º do CC, só podem ser constituídos por usucapião quando esta é acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
IV – Com as mencionadas visibilidade e permanência visa-se apoio fáctico para poder presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou a assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, salvaguardar a boa fé do comércio jurídico, relativamente a eventual adquirente, nos termos em que a lei pretende tutelá-la.
V – O caso julgado não pode afectar os terceiros que são sujeitos duma relação ou posição jurídica independente e incompatível com a das partes.

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6 – Em face do exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lx, 31 de Maio de 2011

Fernandes do Vale (Relator)
Marques Pereira
Azevedo Ramos
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(1) Processo autuado, neste Tribunal, em 22.02.11.
(2) Relator: Fernandes do Vale (20/11)
Ex. mos Adjuntos:
Cons. Marques Pereira
Cons. Azevedo Ramos

(3) Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados

(4) In “Constituição da República Portuguesa” Anotada, 4ª Ed. Revista, Vol. I, pags. 988.

(5) In “CC Anotado”, Vol. I, 4ª Ed., pags. 196
(6) Em sentido concordante, podem, designadamente, mencionar-se os Acs. deste Supremo de 20.06.00 (Cons. Pinto Monteiro), 25.10.05 (Cons. Azevedo Ramos), 23.03.06 (Cons. Salvador da Costa), 03.10.06 (Cons. Sousa Leite) e 25.02.10 (Cons. Álvaro Rodrigues), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

(7) In “RLJ – Ano 115º/219”, em anotação ao Ac. deste Supremo, de 15.01.81.

(8) In “RLJ – Ano 96º/210”.

(9) Neste sentido, designadamente, Cons. Rodrigues Bastos, in “NOTAS ao CPC”, Vol. III, 3ª Ed., pags. 202